Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
208/08.0TBORQ.E1
Relator: CANELAS BRÁS
Descritores: FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
VEÍCULO AUTOMÓVEL SEM SEGURO
CHAPA DE MATRÍCULA
Data do Acordão: 06/28/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Tem-se entendido que o FGA responde – atendendo à razão de ser da sua criação e existência (para que os lesados não fiquem privados de ser ressarcidos nos seus legítimos interesses quando não haja seguro obrigatório válido e eficaz que responda pelos danos causados por veículos de circulação terrestre) – até em casos em que a matrícula do veículo é desconhecida, por não ser possível tê-la identificado, desde, naturalmente, que se verifiquem os demais pressupostos do chamamento do Fundo.
Decisão Texto Integral: RECURSO Nº. 208/08.0TBORQ.E1 – APELAÇÃO (OURIQUE)


Acordam os juízes nesta Relação:

O Autor/Apelante, (…), residente no Monte da (…), em Ourique, vem interpor recurso da douta sentença proferida em 09 de Dezembro de 2015 (ora a fls. 449 a 464 dos autos), na presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, e emergente de acidente de viação, que instaurara, no Tribunal Judicial da comarca de Ourique, contra os Réus/Apelados, (…), residente no (…), Caixa Postal (…), em Albufeira, (…) (entretanto, falecido em 29 de Janeiro de 2008) e mulher, (…), com residência no Monte dos (…), Aldeia de (…), em Ourique, e Fundo de Garantia Automóvel, com sede na Av. da (…), n.os (…), em Lisboa – tendo sido admitida a intervenção principal provocada de (…), residente na Rua Santa (…), n.º 7, Aldeia de (…), Ourique, para intervir ao lado do Autor (vide o douto despacho de fls. 288 a 292) e a habilitação dos herdeiros do falecido (…), (…), residente em (…), Caixa Postal n.º (…), Albufeira, (…), residente em Caminho do (…), Caixa Postal (…), Olhos de Água, Albufeira, (…) e (…), residente na Rua (…), n.º 29, (…), em Ourique (douta sentença que só veio a condenar o Réu … a pagar-lhe € 30.000,00 e outro tanto à chamada …, “acrescidos de juros contados desde a data da citação até efectivo e integral pagamento”): recorde-se ter sido peticionado um valor global de € 134.078,70 (cento e trinta e quatro mil, setenta e oito euros e setenta cêntimos) e juros – com o fundamento aduzido na douta sentença recorrida de que “não existe qualquer dúvida que recai sobre o 1º Réu o dever de indemnizar em resultado dos danos ocasionados pela produção do acidente”, e de que “no caso dos autos não resultou provado que o triciclo se encontrasse sequer matriculado, fosse em Portugal, fosse em que país fosse; consequentemente, está afastada a responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel” – ora intentando a sua revogação e alegando, para tanto, em síntese, que discorda da decisão proferida sobre a matéria de facto, no ponto em que não dá por provado que ‘o ciclomotor encontrava-se matriculado em Portugal’, que consta da alínea P) dos factos tidos por não provados na douta sentença. Para tal realça alguns segmentos dos depoimentos prestados quer pelo Réu (…), quer pela Ré (…), que deverão, assim, ser reavaliados. Depois, vem defender que havia lugar à fixação duma indemnização por lucros cessantes, que se transmite aos herdeiros do falecido, pois tem que se entender que o acidente fatal se ficou a dever a culpa do condutor do triciclo não se tratando de mera responsabilidade objectiva. Por último, “com ou sem alteração da matéria de facto, mal andou o Tribunal a quo ao não condenar o Fundo de Garantia Automóvel”, que tem que responder, também, solidariamente. São termos em que deve dar-se provimento ao recurso e alterar-se, conforme a tal alegação, a douta sentença recorrida.
Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações de recurso.
*

I) – Vêm dados por provados os seguintes factos:

1) (…) faleceu às 21h.15m. do dia 20 de Outubro de 2002, com a idade de 16 anos, no estado de solteiro, sendo filho do Autor e da interveniente principal e neto materno dos 2.os Réus.
2) O respectivo relatório de autópsia revelou que o óbito se deveu a fracturas do crânio com contusão do encéfalo (mais exactamente, duas fracturas no crânio, uma com 3,5 centímetros no temporal esquerdo e outra com 8 cm. no temporo-frontal esquerdo), por acção de natureza contundente.
3) O (…) havia sido transportado ao Centro de Saúde de Ourique, onde deu entrada pelas 12h.30m. do dia 19 de Outubro de 2002, já inconsciente, tendo sido transferido para o Hospital de Beja, onde entrou às 13h.43m., já em coma.
4) Transferido para o Hospital de S. José, em Lisboa, deu ali entrada às 18h.37m., com diagnóstico de morte cerebral.
5) No dia 18 de Outubro de 2002, pelas 22h.30m., (…), o 1.º Réu e (…) encontravam-se no Monte dos (…), sito na Aldeia de (…).
6) Por essa hora decidiram deslocar-se ao Clube Desportivo da Aldeia de (…), a fim de se divertirem e de ingerirem bebidas alcoólicas.
7) Como o Monte dos (…) dista seis quilómetros do destino que haviam programado, o 1º Réu decidiu levar um ciclomotor (triciclo) com 50 cm3 de cilindrada, nele transportando o (…) e o (…).
8) O 1.º Réu não dispunha de qualquer licença de condução ou outro documento que o habilitasse a conduzir ciclomotores, ou outros veículos motorizados, na via pública, o que o (…) sabia.
9) Os três ficaram no referido Clube Desportivo até cerca das 02h.00m., ingerindo diversas bebidas alcoólicas, altura em que, devido ao encerramento daquele local, decidiram deslocar-se até ao posto de abastecimento da Galp, junto ao IC-1, de onde saíram entre as 03h.00m. e as 04h.00m.
10) Nesse trajecto, foi o 1.º Réu quem, uma vez mais, conduziu o citado ciclomotor.
11) Quando decidiram regressar ao Monte dos (…), viajaram os três no supra mencionado veículo, mais uma vez, conduzido pelo 1.º Réu.
12) A certa altura, o veículo iniciou uma descida em recta, num caminho em terra batida, onde ganhou velocidade.
13) Ao aproximar-se de um entroncamento, o 1º Réu pretendeu virar para a direita.
14) Ao efectuar bruscamente a manobra de mudança de direcção para a direita, o 1.º Réu perdeu o controlo do veículo e este capotou.
15) O (…) não levava capacete.
16) Na altura, o tempo estava bom e o piso, em terra batida, estava seco, em bom estado de conservação e permitia boa aderência.
17) Não obstante a violência do embate, o (…) ficou consciente.
18) Após o embate, o 1.º Réu perguntou ao (…) se se sentia bem ou se queria ir ao hospital, ao que este foi peremptório ao responder sentir-se bem e não carecer de observação médica.
19) Naquele momento, nenhum dos intervenientes foi socorrido ou recorreu a tratamento hospitalar.
20) Ao chegarem a casa, o (…), o 1.º Réu e o (…) estiveram a conversar e deitaram-se no mesmo quarto, não tendo o primeiro, em momento algum, queixado de dores, emitido gemidos ou gritos ou demonstrado qualquer receio pela vida.
21) A falta de capacete foi a única causa das lesões que determinaram a morte do (…).
22) O Autor foi informado no dia 20 de Outubro de 2002 que o filho estava hospitalizado em Lisboa, tendo-se deslocado ao Hospital de S. José para o ver.
23) Aí chegado, deparou-se com o filho num estado de coma, sem qualquer possibilidade de comunicar com ele.
24) O (…) não tinha quaisquer descendentes.
25) Era uma pessoa saudável e forte.
26) Pelos factos constantes dos autos, o 1.º R. foi julgado em processo-crime e condenado, por sentença de 12.03.2008, transitada em julgado, em pena de multa, pela prática de um crime de homicídio por negligência e de um outro crime, de condução de veículo sem habilitação legal.
27) À data dos factos, o 1.º e os 2.os Réus não haviam contratado qualquer seguro de responsabilidade civil decorrente da circulação do ciclomotor.
28) O (…) já não vivia com o Autor desde 1998, altura em que foi viver com a avó materna e, desde 2002, que o mesmo vivia com a tia (…).
29) Era a 2.ª Ré mulher quem, juntamente com a tia (…), prestava ao (…) todos os cuidados atinentes ao seu sustento, saúde e educação.
30) Os 2.os Réus e a tia (…) mantinham com o (…) uma relação de grande proximidade, com fortes laços de afectividade.
31) Os 2.os Réus sofreram, e continuam a sofrer, enorme desgosto pela perda do (…).
32) Por sentença de 26 de Março de 2001, foi regulado o exercício do poder paternal do (…), sendo este confiado à guarda da mãe.
33) E por sentença de 8 de Fevereiro de 2002, essa regulação foi alterada, passando o menor a estar confiado à guarda e cuidado da avó, (…), aqui 2.ª Ré mulher.
34) O Autor nunca telefonava ao filho e raramente passavam juntos fins-de-semana.
35) A relação do Autor com o (…) era distante e com raras manifestações de afectividade.


II) – E vêm dados por não provados os seguintes factos:

A) O ciclomotor pertencia a (…).
B) O 1º Réu, (…) e o (…) dirigiram-se ao posto de abastecimento da Galp porque desejavam consumir mais bebidas alcoólicas, ali tendo permanecido até às 06h.00m.
C) O ciclomotor embateu numa parede existente no local em que se deu o acidente.
D) Aquando do capotamento, o (…) embateu com a cabeça na referida parede, o que lhe provocou as fracturas no crânio, descritas no relatório de autópsia.
E) O (…) ficou bastante combalido e com dores.
F) Logo após o embate, o 1.º Réu fez transportar na caixa do veículo o (…), até ao Monte dos (…).
G) No dia seguinte, cerca das 12.00 horas, o (…) encontrava-se debaixo da cama, a coçar-se.
H) Nessa noite, o (…) padeceu de dores intensas, receando pela própria vida, com consciência de que havia sofrido lesões susceptíveis de lhe causar a morte.
I) O facto referido supra em 23) causou ao Autor enorme desgosto.
J) Na viagem para visitar o (…) o Autor percorreu 390 (trezentos e noventa) quilómetros.
K) Aquando do seu regresso, o Autor recebeu um telefonema do Hospital mencionado, com a informação do seu filho ter falecido.
L) Entre o Autor e o (…) havia muita união, amor e carinho.
M) O falecimento do (…) levou o Autor a fechar-se na sua dor, chorando e lamentando o sucedido, recordando-o quotidianamente.
N) Tendo inclusive tentado o suicídio com veneno, em Outubro de 2002, por entender que a vida sem o seu filho não faria qualquer sentido.
O) O Autor tinha a companhia, a afectividade e o carinho do (…).
P) O ciclomotor encontrava-se matriculado em Portugal.
Q) Antes do embate, o 1.º Réu circulava a uma velocidade reduzida.
*

Suscitam-se três questões, que demandam a pronúncia desta Relação:

a) Alteração da matéria de facto quanto à não matrícula do triciclo;
b) Transmissão aos herdeiros do direito aos lucros cessantes;
c) Responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel.

É só isso que, hic et nunc, está em causa, como se extrai das conclusões que vêm alinhadas no recurso apresentado.
Por seu turno, a douta sentença transitou em julgado em todos os aspectos não impugnados no recurso, designadamente na condenação do 1º Réu Sandro Rodrigo Romão e na absolvição dos 2.os, demandados enquanto proprietários do triciclo interveniente no acidente.
Quanto à posição processual da mãe do menor falecido – a interveniente (…) – (que também não recorreu autonomamente), cremos bem que lhe aproveitará a discussão encetada pelo Autor, nesta sede, já que fora chamada para intervir ao lado deste (de resto, por decisão do Tribunal), e não se podem dissociar um do outro, nas questões que agora vêm suscitadas no recurso (mormente relacionadas com a indemnização a pagar-lhes, enquanto pais da vítima e na qualidade de seus sucessores). Repare-se que se trata aqui de um litisconsórcio necessário activo, que demanda, naturalmente, uma pronúncia unitária no confronto de todos os litisconsortes necessários (o que, aliás, prevê a lei no artigo 634.º, nº 1, do CPC, ao estabelecer: “O recurso interposto por uma das partes aproveita aos seus compartes no caso de litisconsórcio necessário”).

[Para que se perceba: o Autor, ora recorrente, (…) é o pai da vítima mortal do acidente, (…); a chamada (…) é a mãe; o 1º Réu (…) era o condutor do triciclo acidentado; a vítima era transportada no mesmo; os 2os réus (…), já falecido, e (…), eram os pais do dito (…), avós maternos do falecido e alegados proprietários do triciclo; já o Fundo de Garantia Automóvel aparece na acção porque não havia contrato de seguro obrigatório, válido ou eficaz; A douta sentença veio a condenar o Réu (…) a pagar, “pela perda do direito à vida”, € 30.000,00 e juros ao Autor (…) e € 30.000,00 e juros à interveniente/chamada (…), um e outro progenitores do falecido (…); E veio a absolver o mesmo Réu do demais pedido e todos os outros Réus de quanto lhes vinha peticionado, incluindo o Fundo de Garantia Automóvel.]

Vejamos, então, cada uma das questões suscitadas.


a) Alteração da matéria de facto quanto à não matrícula do triciclo.

O Apelante pretende que se venha, ainda, a alterar a matéria de facto da acção que foi oportunamente considerada de não provada na sentença, a saber: P) “O ciclomotor encontrava-se matriculado em Portugal” – para tal estribando a sua posição em segmentos dos depoimentos (que transcreve) prestados pelos Réus (…) e (…), que deverão, assim, vir a ser reavaliados.

Naturalmente, que para encetar uma tal reapreciação fáctica, haveria que considerar, como se considera, que a decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto foi objecto de uma impugnação válida, de acordo com a previsão do artigo 640.º do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho (aqui aplicável ex vi dos artigos 5.º, n.º 1, 7.º, n.º 1, a contrario, e 8.º dessa Lei, pois que a decisão foi proferida depois da sua entrada em vigor e a acção é posterior a 1 de Janeiro de 2008: é de 4 de Agosto desse ano) – e se tem a impugnação por válida mesmo sem aplicar aqui um grau de exigência de tal ordem que se não coadunasse, depois, com a letra e o espírito da lei e apenas servisse para arranjar entraves ao conhecimento do mérito dos recursos (note-se que vigoram, entre nós, os princípios pro actione e in dubio pro favoritatae instantiae, em ordem precisamente a que se consiga nos processos uma tutela jurisdicional efectiva).

Mas a verdade é que o Apelante não deixa de especificar, nas suas doutas alegações de recurso, os concretos pontos de facto constantes da sentença que considera incorrectamente julgados, como lhe competia e o impõe a alínea a) do n.º 1 desse referido artigo 640.º, assim se percebendo exactamente do que é que discorda e pretende ver alterado nesta sede.

É que não se pretende aqui um segundo julgamento da matéria de facto, apenas colmatar erros ou contradições que sejam detectáveis e resultem dos próprios elementos juntos aos autos, sejam documentos, sejam os depoimentos gravados das testemunhas (“A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso”, escreveu-se logo no preâmbulo do Decreto-lei n.º 39/1995, de 15 de Fevereiro, que introduziu o sistema do registo das provas em audiência e o recurso nessa matéria).

E, assim, impõe, desde logo, tal artigo 640.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que o recorrente, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, especifique obrigatoriamente, sob pena de rejeição, quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (alínea a)), quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto que impugna, diversa da recorrida (alínea b)) e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas – isto para além de ter que indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, podendo, também, por sua iniciativa, proceder à transcrição dos excertos que considere importantes (n.º 2, alínea a), do mesmo artigo).

Ora, o citado dispositivo legal – ao obrigar o recorrente, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, a especificar, sob pena de rejeição, quais “os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados” e os concretos meios probatórios em que se baseia – intenta precisamente isso: facilitar, à outra parte como ao Tribunal, a localização precisa dos problemas a resolver no meio de um processo que pode ter centenas de factos e dezenas de documentos e depoimentos de testemunhas.
Mas tal ónus vem cumprido in casu, e até de uma forma minuciosa, não deixando o Apelante de indicar o ponto de facto de que discorda frontalmente (e pretende ver alterado o decidido em 1ª instância) – referindo-se à matéria P) dos não provados – e apontando segmentos dos depoimentos das pessoas que logo identifica, nos quais baseia essa discordância. E apresenta, até, a transcrição de excertos desses depoimentos, o que não eximiria o Tribunal ad quem, se fosse caso disso, de os ouvir na sua totalidade, para ficar com a visão do conjunto.
O normativo em causa está, pois, cumprido, bem assim como alcançada a respectiva finalidade.

Porém, repete-se, não estamos perante um segundo julgamento de toda a factualidade constante dos autos, nem é esse o regime processual que nos rege na matéria – tanto que para alterar a decisão de facto da 1.ª instância não basta uma simples divergência, sendo necessário demonstrar, pelos concretos meios de prova produzidos, que se verificou erro de apreciação, o que não será fácil quando não sejam inequívocos no sentido pretendido pelo Recorrente, sendo que “O Tribunal da Relação só deve alterar a matéria de facto nos casos de manifesta e clamorosa desconformidade dos factos assentes com os meios de prova disponibilizados nos autos, dando prevalência ao princípio da oralidade, da livre apreciação da prova e da imediação”, como se escreveu no sumário do Acórdão da Relação do Porto de 4 de Abril de 2005, publicado pelo ITIJ e com a referência n.º 0446934 (no mesmo sentido, vide o douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Setembro de 2005, publicado pelo ITIJ e com a referência n.º 05A2200, que diz como segue: “A plenitude do segundo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto sofre naturalmente a limitação que a inexistência de imediação necessariamente acarreta, não sendo, por isso, de esperar do tribunal superior mais do que a sindicância de erro manifesto na livre apreciação das provas. O Tribunal da Relação só em casos de manifesto erro de julgamento deve alterar a matéria de facto dada como provada com base em depoimentos gravados”).
[Rege aqui o artigo 662.º do Código de Processo Civil, sendo a lei muito clara na enumeração das diversas possibilidades que tem o Tribunal da Relação de alterar a decisão fáctica do Tribunal da 1ª instância.]

No entanto, feito este intróito – que se impunha –, não cremos mostrar-se ainda necessária à boa decisão da causa – que se quer, sobretudo, justa – encetar tal actividade de reapreciação da prova gravada, apresentando-se a mesma, nos termos como vem pedida pelo Apelante, um acto perfeitamente inútil, a evitar.
Se bem percebemos a intenção do recorrente – o que nem é garantido –, o mesmo discorda de se ter dado por não provado que “O ciclomotor encontrava-se matriculado em Portugal”. Pensar-se-ia que quereria que se desse, então, por provado que “O ciclomotor encontrava-se matriculado em Portugal” – que foi o facto que o Autor efectivamente alegara no artigo 45º da sua petição inicial.
Mas não, o Apelante não quer isso, antes que se dê por provado que o veículo “não dispõe de matrícula” – facto que não foi alegado por ele, nem por ninguém, na acção.
Quer dizer: alega que o veículo está matriculado em Portugal e quer que se dê como provado que, afinal, não dispõe de matrícula. Não é fácil entender.
[Quer-lhe, ainda, acrescentar, como provado, que o ciclomotor em causa “foi construído pelo réu (…)” – facto também nunca alegado por ninguém, e estranho à discussão dos autos. Aliás, se o Autor quer mesmo – como se vê que quer – que o Fundo de Garantia Automóvel venha a ser responsabilizado pelo pagamento da indemnização arbitrada, a si e à mãe do falecido, é salutar que não enverede por tais caminhos de querer dados por provados factos como esse de que o triciclo “foi construído pelo réu (…)”, pois aí é que compromete tal pretensão!]

Em suma: nada do que se pretende alterar na factualidade tem interesse, sob nenhuma perspectiva, para a discussão jurídica que se encetará mais adiante sobre a responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel – que, como se verá, é eminentemente técnica e tem que ver é com a interpretação a fazer da lei que prevê os pressupostos dessa mesma intervenção.

Pelo que a factualidade fica como está.


b) Transmissão aos herdeiros do direito aos lucros cessantes.

O Apelante vem defender que, ao contrário do decidido, haveria lugar à fixação duma indemnização por lucros cessantes, que se transmite aos herdeiros do falecido, tendo que se entender que o acidente fatal se ficou a dever a culpa do condutor do triciclo, não se tratando de mera responsabilidade objectiva (“ao subsumir os factos na responsabilidade pelo risco errou o tribunal recorrido na determinação da norma aplicável, pois em vez do artigo 503.º do Código Civil, deveria ter feito uso do artigo 483.º do mesmo diploma”, aduz).

Mas a douta sentença nem deixa de enquadrar correctamente a situação com que se deparou e que tinha que apreciar, salva melhor opinião que a nossa.
Com efeito, veio a concluir (com os elementos de que dispôs – que foram os trazidos ao processo – e não, naturalmente, com quaisquer outros), que tudo se ficou a dever a um enorme infortúnio (mas isso é irrelevante) e aos próprios riscos inerentes à circulação de um veículo daqueles, um ciclomotor de 50 cm3 de cilindrada, que dispõe de três rodas e duma estabilidade de circulação que se conhece, isto é, muito precária, principalmente quando muda de direcção, o que é do conhecimento geral e que terá motivado o despiste e a projecção da vítima.
A estes riscos próprios da circulação deste tipo de veículos – que a douta sentença considerou, e bem, como factor preponderante para aquele desfecho –, juntaram-se, numa mistura fatal, quer a falta de habilitação para a sua condução por parte do respectivo condutor, o que até era do conhecimento da vítima, quer a falta de uso de capacete por parte desta, aliados à idade muito jovem de todos.

Ora, tal situação tem pleno enquadramento na previsão do n.º 1 do artigo 503.º do Cód. Civil, que reza: “Aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação”.
Esta responsabilidade “só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo” (vide o seu artigo 505.º).

É a chamada responsabilidade civil objectiva, ou pelo risco, que tem por base a possibilidade que têm certas actividades de lesar bens jurídicos doutrem, parecendo justo que responda por tal quem tira os benefícios que os potenciam.

Pelo que não se vê qualquer dificuldade em aplicar esse regime ao caso sub judicio, a partir do momento em que não há na acção qualquer dúvida sobre o nexo de causalidade entre aquele uso do veículo e as lesões que advieram à vítima, e que lhe causaram a morte, pois que esta responsabilidade objectiva, ainda que prescinda, é certo, da ilicitude e da culpa, não abdica desse nexo de causalidade com os danos provocados.

A douta sentença ainda se pronuncia sobre uma potencial concorrência do comportamento da vítima – ao não usar o capacete de protecção e saber que o condutor do veículo não tinha licença habilitante para tal –, mas conclui que ela não afasta aquele factor aqui determinante do risco potencial da circulação deste tipo de veículos, análise com a qual se concorda e que não foi, de resto, objecto de polémica no recurso apresentado (a não ser na medida em que aí se defende que houve culpa exclusiva do respectivo condutor).

Dessarte, só haveria que fixar os danos pessoais da vítima, já que sendo verdade dispor o artigo 504.º, n.º 1, do Código Civil que “a responsabilidade pelos danos causados por veículos aproveita a terceiros, bem como às pessoas transportadas”, já nos termos do seu n.º 3, “no caso de transporte gratuito a responsabilidade abrange apenas os danos pessoais da pessoa transportada”.
E, uma vez que não se vieram a provar danos decorrentes do sofrimento que possa ter ocorrido na vítima entre o momento do acidente e o momento da sua morte, ou outros a título de lucros cessantes, a douta sentença reconduziu, e bem, ao dano da perda da vida os prejuízos de natureza pessoal indemnizáveis in casu, tendo-os fixado, e bem, nos € 60.000,00 que haviam sido peticionados pelo Autor a esse título, e vindo a atribuir o valor de € 30.000,00 a cada um dos progenitores (montante que foi o pedido, e que não vem contestado no recurso).

Pelo que também neste seu segmento, tem que improceder a Apelação.


c) Responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel.

Por fim, intenta o Apelante que se venha, ainda, a responsabilizar o FGA (“com ou sem alteração da matéria de facto mal andou o Tribunal a quo ao não condenar o Fundo de Garantia Automóvel”, pois existe responsabilidade deste “nos casos em que se desconheça a matrícula do veículo lesante”, aduz).
A douta sentença veio a considerar que “no caso dos autos não resultou provado que o triciclo se encontrasse sequer matriculado, fosse em Portugal, fosse em que país fosse; consequentemente, está afastada a responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel”.
Quid juris?

Na previsão do n.º 1 do artigo 21.º do Decreto-lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, ora aplicável, “Compete ao Fundo de Garantia Automóvel satisfazer nos termos do presente capítulo, as indemnizações decorrentes de acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório, que sejam matriculados em Portugal ou em países terceiros em relação à Comunidade Económica Europeia que não tenham gabinete nacional de seguros, ou cujo gabinete não tenha aderido à Convenção Complementar entre Gabinetes Nacionais”.
Trata-se da transposição para o direito interno de Portugal de Directivas Comunitárias com origem no Conselho e no Parlamento Europeus – e, por isso, do interesse de toda a (agora) União Europeia, a que Portugal está vinculado.

Tem-se entendido que o FGA responde – atendendo à razão de ser da sua criação e existência (para que os lesados não fiquem privados de ser ressarcidos nos seus legítimos interesses quando não haja seguro obrigatório válido e eficaz que responda pelos danos causados por veículos de circulação terrestre) – até em casos em que a matrícula do veículo é desconhecida, por não ser possível tê-la identificado, desde, naturalmente, que se verifiquem os demais pressupostos do chamamento do Fundo, que aqui não estão em causa.

Então, a pergunta impõe-se:
Se responde quando se fica sem saber qual é a matrícula, porque é que não há-de responder quando se apura que não está matriculado em Portugal (e, igualmente, se não ficou a saber qual é a matrícula)? Pois se se fica sem saber a matrícula, sabermos lá se, nesse caso, está matriculado em Portugal – e o Fundo continua a responder.
Pensamos que a razão é exactamente a mesma nos dois casos, quando se não apure a matrícula ou se não apure que está matriculado em Portugal (sendo que, no caso sub judicio, não se escreveu que o triciclo não está matriculado em Portugal, apenas que não se provou que o estivesse).

Consequentemente, estando perfeitamente identificado o veículo que veio a intervir no acidente – sabe-se que foi aquele ciclomotor de três rodas do 1º réu embora se não saiba a sua matrícula, ou se a tinha –, que o mesmo não detinha qualquer seguro de responsabilidade civil obrigatório, válido e eficaz, e que os danos, rectius a morte, adveio da respectiva circulação terrestre – tendo-se até já condenado (em processo crime e, agora, na acção cível) o respectivo dono e condutor, pelo risco, fixando-se o valor da indemnização –, não há nada que ora impeça, antes tudo o impõe (mormente aquela citada razão de ser da sua criação e/ou existência), que o Fundo de Garantia Automóvel seja responsabilizado pela indemnização arbitrada aos progenitores do falecido, solidariamente com o 1.º Réu, nos valores também já fixados de € 30.000,00 para cada um, com os juros de mora desde a citação até ao pagamento.

Procede, pois, nesta parte, a Apelação interposta pelo Autor, pelo que, em tal enquadramento fáctico/jurídico, se terá agora que revogar da ordem jurídica, embora só parcialmente, a douta sentença que, através dela, vem impugnada.
*

Decidindo.

Assim, face ao que se deixa exposto, acordam os juízes nesta Relação em conceder parcial provimento ao recurso e alterar a douta sentença recorrida no sentido de lhe acrescentar a mencionada condenação do FGA.
Custas pelo Apelante, relativas a 2/3 (dois terços).
Registe e notifique.
Évora, 28 de Junho de 2017
Mário João Canelas Brás
Jaime de Castro Pestana
José Francisco de Matos