Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
203/23.0PBPTG-A.E2
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: MEDIDA CAUTELAR DE GUARDA DE MENOR
ESGOTAMENTO DE PRAZO
MEDIDA MENOS GRAVOSA
Data do Acordão: 03/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A aplicação da medida cautelar de guarda do menor em centro educativo (no caso em apreço, em regime fechado, nos termos dos artigos 57º, alínea c) e 58º, nº 3, da LTE) traduz-se, resulta indubitável, numa privação da liberdade do menor, que apresenta paralelismo com as medidas de coacção previstas no CPP de prisão preventiva (artigo 202º) e obrigação de permanência na habitação (artigo 201º).
Ora, consagra-se no artigo 217º, do CPP que “o arguido sujeito a prisão preventiva é posto em liberdade logo que a medida se extinguir, salvo se a prisão dever manter-se por outro processo” – nº 1; sendo que, “se a libertação tiver lugar por se terem esgotado os prazos de duração máxima da prisão preventiva, o juiz pode sujeitar o arguido a alguma ou algumas das medidas previstas nos artigos 197.º a 200.º, inclusive” – nº 2.

Não se vê razão para a não interpretação por via integrativa do consignado no nº 2, do artigo 60º, da LTE (estando em causa uma situação em que se esgotou o prazo máximo da medida cautelar de guarda do menor em centro educativo, em regime fechado) em concordância com a solução decorrente da norma contida no nº 2, do artigo 217º, do CPP, dada a sua similitude e tendo até em atenção o estabelecido no artigo 128º, nº 1, da LTE, quanto à aplicação subsidiária das normas do Código de Processo Penal.

Daí que, obstáculo legal não exista a que, esgotado o prazo da medida cautelar de guarda do menor em centro educativo, se sujeite este à medida cautelar proposta pelo Ministério Público de entrega do menor aos pais, representante legal, família de acolhimento, pessoa que tenha a sua guarda de facto ou outra pessoa idónea, com imposição de obrigações ao mesmo, iniciando -se o prazo de seis meses o prazo de seis meses referido no artigo 60º, nº 2, da LTE, no referido no artigo 60º, nº 2, da LTE, no momento em que é aplicada.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
I - RELATÓRIO

1. No Tribunal Judicial da Comarca de …, Juízo Local Criminal de …, Proc. Tutelar Educativo nº 203/23.0PBPTG, foi proferido despacho, aos 18/12/2023, que indeferiu a promoção do Ministério Público no sentido de, cessada a medida cautelar de guarda de menor em Centro Educativo imposta, fosse aplicada ao menor AA, nascido aos …/…/2008, a medida cautelar prevista no artigo 57º, alínea a), da Lei Tutelar Educativa, com a imposição das obrigações que concretizou.

2. Inconformado com o teor do referido despacho, dele interpôs recurso o Ministério Público, para o que formulou as seguintes conclusões (transcrição):

1. O artigo 60.º da LTE contempla duas alíneas, sendo que apenas a alínea a) prevê como prazo máximo a duração de seis meses, não podendo, este ser excedido.

2. A alínea b) do citado preceito legal salienta “O prazo de duração das restantes medidas cautelares é de seis meses até à decisão do tribunal de 1.ª instância e de um ano até ao trânsito em julgado da decisão” (sublinhado nosso).

3. Da redacção não se infere que a aplicação da medida da alínea a) invalida a sua substituição por uma das restantes medidas cautelares, cabendo estas, naturalmente, na alínea b), com o respectivo prazo que lhe cabe, sendo balizando, apenas, pela decisão da 1ª instância ou até ao respectivo trânsito em julgado.

4. Das referidas redacções, não retiramos a ilação que o prazo de seis meses é uno, independente da espécie da medida aplicada, e que o seu prazo não se inicia sempre que é aplicada nova medida cautelar.

5. Parece-nos que a interpretação do Tribunal a quo, de uma forma simplista, é: independentemente da espécie das medidas aplicadas o prazo máximo da sua aplicação é apenas e sempre de seis meses, independentemente seja a medida da alínea a) ou a medida da alínea b) e, no caso, como o prazo da medida da alínea a) se esgota no dia 29.12.2023, então não pode ser substituída por outra medida cautelar (da alínea b)), porque já decorreram seis meses.

6. Sendo substituída a guarda do menor em centro educativo por outra menos gravosa, in casu, a entrega do menor aos pais, com imposição de obrigações ao menor, acima especificadas, esta não pode ser aplicada por ter-se esgotado o prazo de seis meses na medida cautelar mais grave, in casu, guarda em centro educativo?

7. Se assim fosse, é nosso entendimento de que o legislador teria de ter acautelado essa situação na letra da lei, referindo, um prazo uno para todas as medidas, não as diferenciando entre si, ao invés de contemplar, como faz, no n.º 2 do artigo 60.º da LTE que para as restantes medidas cautelares, isto é, a das alíneas a) e b) do artigo 57.º da LTE o prazo é de seis meses até à decisão do tribunal de 1ª instância e de um ano até ao trânsito em julgado da decisão (negrito e sublinhado nossos).

8. Mais: teria igualmente o legislador acautelado que findo o prazo da medida mais gravosa não havia lugar a substituição por outro menos gravosa, o que não se verifica. Ou seja, caso a substituição de medidas não fosse admissível, tal deveria ter sido acautelado pelo legislador na letra da lei, o que não foi.

9. Donde se infere e depreende que, substituída a medida cautelar da alínea c) do artigo57.º da LTE por uma das previstas em cada uma das alíneas a) e b) do mesmo preceito legal, então o prazo começa a contar desde a sua implementação e não cessa por já ter-se esgotado o prazo da alínea c) do mesmo artigo.

10. Se assim fosse, bastaria o legislador ter previsto, na letra lei, que as medidas cautelares, não as distinguindo entre si, teriam um prazo máximo de seis meses, sem mais; o que não fez.

11. Ora, se a prisão preventiva se esgotar, por decurso do seu prazo, o indivíduo a ela sujeito for restituído à liberdade, não pode o Tribunal aplicar outra medida de coacção, menos gravosa, de forma a acautelar os perigos inerentes ao caso concreto?

12. O que o artigo 212.º, n.º 2 do Código de Processo Penal prescreve é que “as medidas revogadas podem de novo ser aplicadas, sem prejuízo da unidade dos prazos que a lei estabelecer, se sobrevierem motivos que legalmente justifiquem a sua aplicação.”, mas não estamos, como bem se vê, perante a mesma redacção, nem é isto que a letra da lei do artigo 60.º da LTE prevê.

13. Neste âmbito, uma vez mais a título de paralelismo, cumpre sublinhar o Parecer do Ministério Público no Tribunal da Relação de Lisboa, de 13.03.2009, que sublinha que “I. Nos termos do n.º 3 do art. 212.º do C. P. Penal a substituição de uma medida de coacção por outra menos grave ou de execução menos gravosa apenas se justifica caso se verifique uma atenuação das exigências cautelares que tenham determinado a sua aplicação”.

14. No caso concreto, como bem resulta da informação social junta aos autos, não obstante o desculpabilizar da sua conduta, o jovem AA mostrou evolução a nível comportamental, o que justifica que lhe seja aplicada medida menos gravosa.

15. No caso concreto, como bem salientou o Ministério Público na sua promoção, não obstante a tendência do jovem AA para desculpabilizar a prática dos factos, as informações obtidas relativamente à conduta e comportamento foram positivas, o que denota uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a sua guarda em centro educativo e, por isso, a necessidade de esta medida ser substituída por outra menos grave, o que promoveu, com a imposição das obrigações acima descritas.

16. A sábia doutrina refere: “As medidas cautelares educativas não são imutáveis, mas modificáveis, constituindo um afloramento dos princípios da necessidade e da precariedade ou, mais propriamente, do princípio ‘rebus sic standibus’. A possibilidade de modificação (ou de cessação) das medidas cautelares educativas justifica-se em função da alteração das circunstâncias (…) O juiz pode também substituir a medida cautelar por outra mais ou menos gravosa consoante se verifique uma agravação ou atenuação das exigências cautelares que determinaram a sua aplicação ou mesmo uma forma mais ou menos gravosa da execução da medida, modificando as condições impostas” (sublinhado nosso) (António José Fialho, in Lei Tutelar Educativa Anotada, Cristina Dias, Margarida Santos e Rui do Carmo (coord.), Almedina, 2020, p. 234).

17. Revertendo ao caso dos autos, não nos parece, pois, que tenham deixado de existir as exigências cautelares:

i) desvio comportamental ao normativo, de que é acusado no presente ITE, tem sido ponderado por AA com uma reacção a reiteradas provocações, por parte da vítima, não verbalizando o jovem, em contexto da medida cautelar de guarda, a necessidade de reparação dos danos causados, o que põe em causa a sua capacidade de ressonância afectiva e de leitura empática e responsabilizante

ii) (…) as suas atitudes parecem configurar uma dinâmica interna que salienta a necessidade do jovem fazer justiça por si próprio, ignorando as respectivas instâncias judiciais para esse efeito”.

18. O que se evidencia, isso sim, é a atenuação destas exigências cautelares porquanto:

i) Em Setembro, iniciou o ensino secundário à distância, 10.º ano na área de Línguas e Humanidades, na Escola Secundária …, mostrando-se motivado e empenhado.

ii) Mostra-se mais integrado nas diversas vivências do quotidiano do Centro Educativo, assumindo, no entanto, uma postura de alguma passividade em actividades não individuais.

iii) Até ao momento, não foi alvo de nenhum procedimento disciplinar, tendo sido considerado, diversas vezes, o “jovem da semana”.

19. Ser restituído à liberdade, sem qualquer outra medida cautelar com imposição de determinadas obrigações, como o Ministério Público promoveu, parece-nos desresponsabilizar o jovem AA, sentindo que até à prolação de decisão final se trata de um cidadão que não impende sobre si a gravidade dos factos praticados.

20. Transparece à sociedade um sentimento de impunidade que não deve ser incentivado pela inércia judicial.

21. A aplicação de qualquer medida cautelar pressupõe a existência de indícios da prática de um crime, a previsibilidade de aplicação de uma medida tutelar e a existência de perigo de fuga ou de cometimento de novos crimes.

22. Não obstante a interpretação que o Tribunal a quo faz da letra do artigo 60.º da LTE, consideramos, no caso em concreto, que a mesma pode revelar-se temerária, considerando que o jovem retornará ao seu ambiente natural, com frequência dos mesmos locais que o ofendido e testemunhas, mormente, a escola, pois, até então, por encontrar-se privado da liberdade, o seu ensino ocorria por meios técnicos à distância.

23. Não se poderá perder de vista que as medidas cautelares, maxime o processo tutelar educativo, têm também por objectivo (principalmente), a necessidade de educar o menor para o direito bem como restabelecer a paz jurídica comunitária.

24. A medida tutelar educativa visa educar o menor para o direito e visa também inserir o menor de forma digna e responsável na vida em comunidade.

25. Trata-se apenas de continuar a proteger o menor.

26. As medidas tutelares visam garantir que o desenvolvimento do menor “ocorra de forma harmoniosa e socialmente integrada e responsável, tendo como referência o dever-ser jurídico consubstanciado nos valores juridicamente tutelados pela lei penal, enquanto valores mínimos e essenciais da convivência social” (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, 22.05.2023, proc. n.º 2289/12.3TAVNG.P1, relator: Elsa Paixão, disponível em www.dgsi.pt).

27. A medida cautelar, mais do que qualquer outra, e independente da sua espécie, encerra em si mesma uma forte componente protectora, na medida em que a sua aplicação em qualquer fase do processo - prévia à decisão proveniente da fase jurisdicional - permite antecipar uma intervenção já direccionada para a aplicação de uma medida tutelar educativa, (cfr. artigo 165.º da LTE), fornecendo, desde logo, ao menor alguns mecanismos que lhe permitirão uma inserção digna na sociedade.

28. A decisão do Tribunal a quo, de determinar a restituição à liberdade do jovem AA, sem substituição de qualquer outra medida cautelar, mormente a promovida pelo Ministério Público, não acautela nem protege, no nosso entendimento, quer o menor AA quer o jovem ofendido.

29. Vai o jovem AA regressar ao seu ambiente (anterior à sua permanência no centro educativo), designadamente, a escola que frequentava, onde se insere o jovem ofendido, algumas das testemunhas, sem que esteja protegido? Colocando quer o ofendido quer o agressor no mesmo espaço? Parece-nos, pelo despacho proferido, que esta situação não foi acautelada pelo Tribunal a quo.

30. Sem que seja acautelada a paz e tranquilidade públicas ou, mesmo, remover o perigo de o jovem AA reincidir na prática dos factos, estes ou outros?

31. A decisão do Tribunal a quo não se revela proporcional à gravidade dos factos que, em sede de primeiro interrogatório, mereceu a confissão por parte do jovem AA e não mereceram, durante o período de tempo em que se encontra privado da liberdade, juízo crítico sobre a sua prática, desculpabilizando-se com episódios vexatórios provocados pelo ofendido.

32. A gravidade destes factos advém não só da natureza dos valores que estes atingem - de natureza pessoal e patrimonial – mas também da subsequente moldura penal que lhes cabe.

33. Atenta a gravidade dos factos, não compreendemos, salvo o devido respeito por entendimento diverso, como o Tribunal a quo decidiu, com uma pouco profícua, cessar a medida cautelar vigente, aquando do seu término, e restituir o jovem à liberdade sem substituição para outra medida cautelar, mormente, imposição de obrigações que respondam às exigências de prevenção nas suas diversas vertentes.

34. Nem poderemos cogitar que não substituir a medida cautelar ainda em curso reveste uma forma de protecção do jovem, pois que tal decisão não permite, sequer, que o jovem interiorize o desvalor dos actos praticados, não seja responsabilizado pelos mesmos e permanece incólume até á prolação de despacho final como qualquer outro cidadão idóneo.

35. Atendendo aos princípios gerais do processo tutelar educativo que visa, em primeira linha, a protecção do jovem, a não substituição de medida cautelar nos termos promovidos tem reflexo nos direitos pessoais do próprio jovem, ao mesmo tempo que o deixa desprotegido, sem a tutela do Estado – como tem permanecido e beneficiado - acaba por colocar em causa a sua própria pessoa, segurança, uma vez que necessita, ainda, de educação para o direito.

36. O jovem AA deve continuar a beneficiar da tutela do Estado, motivo pelo qual o Ministério Público promoveu a substituição da medida cautelar.

37. Movimentando-se ambos os jovens (agressor e ofendido) nos mesmos locais, mormente escolar, nocturno, entre outros, usufruindo de amigos em comum e tratando-se de um meio pequeno em que a maioria das pessoas se conhece, de que forma o Tribunal a quo protege o jovem ofendido, colocando em liberdade o jovem agressor sem qualquer imposição, designadamente, abster-se de frequentar os mesmos locais que o ofendido e espaços de diversão nocturna e abster-se de contactar o ofendido por qualquer meio por si ou por interposta pessoa?

38. Não olvidando o meio local em apreço, restituir o jovem AA à liberdade, sem a imposição de quaisquer obrigações, não é descabido que tal poderá alavancar o sentimento de insegurança na comunidade ao mesmo tempo que poderá abalar a paz e tranquilidades públicas.

39. A necessidade de fundamentação de facto e de direito da generalidade das decisões judiciais constitui corolário do princípio do Estado de Direito e do papel criador e aplicador do direito desempenhado pelos Tribunais.

40. De entre os princípios através dos quais a doutrina e a jurisprudência têm densificado o aludido princípio do processo equitativo, encontra-se, pois, o direito à fundamentação das decisões.

41. Não obstante o dever de fundamentação de um despacho não revestir a mesma complexidade e grau de exigência que o de uma sentença (neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, 22.02.2023, proc. n.º 449/22.8TELSB-A.L1-3, Relator: Isabel Gaio Ferreira de Castro, disponível em www.dgsi.pt), ocorre falta de fundamentação de facto e de direito da decisão judicial, quando exista falta absoluta de motivação ou quando a mesma se revele gravemente insuficiente, em termos tais que não permitam ao respectivo destinatário a percepção das razões de facto e de direito da decisão judicial.

42. O despacho que aqui colocamos em crise encerra em si mesmo falta de fundamentação, porquanto não se encontra alicerçado em quaisquer elementos constantes dos autos, parecendo-nos, somente, uma interpretação livre da leitura

43. O despacho recorrido sublinha “Existindo nos autos informações que permitam evidenciar uma evolução favorável do percurso do menor que justifiquem a cessação da medida cautelar aplicada (art.º 62º da Lei Tutelar Educativa), a sua cessação deverá ser determinada.”, sem contudo, especificar quais os elementos presentes nos autos que justificam tal decisão; ao invés dos excertos acima transcritos, que alicerçam a promoção de substituição de medida cautelar promovida pelo Ministério Público, que constam do relatório de perícia de personalidade e informação social, e que transparecem uma nítida necessidade de o jovem continuar a merecer tutela do Estado.

44. A cessação de uma medida cautelar não impede a sua substituição ou aplicação de outra, desde que, naturalmente, se acautelem os respectivos prazos.

45. Se pode ser aplicada outra medida mais gravosa, então, por maioria de razão, pode ser aplicada menos gravosa, pois, trazendo à colação o brocardo “quem pode o mais, pode o menos”.

46. Resulta que os argumentos expendidos no despacho recorrido são falíveis, in limine, até contraditórios entre si. Senão vejamos: por um lado diz que a cessação não é definitiva, podendo a mesma medida ou outra mais gravosa ser aplicada; por outro diz que tal excederia o prazo dos seis meses. Ou seja, no nosso entendimento, o raciocínio do Tribunal a quo é que independentemente de qual a medida aplicada não pode esta ser substituída por outra ou aplicada outra se uma delas já tiver esgotado o prazo de seis meses.

47. Se assim fosse, perguntamos: qual o intuito do legislador em ter acautelado prazos distintos consoante a espécie da medida cautelar em causa, como destrinçam os n.ºs 1 e 2 do artigo 60.º da LTE?

48. Defendemos, pois, que se fosse substituída a medida vigente pela medida cautelar proposta, então, desde o seu início começaria a contar-se o prazo de seis meses, porque “o prazo de duração das restantes medidas (diversas da medida cautelar de guarda em centro educativo) (sublinhado nosso) (cfr. artigo 60.º, n.º 2 da LTE) decorre até à prolação de decisão do Tribunal de 1.ª instância e de um ano até ao trânsito em julgado da decisão.

49. Se a medida cautelar promovida (artigo 57.º, alínea a)) com as imposições sugeridas se iniciasse em 29.12.2023, então os seis meses cessariam, in limine, quando fosse decretada a decisão final em 1ª instância ou até um ano até ao trânsito em julgado da decisão pelo que, com o devido respeito, não compreendemos como tal colidiria com o prazo cessante da medida cautelar até, então, vigente, pois tratam-se de medidas de espécies distintas (uma da alínea a) e outra da alínea b)).

50. A única medida cautelar que não pode, de todo, ir além dos seis meses é a de guarda em centro educativo, motivo pelo qual o Ministério Público promoveu a sua substituição pela aplicação de outra medida cautelar e que não excederia o prazo dos seis meses porque o prazo iria começar com o seu início.

51. Os pressupostos patentes nos autos, que transparecem evolução no comportamento do jovem AA e desvalorização deste relativamente aos factos praticados foram, no nosso entendimento, desconsiderados pelo Tribunal a quo para substituir a medida vigente para uma menos gravosa e, por outro lado, igualmente desconsideradas foram as informações (quer da perícia da personalidade, quer da informação social) da necessidade de educação para o direito e de consciencializar-se do desvalor da sua conduta.

52. Não se pode compreender nem acolher que o jovem AA seja restituído à liberdade, sem, sequer, ficar adstrito a determinadas imposições o que, em nada, se coaduna com os objectivos do processo tutelar.

Do pedido

Nestes termos, e nos demais de Direito aplicável, que V. Ex.as doutamente suprirão, parece-nos apodíctico que o presente recurso interposto deve improceder e, em consequência, ser substituída a medida cautelar vigente pela medida cautelar promovida, com as respectivas imposições, até à prolação da decisão final de 1ª instância, no que farão a habitual Justiça.

3. O recurso foi admitido por despacho de 27/12/2023, a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo.

4. Não foi apresentada resposta à motivação de recurso.

5. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer nos seguintes termos (transcrição):

Recurso é o próprio, com efeito e regime de subida adequados. Nada obsta ao respectivo conhecimento.

No âmbito do processo acima indicado, a Mme Juiz “a quo” proferiu douto despacho:

Vem da Digna Magistrada do Ministério Público promover que “cessada a presente medida, ao jovem seja aplicada medida cautelar prevista no artigo 57.º, alínea a) da LTE (“A entrega do menor aos pais, representante legal, família de acolhimento, pessoa que tenha a sua guarda de facto ou outra pessoa idónea, com imposição de obrigações ao menor”) (sublinhado nosso), com a imposição das seguintes obrigações, até à prolação de decisão final em fase de julgamento: i) Abster- se de possuir arma de qualquer natureza (branca ou outra); ii) Continuar a frequentar o ensino secundário à distância, 10.º ano na área de Línguas e Humanidades, na Escola Secundária …, mostrando-se motivado e empenhado, segundo elucida o relatório do centro educativo onde o jovem permanece; iii) Abster-se de frequentar os mesmos locais que o ofendido e espaços de diversão noturna; iv) Abster-se de contactar o ofendido por qualquer meio por si ou por interposta pessoa; v) Frequentar consultas de acompanhamento psicológico.”

Para o efeito, alega que o jovem se encontra mais integrado nas diversas vivências do quotidiano do Centro Educativo e, até à data, não foi alvo de nenhum procedimento disciplinar, tendo sido considerado, diversas vezes, o “jovem da semana”, razão pela qual se mostrariam atenuadas as exigências cautelares que os presentes autos impõem.

Regularmente notificados o menor e o seu Il. Mandatário para se pronunciarem sobre o que tivessem por conveniente, nada foi dito.

Cumpre apreciar e decidir.

A medida tutelar educativa aplicada ao jovem, e em curso, apresenta termo de cessação previsto para 29.12.2023, sem possibilidade de prorrogação – cfr. artigo 60.º, n.º s 1 e 2, da Lei Tutelar Educativa.

Nos termos do disposto no art.º 60º, n.º 1 da Lei Tutelar Educativa, “1 - A medida de guarda de menor em centro educativo tem o prazo máximo de três meses, prorrogável até ao limite máximo de mais três meses em casos de especial complexidade devidamente fundamentados. 2 - O prazo de duração das restantes medidas cautelares é de seis meses até à decisão do tribunal de 1.ª instância e de um ano até ao trânsito em julgado da decisão”.

Sendo que, nos termos do disposto no art.º 64º, n.º 1, al. a) da Lei Tutelar Educativa, “As medidas cautelares extinguem-se: a) Quando tiver decorrido o prazo da sua duração”.

Ora, as medidas de privação da liberdade de menores de 18 anos devem ser estabelecidas de acordo com a lei e aplicadas como medida de último recurso, devendo aplicar-se pelo mais curto tempo possível.

As medidas cautelares não são imutáveis, podendo ser modificadas, em face da sua estreita ligação aos princípios da necessidade e da precariedade, e em função da alteração de circunstâncias que o justifiquem.

Existindo nos autos informações que permitam evidenciar uma evolução favorável do percurso do menor que justifiquem a cessação da medida cautelar aplicada (art.º 62º da Lei Tutelar Educativa), a sua cessação deverá ser determinada.

Esta decisão de cessação não é, todavia, definitiva, podendo a mesma medida ou outra mais gravosa ser aplicada, desde que estejam verificados os seus pressupostos e sem prejuízo dos prazos máximos de duração das medidas cautelares educativas (art.º 60º da Lei Tutelar Educativa) – cfr FIALHO, António José, Lei Tutelar Educativa Anotada, Almedina, Coimbra, 2018, anotação ao art.º 62, pág. 236.

Considerando tudo o que acima ficou exposto, entende o Tribunal que não é possível deferir o promovido pela digna titular do inquérito, uma vez que:

(i) a substituição de uma medida cautelar por outra, menos gravosa, no termo do período máximo de aplicação da medida cautelar em curso, não pode servir como alavanca ou mecanismo processual que permita ultrapassar e contornar os prazos máximos definidos por lei para as medidas cautelares aplicadas – as quais, reforça-se, devem pautar-se pelo princípio da necessidade e precariedade; assim, esgotado o prazo máximo da medida tutelar imposta, mais não resta senão determinar a sua cessação e, neste caso, determinar a libertação do jovem. A não ser assim, estaria encontrada o expediente para perpetuar estatutos coativos duradouros e indeterminados, arrastados muito além dos 6 meses previstos no art.º 60º para qualquer medida cautelar e que é, de resto, a duração máxima que o legislador reservou para o inquérito.

(ii) mesmo que se admitisse a existência de pressupostos que justificassem uma atenuação do quadro cautelar e permitissem a aplicação de medida cautelar menos gravosa, tal apenas poderia ser logrado dentro do prazo máximo de duração das medidas cautelares educativas previstas na lei e que, no presente caso, em face das medidas propostas na douta promoção anterior, estas estariam igualmente vinculadas a um prazo máximo de 6 meses (até prolação da decisão de primeira instância), tornando inviável a sua aplicação, uma vez que esse prazo máximo de aplicação de estatuto cautelar se esgota a 29.12.2023.

Termos em que, por falta de fundamento legal, se indefere o requerido. AA deverá ser restituído à liberdade a 29.12.2023.

Inconformada a nossa Ex.ma Colega junto da 1ª instância apresentou o pertinente recurso da decisão proferida.

Na oportunidade, formulou as seguintes conclusões:

1. O artigo 60.º da LTE contempla duas alíneas, sendo que apenas a alínea a) prevê como prazo máximo a duração de seis meses, não podendo, este ser excedido.

2. A alínea b) do citado preceito legal salienta “O prazo de duração das restantes medidas cautelares é de seis meses até à decisão do tribunal de 1.ª instância e de um ano até ao trânsito em julgado da decisão” (sublinhado nosso).

3. Da redacção não se infere que a aplicação da medida da alínea a) invalida a sua substituição por uma das restantes medidas cautelares, cabendo estas, naturalmente, na alínea b), com o respectivo prazo que lhe cabe, sendo balizando, apenas, pela decisão da 1ª instância ou até ao respectivo trânsito em julgado.

4. Das referidas redacções, não retiramos a ilação que o prazo de seis meses é uno, independente da espécie da medida aplicada, e que o seu prazo não se inicia sempre que é aplicada nova medida cautelar.

5. Parece-nos que a interpretação do Tribunal a quo, de uma forma simplista, é: independentemente da espécie das medidas aplicadas o prazo máximo da sua aplicação é apenas e sempre de seis meses, independentemente seja a medida da alínea a) ou a medida da alínea b) e, no caso, como o prazo da medida da alínea a) se esgota no dia 29.12.2023, então não pode ser substituída por outra medida cautelar (da alínea b)), porque já decorreram seis meses.

6. Sendo substituída a guarda do menor em centro educativo por outra menos gravosa, in casu, a entrega do menor aos pais, com imposição de obrigações ao menor, acima especificadas, esta não pode ser aplicada por ter-se esgotado o prazo de seis meses na medida cautelar mais grave, in casu, guarda em centro educativo?

7. Se assim fosse, é nosso entendimento de que o legislador teria de ter acautelado essa situação na letra da lei, referindo, um prazo uno para todas as medidas, não as diferenciando entre si, ao invés de contemplar, como faz, no n.º 2 do artigo 60.º da LTE que para as restantes medidas cautelares, isto é, a das alíneas a) e b) do artigo 57.º da LTE o prazo é de seis meses até à decisão do tribunal de 1ª instância e de um ano até ao trânsito em julgado da decisão (negrito e sublinhado nossos).

8. Mais: teria igualmente o legislador acautelado que findo o prazo da medida mais gravosa não havia lugar a substituição por outro menos gravosa, o que não se verifica. Ou seja, caso a substituição de medidas não fosse admissível, tal deveria ter sido acautelado pelo legislador na letra da lei, o que não foi.

9. Donde se infere e depreende que, substituída a medida cautelar da alínea c) do artigo57.º da LTE por uma das previstas em cada uma das alíneas a) e b) do mesmo preceito legal, então o prazo começa a contar desde a sua implementação e não cessa por já ter-se esgotado o prazo da alínea c) do mesmo artigo.

10. Se assim fosse, bastaria o legislador ter previsto, na letra lei, que as medidas cautelares, não as distinguindo entre si, teriam um prazo máximo de seis meses, sem mais; o que não fez.

11. Ora, se a prisão preventiva se esgotar, por decurso do seu prazo, o indivíduo a ela sujeito for restituído à liberdade, não pode o Tribunal aplicar outra medida de coacção, menos gravosa, de forma a acautelar os perigos inerentes ao caso concreto?

12. O que o artigo 212.º, n.º 2 do Código de Processo Penal prescreve é que “as medidas revogadas podem de novo ser aplicadas, sem prejuízo da unidade dos prazos que a lei estabelecer, se sobrevierem motivos que legalmente justifiquem a sua aplicação.”, mas não estamos, como bem se vê, perante a mesma redacção, nem é isto que a letra da lei do artigo 60.º da LTE prevê.

13. Neste âmbito, uma vez mais a título de paralelismo, cumpre sublinhar o Parecer do Ministério Público no Tribunal da Relação de Lisboa, de 13.03.2009, que sublinha que “I. Nos termos do n.º 3 do art. 212.º do C. P. Penal a substituição de uma medida de coacção por outra menos grave ou de execução menos gravosa apenas se justifica caso se verifique uma atenuação das exigências cautelares que tenham determinado a sua aplicação

14. No caso concreto, como bem resulta da informação social junta aos autos, não obstante o desculpabilizar da sua conduta, o jovem AA mostrou evolução a nível comportamental, o que justifica que lhe seja aplicada medida menos gravosa.

15. No caso concreto, como bem salientou o Ministério Público na sua promoção, não obstante a tendência do jovem AA para desculpabilizar a prática dos factos, as informações obtidas relativamente à conduta e comportamento foram positivas, o que denota uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a sua guarda em centro educativo e, por isso, a necessidade de esta medida ser substituída por outra menos grave, o que promoveu, com a imposição das obrigações acima descritas.

16. A sábia doutrina refere: “As medidas cautelares educativas não são imutáveis, mas modificáveis, constituindo um afloramento dos princípios da necessidade e da precariedade ou, mais propriamente, do princípio ‘rebus sic standibus’. A possibilidade de modificação (ou de cessação) das medidas cautelares educativas justifica-se em função da alteração das circunstâncias (…) O juiz pode também substituir a medida cautelar por outra mais ou menos gravosa consoante se verifique uma agravação ou atenuação das exigências cautelares que determinaram a sua aplicação ou mesmo uma forma mais ou menos gravosa da execução da medida, modificando as condições impostas” (sublinhado nosso) (António José Fialho, in Lei Tutelar Educativa Anotada, Cristina Dias, Margarida Santos e Rui do Carmo (coord.), Almedina, 2020, p. 234).

17. Revertendo ao caso dos autos, não nos parece, pois, que tenham deixado de existir as exigências cautelares:

i) desvio comportamental ao normativo, de que é acusado no presente ITE, tem sido ponderado por AA com uma reacção a reiteradas provocações, por parte da vítima, não verbalizando o jovem, em contexto da medida cautelar de guarda, a necessidade de reparação dos danos causados, o que põe em causa a sua capacidade de ressonância afectiva e de leitura empática e responsabilizante das suas acções disfuncionais (sublinhado nosso)”;

ii) (…) as suas atitudes parecem configurar uma dinâmica interna que salienta a necessidade do jovem fazer justiça por si próprio, ignorando as respectivas instâncias judiciais para esse efeito”.

18. O que se evidencia, isso sim, é a atenuação destas exigências cautelares porquanto:

i) Em Setembro, iniciou o ensino secundário à distância, 10.º ano na área de Línguas e Humanidades, na Escola Secundária …, mostrando-se motivado e empenhado.

ii) Mostra-se mais integrado nas diversas vivências do quotidiano do Centro Educativo, assumindo, no entanto, uma postura de alguma passividade em actividades não individuais.

iii) Até ao momento, não foi alvo de nenhum procedimento disciplinar, tendo sido considerado, diversas vezes, o “jovem da semana”.

19. Ser restituído à liberdade, sem qualquer outra medida cautelar com imposição de determinadas obrigações, como o Ministério Público promoveu, parece-nos desresponsabilizar o jovem AA, sentindo que até à prolação de decisão final se trata de um cidadão que não impende sobre si a gravidade dos factos praticados.

20. Transparece à sociedade um sentimento de impunidade que não deve ser incentivado pela inércia judicial.

21. A aplicação de qualquer medida cautelar pressupõe a existência de indícios da prática de um crime, a previsibilidade de aplicação de uma medida tutelar e a existência de perigo de fuga ou de cometimento de novos crimes.

22. Não obstante a interpretação que o Tribunal a quo faz da letra do artigo 60.º da LTE, consideramos, no caso em concreto, que a mesma pode revelar-se temerária, considerando que o jovem retornará ao seu ambiente natural, com frequência dos mesmos locais que o ofendido e testemunhas, mormente, a escola, pois, até então, por encontrar-se privado da liberdade, o seu ensino ocorria por meios técnicos à distância.

23. Não se poderá perder de vista que as medidas cautelares, maxime o processo tutelar educativo, têm também por objectivo (principalmente), a necessidade de educar o menor para o direito bem como restabelecer a paz jurídica comunitária.

24. A medida tutelar educativa visa educar o menor para o direito e visa também inserir o menor de forma digna e responsável na vida em comunidade.

25. Trata-se apenas de continuar a proteger o menor.

26. As medidas tutelares visam garantir que o desenvolvimento do menor “ocorra de forma harmoniosa e socialmente integrada e responsável, tendo como referência o dever-ser jurídico consubstanciado nos valores juridicamente tutelados pela lei penal, enquanto valores mínimos e essenciais da convivência social” (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, 22.05.2023, proc. n.º 2289/12.3TAVNG.P1, relator: Elsa Paixão, disponível em www.dgsi.pt).

27. A medida cautelar, mais do que qualquer outra, e independente da sua espécie, encerra em si mesma uma forte componente protectora, na medida em que a sua aplicação em qualquer fase do processo - prévia à decisão proveniente da fase jurisdicional - permite antecipar uma intervenção já direccionada para a aplicação de uma medida tutelar educativa, (cfr. artigo 165.º da LTE), fornecendo, desde logo, ao menor alguns mecanismos que lhe permitirão uma inserção digna na sociedade.

28. A decisão do Tribunal a quo, de determinar a restituição à liberdade do jovem AA, sem substituição de qualquer outra medida cautelar, mormente a promovida pelo Ministério Público, não acautela nem protege, no nosso entendimento, quer o menor AA quer o jovem ofendido.

29. Vai o jovem AA regressar ao seu ambiente (anterior à sua permanência no centro educativo), designadamente, a escola que frequentava, onde se insere o jovem ofendido, algumas das testemunhas, sem que esteja protegido? Colocando quer o ofendido quer o agressor no mesmo espaço? Parece-nos, pelo despacho proferido, que esta situação não foi acautelada pelo Tribunal a quo.

30. Sem que seja acautelada a paz e tranquilidade públicas ou, mesmo, remover o perigo de o jovem AA reincidir na prática dos factos, estes ou outros?

31. A decisão do Tribunal a quo não se revela proporcional à gravidade dos factos que, em sede de primeiro interrogatório, mereceu a confissão por parte do jovem AA e não mereceram, durante o período de tempo em que se encontra privado da liberdade, juízo crítico sobre a sua prática, desculpabilizando-se com episódios vexatórios provocados pelo ofendido.

32. A gravidade destes factos advém não só da natureza dos valores que estes atingem- de natureza pessoal e patrimonial – mas também da subsequente moldura penal que lhes cabe.

33. Atenta a gravidade dos factos, não compreendemos, salvo o devido respeito por entendimento diverso, como o Tribunal a quo decidiu, com uma argumentação pouco profícua, cessar a medida cautelar vigente, aquando do seu término, e restituir o jovem à liberdade sem substituição para outra medida cautelar, mormente, imposição de obrigações que respondam às exigências de prevenção nas suas diversas vertentes.

34. Nem poderemos cogitar que não substituir a medida cautelar ainda em curso reveste uma forma de protecção do jovem, pois que tal decisão não permite, sequer, que o jovem interiorize o desvalor dos actos praticados, não seja responsabilizado pelos mesmos e permanece incólume até á prolação de despacho final como qualquer outro cidadão idóneo.

35. Atendendo aos princípios gerais do processo tutelar educativo que visa, em primeira linha, a protecção do jovem, a não substituição de medida cautelar nos termos promovidos tem reflexo nos direitos pessoais do próprio jovem, ao mesmo tempo que o deixa desprotegido, sem a tutela do Estado – como tem permanecido e beneficiado - acaba por colocar em causa a sua própria pessoa, segurança, uma vez que necessita, ainda, de educação para o direito.

36. O jovem AA deve continuar a beneficiar da tutela do Estado, motivo pelo qual o Ministério Público promoveu a substituição da medida cautelar.

37. Movimentando-se ambos os jovens (agressor e ofendido) nos mesmos locais, mormente escolar, nocturno, entre outros, usufruindo de amigos em comum e tratando-se de um meio pequeno em que a maioria das pessoas se conhece, de que forma o Tribunal a quo protege o jovem ofendido, colocando em liberdade o jovem agressor sem qualquer imposição, designadamente, abster-se de frequentar os mesmos locais que o ofendido e espaços de diversão nocturna e abster-se de contactar o ofendido por qualquer meio por si ou por interposta pessoa?

38. Não olvidando o meio local em apreço, restituir o jovem AA à liberdade, sem a imposição de quaisquer obrigações, não é descabido que tal poderá alavancar o sentimento de insegurança na comunidade ao mesmo tempo que poderá abalar a paz e tranquilidades públicas.

39. A necessidade de fundamentação de facto e de direito da generalidade das decisões judiciais constitui corolário do princípio do Estado de Direito e do papel criador e aplicador do direito desempenhado pelos Tribunais.

40. De entre os princípios através dos quais a doutrina e a jurisprudência têm densificado o aludido princípio do processo equitativo, encontra-se, pois, o direito à fundamentação das decisões.

41. Não obstante o dever de fundamentação de um despacho não revestir a mesma complexidade e grau de exigência que o de uma sentença (neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, 22.02.2023, proc. n.º 449/22.8TELSB-A.L1-3, Relator: Isabel Gaio Ferreira de Castro, disponível em www.dgsi.pt), ocorre falta de fundamentação de facto e de direito da decisão judicial, quando exista falta absoluta de motivação ou quando a mesma se revele gravemente insuficiente, em termos tais que não permitam ao respectivo destinatário a percepção das razões de facto e de direito da decisão judicial.

42. O despacho que aqui colocamos em crise encerra em si mesmo falta de fundamentação, porquanto não se encontra alicerçado em quaisquer elementos constantes dos autos, parecendo-nos, somente, uma interpretação livre da leitura do artigo 60.º da Lei Tutelar Educativa.

43. O despacho recorrido sublinha “Existindo nos autos informações que permitam evidenciar uma evolução favorável do percurso do menor que justifiquem a cessação da medida cautelar aplicada (art.º 62º da Lei Tutelar Educativa), a sua cessação deverá ser determinada.”, sem contudo, especificar quais os elementos presentes nos autos que justificam tal decisão; ao invés dos excertos acima transcritos, que alicerçam a promoção de substituição de medida cautelar promovida pelo Ministério Público, que constam do relatório de perícia depersonalidade e informação social, e que transparecem uma nítida necessidade de o jovem continuar a merecer tutela do Estado.

44. A cessação de uma medida cautelar não impede a sua substituição ou aplicação de outra, desde que, naturalmente, se acautelem os respectivos prazos.

45. Se pode ser aplicada outra medida mais gravosa, então, por maioria de razão, pode ser aplicada menos gravosa, pois, trazendo à colação o brocardo “quem pode o mais, pode o menos”.

46. Resulta que os argumentos expendidos no despacho recorrido são falíveis, in limine, até contraditórios entre si. Senão vejamos: por um lado diz que a cessação não é definitiva, podendo a mesma medida ou outra mais gravosa ser aplicada; por outro diz que tal excederia o prazo dos seis meses. Ou seja, no nosso entendimento, o raciocínio do Tribunal a quo é que independentemente de qual a medida aplicada não pode esta ser substituída por outra ou aplicada outra se uma delas já tiver esgotado o prazo de seis meses

47. Se assim fosse, perguntamos: qual o intuito do legislador em ter acautelado prazos distintos consoante a espécie da medida cautelar em causa, como destrinçam os n.os 1 e 2 do artigo 60.º da LTE?

48. Defendemos, pois, que se fosse substituída a medida vigente pela medida cautelar proposta, então, desde o seu início começaria a contar-se o prazo de seis meses, porque “o prazo de duração das restantes medidas (diversas da medida cautelar de guarda em centro educativo) (sublinhado nosso) (cfr. artigo 60.º, n.º 2 da LTE) decorre até à prolação de decisão do Tribunal de 1.ª instância e de um ano até ao trânsito em julgado da decisão.

49. Se a medida cautelar promovida (artigo 57.º, alínea a)) com as imposições sugeridas se iniciasse em 29.12.2023, então os seis meses cessariam, in limine, quando fosse decretada a decisão final em 1ª instância ou até um ano até ao trânsito em julgado da decisão pelo que, com o devido respeito, não compreendemos como tal colidiria com o prazo cessante da medida cautelar até, então, vigente, pois tratam-se de medidas de espécies distintas (uma da alínea a) e outra da alínea b)).

50. A única medida cautelar que não pode, de todo, ir além dos seis meses é a de guarda em centro educativo, motivo pelo qual o Ministério Público promoveu a sua substituição pela aplicação de outra medida cautelar e que não excederia o prazo dos seis meses porque o prazo iria começar com o seu início.

51. Os pressupostos patentes nos autos, que transparecem evolução no comportamento do jovem AA e desvalorização deste relativamente aos factos praticados foram, no nosso entendimento, desconsiderados pelo Tribunal a quo para substituir a medida vigente para uma menos gravosa e, por outro lado, igualmente desconsideradas foram as informações (quer da perícia da personalidade, quer da informação social) da necessidade de educação para o direito e de consciencializar-se do desvalor da sua conduta

52. Não se pode compreender nem acolher que o jovem AA seja restituído à liberdade, sem, sequer, ficar adstrito a determinadas imposições o que, em nada, se coaduna com os objectivos do processo tutelar.

Apreciando

O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação (Cfr. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96 e de 24-3- 1999 e ainda Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6.ª edição, 2007, pág. 103).

Recorde-se que a Mme Juiz “a quo”, defende no seu despacho ora posto em crise que: “…admitisse a existência de pressupostos que justificassem uma atenuação do quadro cautelar e permitissem a aplicação de medida cautelar menos gravosa, tal apenas poderia ser logrado dentro do prazo máximo de duração das medidas cautelares educativas previstas na lei e que, no presente caso, em face das medidas propostas na douta promoção anterior, estas estariam igualmente vinculadas a um prazo máximo de 6 meses (até prolação da decisão de primeira instância), tornando inviável a sua aplicação, uma vez que esse prazo máximo de aplicação de estatuto cautelar se esgota a 29.12.2023.

Termos em que, por falta de fundamento legal, se indefere o requerido. AA deverá ser restituído à liberdade a 29.12.2023”.

Ao invés, a nossa Ex.ma Colega junto da 1ª instância insurge-se (e bem) com este entendimento.

Com efeito, refere a esse propósito que: “… a interpretação do Tribunal a quo, de uma forma simplista, é: independentemente da espécie das medidas aplicadas o prazo máximo da sua aplicação é apenas e sempre de seis meses, independentemente seja a medida da alínea a) ou a medida da alínea b)…”.

A interpretação do tribunal “a quo” diverge da autorizada doutrina já que a esse propósito Renata Terra (1) concretiza:1 “… Quanto à duração da medida cautelar de guarda estabelece o art. 60.º, n.º 1, da LTE, que tal medida tem o prazo máximo de 3 prorrogável até ao limite máximo de mais 3 meses em casos de especial complexidade devidamente fundamentados.

Para as restantes medidas, menos gravosas, o prazo é de 6 meses até à decisão do tribunal de 1.ª instância e de 1 ano até ao trânsito em julgado da decisão. O conceito de especial complexidade, pelo seu carácter vago e indeterminado, terá de ser preenchido, sendo a única referência legal de que se dispõe, a que consta a propósito da medida de coacção de prisão preventiva, no art. 215.º, n.º 3, do CPP, diploma aplicável subsidiariamente ex vi do art. 128.º, n.º 1, da LTE. “.

Salvo sempre melhor e mais elevado entendimento e respeito por opinião diversa, a interpretação levada a cabo pelo Tribunal “a quo” não colhe, desde logo atendendo ao elemento literal e sistemático de interpretação (2).

Com efeito, no caso concreto o legislador usou de cautela ao consagrar no nº 1 o da guarda de menor em centro educativo e no nº 2 as restantes medidas cautelares, o que revela, desde logo, intenção de “separar águas” mormente no que tange às medidas respectivas e prazos aplicáveis.

Nessa conformidade, a razão está, de forma manifesta e por inteiro com a nossa Ex.ma Colega na 1ª instância.

A nossa Ex.ma Colega defende, a dado passo das suas conclusões refere:

“28. A decisão do Tribunal a quo, de determinar a restituição à liberdade do jovem AA, sem substituição de qualquer outra medida cautelar, mormente a promovida pelo Ministério Público, não acautela nem protege, no nosso entendimento, quer o menor AA quer o jovem ofendido.

29. Vai o jovem AA regressar ao seu ambiente (anterior à sua permanência no centro educativo), designadamente, a escola que frequentava, onde se insere o jovem ofendido, algumas das testemunhas, sem que esteja protegido? Colocando quer o ofendido quer o agressor no mesmo espaço? Parece-nos, pelo despacho proferido, que esta situação não foi acautelada pelo Tribunal a quo. “.

É consabido que as medidas cautelares não são imutáveis, mas modificáveis, até por expressão do princípio da precariedade, que mais não é do que a decorrência dos princípios da necessidade e da adequação.

A modificabilidade justificar-se-á em função das alterações das circunstâncias, estando tais medidas sujeitas a revisão, a exemplo do que acontece com a revogação e substituição das medidas de coacção nos arts. 212.º e 213.º do CPP, como estabelece o art. 61.º da LTE, sendo as medidas cautelares substituídas, oficiosamente ou a requerimento, se o juiz concluir que a medida aplicada não realiza as finalidades pretendidas.

Aliás, as medidas cautelares cessam logo que deixarem de se verificar os pressupostos da sua aplicação (art. 62.º da LTE). Esta cessação depende de decisão do juiz.

Sempre com o máximo e devido respeito pela Mme Juiz “a quo”, o seu despacho ora sobre censura olvidou os princípios fundamentais vertidos na LTE.

O modelo da Lei Tutelar Educativa, superando o antigo modelo paternalista da antiga OTM, incorpora um modelo de justiça (de responsabilização), voltado para uma educação para o direito, prevendo uma lista de opções de medidas que só no caso concreto, serão alvo de uma escolha. Medidas essas de responsabilização educativa, que trazem impregnadas, a título secundário embora, finalidades de prevenção geral positiva (3).

Nessa conformidade, o despacho recorrido deverá ser substituído por outro que acolha a promoção do MºPº impondo, no caso concreto, medida menos gravosa (como aquela proposta e a que alude o disposto no artº 57 alínea a) da LTE).

Não se acolhe o entendimento da Mme Juiz “a quo” que ordenou a restituição à liberdade do menor, sem mais.

Nesta conformidade e atento tudo o que se deixou exposto deverão Vossas Excelências, Juízes Desembargadores, conceder provimento ao recurso apresentado pelo MºPº na 1ª instância, devendo a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que imponha medida menos gravosa (como aquela proposta e a que alude o disposto no artº 57 alínea a) da LTE).

6. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta.

7. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1. Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/99, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:

Falta de fundamentação do despacho recorrido.

Admissibilidade legal da aplicação da medida cautelar promovida pelo Ministério Público.

2. Elementos relevantes para a apreciação deste recurso

2.1 Aos 29/06/2023, após 1º interrogatório judicial de jovem detido, foi aplicada a AA, nascido aos …/…/2008, a medida cautelar de guarda de menor em Centro Educativo, em regime fechado, por existirem fortes indícios da prática pelo mesmo de factos que a lei penal qualifica como integrando um crime de homicídio, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131º, 22º, nºs 1 e 2, alínea b) e 23º, nº 2, do Código Penal, verificando-se, entre o mais, também a previsibilidade de aplicação de uma medida tutelar educativa e o forte receio de cometimento de outros factos qualificados legalmente como crime.

2.2 A medida foi reexaminada e mantida por despacho de 16/08/2023.

2.3 Por despacho de 29/09/2023, foi a medida aplicada prorrogada por três meses.

2.4 Por despacho de 31/10/2023, foi mantida a medida cautelar aplicada de guarda de menor em Centro Educativo.

2.5 Em 18/12/2023, foi proferida a seguinte decisão objecto do recurso (transcrição da parte que releva):

Vem da Digna Magistrada do Ministério Público promover que “cessada a presente medida, ao jovem seja aplicada medida cautelar prevista no artigo 57.º, alínea a) da LTE (“A entrega do menor aos pais, representante legal, família de acolhimento, pessoa que tenha a sua guarda de facto ou outra pessoa idónea, com imposição de obrigações ao menor”) (sublinhado nosso), com a imposição das seguintes obrigações, até à prolação de decisão final em fase de julgamento: i) Abster-se de possuir arma de qualquer natureza (branca ou outra); ii) Continuar a frequentar o ensino secundário à distância, 10.º ano na área de Línguas e Humanidades, na Escola Secundária …, mostrando-se motivado e empenhado, segundo elucida o relatório do centro educativo onde o jovem permanece; iii) Abster-se de frequentar os mesmos locais que o ofendido e espaços de diversão noturna; iv) Abster-se de contactar o ofendido por qualquer meio por si ou por interposta pessoa; v) Frequentar consultas de acompanhamento psicológico.”

Para o efeito, alega que o jovem se encontra mais integrado nas diversas vivências do quotidiano do Centro Educativo e, até à data, não foi alvo de nenhum procedimento disciplinar, tendo sido considerado, diversas vezes, o “jovem da semana”, razão pela qual se mostrariam atenuadas as exigências cautelares que os presentes autos impõem.

Regularmente notificados o menor e o seu Il. Mandatário para se pronunciarem sobre o que tivessem por conveniente, nada foi dito.

Cumpre apreciar e decidir.

A medida tutelar educativa aplicada ao jovem, e em curso, apresenta termo de cessação previsto para 29.12.2023, sem possibilidade de prorrogação – cfr. artigo 60.º, n.º s 1 e 2, da Lei Tutelar Educativa.

Nos termos do disposto no art.º 60º, n.º 1 da Lei Tutelar Educativa, “1 - A medida de guarda de menor em centro educativo tem o prazo máximo de três meses, prorrogável até ao limite máximo de mais três meses em casos de especial complexidade devidamente fundamentados. 2 - O prazo de duração das restantes medidas cautelares é de seis meses até à decisão do tribunal de 1.ª instância e de um ano até ao trânsito em julgado da decisão”.

Sendo que, nos termos do disposto no art.º 64º, n.º 1, al. a) da Lei Tutelar Educativa, “As medidas cautelares extinguem-se: a) Quando tiver decorrido o prazo da sua duração”.

Ora, as medidas de privação da liberdade de menores de 18 anos devem ser estabelecidas de acordo com a lei e aplicadas como medida de último recurso, devendo aplicar-se pelo mais curto tempo possível.

As medidas cautelares não são imutáveis, podendo ser modificadas, em face da sua estreita ligação aos princípios da necessidade e da precariedade, e em função da alteração de circunstâncias que o justifiquem.

Existindo nos autos informações que permitam evidenciar uma evolução favorável do percurso do menor que justifiquem a cessação da medida cautelar aplicada (art.º 62º da Lei Tutelar Educativa), a sua cessação deverá ser determinada.

Esta decisão de cessação não é, todavia, definitiva, podendo a mesma medida ou outra mais gravosa ser aplicada, desde que estejam verificados os seus pressupostos e sem prejuízo dos prazos máximos de duração das medidas cautelares educativas (art.º 60º da Lei Tutelar Educativa) – cfr FIALHO, António José, Lei Tutelar Educativa Anotada, Almedina, Coimbra, 2018, anotação ao art.º 62, pág. 236.

Considerando tudo o que acima ficou exposto, entende o Tribunal que não é possível deferir o promovido pela digna titular do inquérito, uma vez que:

(i) a substituição de uma medida cautelar por outra, menos gravosa, no termo do período máximo de aplicação da medida cautelar em curso, não pode servir como alavanca ou mecanismo processual que permita ultrapassar e contornar os prazos máximos definidos por lei para as medidas cautelares aplicadas – as quais, reforça-se, devem pautar-se pelo princípio da necessidade e precariedade; assim, esgotado o prazo máximo da medida tutelar imposta, mais não resta senão determinar a sua cessação e, neste caso, determinar a libertação do jovem. A não ser assim, estaria encontrada o expediente para perpetuar estatutos coativos duradouros e indeterminados, arrastados muito além dos 6 meses previstos no art.º 60º para qualquer medida cautelar e que é, de resto, a duração máxima que o legislador reservou para o inquérito.

(ii) mesmo que se admitisse a existência de pressupostos que justificassem uma atenuação do quadro cautelar e permitissem a aplicação de medida cautelar menos gravosa, tal apenas poderia ser logrado dentro do prazo máximo de duração das medidas cautelares educativas previstas na lei e que, no presente caso, em face das medidas propostas na douta promoção anterior, estas estariam igualmente vinculadas a um prazo máximo de 6 meses (até prolação da decisão de primeira instância), tornando inviável a sua aplicação, uma vez que esse prazo máximo de aplicação de estatuto cautelar se esgota a 29.12.2023.

Termos em que, por falta de fundamento legal, se indefere o requerido.

AA deverá ser restituído à liberdade a 29.12.2023.

Apreciemos.

Falta de fundamentação do despacho recorrido

Sustenta o recorrente que a decisão revidenda padece de falta de fundamentação, aduzindo que “não se encontra alicerçado em quaisquer elementos constantes dos autos, parecendo-nos, somente, uma interpretação livre da leitura do artigo 6º, da Lei Tutelar Educativa (…)” e “sem (…) especificar quais os elementos presentes nos autos que justificam tal decisão”.

E, convoca o estabelecido no artigo 615º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil.

Ora, importa se diga, desde já, que in casu não tem cabimento a norma trazida à colação pelo recorrente, pois, como se extrai do estabelecido no artigo 128º, nº 1, da Lei Tutelar Educativa (aprovada pela Lei nº 166/99, de 14/09 e doravante referenciada por LTE) são subsidiariamente aplicáveis as normas do processo penal, uma vez que estas regem cabalmente no que tange à enfermidade assinalada de falta de fundamentação do despacho, inexistindo lacuna a preencher por apelo às vertidas no Código de Processo Civil.

Assim entendidos, vejamos.

Tem assento na Lei Fundamental – artigo 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa – a imposição da fundamentação das decisões judiciais que não sejam de mero expediente, devendo esta ser feita na forma prevista na lei.

Por sua vez, estabelece-se no artigo 97º, nº 5, do CPP, que os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.

A falta de fundamentação da sentença integra nulidade, conforme resulta dos artigos 374º, nº 2 e 379º, nº 1, alínea a), do CPP, mas, a omissão de fundamentação de despacho decisório que não seja de mero expediente (com excepção da situação prevista no nº 6, do artigo 194º e da decisão instrutória, esta face ao disposto nos artigos 308º, nº 2 e 283º, nº 3, do mesmo diploma) constitui mera irregularidade.

Ora, se integra uma irregularidade, o respectivo regime de arguição é o previsto no artigo 123º, nº 1, do CPP, estando vedado a este Tribunal da Relação o recurso ao consagrado no seu nº 2 pois, como refere Germano Marques da Silva, em Curso de Processo Penal, vol. II, 3ª edição, Editorial Verbo, 2002, pág. 89, “ainda antes da arguição e mesmo que a irregularidade não seja arguida, pode oficiosamente ser reparada ou mandada reparar pela autoridade judiciária competente para aquele acto enquanto mantiver o domínio dessa fase do processo” e, aliás, “mal se perceberia que, sendo a irregularidade o menos relevante dos vícios processuais, tivesse um regime mais devastador do que as nulidades relativas (estas, se não forem arguidas no prazo de 10 dias, ficam sempre definitivamente sanadas – arts. 120º e 105º nº 1 do CPP)” – cfr. também Ac. da Relação de Guimarães de 21/11/2005, Proc. nº 1877/05-1, disponível em www.dgsi.pt.

Não tendo o recorrente Ministério Público arguido a eventual invalidade da decisão no prazo de três dias a contar do conhecimento da irregularidade, requerendo que a Srª. Juíza que a lavrou concretizasse o que agora vem afirmar foi omitido, a existir, sempre estaria sanada a irregularidade.

É que, cumpre dizer ainda, posto que se não está perante questão de conhecimento oficioso (e, também não, manifestamente, no âmbito de aplicação do nº 2, do artigo 379º), o seu conhecimento não competiria a este Tribunal sem que, previamente, houvesse sido suscitada na 1ª instância, porquanto, os recursos têm por objecto a decisão recorrida e não a questão por ela julgada; são remédios jurídicos e, como tal, destinam-se a reexaminar decisões proferidas pelas instâncias inferiores, verificando a sua adequação e legalidade quanto às questões concretamente suscitadas e não a decidir questões novas, que não tenham sido colocadas perante aquelas.

De qualquer forma e apenas para sossego das consciências, dir-se-á que, analisado o despacho recorrido (supra transcrito), constata-se a não verificação da apontada irregularidade de falta de fundamentação, porquanto o tribunal a quo elucida cabalmente as razões da sua decisão de não aceitação do promovido pelo Ministério Público e vero é que a dissensão do recorrente quanto ao sentido da mesma não integra esse enfermidade.

Inexistiria, pois, falta ou sequer deficiência de fundamentação do despacho revidendo.

Admissibilidade legal da aplicação da medida cautelar promovida pelo Ministério Público

A Digna Magistrada do Ministério Público junto do tribunal a quo promoveu, aos 30/11/2023, já na fase jurisdicional do processo (processo tutelar educativo, que teve início por despacho judicial de 29/11/2023), que, caso se revelasse inviável o início do julgamento antes do termo da medida cautelar vigente de guarda do menor em centro educativo (em regime fechado) e cessada essa medida, ao jovem AA fosse aplicada a medida cautelar prevista no artigo 57º, alínea a), da Lei Tutelar Educativa (entrega do menor aos pais, representante legal, família de acolhimento, pessoa que tenha a sua guarda de facto ou outra pessoa idónea, com imposição de obrigações ao mesmo) com a imposição das obrigações de se abster de possuir arma de qualquer natureza (branca ou outra); continuar a frequentar o ensino secundário à distância, 10.º ano na área de Línguas e Humanidades, na Escola Secundária …, com motivação e empenho; abster-se de frequentar os mesmos locais que o ofendido e espaços de diversão noturna; abster-se de contactar o ofendido por qualquer meio por si ou por interposta pessoa e frequentar consultas de acompanhamento psicológica, até à prolação de decisão final em fase de julgamento.

A Mmª Juíza despachou indeferindo essa promoção, fundando-se em que o prazo máximo da medida cautelar em curso se esgotaria em 29/12/2023, o que impediria a aplicação de medida cautelar menos gravosa, pois tal apenas poderia ser logrado dentro do prazo máximo de duração das medidas cautelares educativas previstas na lei e que, no presente caso, em face das medidas propostas na douta promoção anterior, estas estariam igualmente vinculadas a um prazo máximo de 6 meses (até prolação da decisão de primeira instância).

Pois bem.

Estabelece-se no artigo 60º, da Lei Tutelar Educativa:

“1 - A medida de guarda de menor em centro educativo tem o prazo máximo de três meses, prorrogável até ao limite máximo de mais três meses em casos de especial complexidade devidamente fundamentados.

2 - O prazo de duração das restantes medidas cautelares é de seis meses até à decisão do tribunal de 1.ª instância e de um ano até ao trânsito em julgado da decisão.”

A aplicação da medida cautelar de guarda do menor em centro educativo (no caso em apreço, em regime fechado, nos termos dos artigos 57º, alínea c) e 58º, nº 3, da LTE) traduz-se, resulta indubitável, numa privação da liberdade do menor, que apresenta paralelismo com as medidas de coacção previstas no CPP de prisão preventiva (artigo 202º) e obrigação de permanência na habitação (artigo 201º).

Ora, consagra-se no artigo 217º, do CPP que “o arguido sujeito a prisão preventiva é posto em liberdade logo que a medida se extinguir, salvo se a prisão dever manter-se por outro processo” – nº 1; sendo que, “se a libertação tiver lugar por se terem esgotado os prazos de duração máxima da prisão preventiva, o juiz pode sujeitar o arguido a alguma ou algumas das medidas previstas nos artigos 197.º a 200.º, inclusive” – nº 2.

Não se vê razão para a não interpretação por via integrativa do consignado no nº 2, do artigo 60º, da LTE (estando em causa uma situação em que se esgotou o prazo máximo da medida cautelar de guarda do menor em centro educativo, em regime fechado) em concordância com a solução decorrente da norma contida no nº 2, do artigo 217º, do CPP, dada a sua similitude e tendo até em atenção o estabelecido no artigo 128º, nº 1, da LTE, quanto à aplicação subsidiária das normas do Código de Processo Penal.

Daí que, obstáculo legal não exista a que, esgotado o prazo da medida cautelar de guarda do menor em centro educativo, se sujeite este à medida cautelar proposta pelo Ministério Público de entrega do menor aos pais, representante legal, família de acolhimento, pessoa que tenha a sua guarda de facto ou outra pessoa idónea, com imposição de obrigações ao mesmo, iniciando -se o prazo de seis meses referido no artigo 60º, nº 2, da LTE, no momento em que é aplicada.

Subsidiariamente, parece admitir o tribunal recorrido a (eventual) existência de pressupostos que justificariam uma atenuação do quadro cautelar e permitiriam a aplicação de medida cautelar menos gravosa.

Medida menos gravosa, mas não o afastamento da aplicação de uma outra medida, pois apenas o faz por força do fundamento retro referido (de ser atingido brevemente o prazo máximo de duração das medidas cautelares educativas previstas na lei).

E, na verdade, de acordo com o estabelecido no artigo 56º, da LTE, “as medidas cautelares devem ser adequadas às exigências preventivas ou processuais que o caso requerer e proporcionadas à gravidade do facto e às medidas tutelares aplicáveis” e cessam, nos termos do artigo 62º, da mesma, “logo que deixarem de se verificar os pressupostos da sua aplicação”, não se podendo olvidar que visam acautelar, entre o mais, a satisfação das visam acautelar, entre o mais, a satisfação das necessidades de educação do menor para o direito.

Ora, ainda que com alguma atenuação (dada a evolução comportamental positiva, mas vero é que continua a desvalorizar a sua conduta, que se revela significativamente grave), os pressupostos de aplicação das medidas cautelares enunciados no artigo 58º, da LTE, estão ainda verificados.

Destarte, a medida cautelar proposta pelo Ministério Público apresenta-se como adequada às exigências preventivas que o caso requer e proporcional à gravidade do facto e às medidas tutelares aplicáveis.

Termos em que, cumpre conceder provimento ao recurso.

III - DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso pelo Ministério Público interposto e, em consequência:

A) Revogam o despacho recorrido;

B) Determinam, enquanto medida cautelar – artigos 56º, 57º, alínea a), 58º e 60º, nº 2, da Lei Tutelar Educativa - a entrega do menor AA aos pais, representante legal, família de acolhimento, pessoa que tenha a sua guarda de facto ou outra pessoa idónea e impõem as seguintes obrigações, até à prolação de decisão final em fase de julgamento:

a) Abster-se de possuir arma de qualquer natureza (branca ou outra);

b) Continuar a frequentar o ensino secundário à distância, 10.º ano na área de Línguas e Humanidades, na Escola Secundária …, com motivação e empenho;

c) Abster-se de frequentar os mesmos locais que o ofendido e espaços de diversão noturna;

d) Abster-se de contactar o ofendido por qualquer meio por si ou por interposta pessoa;

e) Frequentar consultas de acompanhamento psicológico.

Sem tributação.

Évora, 19 de Março de 2024

(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário)

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(Artur Vargues)

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(Nuno Garcia)

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(Laura Goulart Maurício

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1 Disponível para consulta Julgar nº 8 em https://julgar.pt/breves-apontamentos-sobre-a-medida-cautelar-de- guarda-em-centro-educativo

2 J. Baptista Machado, Introdução ao direito e ao discurso legitimador, Almedina, Coimbra, 1994, pags. 175 e segs.

3 Neste sentido, por todos, Ac. Relação de Évora de 08.03.2022, relator Moreira das Neves