Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2978/20.9T9FAR.E1
Relator: LAURA GOULART MAURÍCIO
Descritores: COMUNICAÇÕES POR CORREIO ELETRÓNICO
ASSINATURA DIGITAL
APRESENTAÇÃO DOS ORIGINAIS DO ACTO TELECOPIADO
PROPORCIONALIDADE
Data do Acordão: 05/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. A falta de apresentação do original do requerimento para abertura da instrução das arguidas, remetido a juízo, por correio eletrónico simples e sem validação cronológica, no prazo legal de 10 dias (cfr. disposições conjugadas dos artigos 4º, nº 3, do Decreto-Lei nº 28/92, de 17 de Fevereiro e no artigo 6º, nº 1, al. b), do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro), não tem como consequência imediata a rejeição liminar daquele requerimento, por inadmissibilidade legal, nos termos do disposto no artigo 287º, nº 3, do Código de Processo Penal.
II. Sufragamos o entendimento de que a rejeição do requerimento de abertura de instrução, remetido a juízo, (…), através de correio eletrónico, por inobservância dos legais requisitos de forma para a prática do acto, por esse meio, deverá pressupor a prévia notificação determinada pelo juiz para apresentar o original do requerimento de abertura de instrução, para que seja incorporado no processo e que, só no caso, de, na sequência dessa notificação, o requerente não apresentar o original desse requerimento, poderá, com esse fundamento, rejeitar o requerimento de abertura de instrução.
III. O dever de notificar o requerente para apresentar o original do requerimento para a abertura da instrução, que foi remetido por correio eletrónico simples e sem validação cronológica, antes de rejeitar o requerimento de abertura de instrução corresponde à exigência de um processo equitativo, revelando-se desproporcional, sancionar essa omissão, com a rejeição liminar.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório

No Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Instrução Criminal ... - Juiz ..., no âmbito do Processo 2978/20.9T9FAR foi proferido, em 18 de dezembro de 2022, o seguinte despacho, que se transcreve:

“Finda a fase de inquérito foi proferido, a 21.06.2022, despacho de arquivamento contra A..., SA

Inconformada, veio Alnoorgest- Gestão e Atividades Hoteleiras, SA, requerer a abertura de instrução, apresentando o correspondente requerimento através de correio electrónico e não juntando o respectivo original no prazo legalmente previsto.

Cumpre apreciar e decidir.

Compulsados os autos constata-se que Alnoorgest- Gestão e Atividades Hoteleiras, SA, no dia 11 de Agosto de 2022, apresentou requerimento de abertura de instrução através de correio electrónico genérico com o recurso ao servidor de correio electrónico da Ordem dos Advogados. Porém, o mesmo não contem qualquer assinatura electrónica avançada nem a aposição de selo temporal por terceira entidade idónea.

Sem prescindir, o original do requerimento de abertura de instrução não foi remetido ao tribunal.

Ora, reza o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 3/2014 que “em processo penal, é admissível a remessa a juízo de peças processuais através de correio electrónico, nos termos do disposto no artigo 150 n.º 1 al. d) e n.º 2 do CPC e na Portaria n.º 624/2004, de 16/6, aplicáveis por força do disposto no artigo 4.º do CPP.”.

Já o artigo 3.º, n.º 4 da Portaria n.º 624/2004, de 16 de Junho, dispõe que “O envio de peças processuais por correio electrónico equivale à remessa por via postal registada, nos termos do n.º 3 do artigo 6.º do DL n.º 290-D/99, de 2/8, bastando para tal a aposição de assinatura electrónica avançada.” e o n.º 6 do mesmo normativo assinala que “A expedição da mensagem de correio electrónico deve ser cronologicamente validada, nos termos da al. u) do artigo 2.º do DL n.º 290-D/99, de 2/8, com a redacção que lhe foi dada pelo DL n.º 62/2003, de 3 de Abril, mediante a aposição de selo temporal por uma terceira entidade idónea.”.

Por sua vez, o artigo 10.º da aludida portaria sustenta que à apresentação de peças processuais através de correio electrónico simples ou sem validação cronológica é aplicável, para todos os efeitos legais, o regime estabelecido para o envio através de telecópia.

No caso dos autos, conforme se expôs, o requerimento de abertura de instrução foi remetido a juízo por correio electrónico não contendo qualquer assinatura electrónica avançada, gozando, nestes termos do valor da simples telecópia.

Tendo enviado o requerimento de abertura de instrução através de correio electrónico, a assistente estava obrigada a enviar o original no prazo máximo de 10 dias, o que foi preterido, violando-se, assim, o estatuído no art.º 4.º, n.º3 do Decreto-lei n.º 28/92, de 27 de Fevereiro.

Sublinha-se que, para o efeito, não se impõe a realização de qualquer convite à junção aos autos dos respectivos originais – veja-se neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 13.04.2021, proc. n.º 914/18.1T9ABF-B.E1, relator: Maria Fernanda Palma, disponível em www.dgsi.pt.

Assim, por todo o exposto, atendendo a que o requerimento de abertura de instrução foi apresentado por um meio legalmente inadmissível, não tendo aptidão para desencadear quaisquer consequências jurídicas, decide-se rejeitar tal requerimento, ao abrigo do estabelecido no artigo 287.º, n.º 3, do Código Processo Penal.

Notifique.

Oportunamente, arquive.”

*

Inconformada com o assim decidido, recorreu a assistente Alnoorgest, Gestão e Actividades Hoteleiras, S.A. extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

1. Decidiu a instância recorrida rejeitar o requerimento de abertura da instrução com fundamento na circunstância de a assistente ter remetido aos autos esse requerimento por correio eletrónico simples, desacompanhado do envio do documento original do RAI.

2. Todavia, tal causa de rejeição não consta da previsão do nº3 do artigo 287.° do CPP, dado não se tratar de uma questão relacionada com o prazo para dedução da instrução, nem com a competência do juiz ou com a faculdade processual de no caso concreto ser admitida, ou não, a abertura de instrução.

3. Por outro lado, o conceito jurídico de inadmissibilidade legal da instrução apenas temaplicabilidade nas situações em que ocorra uma deficiência de conteúdo, mas não de forma.

4. Por conseguinte, ao ter a decisão recorrida decidido não aceitar a abertura de instrução, por inadmissibilidade legal decorrente da não junção do documento original do RAI nos autos, aplicou de forma incorreta o estatuído no nº3 do artigo 287.° do CPP.

5. Acresce que, o RAI junto pela assistente nos autos não tem o valor de simples telecópia, ao invés do decidido na decisão sob recurso.

6. Com efeito, como resulta dos autos, o RAI foi junto aos autos pelo mandatário da assistente, mediante a expedição por correio eletrónico da Ordem dos Advogas, tendo esse requerimento sido assinado por este mandatário, seja mediante a oposição de assinatura em documento, seja mediante o seu certificado digital.

7. Por outro lado, resulta igualmente do teor da referida junção um selo temporal, inserido pela Ordem dos Advogados, de onde consta o dia, hora e minuto dessa junção.

8. Todavia, sem conceder, mas a considerar-se que a remessa aos autos do RAI ocorreu por correio eletrónico simples, e constando do teor da comunicação do mandatário a respectiva validação temporal,

9. aludindo o artigo 10.° da Portaria nº 642/2004, de 16/06 à injunção “ou”, tal será o suficiente para se considerar que o RAI junto pela assistente nos autos não tem o valor de telecópia, motivo pelo qual também por este facto aplicou a decisão recorrida de forma incorreta o nº 2 do artigo 287.° do CPP.

10. Acresce ainda que, a rejeição liminar e imediata do RAI apresentado pela assistente, mesmo que por mera hipótese seja qualificado como enviado por correio electrónico simples, com o valor de telecópia, traduz-se numa cominação desproporcionada,

11. pelo que, ao invés, deveriam os autos previamente ter notificado a assistente para apresentar o documento original do RAI, para que fosse incorporado no processo,

12. motivo, pelo qual, só no caso de, na sequência dessa notificação, a ora recorrente não apresentasse o original desse requerimento, poderia a decisão sob recurso, com esse fundamento, rejeitar o RAI.

13. Não o tendo feito, e desse modo se decidido pela rejeição imediata do RAI, violou o princípio da proporcionalidade e do acesso á tutela jurisdicional, estatuídos no n° 2 do artigo 18.° e do artigo 20.°, ambos da CRP.

Nestes termos e sempre sem olvidar o douto suprimento de V. Ex. as , Venerandos Desembargadores, deve o presente recurso merecer provimento, como é de inteira, e em consequência, ser a decisão recorrida substituída por uma outra que admita o RAI deduzido pela ora recorrente, ou em alternativa, ser a ora recorrente notificada para apresentar o documento original do RAI.

*

O Ministério Público respondeu ao recurso interposto, pugnando pela improcedência do mesmo, e formulando as seguintes conclusões:

1. O uso de correio electrónico para apresentação de requerimento de abertura de instrução apenas é equiparado a via postal registada se a mensagem apresentar uma validação cronológica por entidade idónea, emitida por prestador qualificado de serviços de certificação electrónica, e se, ao conjunto composto pela mensagem original e pela validação cronológica for aposta assinatura electrónica avançada.

2. A mensagem de correio electrónico utilizada para a remessa a juízo do requerimento de abertura de instrução não cumpriu com tais requisitos, pelo que lhe é aplicável o regime previsto para o envio de peças processuais por telecópia.

3. Os originais dos articulados e documentos autênticos ou autenticados apresentados por telecópia deverão ser entregues na secretaria judicial no prazo de 10 dias contados a partir do envio por telecópia, independentemente de notificação para o efeito.

4. Uma vez que não foram entregues os originais, não foram também cumpridos os requisitos para a entrega de peças por telecópia.

5. A rejeição do requerimento de abertura de instrução sem prévio convite para a junção dos originais não consubstancia uma restrição desproporcional ou infundada às garantias de defesa.

6. Consequentemente, não se poderá considerar que exista um requerimento de abertura de instrução tempestivamente apresentado, sendo pois legalmente inadmissível a instrução.

7. Por conseguinte, deverá ser negado provimento ao recurso e mantida integralmente a decisão recorrida.

*

No Tribunal da Relação o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer Parecer no sentido da improcedência do recurso.

*

Cumprido o disposto no art. 417º, nº2, do CPP, não foi apresentada resposta.

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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos à conferência.

Cumpre decidir

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Fundamentação

Delimitação do objeto do recurso

O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal “ad quem” apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP).

São, pois, as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o Tribunal ad quem tem de apreciar.

No caso sub judice a assistente/recorrente limita o recurso à questão de saber se deve ser revogada a decisão recorrida e substituída por uma outra que admita o RAI deduzido pela ora recorrente, ou, em alternativa, ser a ora recorrente notificada para apresentar o documento original do RAI.

*

Apreciando

Sobre questão em tudo similar, decidiu-se no Acórdão proferido no Processo 10/21.4GALLE-E.E1 em que a ora relatora foi também relatora:

“No caso sub judice, o requerimento de abertura de instrução foi remetido a juízo por correio eletrónico, mas sem a aposição de assinatura eletrónica e sem validação cronológica do respetivo acto de expedição.

Por outro lado, não se verificou a entrega dos originais dos requerimentos de abertura de instrução, nem a sua remessa por correio.

Ora, sobre esta questão já se pronunciou o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do S.T.J. n.º 3/2014, que veio admitir a remessa a juízo de peças processuais através de correio eletrónico, tendo afirmado que “em processo penal, é admissível a remessa a juízo de peças processuais através de correio eletrónico, nos termos do disposto no art. 150 n.º 1 al. d) e n.º 2 do CPC e na Portaria n.º 624/2004, de 16/6, aplicáveis por força do disposto no art. 4.º do CPP.

Dispõe o art. 3.º da Portaria n.º 642/2004, de 16/6, que:

(…)

4- O envio de peças processuais por correio eletrónico equivale à remessa por via postal registada, nos termos do n.º 3 do art. 6.º do DL n.º 290-D/99, de 2/8, bastando para tal a aposição de assinatura eletrónica avançada.

5- (…)

6- A expedição da mensagem de correio eletrónico deve ser cronologicamente validada, nos termos da al. u) do art. 2.º do DL n.º 290-D/99, de 2/8, com a redação que lhe foi dada pelo DL n.º 62/2003, de 3 de Abril, mediante a aposição de selo temporal por uma terceira entidade idónea.

E o art. 10 dispõe que:

À apresentação de peças processuais por correio eletrónico simples ou sem validação cronológica é aplicável, para todos os efeitos legais, o regime estabelecido para o envio através de telecópia.

É pacífico o entendimento de que a remessa a juízo de qualquer peça processual através de telecópia continua a estar submetida ao regime estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 28/92, de 27 de Fevereiro.

E neste diploma preveem-se duas situações distintas, a que é dado tratamento igualmente distinto, e que respeitam, por um lado, à remessa dos articulados e de documentos autênticos ou autenticados, e, por outro, à remessa das demais peças processuais e documentos.

Na verdade, sob a epígrafe «Força probatória», estabelece o art.º 4.º do referido Dec.- Lei n.º 28/92, de 27 de Fevereiro, que:

«1 - As telecópias dos articulados, alegações, requerimentos e respostas, assinados pelo advogado ou solicitador, os respetivos duplicados e os demais documentos que os acompanhem, quando provenientes do aparelho com o número constante da lista oficial, presumem-se verdadeiros e exatos, salvo prova em contrário.

2 - Tratando-se de actos praticados através do serviço público de telecópia, aplica-se o disposto no artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 54/90, de 13 de Fevereiro.

3 - Os originais dos articulados, bem como quaisquer documentos autênticos ou autenticados apresentados pela parte, devem ser remetidos ou entregues na secretaria judicial no prazo de sete dias contado do envio por telecópia, incorporando-se nos próprios autos.

4 - Incumbe às partes conservarem até ao trânsito em julgado da decisão os originais de quaisquer outras peças processuais ou documentos remetidos por telecópia, podendo o juiz, a todo o tempo, determinar a respetiva apresentação.

5 - Não aproveita à parte o ato praticado através de telecópia quando aquela, apesar de notificada para exibir os originais, o não fizer, inviabilizando culposamente a incorporação nos autos ou o confronto a que alude o artigo 385.º do Código Civil.

6 - A data que figura na telecópia recebida no tribunal fixa, até prova em contrário, o dia e hora em que a mensagem foi efetivamente recebida na secretaria judicial.»

Assim, de acordo com o normativo legal transcrito, após remessa, por telecópia, dos articulados ou de documentos autênticos ou autenticados, devem os respetivos originais ser remetidos ou entregues na secretaria judicial no prazo de sete dias contado do envio por telecópia, a fim de serem incorporados nos próprios autos (n.º 3 do referido art.º 4.º do Dec.-Lei n.º 28/92, de 27 de Setembro).

Quanto às demais peças processuais ou documentos igualmente remetidos por telecópia, o regime estabelecido é distinto, cabendo em tal caso às partes conservar, até ao trânsito em julgado da decisão, os originais daqueles, situação em que, a todo o tempo, poderá o juiz determinar a respetiva apresentação (n.º 4 do referido art.º 4.º do Dec.-Lei n.º 28/92, de 27 de Setembro).

E estabelece ainda a lei a cominação para o incumprimento de tal imposição, determinando o n.º 5 do citado artigo 4.º que não aproveita à parte o ato praticado através de telecópia quando aquela, apesar de notificada para exibir os originais, o não fizer, inviabilizando culposamente a incorporação nos autos ou o confronto a que alude o artigo 385.º do Código Civil.

Como claramente resulta da conjugação das normas legais referidas, a apresentação dos originais visa, no caso dos articulados e documentos autênticos ou autenticados, a sua incorporação nos autos, sendo sempre exigida e obrigatória, e nos demais casos, isto é, naqueles em que cabe às partes conservarem na sua posse os originais, tal apresentação visará tão só o confronto da cópia existente nos autos com os originais nas situações em que surja dúvida quanto à autenticidade daquela.

Ora, sobre a questão em apreciação, decidiu-se no Ac. do TRE de 27-09-2022, acessível in www.dgsi.pt, que se transcreve: “ (…) É pacífico que em processo penal a apresentação de peças processuais por correio electrónico “avançado” e “simples” é admissível.

Pretendendo pôr termo a divergências jurisprudenciais na matéria, o Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, no seu Acórdão nº 3/2014, publicado no DR, 1ª Série, de 15 de Abril de 2014, fixou a seguinte doutrina: “em processo penal, é admissível a remessa a juízo de peças processuais através de correio electrónico, nos termos do disposto no artigo 150º, nº 1, alínea d), e nº 2, do Código de Processo Civil de 1961, na redacção do Decreto-Lei nº 324/2003, de 27-12, e na Portaria nº 642/2004, de 16-06, aplicáveis conforme o disposto no artigo 4º do Código de Processo Penal”.

Esta mencionada jurisprudência permanece aplicável às acções excluídas da Portaria nº 280/2013, conforme o Acórdão do STJ, de 24-1-2018, (proc. nº 5007/14.8TDLSB.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt), nomeadamente nas acções que se encontrem na fase de inquérito/instrução, e de acordo com o artigo 17º, da Portaria nº 267/2018 de 20 de setembro.

Ou seja, a Portaria 280/2013, referente à tramitação eletrónica dos processos judiciais, não se aplica nas ações que se encontrem na fase de inquérito/instrução.

Daqui decorre que o correio electrónico constitui ainda uma forma admissível de prática de actos processuais em todos aqueles processos ou fases processuais, excluídos do âmbito de aplicação da Portaria nº 280/2013.

Razão por que, no caso sub judice teremos de chamar à colação a Portaria nº 642/2004 de 16-06, que regula a forma de apresentação a juízo dos atos processuais enviados através de correio eletrónico, aplicável no que respeita ao envio de peças processuais em processo penal, uma vez que o requerimento de abertura de instrução das arguidas foi apresentado por via de correio eletrónico.

Preceitua o artigo 3°, n° 1, da mencionada Portaria, que: “o envio de peças processuais por correio eletrônico equivale à remessa por via postal registada, nos termos do n° 3 do artigo 6.º do Decreto-Lei n° 290-D/99 de 2 de Agosto, com a redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 62/2003, de 3 de Abril, bastando para tal a aposição de assinatura electrónica avançada”

Por sua vez, o nº 3 do mencionado normativo refere que: “a expedição da mensagem de correio electrónico dever ser cronologicamente validada, nos termos da alínea u) do artigo 2 º do Decreto-Lei nº 290D/99, de 2 de Agosto, com a redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 62/2003, de 3 de Abril, mediante a aposição de selo temporal por uma terceira entidade idónea.”

Compulsados os autos, verificamos que no caso em apreço, as arguidas, aquando da apresentação do requerimento de abertura de instrução, enviaram apenas um email simples com o referido requerimento digitalizado, não contendo o email qualquer assinatura eletrónica avançada nem a aposição de selo temporal por entidade terceira idónea.

Assim, ter-se-á de aplicar o regime estabelecido para o envio através de telecópia, que se encontra regulado pelo Decreto-lei nº 28/92, de 27/02 e, no seu artigo 4º, nº 3, refere que “os originais dos articulados, bem como quaisquer documentos autênticos ou autenticados apresentados pela parte, devem ser remetidos ou entregues na secretaria judicial no prazo de sete dias contado do envio por telecópia, incorporando-se nos próprios autos”.

No caso dos autos, o prazo de 7 dias deve ter-se como alargado para 10 dias, em consequência do disposto no artigo 6º, nº 1, alínea b), do Decreto-lei nº 329-A/95, de 12-12.

Dos autos resulta que as arguidas apresentaram o seu requerimento de abertura de instrução através de correio eletrónico simples, não constando do mesmo a assinatura eletrónica certificada nem a aposição de selo temporal por entidade terceira idónea.

Não resulta do processado, nem as recorrentes o invocam, que foi cumprido o disposto no artigo 4º, nº 3, do Decreto-lei nº 28/92, de 27-02, juntando aos mesmos o original do requerimento de abertura de instrução, no prazo de 10 dias.

A questão reside em saber qual a cominação ou a consequência jurídica da não apresentação dos originais das peças processuais remetidas a juízo, por telecópia, no prazo legalmente estabelecido de 10 dias.

Nem no Decreto-Lei nº 28/92, de 27 de Fevereiro, nem noutro diploma legal é prevista cominação específica para o caso de a parte não fazer juntar ao processo, no prazo legal de 10 dias, os originais dos articulados ou dos documentos autênticos ou autenticados que haja apresentado, através de telecópia.

Segundo o entendimento perfilhado pelo Sr. Juiz “a quo”, no despacho recorrido e que tem apoio na jurisprudência, a remessa de um requerimento para a abertura da instrução, a juízo, por correio eletrónico, simples, sem a aposição de assinatura eletrónica e sem validação cronológica do respetivo acto de expedição, não sendo o respetivo original remetido ou entregue na secretaria judicial, no prazo de dez dias, nos termos estabelecidos no artigo 4º, nº 3, do Decreto-Lei nº 28/92, de 17 de Fevereiro, em conjugação com o artigo 6º, nº 1, al. b), do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, determina a rejeição do requerimento de abertura de instrução, por inadmissibilidade legal da instrução, ao abrigo do preceituado no artigo 287º, nº 3, do Código de Processo Penal, não havendo lugar à notificação do apresentante do requerimento de abertura de instrução para apresentar o respetivo original.

Salvo o devido respeito por esse entendimento maioritário, permitimo-nos divergir do mesmo.

Entendemos que não fixando a lei cominação específica para falta de apresentação do original da telecópia, no prazo legalmente previsto de 10 dias, a rejeição liminar do articulado ou do requerimento remetido a juízo, por telecópia, por falta de apresentação do o respetivo original, naquele prazo, corresponde a uma solução demasiado drástica, que o legislador não pretendeu consagrar.

No âmbito do processo civil, quando se admitia a apresentação de peças processuais por telecópia, formou-se jurisprudência maioritária, no sentido de que não fixando a lei cominação específica, para a falta de apresentação dos originais de tais peças, no prazo de 7 dias, era possível, fazê-la além desse prazo, desde que não se deixasse de a fazer quando para o efeito se era notificado. Ou seja, de acordo com esta orientação jurisprudencial a não apresentação dos originais, no prazo legalmente previsto, não tem como efeito imediato a invalidade ou a ineficácia do ato praticado por telecópia, o qual, nos termos do disposto no artigo 4º, nº 5, do Decreto-Lei nº 28/92, de 27 de Fevereiro, só não aproveita à parte se esta, “notificada para exibir os originais, o não fizer, inviabilizando culposamente a incorporação nos autos.”

E, salvo o devido respeito, pela orientação em sentido contrário, não se vê razão para que este entendimento não seja aplicado, no processo penal, designadamente e, no que ao presente caso importa, ao requerimento para abertura da instrução apresentado pelas arguidas, pelas razões que passaremos a explicitar.

Entendemos que não têm aqui aplicação os fundamentos subjacentes à jurisprudência fixada, pelo Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 7/2005, de 12-05-2005, no sentido de que “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287º, nº 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.”

No caso que nos ocupa, diferentemente daquele sobre que versou a jurisprudência fixada no referenciado AFJ nº 7/2015, não está em causa a concessão de um prazo suplementar, ao assistente, para apresentar um novo requerimento para abertura da instrução, posto que, este acto considera-se praticado, com o envio daquele requerimento, por correio eletrónico, que, por não se mostrar eletronicamente assinado e por falta de validação cronológica do respetivo acto de expedição, nos termos sobreditos, tem o valor de telecópia.

A apresentação do original do requerimento de abertura de instrução, tem apenas a função de confirmar o acto antes praticado, através de telecópia, permitindo a respetiva conferência, não servindo para completar ou corrigir eventuais deficiências da telecópia.

E assim sendo, nessa situação, a possibilidade de notificação do assistente/arguido para apresentar, no prazo que venha a ser fixado pelo juiz, o original do requerimento de abertura de instrução, remetido, por telecópia, não se traduz na concessão, ao mesmo, de qualquer prazo suplementar para requerer a abertura da instrução, nem viola as garantias de defesa do arguido ou o principio do acusatório.

Em relação ao principio da celeridade processual, também não fica afectado, se a referida notificação tiver lugar, sendo fixado um prazo curto, havendo que procurar o necessário equilíbrio entre esse princípio e a justiça da decisão, em ordem a salvaguardar o direito à tutela jurisdicional efetiva e a um processo equitativo, consagrado no artigo 20º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa e a respeitar o princípio da proporcionalidade, consagrado no artigo 18º, nº 2, da mesma Constituição da República Portuguesa.

Afigura-se-nos que a rejeição liminar do requerimento para abertura da instrução, apresentado pelas arguidas, por correio eletrónico, simples, com o valor de telecópia, por falta de apresentação do respetivo original, no prazo legalmente previsto de 10 dias, sem que haja prévio convite, para suprir essa omissão, se traduziria numa cominação desproporcionada.

Por identidade de razões, relativamente à rejeição liminar do recurso apresentado pelo arguido, enviado por correio eletrónico – não sendo este um meio legalmente previsto para apresentação de peças processuais –, sem que fosse formulado convite, ao recorrente, para apresentação do recurso pela via considerada adequada, o Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 174/2020, de 11-03-2020 , decidiu julgar inconstitucional, por ferir, de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva, na modalidade de direito a um processo equitativo (artigo 20º, nº 4, e artigo 18º da Constituição), “a interpretação normativa extraída da conjugação do artigo 4º da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, do artigo 144º, nºs 1, 7 e 8, do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, e da Portaria nº 280/2013, de 26 de Agosto, com o disposto nos artigos 286º, 294º e 295º do Código Civil, e artigo 195º do Código de Processo Civil aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho segundo a qual é nulo o recurso apresentado pelo arguido a juízo, por correio eletrónico, dentro do prazo, no âmbito do processo penal, sem prévio convite à apresentação daquela peça processual pela via considerada exigível.”

Entendemos, assim, que a falta de apresentação do original do requerimento para abertura da instrução das arguidas, remetido a juízo, por correio eletrónico simples e sem validação cronológica, no prazo legal de 10 dias (cfr. disposições conjugadas dos artigos 4º, nº 3, do Decreto-Lei nº 28/92, de 17 de Fevereiro e no artigo 6º, nº 1, al. b), do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro), não tem como consequência imediata a rejeição liminar daquele requerimento, por inadmissibilidade legal, nos termos do disposto no artigo 287º, nº 3, do Código de Processo Penal.

Sufragamos o entendimento de que a rejeição do requerimento de abertura de instrução, remetido a juízo, (…), através de correio eletrónico, por inobservância dos legais requisitos de forma para a prática do acto, por esse meio, deverá pressupor a prévia notificação determinada pelo juiz para apresentar o original do requerimento de abertura de instrução, para que seja incorporado no processo e que, só no caso, de, na sequência dessa notificação, as arguidas não apresentarem o original desse requerimento, poderá, com esse fundamento, rejeitar o requerimento de abertura de instrução.

O dever de notificar as arguidas para apresentarem o original do requerimento para a abertura da instrução, que foi remetido por correio eletrónico simples e sem validação cronológica, antes de rejeitar o requerimento de abertura de instrução corresponde à exigência de um processo equitativo, revelando-se desproporcional, sancionar essa omissão, com a rejeição liminar.

Nesta conformidade, reconhecendo-se assistir razão às recorrentes, impõe-se revogar o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que notifique as arguidas, na pessoa do seu Mandatário, para, em prazo a fixar, apresentar o original do requerimento para abertura da instrução, que foi remetido a juízo, por correio eletrónico simples.”

Assim, reiterando o sufragado entendimento perfilhado nos Acórdãos supra citados e transcritos, julga-se procedente o recurso interposto pela assistente.

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Decisão

Face ao exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

- Julgar procedente o recurso interposto pela assistente e, em consequência, revogar o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que notifique a assistente para, em prazo a fixar, apresentar o original do requerimento para abertura da instrução que foi remetido a juízo por correio eletrónico simples.

- Sem tributação.

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Elaborado e revisto pela primeira signatária

Évora, 9 de maio de 2023


Laura Goulart Maurício

Maria Filomena Soares

J.F. Moreira das Neves