Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
833/12.5TBLLE.E1
Relator: MÁRIO SERRANO
Descritores: CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
ENTREGA JUDICIAL DE BENS
ANTECIPAÇÃO DO JUÍZO SOBRE A CAUSA PRINCIPAL
Data do Acordão: 02/12/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Não obsta à solução de simplificação processual permitida pelo nº 7 do artigo 21º do Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de Junho - antecipação do juízo sobre a causa principal - o facto do Requerido ter sido notificado editalmente da decisão que decretou a providência cautelar de entrega judicial do bem
Decisão Texto Integral: Proc. nº 833/12.5TBLLE.E1-2ª (2015)
Apelação-1ª
(Acto processado e revisto pelo relator signatário: artº 131º, nº 5 – NCPC)

ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I – RELATÓRIO:

Em procedimento cautelar de entrega judicial de bem locado, que corre actualmente termos na Secção Cível da Instância Local de Loulé da Comarca de Faro (depois de iniciado no Tribunal Judicial de Loulé), instaurado por «Banco (…), SA» (posteriormente substituído na sua posição processual por «… Banco, SA») contra (…), veio a primeira invocar um contrato de locação financeira mobiliária celebrado entre requerente e requerido, com base no qual aquela locou e entregou a este um veículo automóvel (Opel …, de matrícula …) contra o pagamento de determinadas rendas mensais, e alegar o incumprimento desse contrato por falta de pagamento de rendas por parte do requerido, o que determinou a resolução do contrato por iniciativa da requerente, mediante carta enviada, em 25/3/2011, para o endereço indicado pelo requerido (e que foi devolvida com a menção “nova morada”), sem que a requerente tenha obtido deste a restituição do bem locado. Consequentemente, formulou a requerente pedido no sentido de ser ordenada a entrega judicial do bem locado, ao abrigo do artº 21º do Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de Junho, peticionando, ao mesmo tempo, a antecipação do juízo sobre a causa principal, conforme nº 7 daquela disposição legal, de forma a decidir definitivamente o caso, sem necessidade de propositura de uma acção principal, em termos de restituição definitiva do bem locado e de condenação do requerido em indemnização pela mora na restituição (quantificada em 3.551,79 €, à data da propositura do procedimento cautelar, acrescida de juros desde a citação até integral pagamento).

Ordenada a citação do requerido (cfr. despacho de fls. 26), veio esta a frustrar-se, tendo sido devolvidas as cartas enviadas (cfr. fls. 27-29). Reconhecida a inviabilidade da citação pessoal do requerido, foi dispensada a sua audiência, não se procedendo à sua citação edital, ao abrigo do artº 385º, nº 4, do anterior CPC (cfr. despacho de fls. 30).

Produzida a prova, sem a audiência do requerido, o tribunal de 1ª instância proferiu decisão (cfr. sentença de fls. 37-41) que julgou procedente a providência requerida, ordenando a entrega da viatura em causa, por considerar verificados todos os requisitos que fundamentam a entrega judicial de bem locado, nos termos previstos no Decreto-Lei nº 149/95. Mais determinou que se procedesse à audição das partes, nos termos e para os efeitos do artº 21º, nº 7, do Decreto-Lei nº 149/95.

Por se desconhecer o paradeiro do requerido (assim como da viatura, cuja apreensão ainda não se consumou), foi ordenado que a decisão determinativa da providência lhe fosse comunicada, para efeitos da sua impugnação ou dedução de oposição, por via de citação edital (cfr. despacho de fls. 48).

Cumprida a citação edital do requerido, foi a requerente notificada para dizer o que tivesse por conveniente (cfr. despacho de fls. 57), tendo formulado pedido no sentido do normal prosseguimento dos autos (cfr. requerimento de fls. 67) – assim significando a pretensão de subsequente apreciação do seu pedido inicial de antecipação do juízo sobre a causa principal.

Sobre esse requerimento da requerente veio então a recair decisão do tribunal de 1ª instância, cuja parte dispositiva reza como segue: «Não tem assim eficácia, para o trânsito da decisão, a citação edital efectuada, não podendo os autos prosseguir para a antecipação do juízo sobre a causa principal» (cfr. despacho de 10/11/2014, a fls. 121-122). Para fundamentar essa decisão, argumentou-se, essencialmente, o seguinte: a audição das partes, a que alude o nº 7 do artº 21º do Decreto-Lei nº 149/95, não é compatível com a citação edital do requerido; essa audição não se realiza enquanto o requerido não for pessoalmente notificado; a notificação da decisão de procedência de procedimento cautelar, quando a providência tenha sido decretada sem audiência do requerido, segue as formalidades da citação, nos termos do artº 366º, nº 6, do novo CPC (NCPC), mas continua a tratar-se de uma «notificação», sem que esteja prevista a «notificação edital» (e invoca-se, em abono deste entendimento, a posição expressa por LEBRE DE FREITAS, in Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, em anotação ao idêntico nº 6 do artº 385º do antigo CPC).

Na sequência dessa decisão, apresentou a requerente novo requerimento (cfr. peça datada de 27/11/2014, a fls. 124-130), em que alega dever-se o antecedente despacho a “manifesto lapso”, porquanto sustenta que a possibilidade de antecipação do juízo sobre a causa principal não depende da modalidade de notificação do requerido, que pode ter lugar por via edital (e invoca, nesse sentido, um Ac. RL de 10/10/2013). Em consequência, formula, ao abrigo do artº 614º do NCPC, pedido de substituição daquele despacho por outro que ordene o prosseguimento dos autos para a antecipação do juízo sobre a causa principal (ou, em alternativa, que ordene a notificação do MP, para exercer o contraditório em representação do requerido ausente, ao abrigo do artº 21º do NCPC, caso se entenda ser esse trâmite necessário à subsequente antecipação do juízo sobre a causa principal, nos termos do nº 7 do artº 21º do Decreto-Lei nº 149/95).

Sobre este novo requerimento da requerente, voltou a pronunciar-se o tribunal de 1ª instância (cfr. despacho de 2/12/2014, a fls. 131-132), para dizer, essencialmente, o seguinte: que não podia voltar a apreciar a matéria já decidida no despacho anterior, por se encontrar esgotado o seu poder jurisdicional; que não podia ordenar a citação do MP em representação do requerido, porque esta dependeria, designadamente, de ter havido uma prévia citação edital do requerido, que fosse operante para efeitos do prosseguimento dos autos com antecipação do juízo sobre a causa principal – o que não se verificou, porquanto no despacho antecedente se decidiu não reconhecer eficácia, para tais efeitos, à citação edital do requerido.

É, finalmente, desta última decisão que vem interposto pela requerente o presente recurso de apelação (cfr. peça datada de 23/12/2014, a fls. 134-143), cujas alegações culminam com as seguintes conclusões:

«1ª – Foram realizadas todas as diligências de citação prescritas na lei para se proceder à citação regular do requerido, quer com recurso à via pessoal, quer à via postal.

2ª – De igual modo foi observado, mas sem sucesso, o disposto no art. 244.º do CPC (por duas ocasiões).

3ª – Perante a manifesta e comprovada impossibilidade de citar o requerido por via postal e pessoal, o tribunal dispensou a audição prévia deste, ao abrigo do disposto no artigo 385º, nº 4, do CPC.

4ª – Depois de proferida sentença que julgou integralmente procedente, por provada, a providência cautelar de entrega judicial do veículo automóvel, o tribunal ordenou que as partes fossem ouvidas nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 21º do D.L. 149/95, de 24 de Junho, e uma vez que as novas buscas às bases de dados se mostraram frustradas, ordenou-se a citação edital do mesmo.

5ª – Concluída esta, o tribunal a quo decidiu que a citação edital efectuada, afinal, não tinha eficácia para o trânsito em julgado da decisão.

6ª – Convencido do manifesto lapso, o ora Apelante requereu ao tribunal a quo a sua retificação, ao abrigo do disposto no artigo 614º do CPC, no sentido da eficácia da referida citação edital e consequente prosseguimento dos autos para antecipação do juízo e notificação do Ministério Público, em representação do ausente, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 21º do CPC.

7ª – Tendo o tribunal a quo omitido a pronúncia quanto à primeira – correcção do lapso – e indeferido a segunda.

8ª – A citação edital prevista no artigo 233º, nº 6, do CPC tem lugar quando o citando se encontre ausente em parte incerta, ou seja, se se frustrar a citação por via postal e a secretaria obtiver informação de que nas bases de dados dos serviços de identificação civil, segurança social, da Direcção-Geral dos Impostos e de Viação não existe nenhum registo da residência, local de trabalho, sede ou local onde funciona normalmente a administração do citando.

9ª – Havendo uma impossibilidade de notificação pessoal do Requerido, o processo não pode ficar paralisado e, consequentemente, acarretar a caducidade da providência e prejudicar o Recorrente, subvertendo o espírito do próprio D.L. nº 149/95, de 24 de Junho – descongestionar os tribunais e evitar a necessidade de serem intentadas duas acções com o mesmo objecto (cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa [de] 10-10-2013).

10ª – Como tem sido entendimento pacífico na doutrina e jurisprudência, a decisão sobre o juízo antecipado da causa serve essencialmente para reiterar a decisão já tomada aquando do decretamento da providência cautelar, não dependendo essa decisão da modalidade de notificação do Requerido, podendo-se concluir que a citação edital não é incompatível com o disposto no nº 7, artº 21º do Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de Junho, pois o que a lei exige é que se tenham realizado todas as diligências com vista ao exercício do contraditório.

11ª – Em suma, a ineficácia atribuída à já realizada citação edital do Requerido, aliada ao indeferimento da requerida citação do Ministério Público, constitui uma manifesta denegação da justiça e o cair num paradoxo, já que o processo ficará irremediavelmente decidido por meros formalismos, a nosso ver inaplicáveis, e terminará com a interrupção e finalmente com a extinção.

12ª – Assim decidindo, o douto despacho recorrido, violou o disposto nos artigos 615º, nº 1, al. d) (omissão de pronúncia), quando recusou pronunciar-se sobre a correcção do identificado lapso, e bem assim o disposto nos artigos 20º da Constituição da República Portuguesa, e 4º e 21º, ambos do CPC, quando indeferiu a requerida citação do Ministério Público, em representação do ausente.»

Como é sabido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. artos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artº 608º, nº 2, ex vi do artº 663º, nº 2, do NCPC).

Do teor das alegações da recorrente resulta que a matéria a decidir se resume a apreciar do acerto do despacho recorrido – ou seja, e muito singelamente, saber se o tribunal de 1ª instância: a) devia ou não declarar que o seu poder jurisdicional já se encontrava esgotado quanto à questão do prosseguimento dos autos para a antecipação do juízo sobre a causa principal (ao abrigo do artº 21º, nº 7, do Decreto-Lei nº 149/95); b) devia ou não recusar a citação ou notificação do MP, como representante do requerido ausente (ao abrigo do artº 21º do NCPC).

Cumpre apreciar e decidir.


II – FUNDAMENTAÇÃO:

Como se disse, há um óbvio equívoco da requerente quanto ao objecto do recurso de apelação interposto nos autos. Senão, vejamos.

A requerente pretende obter, com o presente recurso, uma decisão que ordene o prosseguimento dos autos para antecipação do juízo da causa principal. Porém, se bem virmos, não foi no despacho recorrido que essa matéria foi decidida, mas em despacho anterior de que não se recorreu.

Com efeito, o objecto do recurso é necessária e logicamente delimitado pelo próprio alcance do despacho recorrido: trata-se apenas, neste caso, e como já se referiu, de saber se o despacho recorrido decidiu correctamente, do ponto de vista legal, quando declarou que estava esgotado o seu poder jurisdicional sobre a questão do prosseguimento dos autos para antecipação do juízo sobre a causa principal e quando afirmou não poder ordenar a citação do MP como representante do requerido ausente – e não directamente apurar se devem os autos prosseguir para efeitos de antecipação do juízo sobre a causa principal (ainda que sem prejuízo de uma eventual conclusão de que não estaria esgotado aquele poder jurisdicional poder vir a projectar-se indirectamente, por via de uma hipotética repristinação da tramitação a partir do despacho recorrido, na questão do prosseguimento para os referidos efeitos).

Com esta ressalva quanto à delimitação do objecto do recurso, vejamos então mais detidamente como se apresentam in casu os dados do problema.

Estamos perante um procedimento cautelar de entrega judicial de bem locado, no qual foi julgada procedente a providência requerida, sem audiência do requerido (o qual, aliás, se encontra ausente em parte incerta – o que implicou que a decisão determinativa da providência lhe fosse notificada por via edital).

Tendo em conta o pedido inicial formulado pela requerente, deveria seguir-se a tramitação conducente à designada «antecipação do juízo sobre a causa principal», nos termos do nº 7 do artº 21º do Decreto-Lei nº 149/95. Recorde-se que o regime do contrato de locação financeira de bens móveis, previsto no Decreto-Lei nº 149/95, contempla, entre outros, os seguintes aspectos: possibilidade de resolução do contrato, com fundamento no seu incumprimento pelo locatário, por falta de pagamento de rendas (artº 17º); direito de requerer providência cautelar de entrega judicial do bem locado e obtenção da procedência dessa providência, que consistirá na «entrega imediata ao requerente» do bem locado, sem necessidade de verificação de um dos requisitos gerais das providências cautelares previstas no CPC – o do periculum in mora ou receio de lesão do direito (artº 21º, nos 1, 2 e 4); e, em caso de procedência da providência, a possibilidade de «antecipação do juízo sobre a causa principal», o que se traduz, como se refere na nota preambular do Decreto-Lei nº 30/2008, de 25/2 (que introduz, designadamente, essa alteração ao Decreto-Lei nº 149/95), em permitir «ao juiz decidir a causa principal após decretar a providência cautelar de entrega do bem locado, extinguindo-se a obrigatoriedade de intentar uma acção declarativa», com o objectivo de assim se evitar «a existência de duas acções judiciais – uma providência cautelar e uma acção principal – que, materialmente, têm o mesmo objecto: a entrega do bem locado» (artº 21º, nº 7).

Se atentarmos na sequência processual, verifica-se que, depois de decretada a providência e efectuada a citação edital do requerido, é suscitada pela requerente a subsequente apreciação do seu pedido inicial de antecipação do juízo sobre a causa principal. E, perante esse pedido, decide o tribunal de 1ª instância que os autos não podem prosseguir para tal efeito, por incompatibilidade dessa subsequente tramitação com a citação edital do requerido. É esta decisão que resolve, ao nível da 1ª instância, a questão de saber se há ou não prosseguimento dos autos para antecipação do juízo sobre a causa principal – e resolve-a em sentido negativo (o que, implicitamente, também significa que decide no sentido de não ordenar a citação do MP em representação do requerido ausente, que só faria sentido no pressuposto do pretendido prosseguimento dos autos para o referido efeito).

Com esta decisão ficou claramente consumado o indeferimento da pretensão da requerente quanto à antecipação do juízo sobre a causa principal. Seria então o momento próprio para a requerente impugnar essa decisão que lhe era desfavorável: se discordava dela, deveria nessa ocasião ter interposto o devido recurso de apelação.

Mas a requerente não interpôs tal recurso. Antes resolveu apresentar um novo requerimento, alegando a ocorrência de um «manifesto lapso» no despacho anterior, que, a ser corrigido, conduziria a decisão de sentido contrário à anterior – ou seja, a ser ordenado o que antes se recusara: o prosseguimento dos autos para antecipação do juízo sobre a causa principal. Como é evidente, a requerente visou, com este novo requerimento, provocar um novo despacho sobre matéria já decidida. E é do despacho que recaiu sobre esse novo requerimento (em que apenas se diz que nada há a dizer…) que acaba por ser interposto o presente recurso, quando o recurso respeitante à matéria em causa deveria ter sido anteriormente interposto.

Regressemos então à asserção inicial: percebe-se que a requerente pretende, com o presente recurso, obter uma decisão que ordene o prosseguimento dos autos para antecipação do juízo da causa principal, contrariando assim decisão da 1ª instância que obstou a tal tramitação. Mas como se pode alcançar esse resultado recorrendo, não do despacho que recusou esse prosseguimento, mas de um despacho posterior que se limita a dizer que a questão já foi anteriormente decidida e que nessa ocasião anterior se esgotou o respectivo poder jurisdicional? Ou, dito de outro modo: como pode a requerente, ao recorrer deste último despacho, obter a revogação, não deste, mas do despacho anterior?

Afigura-se indubitável que não é admissível discutir no recurso de determinada decisão uma qualquer outra decisão do processo, de que não se declarou pretender recorrer, nem se recorreu no momento próprio. No presente caso, a requerente identifica claramente, no seu recurso (em 23/12/2014), que está a recorrer do despacho de fls. 131-132 (de 2/12/2014) – e não do despacho de fls. 121-122 (de 10/11/2014, em que foi recusado o prosseguimento dos autos) –, sendo certo que, na data de 23/12/2014, já tinha expirado há muito o prazo de 15 dias, concedido pelo nº 1 do artº 638º do NCPC (por se tratar de processo urgente), para o recurso do despacho de fls. 121-122 (de 10/11/2014).

De igual modo, considera-se também indiscutível, como já se deixou induzido, que a questão do prosseguimento dos autos para antecipação do juízo sobre a causa principal foi plenamente decidida pela 1ª instância em despacho anterior ao despacho recorrido – e decidida no sentido de que deveria ser recusado esse prosseguimento. Sendo assim, é manifesto que se esgotou o poder jurisdicional do tribunal de 1ª instância, quanto a essa matéria, com a prolação do despacho de fls. 121-122 (de 10/11/2014), em conformidade com o disposto no artº 613º do NCPC – pelo que esse tribunal, quando foi confrontado novamente com a questão (através do requerimento de fls. 124-130), não poderia deixar de declarar o que declarou (ou seja, que estava esgotado o seu poder jurisdicional sobre a matéria). E, assente que estava já (por decisão de que não se recorreu) não ser possível o prosseguimento dos autos para antecipação do juízo sobre a causa principal, também não poderia o tribunal de 1ª instância ordenar uma diligência que só faria sentido no contexto de um prosseguimento dos autos (que afinal se recusou) – ou seja, a citação do MP em representação do requerido ausente, para exercício do contraditório quanto a esse pedido de antecipação do juízo sobre a causa principal.

De tudo isto se extrai que o tribunal de 1ª instância decidiu correctamente em função dos trâmites processuais verificados.

Note-se ainda que esta conclusão em nada se altera no confronto com a via processual utilizada pela requerente. Como vimos, pretendeu-se fazer uso do incidente da «rectificação de erros materiais», previsto no artº 614º do NCPC, com a alegação de que o tribunal de 1ª instância teria incorrido em «lapso manifesto» quando declarou a ineficácia da citação edital para efeitos do prosseguimento dos autos com vista à antecipação do juízo sobre a causa principal.

Desde logo, refira-se que o uso desse mecanismo não tinha qualquer repercussão sobre um eventual recurso do despacho de fls. 121-122 (de 10/11/2014). Com a eliminação do artº 686º do anterior CPC, decorrente da revisão do regime dos recursos constante do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24/8, o prazo para recurso deixou de se contar da notificação da decisão sobre o requerimento de rectificação de erro material, devendo sempre o recurso da decisão rectificanda ser previamente interposto, no prazo legal contado da notificação dessa decisão (e essa decisão sobre a rectificação também deixou de estar abrangida pelo regime do artº 670º).

Além disso, usou-se um mecanismo desajustado ao caso: desde ALBERTO DOS REIS que é claro que o incidente de «rectificação de erros materiais» e o conceito de «lapso manifesto», usado no seu âmbito (o artº 614º do NCPC reproduz, no essencial, o artº 667º do anterior CPC, e este o artº 667º do CPC de 1939, anotado por aquele autor), se reporta a «erro material na declaração da vontade do juiz» – ou seja, «quis escrever uma coisa e escreveu outra» – e «há-de ser o próprio contexto da sentença que há-de fornecer a demonstração clara do erro material» (Código de Processo Civil Anotado, vol. V, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1981, pp. 130-131). Ora, no despacho de fls. 121-122 (de 10/11/2014) não havia qualquer erro material: a decisão era coerente com a fundamentação, sem prejuízo de a requerente discordar de uma e de outra – mas, nessa circunstância, o que poderia haver era um «erro de julgamento» (caso em que se «decidiu mal, decidiu contra lei expressa», no dizer de ALBERTO DOS REIS) e tal erro só poderia ser eventualmente emendado por via de recurso. E, como vimos, in casu a requerente não optou por essa via.

Merece também uma observação a invocação, pela requerente no presente recurso, de uma omissão de pronúncia por parte do tribunal de 1ª instância, quando este, no despacho recorrido (de fls. 131-132, datado de 2/12/2014), recusou «rectificar» a decisão de fls. 121-122 (de 10/11/2014). Há igualmente aqui uma confusão de conceitos: o conceito legal de omissão de pronúncia reporta-se, essencialmente, a uma recusa do tribunal de se pronunciar sobre questões que as partes tenham submetido à sua apreciação (que não considerações, argumentos ou razões produzidos pelas partes, conforme assinala ALBERTO DOS REIS, in Código de Processo Civil Anotado, vol. cit., pp. 142-143); quando o tribunal decide uma questão em sentido diverso do que sustenta quem submete essa questão à sua apreciação, não se está perante uma «omissão de pronúncia», mas antes face a uma discordância substantiva – ou seja, trata-se de uma discordância que não se resolve no plano da nulidade da decisão, mas de eventual erro de julgamento e de eventual revogação da decisão por ilegalidade.

Se a questão colocada pela requerente era a da rectificabilidade de um despacho e o tribunal recorrido entende que nada há a rectificar, e fundamenta essa recusa de rectificação, então ainda há «pronúncia». Houve, pois, uma evidente confusão de planos, acabando a apelante por invocar uma nulidade da decisão recorrida quando, afinal, pretendia impugnar (como acabou por fazer) a solução jurídica formulada pelo tribunal recorrido. Não se vislumbra, pois, qualquer omissão de pronúncia, pelo que sempre teria de improceder a arguição de nulidade subjacente (artº 615º, nº 1, al. d), do NCPC). Mas, reconduzida a questão ao seu plano substantivo, é inevitável regressar à conclusão já formulada de que o tribunal de 1ª instância decidiu correctamente quando entendeu, no despacho recorrido, que estava esgotado o seu poder jurisdicional sobre a matéria do prosseguimento dos autos para efeitos de antecipação do juízo sobre a causa principal.

Mas subsiste ainda uma questão que não se analisou e que justifica uma menção. Trata-se da questão de saber se efectivamente deveriam ou não ter os autos prosseguido para antecipação do juízo sobre a causa principal – e que só não foi apreciada, porque, como se demonstrou, esse não é, em rigor, o objecto do presente recurso (sem prejuízo da pretensão da requerente de que o fosse, embora a sua actuação processual o tivesse afastado de tal condição).

Ainda que não seja questão que deva ser aqui tratada com detalhe, por não constituir o efectivo objecto do recurso, não se deixará de reconhecer que não se justificaria a recusa do prosseguimento dos autos para antecipação do juízo sobre a causa principal. Na verdade, entende-se que a notificação edital do requerido não constitui impedimento a que se passe à apreciação do pedido de antecipação do juízo sobre a causa principal, porquanto a própria lei prevê que «quando o requerido não for ouvido e a providência vier a ser decretada, só após a sua realização é notificado da decisão que a ordenou, aplicando-se à notificação o preceituado quanto à citação» (artº 366º, nº 6, do NCPC), o que inclui a possibilidade de notificação edital do requerido, sendo que a subsequente notificação do MP, em representação do requerido ausente (nos termos do artº 21º do NCPC), garantiria o necessário contraditório para efeitos da tramitação permitida pelo nº 7 do artº 21º do Decreto-Lei nº 149/95. Discordar-se-ia, assim, da opinião de LEBRE DE FREITAS et alii, segundo a qual o nº 6 do artº 385º, tal como o nº 4 (correspondentes aos actuais nos 4 e 6 do artº 366º do NCPC), «exclui a modalidade da citação edital» (Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 2ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 29). E concordar-se-ia com o entendimento de ABRANTES GERALDES, quando afirma que «devem observar-se as regras previstas para a citação, sem deixar de lado, quando se justifique, a notificação edital por incerteza do lugar» (Temas da Reforma do Processo Civil, III volume, 3ª ed., Almedina, Coimbra, 2004, p. 202). E o mesmo se diga quanto à orientação expressa, e devidamente fundamentada, no Ac. RL de 10/10/2013 (Proc. 779/12.7TCFUN.L1-7, in www.dgsi.pt), assim sumariado: «I – A prolação da antecipação do juízo sobre a causa principal, nos termos do nº 7 do artº 21º do Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de Junho, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 30/2008, de 25 de Fevereiro, não depende da modalidade de notificação do requerido, exigindo a lei apenas que tenha sido estabelecido o imprescindível contraditório. II – Tendo sido a requerida notificada editalmente, por ser desconhecido o respectivo paradeiro, e citado o Ministério Público, nos termos do artº 15º, nº 1, do Código de Processo Civil, foi estabelecido o contraditório e deverá conhecer-se do pedido de prolação da antecipação do juízo sobre a causa principal».

Dito isto, o certo é que, no caso presente, não pode a requerente beneficiar de tal entendimento, por ter deixado passar a oportunidade de impugnar a decisão de sentido contrário perfilhada pelo tribunal de 1ª instância. Porém, não cremos que a situação esteja irremediavelmente comprometida, contrariamente ao que parece considerar a requerente (cfr. conclusão 11ª das suas alegações de recurso). É que nem se mostra caducada a providência decretada (recorde-se que o artº 373º, nº 1, al. a), do NCPC faz agora depender a caducidade da providência da notificação do trânsito em julgado da decisão determinativa da providência – sobre esta alteração, v. RUI PINTO, Notas ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, p. 236, e PAULO RAMOS DE FARIA/ANA LUÍSA LOUREIRO, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, Almedina, Coimbra, 2013, p. 315), nem a solução de simplificação processual permitida pelo nº 7 do artº 21º do Decreto-Lei nº 149/95 é impeditiva, quando se frustre a sua aplicação no âmbito do próprio procedimento cautelar, da solução tradicional de propositura da respectiva acção principal, no prazo de 30 dias a contar da notificação referida no artº 373º, nº 1, al. a), do NCPC (como resulta, aliás, implicitamente, e a contrario, da segunda parte do citado artº 21º, nº 7). Contudo, não é a viabilidade de uma tal iniciativa matéria de que tenhamos aqui que curar.

Posto isto, e regressando uma última vez à conclusão já formulada de que não poderia o tribunal a quo deixar de decidir como decidiu, diremos que não se vislumbra, pois, qualquer razão para alterar o que foi decidido na 1ª instância. E assim deverá improceder integralmente a presente apelação.

Em suma: não merece censura o juízo decisório formulado na decisão recorrida, não se mostrando violadas as disposições legais mencionadas nas respectivas alegações de recurso.

*

III – DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente o presente recurso, confirmando a decisão recorrida.

Custas pela apelante (artº 527º do NCPC).

Évora, 12 / Fev. / 2015

Mário António Mendes Serrano
Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes (dispensei o visto)
Mário João Canelas Brás (dispensei o visto)