Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
527/12.1TLGS.E1
Relator: PROENÇA DA COSTA
Descritores: CRIME DE GRAVAÇÕES E FOTOGRAFIAS ILÍCITAS
VIDEOVIGILÂNCIA
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PARA A DECISÃO
Data do Acordão: 04/26/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário: I. O tipo objectivo do crime de gravações e fotografias ilícitas consiste no registo fotográfico ou audiovisual da imagem de qualquer parte do corpo de outra pessoa ou na sua utilização ou permissão de utilização dessas imagens por terceiro;
II. No que respeita ao elemento subjectivo, admite-se qualquer modalidade do dolo, não sendo exigível o dolo específico;
III. Comete o referido crime a arguida que tendo sob a sua direcção sido instalado, num condomínio e obtido licenciamento prévio por parte da CNPD, um sistema de vídeovigilância composto por 16 câmaras, permite que três dessas câmaras captem imagens de um arruamento que os assistentes têm, necessariamente, que utilizar para acederem e saírem da sua habitação, pelo que são filmados, contra a sua vontade, sempre que tal acesso e saída acontecem, sendo certo que a arguida tendo disso conhecimento manteve as câmaras dirigidas da mesma forma, sabendo, por isso, que aquelas filmavam, e filmariam, os assistentes de cada vez que utilizassem o arruamento, contra a vontade destes;
IV. Sendo o quantum diário da pena de multa fixado em função da situação económica e financeira da condenada e dos seus encargos pessoais e nada constando da sentença recorrida para esse efeito, a mesma padece, nessa parte, de insuficiência de matéria de facto para a decisão de direito [artigo 410.º, n.º 2, al. a), do CPP].
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 527/12.1TLGS.

Acordam, em Conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora.
Nos Autos de Processo Comum Singular, com o n.º 527/12.1TLGS, a correrem termos pela Comarca de Faro - Instancia Local de Lagos – Secção de Competência Genérica – J1, mostra-se Pronunciada a arguida B…, com os sinais nos autos, como autora material e em concurso real de:
- Um crime de gravações e fotografias ilícitas, p. e p. pelo art.º 199.º, n.º 2, do Cód. Pen;
- Um crime de dano, p. e p. pelo art.º 212.º, n.º 1, do Cód. Pen.

A arguida B… não apresentou contestação escrita.

C… e D… vieram deduzir contra B… pedido de indemnização cível, pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de 10.000,00 euros, a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros.

Procedeu-se a julgamento com observância do ritualismo legal exigido, vindo-se, no seu seguimento, a prolatar pertinente Sentença, onde se veio a Decidir:
a) Absolver a arguida B… da acusação pelo crime de dano;
b) Condenar a arguida B…, por autoria material de crime doloso consumado de gravações e fotografias ilícitas, previsto e punido pelo artigo 199º, nº 1 e nº 2, alínea a), do Código Penal, na pena de duzentos dias de multa, à razão diária de 10,00 euros, no total de 2.000,00 euros.
c) Condenar a demandada B… a pagar aos demandantes C… e D… a quantia de mil euros a título de indemnização por danos não patrimoniais, com acréscimo dos juros civis legais calculados sobre ela, e contados desde o dia 15 de Setembro de 2011.

Inconformada com o assim decidido traz a arguida B… o presente recurso, onde formula as seguintes conclusões:
O Tribunal à quo condenou a Recorrente a:
I - Por autoria material de crime doloso consumado de gravações e fotografias ilícitas previsto e punido pelo artigo 199º, n.º 1 e nº 2 do Código Penal, na pena de 200 dias de multa, à razão diária de 10,00 euros, no total de 2.000,00 euros.
II - A pagar aos demandantes C… e D… quantia de mil euros a título de indemnização por danos não patrimoniais, com acréscimo dos juros legais calculados sobre ela, e contados desde o dia 15 de Setembro de 2011.
III – No nosso entendimento, o Tribunal à quo fez errada interpretação da matéria de facto ao condenar a Recorrente na sanção aplicada e no pedido de indemnização cível, devendo a Recorrente ser absolvida do crime pelo que foi condenada e, em virtude disso, do pedido Cível.
Se assim não se entender, e só por mero dever de patrocínio, se admite:
IV – No entendimento da Recorrente, o douto Tribunal a quo fez errada aplicação do disposto no artigo 71º do C.P., aplicando-lhe penas desproporcionadas, usando de uma severidade que os artigos 40º e 71º do C.P. não consentem, pelo que tais preceitos se mostram violados.
VI – Além de que, o douto Tribunal a quo, contrariando o disposto no artigo 71º do C.P. na determinação concreta das penas, não valorou da forma devida as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deporiam a favor da Recorrente.

Respondeu ao recurso a Magistrada do Ministério Público dizendo ser a Sentença insusceptível de qualquer reparo ou censura, pelo que deverá ser confirmada e, em consequência, ser negado provimento ao recurso interposto.

Respondeu, igualmente, ao recurso os Assistentes e Demandantes cíveis C… e D…, dizendo:
(…)

Nesta Instância, a Sra. Procuradora Geral-Adjunta emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

Em sede de decisão recorrida foram considerados os seguintes Factos:
Factos Provados:
1p. Os Assistentes são donos e legítimos proprietários dos lotes identificados sob os números 3 e 5 do loteamento com o alvará nº 4/94, correspondendo às descrições prediais números … da freguesia de… (presentemente freguesia de …).
2p. O lote n.º 3 integra, além disso, uma casa de habitação, que os Assistentes e seus familiares utilizam para férias.
3p. A arguida é gerente da sociedade E…, Lda, que explora o empreendimento turístico denominado “…”, cabendo a administração do condomínio também à arguida, sendo certo que os lotes provados em 1p não fazem parte deste condomínio, nem daquele empreendimento turístico.
4p. Sob direcção da arguida, foi instalado um sistema de vídeo-vigilância composto por 16 câmaras, encontrando-se duas delas próximas do lote nº 3, provado em 2p.
5p. A instalação das câmaras foi precedida da autorização nº …, concedida no processo nº…da Comissão Nacional de Protecção de Dados.
6p. Os assistentes nunca autorizaram ou consentiram na instalação do sistema de vídeo-vigilância e, quando se aperceberam da existência das câmaras de vigilância, em 2011, apresentaram queixa na GNR de Lagos e Portimão e, bem assim, na Comissão Nacional de Protecção de Dados.
7p. As câmaras 3, 7 e 16 captam imagens do arruamento que permite a ligação com a estrada da Meia Praia e vice-versa, do estacionamento que existe ao cimo do arruamento e junto à arrecadação do lote nº 3, bem como do passeio aí existente e de parte do portão da arrecadação.
8p. Para acederem e saírem da habitação provada em 2p, os Assistentes só podem fazê-lo através daquele arruamento, pelo que são filmados, contra sua vontade, sempre que tal acesso ou saída acontecem.
9p. A arguida, disto mesmo tendo conhecimento, manteve as câmaras dirigidas da mesma forma, sabendo, por isso, que aquelas filmavam, e filmariam, os Assistentes de cada vez que utilizassem o arruamento, contra a vontade destes, como sucedeu e sucede, conduta que representou e quis levar a cabo, como o fez, não ignorando ser tal conduta proibida e punida por lei penal.
10p. Na providência cautelar que correu termos pelo 2º Juízo do Tribunal de Lagos com o número 820/11.0TBLGS, foi celebrada uma transacção, homologada por sentença de 28/09/2011, em cuja cláusula I, alínea H, se fez constar: “A cor a utilizar nas ditas pinturas será idêntica à que está, e só será alterada por vontade de ambas as partes”.
11p. À data da realização da transacção, tanto os pilaretes do portão de entrada do lote nº 3, como o muro de separação entre o lote nº 4 e o lote n.º 5 – este também propriedade dos Assistentes – estavam pintados de branco.
12p. Em data situada entre a da transacção provada em 10p e uma carta remetida pela dita E…, a arguida ordenou que os pilaretes e o muro de separação provados em 11p fossem, conforme foram, pintados de ‘beige’, sabendo a arguida que os lotes números 3, 4 e 5 não lhe pertenciam.
13p. A arguida sabia que, em função da sua ordem, seriam os pilaretes e o muro de separação pintados com cor diferente da que possuíam e, não obstante, deu essa ordem sem ter qualquer autorização dos legítimos proprietários, razão por que desta sua conduta, que representou e quis, foram os referidos pilaretes e muro de separação pintados de ‘beige’, quando eram originariamente brancos.
14p. Em tudo agiu a arguida de modo livre, deliberado e consciente, sabendo as suas condutas proibidas e punidas por lei.
15p. As imagens tomadas pela arguida causaram ansiedade aos Assistentes, que desconhecem quem vê as imagens e que, por isso, tiveram de dirigir-se à GNR e à CNPD.
16p. A mudança de cor dos pilaretes e do muro de separação causou aos Assistentes perplexidade e choque.
17p. Os pilaretes e o muro de separação mostram-se restituídos à sua cor originária, que é o branco.
18p. A arguida é isenta de antecedentes criminais.

(...)

Como consabido, são as conclusões retiradas pelo recorrente da sua motivação que definem o objecto do recurso e bem assim os poderes de cognição do Tribunal ad quem.
Da leitura das conclusões aqui formuladas pela recorrente decorre que se pretende quer o reexame da matéria da matéria de facto quer o reexame da matéria de direito.
Conhecendo, como conhece, a Relação de facto e de direito, de harmonia com o que se dispõe no art.º 428.º, do Cód. Proc. Pen., nada obsta a que se venha conhecer do recurso com a amplitude cognitiva pretendida pela aqui recorrente.

No que respeita ao reexame da matéria de facto.
Como consabido, por duas vias se pode vir questionar a matéria de facto acolhida pelo tribunal recorrido, a saber:
-uma, pelo deitar mão dos vícios compaginados no art.º 410.º, n.º 2, do Cód. Proc. Pen., a que se convencionou chamar de revista alargada;
-outra, através da impugnação ampla da matéria de facto, de harmonia com o que se dispõe no art.º 412.º, n.ºs 3 e 4, do mesmo adjectivo.
Na primeira situação, estamos perante a arguição dos vícios previstos nas alíneas do n.º 2 do referido art.º 410.º, que, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento.[1]
Na segunda situação, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do C.P. Penal.
Decorre da leitura da motivação de recurso almejar a aqui impetrante esse reexame através da impugnação ampla da matéria de facto, nos termos do que se dispõe no art.º 412.º, n.ºs 3 e 4 do citado diploma adjectivo.
Tudo em vista a ser tida como não provada certa factualidade – que indica, ao nível dos elementos objectivos e subjectivo do tipo legal de crime de gravação e fotografias ilícitas – conducente à sua absolvição do falado crime.
Importa reter que nesta situação não se visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
Não se pressupondo, pois, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa. [2]
Por se não estar perante um novo julgamento do objecto do processo, mas antes perante um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder á tríplice especificação estabelecida no art.º 412.º, n.º3, do C.P.P., onde se diz que:
Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.»
Relativamente às duas últimas especificações, recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 4 e 6 do artigo 412.º do C.P.P.).
Contudo, se bem atentarmos na forma como o recorrente impugna a matéria de facto, vemos que minimamente não dá cumprimento aos ditames impostos por lei retro mencionados, quer ao nível da motivação, quer ao nível das conclusões.
Pois, entre o mais, não indica o conteúdo do meio de prova, por referência a cada facto, em que funda a impugnação e a impor decisão diversa da recorrida, limitando-se a remeter para parte da prova produzida sem cumprir esta especificação.
Donde, não ser possível convidar o aqui recorrente a corrigir as conclusões, sob pena de se estar a conceder um novo prazo para recorrer, o que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso, conforme vem sendo entendimento do tribunal constitucional.[3]
Se este entendimento vigorava até ao aparecimento da Lei n.º 48/07, de 29 de Agosto, que procedeu à revisão do Código de Processo Penal, igual entendimento deve continuar a perfilhar-se, face ao que se diz no art.º 417.º, n.º 3.
Inciso normativo onde se dispõe que se a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n° 2 a 5, do art° 412.º, o relator convida o recorrente a apresentar, completar ou esclarecer as conclusões formuladas.
Porém, esta correcção respeita apenas às conclusões e não à motivação, a qual terá de permanecer inalterada, já que insusceptível de convite à correcção.
Como bem decorre do n.º 4, ao referir que tal aperfeiçoamento não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação.
O mesmo é dizer que o texto da motivação constitui o limite da correcção possível das conclusões.
Pelo que, e sem necessidade de delongas, se tenha de concluir não ser possível ao recorrente ver reexaminada amplamente a matéria de facto considerada pelo tribunal recorrido.

Como não se lobriga que a Sentença revidenda se mostre eivada de qualquer dos vícios compaginados no n.º 2, do art.º 410.º, do Cód. Proc. Pen., nem a recorrente os aponta.
Impondo-se, desta feita, concluir pela imodificabilidade da matéria de facto considerada na Sentença recorrida.

Importa, de pronto, entrando no reexame da matéria de direito, descortinar se se mostra, ou não, correctamente efectuada a subsunção jurídica levada a cabo pelo Tribunal recorrido.
Não concorda a aqui recorrente com a mesma, por se não mostrarem preenchidos quer os elementos objectivos, quer subjectivo do tipo legal de crime pelo qual veio a sofrer condenação.
Desde logo, por o sistema de vídeo vigilância estar devidamente autorizado pela CNPD;
O condomínio ter autorizado as câmaras de vídeo;
O estar convicta de que agia correctamente nos termos da lei;
Não agindo às escondidas de ninguém, constando na entrada do empreendimento a informação do sistema da vídeo vigilância;
Daí entender não ter agido com dolo - com intenção de obter imagens de uma forma ilícita.
A aqui impetrante foi condenada pela prática, enquanto autora material, de um crime de gravações e fotografias ilícitas. O mencionado crime mostra-se contemplado no art.º 199.º, do Cód. Pen.
Sendo que no n.º 1 se trata do crime de gravações ilícitas, o direito à palavra falada e no n.º 2 se versa sobre o crime de fotografias ilícitas, incluindo os filmes, o direito à imagem.
No caso em apreço, tendo em conta o decidido Sentencialmente, estamos perante uma situação a ser tratada no âmbito do n.º 2, do mencionado art.º 199.º, do Cód. Pen.
Inciso normativo onde se diz que na mesma pena incorre - de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias – quem, contra vontade:
a) Fotografar ou filmar outra pessoa, mesmo em eventos em que tenha legitimamente participado; ou
b) Utilizar ou permitir que se utilizem fotografias ou filmes referidos na alínea anterior, mesmo que licitamente obtidos.
Erigindo-se, desta feita, como bem jurídico tutelado pelo tipo legal de crime em apreço o direito à imagem.
Direito à imagem, enquanto direito autónomo, com consagração constitucional, como bem decorre do estatuído no art.º 26.º, n.º 1, da C.R.P. Abrangendo tal direito, além do direito de cada um a não ser fotografado nem ver o seu retrato exposto em público sem seu consentimento, ainda o direito de não se ver apresentado em forma gráfica ou montagem ofensiva e malevolamente distorcida ou infiel.[4]
Direito que embora próximo do bem jurídico privacidade/intimidade com ele se não confunda. Pelo que a imagem é protegida ainda que não respeite à privacidade do ofendido.[5]
O tipo objectivo do tipo de crime em presença consiste no registo fotográfico ou audiovisual da imagem de qualquer parte do corpo de outra pessoa ou na sua utilização ou permissão de utilização dessas imagens por terceiro.
Admitindo-se, ao nível do elemento subjectivo, qualquer modalidade do dolo, não sendo exigível o dolo específico.
Penalizando-se, desta feita, condutas que encontram a sua anti-juridicidade numa actuação contra a vontade da pessoa ou pessoas a quem respeitam a fotografia ou a filmagem ou a utilização ou permissão de utilização das mesmas[6].
Encontrando-se o fundamento para a incriminação de tais condutas no aparecimento e divulgação de instrumentos de captação e registo da imagem e da palavra, com o seu potencial de devassa, reificação e manipulação, como refere M. Miguez Garcia.[7]
Daí que ao tratamento de dados pessoais por meios, total ou parcialmente automatizados, bem como ao tratamento por meios não automatizados, e ainda, ao caso de videovigilância e outras formas de captação, tratamento e difusão de sons e imagens que permitem identificar pessoas, se aplique o regime da protecção dos dados pessoais, como decorre do art.º 4.º, da Lei n.º 67/98, de 26.10.
Nos termos da qual os dados considerados sensíveis implicam o controlo prévio por parte da Comissão Nacional de Protecção de Dados, através da competente notificação e autorização do seu tratamento/recolha – cfr. artigos 7.º, 8.º, 27.º e 28.º. da falada Lei n.º 67/98.
Considerando-se dados sensíveis, nos termos do art.º 7.º, n.º 1, da mencionada Lei, os dados pessoais referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem racial ou étnica, bem como o tratamento de dados relativos à saúde e à vida sexual, incluindo os dados genéticos.
Sendo entendimento jurisprudencial que não constituem gravações ilícitas gravação de imagens por particulares em locais públicos ou acessíveis ao público assim como os fotogramas oriundos dessas gravações, «desde que exista uma justa causa para a sua obtenção, como é o caso de documentarem a prática de uma infracção criminal, e não digam respeito ao «núcleo duro da vida privada» da pessoa visionada (onde se inclui a sua intimidade, a sexualidade, a saúde, a vida particular e familiar mais restrita, que se pretende reservada e fora do conhecimento das outras pessoas).[8]
No caso em apreço vem dado como assente que:
- Sob a direcção da arguida, foi instalado um sistema de vídeo-vigilância composto por 16 câmaras, encontrando-se duas delas próximas do lote nº 3; lote de que os Assistentes são donos e legítimos proprietários;
- A instalação das câmaras foi precedida da autorização nº 2855/2011, concedida no processo nº 4008/2011 da Comissão Nacional de Protecção de Dados.
- Os assistentes nunca autorizaram ou consentiram na instalação do sistema de vídeo-vigilância e, quando se aperceberam da existência das câmaras de vigilância, em 2011, apresentaram queixa na GNR de Lagos e Portimão e, bem assim, na Comissão Nacional de Protecção de Dados;
- As câmaras 3, 7 e 16 captam imagens do arruamento que permite a ligação com a estrada da Meia Praia e vice-versa, do estacionamento que existe ao cimo do arruamento e junto à arrecadação do lote nº 3, bem como do passeio aí existente e de parte do portão da arrecadação;
- Para acederem e saírem da sua habitação, os Assistentes só podem fazê-lo através daquele arruamento, pelo que são filmados, contra sua vontade, sempre que tal acesso ou saída acontecem;
- A arguida, disto mesmo tendo conhecimento, manteve as câmaras dirigidas da mesma forma, sabendo, por isso, que aquelas filmavam, e filmariam, os Assistentes de cada vez que utilizassem o arruamento, contra a vontade destes, como sucedeu e sucede, conduta que representou e quis levar a cabo, como o fez, não ignorando ser tal conduta proibida e punida por lei penal.
Temos, assim, a gravação de imagens feitas por particulares e respeitantes ao chamado «núcleo duro da vida privada» da (s) pessoa (s) visionada (s), contra a vontade desta (s), inexistindo qualquer causa de justificação para tanto, v.g. art.º 79.º, n.º 2, do Cód. Civ. E que apesar de a arguida ter obtido licenciamento prévio por parte da Comissão Nacional de Protecção de Dados, tal não a autorizava a proceder às gravações que levou a cabo nas pessoas dos Assistentes, face ao explanado.
Pelo que há que falar em gravações ilícitas e, em consequência, ter de subsumir a conduta da arguida na previsão do art.º 199.º, n.º 2, al.ª a), do Cód. Pen.

Dissente, de seguida, da medida da pena encontrada, que epiteta de exagerada, pugnando para a mesma seja fixada em medida nunca superior a 50 dias, à razão diária de € 5,00.
O crime de gravações e fotografias ilícitas é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias.
Como flui da Sentença revidenda, a aqui impetrante foi condenada na pena de duzentos dias de multa, à razão diária de 10,00 euros, no total de 2.000,00 euros.
No que respeita à dosimetria da pena valem os critérios fixados no art.º71.º, do Cód. Pen., onde se diz que a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
Visando-se com a aplicação das penas a protecção de bens jurídicos e a reintegração social do agente-cfr. Art.º 40.º, n.º1, do Cód. Pen.
Sendo que em caso em algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, de acordo com o estatuído no n.º2, do art.º 40.º, do diploma legal citado.
Decorrendo de tais normativos que a culpa e a prevenção constituem os parâmetros que importa ter em conta na determinação da medida da pena.
Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias, que não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele-art.º71.º, n.º2, do Cód. Pen.

Importa, ainda, reter que o Tribunal recorrido conhecedor da moldura penal destinada ao tipo legal em apreço nos autos e bem assim do inciso normativo vertido no art 70.º, do Cód. Pen., decidiu-se pela aplicação ao arguido de uma pena de multa, em detrimento da aplicação de uma pena de prisão.
No entanto, a pena de multa, deve ser fixada em medida suficientemente grave, por forma a garantir um efeito dissuasório real sobre o delinquente.
Pois, como ensina o Prof. Figueiredo Dias, ao versar sobre a aplicação da pena de multa, é indispensável (…) que a aplicação concreta da pena de multa não represente uma forma disfarçada de absolvição ou o ERSATZ de uma dispensa ou isenção de pena que não se tem a coragem de proferir. Até porque, então, tornar-se-á inelutável a tendência para restringir o âmbito de aplicação da pena de multa unicamente á criminalidade bagatelar e (o que é ainda pior) para ver na multa uma pena politico-criminalmente “subordinada” á pena de prisão. Impõe-se, pelo contrário, que a aplicação da pena de multa represente, em cada caso, uma censura suficiente do facto e, simultaneamente, uma garantia para a comunidade na validade e vigência da norma violada[9].
A favor da recorrente apura-se, e tão só, a ausência de antecedentes criminais. Depois, temos de ter em conta um grau de ilicitude, já de alguma boa monta e bem assim uma actuação com dolo directo, para lá de serem prementes as exigências de prevenção geral.
Tudo a impor que a pena se situe bem perto do limite médio da pena e não do seu limite mínimo, como propõe, sem qualquer fundamento, a recorrente.
Pelo que se fixa, ora, a medida concreta da pena em 120 dias de multa.

No que respeita ao quantitativo diário de multa, importa fazer intervir o disposto no n.º 2, do art.º 47.º, do Cód. Pen., onde se estatui que cada dia de multa corresponde a uma quantia entre (euro) 5 e (euro) 500, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.
Da análise da matéria de facto apurada pelo Tribunal recorrido não se apura, o que quer que seja e apto a poder habilitar o Tribunal a fixar um quantum diário de multa.
Pelo que se fica sem saber a razão pela qual o Tribunal fixou a taxa diária que fixou e não fixou outra.
Sendo que esta falta de elementos fácticos bastantes para se poder vir ancorar a taxa diária de multa, leva-nos concluir pela existência na Sentença de vício dos compaginados no art.º 410.º, n.º 2, do Cód. Proc. Pen., que a afecta, mormente, o da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, sua al.ª a).
Vício que ocorre quando a matéria de facto é insuficiente para fundamentar a decisão de direito.
E só existe quando o tribunal deixe de investigar o que devia e podia, tornando a matéria de facto insusceptível de adequada subsunção jurídico-criminal, pressupondo a existência de factos constantes dos autos ou derivados da causa que ainda seja possível apurar, sendo este apuramento necessário para a decisão a proferir.
Sendo que tal insuficiência resultado tribunal não ter esgotado os seus poderes de indagação relativamente ao apuramento da matéria de facto essencial; no cumprimento do dever da descoberta da verdade material, o tribunal podia e devia ter ido mais longe; não o tendo feito, ficaram por investigar factos essenciais, cujo apuramento permitiriam alcançar a solução legal e justa.[10]
Ou como entendem Simas Santos e Leal Henriques, a al. a), do n.º2, do art.º 410.º, do Cód. Proc. Pen., refere-se á insuficiência que decorre da omissão de pronúncia pelo tribunal de factos alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou não provados todos aqueles factos, que sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão.
Tal vício consiste na lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega á conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher.[11]
E no caso concreto impõe-se que o Tribunal recorrido esclareça, a respeito, a causa, sujeita a julgamento, porquanto não se sabe se a arguida vive só se tem família e, em caso afirmativo, qual o número dos elementos que a compõem. Se todos os membros são maiores, se há membros menores, o seu número e idades. Quem trabalha, de que forma e quanto percebe pelo rendimento do seu trabalho. Quais as despesas do agregado familiar, entre o mais.
Todos estes factos têm importância para a decisão da causa, mormente ao nível da moldura penal concreta, como tudo bem decorre do que se diz no art.º 71.º, n.º2, al.ª d), do Cód. Pen., mormente, quando o Tribunal se decidiu pela aplicação de uma pena de multa, cfr. art.º 47.º, n.º 2, do Cód. Pen.
Sendo certo que se impunha ao tribunal recorrido que investigasse, por todos os meios ao seu alcance e legalmente admissíveis e independentemente do contributo dos demais intervenientes processuais, tal particular, dada a sua importância para a decisão final, como já referido.
Ora, não tendo o tribunal recorrido cumprido o dever de investigar os aspectos/particulares acabados de tecer, e como se lhe impunha que fizesse, impedido se encontra este Tribunal de recurso, com a factualidade apurada, de decidir a causa.
Impondo-se, por isso, que o tribunal recorrido venha produzir prova, sobre os factos retro mencionados, de molde a que se possa vir alcançar uma decisão final.
Pelo que nenhum outro caminho se perfile que não seja o de determinar a anulação do Julgamento e o consequente reenvio do processo para novo julgamento restrito às questões fácticas mencionadas, ou outras que ao tribunal se afigurem pertinentes para a boa decisão da causa, cfr. arts. 410.º, n.º2, al. a), 426.º e 426.ºA, todos do Cód. Proc. Pen.

Por fim, quanto ao pedido de indemnização civil, do mesmo não é possível conhecer, face ao valor em causa – desfavorável ao recorrente - e ao disposto no art.º 400.º, n.º 2, do Cód. Proc. Pen.

Termos são em que Acordam em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência, anular o julgamento, ordenando-se o reenvio do processo para os fins mencionados, levando-se em linha de conta o que se dispõe no art.º 426.ºA, do Cód. Proc. Pen.
No mais, vai confirmada a Sentença recorrida.

Sem custas, por não devidas.
(texto elaborado e revisto pelo relator).

Évora, 26 de Abril de 2016
José Proença da Costa (relator)
António Clemente Lima (adjunto)
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[1] Ver, Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, págs. 729 e Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, págs. 72.
[2] Ver, Acs. S.T.J., de 14.03.2007, no Processo n.º21/07 e de 23.05.2007, no Processo n.º1498/07.

[3] Cfr. Ac n.º259/02, de 18.06.2002, no D.R., II.a série, de 13.12.2002 e Ac.n.º140/04, de 10.03.2004, no D.R., II.a série, de 17.04.2004.
[4] Ver, Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição de República Portuguesa Anotada, 3.ª edição revista, pág. 181.
[5] Ver, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, págs. 536.
[6] Ver, Paulo Pinto de Albuquerque, Ob. Cit., págs. 537 e Simas Santos e Leal Henriques, in Código Penal Anotado, Vol. II, págs. 591.
[7] Ver, O Direito Penal Passo a Passo, Vol. I, págs. 402, para maiores desenvolvimentos, ver o Acórdão do S.T.J., de 28.09.2011, no Processo n.º 22/09.6YGLSB.S2, 3.ª Secção.

[8] Ver, a respeito, entre outros, o Acórdão da Relação do Porto, de 23.10.2013, no Processo n.º 585/11.6TABGC.P1, o Acórdão da mesma Relação, de 16.01.2013, no Processo n.º 201/10.3GAMCD.P1, o Acórdão da Relação de Lisboa, de 28.05.2009, no Processo n.º 10210/08.9, e o Acórdão da Relação de Coimbra, de 10.10.2012, no Processo n.º 19/11.6TAPBL.C1.
[9] Ver, As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 119.
[10] Ver Acs. S.T.J., de 18.11. 1998, no processo n.º855/98 e de 14.11.1998, no processo n.º588/98.
[11] Cfr. Código de Processo Penal Anotado, vol. II, 737 e Recursos em Processo Penal, págs. 69.