Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
817/15.1T9STR.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 04/18/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
I – Preenche o tipo legal do crime de violência doméstica a prática de qualquer ato de violência que afete a saúde - física, psíquica ou emocional - da vítima (no caso, o cônjuge ou aquele que vive em condições análogas às dos cônjuges), diminuindo ou afetando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida naquela realidade conjugal.

II - O crime pode realizar-se através de uma pluralidade de atos, ou através de um único ato, que atinja a saúde física, psíquica ou moral do cônjuge e afete a sua dignidade pessoal. Porém, é exigível, sempre, que os atos praticados (plúrimos ou isolados, reiterados ou não), apreciados à luz da vida em comum, possam, de modo relevante, colocar em risco a saúde do cônjuge, tornando-o vítima de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - RELATÓRIO

No âmbito do processo comum, com intervenção do tribunal singular, com o nº 817/15.1T9STR, da Comarca de Santarém (Santarém - Instância Local - Secção Criminal - Juiz 2), em que é arguido PC, e mediante pertinente sentença, foi decidido:

“a) Condenar o arguido PC, como autor material de:

- Um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nºs 1, al. b), e 2, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão;

- Um crime de violação de domicílio, p. e p. pelo artigo 190º, nºs 1 e 3, do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 7,00, o que perfaz a pena de € 1.400,00 (mil e quatrocentos euros);

b) Suspender a execução da pena de prisão pelo período de 03 (três) anos;

c) Julgar parcialmente procedente por provado o pedido de indemnização cível e, em consequência, condenar o arguido/demandado PC a pagar à demandante SM a quantia de € 3.255,22 (sendo € 755,22 a título de indemnização por danos patrimoniais e € 2.500,00 a título de danos não patrimoniais), total acrescido de juro de mora, contados à taxa legal de 4% ao ano, desde a data de notificação do demandado para contestar, até integral pagamento.

d) Condenar o arguido PC nas custas criminais, fixando a taxa de justiça em 3 (três) Uc's.

e) Condenar a demandante e o demandado nas custas cíveis, na proporção do respetivo decaimento”.

O arguido, inconformado, interpôs recurso, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

“1.Por sentença proferida em 14/10/2016 nos autos acima referenciados, na qual PC foi condenado como autor material de um crime de violência doméstica, na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na execução pelo mesmo período de tempo e um crime de violação de domicílio, na pena de 200 (duzentos) dias de multa à taxa diária de € 7,00 (sete euros), o que perfez a pena de € 1.400,00 (mil e quatrocentos euros), no pagamento à demandante SM a quantia de € 3.255,22 (três mil, duzentos e cinquenta e cinco euros e vinte e dois euros), sendo € 755,22 a título de indemnização por danos patrimoniais e € 2.500,00 a título de danos não patrimoniais, total acrescido de juros de mora, contados à taxa legal de 4% ao ano, desde a data de notificação do demandado para contestar, até integral pagamento; no pagamento das custas criminais fixadas em 3 (três) UC’S e nas custas cíveis, na proporção do respetivo decaimento;

2. O presente recurso tem como objeto toda a matéria de facto e de direito vertida na sentença condenatória;

3. A matéria probatória recolhida em sede de audiência de discussão e julgamento não permite, no limite, sem que dúvida não sobre, determinar a ocorrência dos factos imputados ao arguido;

4. Não se fez prova de que PC cometeu um crime de violência doméstica e um crime de violação de domicílio;

5. Tribunal a quo considerou provada a seguinte matéria de facto:

1. Entre Setembro de 2005 e Junho de 2012 o arguido PC e a ofendida SM viveram em comunhão de cama, mesa e habitação, tendo resultado deste relacionamento o nascimento em 10-04-2008 de MLC.

2. Em data não apurada do ano de 2011, durante um jantar, no qual estava presente MB, o arguido virou-se para a ofendida e de viva voz disse: “és uma merda, desaparece daqui”, tendo ato contínuo a agarrado pelos ombros e desferido um forte empurrão, atirando-a contra a parede do quarto.

3. Em datas não apuradas, mas posteriores a Junho de 2012, o arguido, muitas vezes na presença da filha menor, disse em tom sério à ofendida “que tivesse cuidado, pois podia-lhe acontecer o mesmo que aconteceu ao C [um amigo que faleceu com dois tiros quanto circulava de carro]; “tem cuidado quando atravessares a passadeira”;

4. Em data não concretamente apurada, à entrada do prédio da ofendida, o arguido de viva voz apodou a ofendida de “vaca” e “cabra”.

5. No dia 19 de Abril de 2015, pelas 22h10m, o arguido com um pontapé arrombou a porta de entrada da residência da ofendida, sita na Rua…, Santarém, entrou no interior da habitação e empurrou a ofendida violentamente contra um armário, tendo de seguida agarrado na filha menor de ambos, voltando a sair.

6. Como causa direta e necessária desta atuação a ofendida sofreu uma equimose amarelada com 4 x 1,5 cm no terço superior da coxa esquerda, que demandaram cinco dias de cura.

7. O arguido com o arrombamento da porta provocou um prejuízo no valor de € 755,22.

8. No dia 10 de Julho de 2015, pelas 21h, quando a ofendida saía da casa da sua amiga NC, apercebeu-se que na Rua Pedro Gil em Santarém, o arguido se encontrava a vigiá-la do interior da viatura de marca Lexus, matrícula --GN--.

9. A ofendida entrou rapidamente na sua viatura e arrancou mas o arguido iniciou também imediatamente a marcha do seu veículo e colou-se à traseira do veículo da ofendia, tendo-a perseguido durante 15 minutos pelas ruas de Santarém, designadamente, pela Rua Pedro Cid, Avenida Forcados Amadores de Santarém, Avenida Madre Andaluz, Rua dos Bombeiros da Praça Velha e Rua Fruela.

10. Ao proceder como descrito, agiu sempre o arguido voluntária, livre e conscientemente, com o propósito concretizado de humilhar, ofender a honra, o bom nome e a sensibilidade de SM, de lhe molestar fisicamente bem como de lhe causar um sentimento de insegurança e intranquilidade, apesar de saber que com o seu comportamento provoca sofrimento físico e psíquico à ofendida e afetava a sua dignidade enquanto mulher e mãe.

11. Ao praticar os factos supra descritos na presença da sua filha menor de idade o arguido sabia que o seu comportamento era apto a prejudicar o bem-estar psicológico e o são desenvolvimento da MLC, mas ainda assim conformou-se com tal resultado.

12. Ao arrombar a porta da residência da ofendida o arguido agiu também de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de se introduzir no interior da habitação da ofendida apesar de saber que esta não o autorizava a entrar.

13. O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CÍVEL

14. Fruto da sua entrada forçada e contra a vontade da peticionante na residência desta, o demandado danificou a respetiva porta de entrada, designadamente na porta em si mesma, na sua fechadura, óculo de visão, aro de guarnição interior e dobradiças.

15. O dano provocado ascendeu a € 755,22.

16. Os sucessivos epítetos e ameaça que o demandado dirigiu à demandante, nomeadamente “és uma merda, desaparece daqui”; “que tivesse cuidado, pois podia-lhe acontecer o mesmo que aconteceu ao C (um amigo que faleceu com dois tiros quando circulava no carro); “vaca”, “cabra”, provocaram-lhe, e ainda provocam, medo, vexame, humilhação, abalo psíquico e falta de autoestima.

17. Quando entrou, sem autorização, na residência desta – 19/04/2015 – empurrou-a violentamente contra um armário, causando-lhe as lesões descritas no exame médico constante dos autos.

18. A demandante receou seriamente pela sua integridade física e pela sua vida, angustiando-se, entrando em crise de choro e alteração psicológica.

DAS CONDIÇÕES SOCIAIS, ECONÓMICAS, ENCARGOS E ANTECEDENTES CRIMIINAIS DO ARGUIDO

19. O arguido (…) encontra-se no estado civil de solteiro, vive com a companheira. É pai de uma filha com a idade de 5 anos. O agregado familiar vive em casa própria.

20. O arguido (…) exerce a profissão de bombeiro, por conta de outrem – Autoridade Nacional de Proteção Civil – auferindo mensalmente a remuneração média mensal de € 830,00.

21. (…) PC não tem antecedentes criminais”.

6. O arguido discorda em absoluto das conclusões extraídas pelo Tribunal a quo a respeito da prova que se produziu, bem como do juízo crítico que determinou tais conclusões;

7. Da prova produzida não resultou provado o facto: “2. Em data não apurada do ano de 2011, durante um jantar, no qual estava presente MB, o arguido virou-se para a ofendida e de viva voz disse: “és uma merda, desaparece daqui”, tendo ato contínuo a agarrado pelos ombros e desferido um forte empurrão, atirando-a contra a parede do quarto”;

8. Da prova produzida não resultou provado o facto: “3. Em datas não apuradas, mas posteriores a Junho de 2012, o arguido, muitas vezes na presença da filha menor, disse em tom sério à ofendida “que tivesse cuidado, pois podia-lhe acontecer o mesmo que aconteceu ao C [um amigo que faleceu com dois tiros quanto circulava de carro]; “tem cuidado quando atravessares a passadeira”; 4. Em data não concretamente apurada, à entrada do prédio da ofendida, o arguido de viva voz apodou a ofendida de “vaca” e “cabra”;

9. Com exceção de “o arguido com um pontapé arrombou a porta”, da prova produzida não resultou provado que: “5. No dia 19 de Abril de 2015, pelas 22h10m, o arguido com um pontapé arrombou a porta de entrada da residência da ofendida, sita na Rua…., Santarém, entrou no interior da habitação e empurrou a ofendida violentamente contra um armário, tendo de seguida agarrado na filha menor de ambos, voltando a sair. 6. Como causa direta e necessária desta atuação a ofendida sofreu uma equimose amarelada com 4 x 1,5 cm no terço superior da coxa esquerda, que demandaram cinco dias de cura. 7. O arguido com o arrombamento da porta provocou um prejuízo no valor de € 755,22.”;

10. O arguido não empurrou a queixosa, nem arrombou a porta com a intenção de a magoar física ou psicologicamente;

11. O arguido não se dirigiu a casa da queixosa com o intuito de a agredir ou de ter qualquer tipo de interação, de qualquer natureza, consigo, apenas e só com a ML, o que de resto ficou claro de toda a prova que se produziu neste ponto;

12. As lesões sofridas pela queixosa, a terem ocorrido, deveram-se a culpa sua, porque colocou-se por detrás da porta sabendo que o arguido a estava prestes a arrombar;

13. O arguido causou danos na porta de sua casa;

14. A porta é um bem comum de PC e SM;

15. A admitir-se o pagamento do arranjo da porta a título de indemnização será sempre na proporção da metade que pertença à ofendida e não mais;

16. Da prova produzida não resulta provado que: “8. No dia 10 de Julho de 2015, pelas 21h, quando a ofendida saía da casa da sua amiga NC, apercebeu-se que na Rua Pedro Gil em Santarém, o arguido se encontrava a vigiá-la do interior da viatura de marca Lexus, matrícula ---GN-….9. A ofendida entrou rapidamente na sua viatura e arrancou mas o arguido iniciou também imediatamente a marcha do seu veículo e colou-se à traseira do veículo da ofendia, tendo-a perseguido durante 15 minutos pelas ruas de Santarém, designadamente, pela Rua Pedro Cid, Avenida Forcados Amadores de Santarém, Avenida Madre Andaluz, Rua dos Bombeiros da Praça Velha e Rua Fruela”;

17. Foi a queixosa que perseguiu o arguido e a namorada F;

18. Quanto ao pedido de indemnização cível não resulta provado que a queixosa estivesse debilitada física ou psicologicamente como causa direta dos alegados comportamentos de PC;

19. Não constam dos autos quaisquer relatórios médicos que possam corroborar o estado psíquico da queixosa, bem como a causa desse estado;

20. Não resultou provado dos autos, nem da prova produzida em sede de julgamento, que o arguido tivesse causado à queixosa qualquer lesões/sofrimento psíquico ou físico à queixosa;

21. O arguido jamais deveria ter sido condenado a pagar à queixosa qualquer quantia a título de danos não patrimoniais;

22. É forçoso concluir que da produção de prova realizada na audiência de discussão e julgamento apenas resulta provado o dano provocado pelo arguido na sua porta e nada mais;

23. O arguido arrombou a porta de casa com vista a acorrer à menor, que se encontrava no interior da habitação, num estado de pânico e agitação fora do comum, pedindo ao pai que a fosse buscar, sem que o arguido soubesse ou compreendesse o que realmente se passava com a sua filha, tendo inclusive sido contactado pela queixosa a respeito desta situação, e portanto, o arguido atuou em estado de necessidade, o que retirar qualquer laivo de ilicitude à conduta de PC;

24. Quanto aos demais factos, no limite subsistirá a dúvida quanto à sua ocorrência, o determina quanto aos mesmos a absolvição do arguido;

25. O arguido não deveria ter sido condenado pois que não resultou provado que o mesmo tenha cometido um crime de violência doméstica e um crime de violação de domicílio;

26. Quanto ao crime de violência doméstica sempre se diga que mesmo que os factos imputados ao arguido se mostrassem provados, o que não se concede, jamais estariam preenchidos o tipo objetivo e subjetivo que o caracteriza, o que de resto é acompanhado pelo Ministério Público nas suas alegações;

27. Para que se tivesse verificado o preenchimento dos elementos típicos do crime de violência doméstica, teria sido necessário que a queixosa tivesse sido reiterada e dolosamente submetida pelo arguido a condutas de violência física, psicológica e verbal ou sexual, com profundas sequelas psíquicas e físicas, e um amplo condicionamento físico e psíquico, o que não se verificou;

28. O douto Tribunal a quo fez uma errada interpretação da prova produzida, não tendo aprofundado, como deveria, as intenções da queixosa, as quais se pretenderam demonstrar em sede de audiência de discussão e julgamento, não tendo sido dada à defesa qualquer amplitude para o fazer;

29. Este processo teve origem em motivações perniciosas tal como foi alegado pelo arguido em sede de contestação;

30. O presente processo, tal como outros processos criminais cujo desfecho foi, como não poderia deixar de ser, o arquivamento, tratou-se de um meio usado pela queixosa para denegrir o seu papel enquanto pai e prejudicar a sua competência parental;

31. Nem dos autos, nem da prova testemunhal e documental produzida, quer globalmente considerada, quer apreciada individualmente, resultou comprovada matéria suficiente para que se possa concluir que o arguido praticou um crime de violência doméstica e um crime de violação de domicílio e,

32. O Tribunal a quo julgou incorretamente os referidos factos, porquanto em relação aos mesmos, salvaguardando-se, em exceção, o arrombamento da porta, não foi produzida prova.

Em suma, nos presentes autos, não só ficou cabalmente provado que o recorrente não praticou os crimes pelos quais foi condenado, como foi criada a dúvida razoável quanto aos factos pelos quais foi acusado e quanto à sua culpa, pelo que deve ser absolvido de todos os crimes.

No entanto, e sempre à mera cautela, a terem sido dadas como provadas as condutas que o foram, na nossa opinião indevidamente, deveriam ter sido juridicamente requalificadas porquanto, no limite, e por mera hipótese, admitir-se-ia a sua qualificação como crime de ofensa à integridade física simples, mas jamais como crime de violência doméstica, pelo que, nesta hipótese, dever-se-ia proceder à alteração da qualificação jurídica do crime de violência doméstica para crime de ofensa à integridade física simples e/ou crime de injúrias, e serem aplicadas ao arguido as correspondentes penas, sempre suspensas na sua execução ou substituídas por multa, nos termos do artigos 143º e 181º do Código Penal.

Nestes termos e nos mais de Direito que V.as Ex.as suprirão deverá ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogada a sentença recorrida, tudo com as legais consequências”.
*
O Ministério Público junto da primeira instância apresentou resposta, pugnando pela total improcedência do recurso.

A demandante também respondeu ao recurso, concluindo que o mesmo não merece provimento.

Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, entendendo que o recurso do arguido deve ser julgado improcedente.

Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do C. P. Penal, não tendo sido apresentada qualquer resposta.

Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1 - Delimitação do objeto do recurso.

Duas questões, em breve síntese, são suscitadas no recurso interposto pelo arguido, segundo o âmbito das correspondentes conclusões, que delimitam o objeto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal:

1ª - Impugnação alargada da matéria de facto.
2ª - Qualificação jurídica dos factos relativos ao crime de violência doméstica.

2 - A decisão recorrida.

É do seguinte teor a sentença revidenda (quanto aos factos provados, aos factos não provados e à motivação da decisão fáctica):

“Da matéria constante da acusação, o tribunal, após a realização de audiência de julgamento, decide julgar provados os seguintes factos:

1. Entre Setembro de 2005 e Junho de 2012 o arguido PC e a ofendida SM viveram em comunhão de cama, mesa e habitação, tendo resultado deste relacionamento o nascimento em 10-04-2008 de MLC.

2. Em data não apurada do ano de 2011, durante um jantar, no qual estava presente MB, o arguido virou-se para a ofendida e de viva voz disse: "és uma merda, desaparece daqui", tendo ato contínuo a agarrado pelos ombros e desferido um forte empurrão, atirando-a contra a parede do quarto.

3. Em datas não apuradas, mas posteriores a Junho de 2012, o arguido, muitas vezes na presença da filha menor, disse em tom sério à ofendida "que tivesse cuidado, pois podia-lhe acontecer o mesmo que aconteceu ao C [um amigo que faleceu com dois tiros quando circulava de carro]"; "tem cuidado quando atravessares a passadeira".

4. Em data não concretamente apurada, à entrada do prédio da ofendida, o arguido de viva voz apodou a ofendida de "vaca" e "cabra".

5. No dia 19 de Abril de 2015, pelas 22h10, o arguido com um pontapé arrombou a porta de entrada da residência da ofendida, sita na Rua …, Santarém, entrou no interior da habitação e empurrou a ofendida violentamente contra um armário, tendo de seguida agarrado na filha menor de ambos, voltando a sair.

6. Como causa direta e necessária desta atuação a ofendida sofreu uma equimose amarelada com 4 x 1,5 cm no terço superior da coxa esquerda, que demandaram cinco dias de cura.

7. O arguido com o arrombamento da porta provocou um prejuízo no valor de cerca de 755,22 €.

8. No dia 10 de Julho de 2015, pelas 21h, quando a ofendida saía da casa da sua amiga NC, apercebeu-se que na Rua Pedro Gil em Santarém, o arguido se encontrava a vigiá-la do interior da viatura de marca Lexus, matrícula --GN--.

9. A ofendida entrou rapidamente na sua viatura e arrancou mas o arguido iniciou também imediatamente a marcha do seu veículo e colou-se à traseira do veículo da ofendida, tendo-a perseguido durante 15 minutos pelas ruas de Santarém, designadamente, pela Rua Pedro Cid, Avenida Forcados Amadores de Santarém, Avenida Madre Andaluz, Rua dos Bombeiros da Praça Velha e Rua Fruela.

10. Ao proceder como descrito, agiu sempre o arguido voluntária, livre e conscientemente, com o propósito concretizado de humilhar, ofender a honra, o bom nome e a sensibilidade de SM, de lhe molestar fisicamente, bem como de lhe causar um sentimento de insegurança e intranquilidade, apesar de saber que com o seu comportamento provoca sofrimento físico e psíquico à ofendida e afetava a sua dignidade enquanto mulher e mãe.

11. Ao praticar os factos supra descritos na presença da sua filha menor de idade o arguido sabia que o seu comportamento era apto a prejudicar o bem-estar psicológico e o são desenvolvimento da MLC, mas ainda assim conformou-se com tal resultado.

12. Ao arrombar a porta da residência da ofendida o arguido agiu também de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de se introduzir no interior da habitação da ofendida apesar de saber que esta não o autorizava a entrar.

13. O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

Do pedido de indemnização cível:

14. Fruto da sua entrada forçada e contra a vontade da peticionante na residência desta, o demandado danificou a respetiva porta de entrada, designadamente na porta em si mesma, na sua fechadura, óculo de visão, aro de guarnição interior e dobradiças.

15. O dano provocado ascendeu a 755,22€.

16. Os sucessivos epítetos e ameaça que o demandado dirigiu à demandante, nomeadamente "és uma merda, desparece daqui."; "que tivesse cuidado, pois podia-lhe acontecer o mesmo que aconteceu ao C (um amigo que faleceu com dois tiros quando circulava no carro); "vaca"; "cabra", provocaram-lhe, e ainda provocam, medo, vexame, humilhação, abalo psíquico e falta de autoestima.

17. Quando entrou, sem autorização, na residência desta - 19/04/2015 - empurrou-a violentamente contra um armário, causando-lhe as lesões descritas no exame médico constante dos autos.

18. A demandante receou seriamente pela sua integridade física e pela sua vida, angustiando-se, entrando em crise de choro e alteração psicológica.

Das condições sociais, económicas, encargos e antecedentes criminais do arguido:

19. O arguido PC encontra-se no estado civil de solteiro, vive com companheira. É pai de uma filha com a idade de 5 anos. O agregado familiar vive em casa própria.

20. O arguido PC exerce a profissão de bombeiro, por conta de outrem - Autoridade Nacional de Proteção Civil - auferindo mensalmente a remuneração média mensal de € 830,00.

21. O arguido PC não tem antecedentes criminais.

MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA

O tribunal, após a realização de audiência de julgamento, decidiu julgar não provados, os seguintes factos:

a) No dia 22 de Abril de 2015, pelas 18h30, quando a ofendida estacionava o seu veículo à porta de casa, foi surpreendida pelo arguido a tentar abrir-lhe a porta do automóvel.

b) Receosa que este pudesse atentar contra a sua integridade física, a ofendida iniciou de imediato a marcha do veículo, só tendo regressado a casa passadas várias horas.

c) No dia 24 de Abril de 2015, pelas 19h30, novamente à porta da residência da ofendida, o arguido entregou a filha menor de ambos à mãe e de viva voz e em tom sério disse à ofendida: "tem cuidado que na próxima rebento-te toda".

Da contestação:

d) Foi o arguido quem por diversas vezes, na constância da união que se manteve entre ambos, o agredido, verbal e fisicamente, mantendo, outrossim, uma posição passiva, defensiva e honrosa.

MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO

Meios de prova:

Declarações do arguido PC que negou a prática dos factos descritos na acusação, tendo apresentado versão diferente quanto ao facto 5.

Declarações de queixosa/lesada SM que confirma a matéria acusatória nos termos em que foi deduzida.

Dos depoimentos das testemunhas de acusação IS e MS, pais da queixosa, os quais assistiram a parte dos factos, bem como a testemunha CS, irmã da queixosa que assistiu à prática do facto 5 da acusação, tendo conhecimento da situação vivida pela sua irmã após a separação do casal.

Dos depoimentos das testemunhas EB, RA, PA, MS, vizinhos e residentes em andares superiores e inferiores ao andar onde reside a queixosa SM e depuseram sobre as circunstâncias da ocorrência descrita no ponto 5 da acusação.

Depoimentos das testemunhas MB, cunhada do arguido e conhecedora das circunstâncias de conflito entre o seu cunhado e a queixosa antes e depois da separação.

Depoimento da testemunha F, atual companheira do arguido desde Outubro de 2015 e sabedora da relação de conflito entre o seu companheiro e a anterior companheira dele, ora queixosa.

Depoimentos de agentes da PSP, PS e JP que compareceram na residência da queixosa aquando da ocorrência naquele local e onde também, abordaram o arguido.

Depoimento de PN, comandante de bombeiros e superior hierárquico do arguido, em abono deste.

1. Pericial:
- Auto de exame médico de fIs. 155-156.

2. Documental:
- Fotografias de fIs. 37;
- Registo clínico de fIs. 39;
- Assento de nascimento de fIs. 53-54-180;
- Participação de fIs. 119.
- Certificado do registo criminal de fIs. 354
- Fatura proforma de fIs. 169.

EXAME CRÍTICO DAS PROVAS
Tal como expressou na sua contestação, também em julgamento o arguido PC afirmou que os factos constantes da acusação são falsos. Assume ter havido agressões verbais, com domínio da voz da queixosa/lesada SM, mas nega ter havido qualquer agressão física. Quanto ao facto descrito em 2 na acusação esclareceu não se rever nesta situação. Contudo a queixosa SM confirmou a sua ocorrência nos termos e circunstâncias descritas na acusação. Assumiu-se como testemunha presencial deste facto a testemunha MB, cunhada do arguido, a qual o descreve como se expressa na acusação, com exceção de que o arguido PC atirou a queixosa SM contra o cortinado. O arguido afirma que esta testemunha não estava presente no local.

O arguido PC assume que em todas as entregas da filha à mãe ocorriam sempre conflitos mas não assume a autoria da expressão descrita no facto 3 da acusação dado que, apesar de não conhecer o C, conhece a história da sua morte. Nega a prática e mesmo a ocorrência dos factos descritos sob os números 4,10, 11 e 12 da acusação, afirmando que dois meses antes de sair de casa foi agredido pela queixosa, facto que o determinou a abandonar a casa morada de família.

A queixosa/lesada SM expressa em audiência versão diferente, pois que confirma a ocorrência de todos os factos descritos na acusação e que os mesmos foram praticados pelo arguido PC nas circunstâncias de modo, tempo e lugar indicados. Quanto ao facto descrito sob o número 3 da acusação, para além de o confirmar, declarou ter ficado com medo da ameaça, pois que antes já tinha ocorrido ameaças. Esclareceu que o arguido PC por não aceitar que a queixosa SM ter seguido a sua vida, passou a chamá-la de "vaca" e "cabra" nos locais onde a encontrava, inclusive nos momentos de entrega da sua filha. Relativamente ao facto 5 da acusação, confirma a sua ocorrência, com a efetiva entrada do arguido PC no interior da sua casa de onde levou a filha ML para o 4º andar do prédio. Quanto aos factos 8, 9, 10 e 11 da acusação, afirma que ocorreram nas circunstâncias de modo, tempo e lugar descritas e que foi o arguido PC o seu autor.

No decurso da audiência de julgamento, para além das declarações do arguido PC e da queixosa/lesada SM, foram inquiridas catorze testemunhas, as quais depuseram sobre os diversos factos descritos na acusação, bem como à matéria do pedido de indemnização cível. De todos os depoimentos, o Tribunal desconsidera totalmente o depoimento da testemunha RM por se revelar completamente contraditório e, como tal, desprovido de credibilidade. Mostra-se reduzidíssima a matéria de facto que afirmou com algum crédito, mas sem relevância para a decisão.

Quanto ao facto 1 da acusação referente à comunhão de cama, mesa e habitação entre PC e SM, tendo resultado deste relacionamento o nascimento em 10-04-2008 de MLC , a prova assenta nas declarações dos próprios e da prova documental de fls. 180 - assento de nascimento.

Quanto à prova do facto 2 da acusação - durante um jantar, no qual estava presente MB -, para além das versões contrárias expressas pela queixosa SM e arguido PC, nos termos já referidos (situação comum em toda a matéria acusatória), a testemunha MB assumiu-se como presencial no momento em que o arguido PC se dirige à queixosa SM e lhe diz "és uma merda", "desaparece daqui" e a empurra contra o cortinado que se situava junto da parede do quarto, onde embateu. Situa esta ocorrência em Santarém, não precisando a data, mas descreveu as causas que levaram o arguido e a queixosa ao quarto, o estado anímico em que se encontravam, bem como as posteriores circunstâncias, designadamente a ida da queixosa ao médico por ter ficado magoada. Esta testemunha também declarou que nunca presenciou outros factos ocorridos entre o arguido e a queixosa e o que veio a saber foi através de relatos que esta lhe fez. O depoimento desta testemunha mostrou-se descritivo, coerente, estruturado, de boa memória, revelando conhecimento direto do facto que descreveu. O tribunal concede-lhe total credibilidade. Sobre esta matéria factual apenas a testemunha CS, irmã do arguido, a ela se refere, declarando que não assistiu ao jantar, mas que lhe contaram que o arguido agrediu verbalmente a ofendida mas não sabe precisar, não identificando a pessoa ou pessoas que lhe transmitiram tal factualidade, pelo que o Tribunal não pode valorizar tal testemunho. O Tribunal forma a sua convicção sobre a prova do facto 2 da acusação com fundamento no depoimento da testemunha MB.

Quanto à prova do facto 3 da acusação – “que tivesse cuidado, pois podia-lhe acontecer o mesmo que aconteceu ao C” - assume-se como testemunha presencial, IS, pai da queixosa SM, não sabendo precisar datas, mas que tal facto ocorreu numa das entregas da filha, a qual se encontrava presente. Ouviu o arguido dirigir tais palavras e expressões à queixosa SM, tendo esta revelado nervosismo, medo e inquietação por si e pela filha. Testemunha revelou ainda que se encontrava acompanhada pela sua mulher, a testemunha MS, a qual descreve o facto como tendo ocorrido junto da porta do prédio e a sua filha vinha a chegar e o arguido dirigiu-lhe a expressão - “que tivesse cuidado, pois podia-lhe acontecer o mesmo que aconteceu ao C” e que tivesse “cuidado quando atravessar a passadeira”. Não soube precisar a data mas situa tal ocorrência numa das entregas da sua neta ML pelo arguido à sua filha. Apesar de se tratar dos pais da queixosa SM, os depoimentos das testemunhas IS e MS mostraram-se descritivos, de boa memória e com discurso coerente, lógico e enquadrado nas regras de experiência. Por descritivo e não qualificativo ou analítico, o Tribunal considera que tais depoimentos se revelaram com a necessária e suficiente independência face à pessoa da queixosa, pelo que lhe atribui total credibilidade e com eles fundamenta a prova do facto 3 da acusação.

Quanto à prova do facto 4 da acusação - à entrada do prédio da ofendida, o arguido de viva voz apodou a ofendida de "vaca" e "cabra" - assumiram-se como testemunhas presenciais, IS e MS, pais da queixosa SM, nas circunstâncias de modo, tempo e lugar antes consideradas. Tais nomes eram dirigidos à queixosa SM pelo arguido PC sobretudo nos momentos em que ocorria a entrega da filha ML, junto da entrada do prédio onde vivia a queixosa com a sua filha. A testemunha MS descreve que assistiu ao arguido PC chamar a queixosa SM de "vaca" e a filha ML, que estava presente, ter colocado a mão na boca do pai para este não chamar nomes à mãe. A estes factos se referiu a testemunha CS, irmã da queixosa, que apenas por uma vez ouviu o arguido PC a chamar "vaca" à sua irmã. Mantendo a credibilidade dos depoimentos destas testemunhas, o Tribunal fundamenta a prova destes factos nestes mesmos depoimentos.

Quanto à prova do facto 5 da acusação - o arguido com um pontapé arrombou a porta de entrada da residência da ofendida - é, de toda a matéria acusatória, o que reúne mais elementos de prova. Aqui, quer arguido, quer queixosa se conformam em admitir, não só a ocorrência do facto, mas também a intervenção pessoal e direta do arguido. Para além destes, assumem-se como testemunhas presenciais, CS, irmã da queixosa, a qual através de depoimento descritivo, coerente, de boa memória, lucidez e objetividade, descreveu o facto tal como consta da acusação. Estando no interior da casa da queixosa, a sua posição apenas lhe permite observar o que se passa do interior para o exterior. Após o arrombamento da porta pelo arguido PC, viu pessoalmente que este entrou no interior da casa, num espaço de 2 metros após a porta e empurrou a queixosa SM para poder passar para agarrar a filha ML, dado que esta estava a gritar de birra. Afirmou que a sua irmã se magoou corporalmente mas não sabe em que zona.

As demais testemunhas, EB, RA e PA, vizinhos residentes no prédio e andares superiores e inferiores ao da residência da queixosa SM assumem-se como conhecedores do facto, o qual não presenciaram pessoalmente. A testemunha E ouviu barulho de arrombamento de porta e viu o arguido PC a levar a filha ML. Foi ao local e viu a SM a chorar compulsivamente e em pânico e confirma a presença da testemunha CS. Viu a porta aberta, na vertical e a fechadura arrombada. Este depoimento mostrou-se descritivo, de boa memória, coerente e revelador de conhecimento direto dos factos que descreveu. A testemunha RA, residente no 4º direito, apenas sabe o que se passou em sua casa onde recolheu o arguido PC e a filha ML. Viu esta em choro compulsivo, em estado de pânico, a dizer que não queria ir para casa da mãe e tentou acalmar. O arguido PC descreveu-lhe os factos ocorridos anteriormente. Esta testemunha nunca se deslocou junto da porta da residência da queixosa. O depoimento desta testemunha mostrou-se descritivo, coerente, de boa memória e revelador de conhecimento direto dos factos sobre os quais depôs. O tribunal atribui-lhe credibilidade.

A testemunha PA, esposa de RA, assume-se como conhecedora dos factos que se passaram na sua casa, os quais relata em versão igual à do seu marido. Contudo afirma que nunca percebeu o que a menina tinha pois apenas dizia que não queria ir para casa da mãe. Assistiu à chegada da polícia mas não assistiu à conversa. Este depoimento mostrou-se descritivo, coerente e de boa memória, revelando conhecimento direto dos factos sobre os quais depôs.

Para além das testemunhas referenciadas, outras se assumiram conhecedoras do factos, tais MF, vizinha do 4º esquerdo que diz ter visto o arguido PC com a filha ML ao colo e esta estava muito nervosa. Contudo começou por afirmar que não viu a FF, companheira atual do arguido PC, para de seguida afirmar que não se lembra. Terminou dizendo que não viu mais nada, não sabe de mais nada e que não fala com a queixosa SM porque tem mau feitio. O depoimento desta testemunha mostra-se muito reduzido e claramente condicionado pela imagem negativa que revelou ter da queixosa SM. Por último, o depoimento da testemunha F, atual companheira do arguido PC com o qual vive desde Outubro de 2015. Assumiu-se presente em todos os acontecimentos vertidos na acusação a qual estranhou, com exceção do que ocorreu em 2011. Quanto ao facto em análise, 5 da acusação, afirmou que resultou de uma entrega da ML à mãe. O PC desferiu um pontapé na porta e a ML saiu para o colo do pai, não tendo este entrado no interior da habitação. Ambos foram para o 4º andar. Não sabe se a queixosa SM estava ou não atrás da porta. Este depoimento mostrou-se de reduzida descrição, manifestamente parcial. A convicção desta parcialidade assenta das demais declarações da testemunha, pois apenas refere violência verbal por parte da queixosa SM para com o arguido PC, declarando não se recordar dos nomes que apelidou o arguido, nem revelar as circunstâncias de modo tempo e lugar em que ocorreram. O Tribunal formou a convicção de dúvida sobre a presença desta testemunha no local e caso tenha estado, dúvidas sobre o que realmente viu. O Tribunal não atribui credibilidade a esta testemunha, tendo em conta que pelas regras de experiência o acompanhamento assíduo, permanente e junto do arguido, seu companheiro, nas circunstâncias que envolvem este conflito, não se revela normal, dado que é sabido constituir fator de conflito entre o arguido e a queixosa, situação esta que, no dizer do arguido, sempre procurou evitar para bem da filha ML, a qual estava à guarda da mãe, a queixosa SM.

Os depoimentos das testemunhas PS e JP, agentes da PSP de Santarém que foram chamados e se deslocaram ao local, constataram a posteriori o arrombamento da porta e a retirada da menor da casa de sua mãe pelo arguido, bem como os danos emergentes na porta. Fizeram notar a presença da testemunha CS, não se repararam em lesões na queixosa. Relataram o estado de nervoso da menor e os cuidados tidos pelo arguido para acalmar a filha ML. Os seus depoimentos mostram-se descritivos e revelam conhecimento direto dos factos sobre os quais depuseram.

Quanto à prova do facto 6, o Tribunal fundamenta-a na prova documental - fls. 39 relatório do Centro de Saúde de Santarém onde foi verificada a lesão no corpo da queixosa - bem como na prova pericial - fls. 155 auto de exame médico-legal onde a mesma lesão foi confirmada.

Quanto à prova do facto 7 - prejuízo provocado na porta - o Tribunal fundamenta-a na prova documental de fls. 169 onde se expressa em fatura proforma o valor dos danos.

Quanto à não prova dos factos 8 e 9 da acusação - este facto apenas foi descrito pela queixosa SM. Apesar do seu depoimento se mostrar emotivo e firme, o facto foi negado pelo arguido PC. Nenhuma das testemunhas revelou qualquer conhecimento seguro sobre a matéria, dado que apenas IS se refere que o arguido se dirigiu ao carro da queixosa e depois a ter perseguido, deixando dúvida séria sobre o que observou. Estando junto da sua esposa, MS, esta nada referiu.

Quanto à não prova do facto 10 - apenas se assume como conhecedor do facto a testemunha IS, pai da queixosa SM, o qual referiu que viu e ouviu o arguido dizer à sua filha, à porta do prédio rebento-te toda. Esta testemunha não contextualizou este acontecimento, o qual vem referido na acusação como ocorrido em data, hora e local precisos. O arguido PC afirma a impossibilidade do acontecimento, pois não tinha contactos com a queixosa SM e as comunicações entre ambos eram feitas por mail. A queixosa também não concretizou de forma convincente a ocorrência deste facto. Nenhuma das demais testemunhas se referiu ao mesmo. O Tribunal tem séria dúvida sobre a ocorrência do facto pelo que o julga não provado.

Quanto à prova dos factos 11 e 12 - para além da versão expressa pela queixosa SM, assume-se como conhecedora presencial dos mesmos a testemunha NC, amiga de infância da queixosa e presente no interior da viatura automóvel desta. O seu depoimento mostrou-se descritivo, coerente, de boa memória, objetivo, revelando conhecimento direto dos factos 11 e 12 da acusação. Descreveu de forma clara e intensa o estado de medo e exaltação em que ficou a queixosa depois de terem identificado o arguido PC a conduzir o seu veículo, em perseguição da mesma. Descreveu com objetividade a conduta do arguido PC de perseguição do veículo conduzido pela queixosa, a qual decorreu durante cerca de 15 minutos, tendo esta voltado para casa por se encontrar em estado de grande nervosismo e medo. O Tribunal atribui total credibilidade ao depoimento desta testemunha.

Quanto à prova dos factos 14 a 16 - elementos que revelam o elemento subjetivo dos tipos legais de crimes de que o arguido vem acusado - assenta no conjunto de toda a prova recolhida e antes referida, a qual conjugada com as regras de experiência, levam o Tribunal a formar a sua convicção de que o arguido PC agiu com clara motivação e intenção de praticar os factos provados, sabia que constituíam crimes, puníveis por lei, sabia e queria obter o resultado que acabou por ocorrer, conformando-se com o mesmo por o desejar.

Finalmente, a testemunha PN, comandante de corpo de bombeiros e superior hierárquico do arguido PC, o qual é seu segundo comandante, veio procurar transmitir ao Tribunal a imagem do arguido como homem calmo, pacato, responsável, que não emprega a linguagem que lhe imputam, nem mesmo em situações de stress. Esta imagem construiu-a com base na convivência que tem com o arguido de há anos. Revelou conhecer a relação entre arguido e queixosa antes dos factos e que estes lhe foram relatados pelo arguido. O seu depoimento mostrou-se descritivo, qualificativo, com evidente parcialidade e circunscrito a realidade que não se enquadra na matéria factual em análise”.

3 - Apreciação do mérito do recurso.

a) Da impugnação alargada da matéria de facto.
No entender do recorrente, devem ser julgados como não provados todos os factos descritos na matéria de facto dada como provada na sentença sub judice (e atinentes ao preenchimento dos elementos dos crimes em causa), com exceção de o arguido, com um pontapé, ter arrombado a porta.

Há que decidir.
Lendo a motivação do recurso, verifica-se, desde logo, que a matéria de facto que está impugnada é, em rigor, toda aquela que se mostra relevante para o preenchimento dos tipos legais de crime que estão imputados ao arguido (na verdade, até o facto, assumido na motivação de recurso, de o arguido, com um pontapé, ter arrombado a porta, se revela, na alegação do recorrente, inócuo, porquanto se alega que a porta pertencia a uma casa que era também do arguido, não se mostrando, assim, verificados os elementos do crime de violação de domicílio).

Ora, os recursos são legalmente definidos como juízos de censura crítica - sobre concretos pontos de facto e matéria de direito de que conheceu ou deveria ter conhecido a decisão impugnada -, e não como “novos julgamentos”.

Assim, pretendendo o arguido impugnar a matéria de facto, como pretende, teria de cumprir o ónus de impugnação especificada imposto pelo artigo 412º, nº 3, do C. P. Penal, de indicação pontual, um por um, dos factos que reputa incorretamente julgados, não lhe bastando a mera impugnação, em bloco, de toda a factualidade relevante, como também se não dispensa a indicação das provas que, ponto por ponto, “impõem” (e não apenas permitem, ou aconselham) uma solução diversa da recorrida.

Lendo e relendo a motivação do recurso e as suas conclusões, delas decorre, inequivocamente, que está questionado o acervo factológico provado na sua integralidade (melhor: em toda a parte relevante para efeitos de preenchimento dos elementos integradores dos crimes em causa), por o tribunal a quo, bem vistas as coisas, ter seguido um processo de convicção diferente daquele que o recorrente entende ser o correto.

Ou seja, aquilo que o recorrente pretende, no fundo, é que este tribunal de recurso proceda a um “novo julgamento”, fixando a matéria de facto de acordo com uma convicção que o recorrente pretende seja idêntica à dele próprio.

Ao cabo e ao resto, com o recurso em análise o recorrente pretende que seja reavaliada toda a prova que motivou a decisão do tribunal a quo.

Esquece o recorrente, com o devido respeito, que o labor do tribunal de segunda instância, num recurso de matéria de facto, não é uma indiscriminada expedição destinada a repetir toda a prova, mas sim um trabalho de reexame da apreciação da prova em certos e específicos pontos, incorretamente julgados (segundo o recorrente), e a partir das provas que, quanto a tais pontos, “impõem” decisão diversa da recorrida.

Depois, a análise da prova, nos termos em que foi efetuada na sentença revidenda, nenhum reparo ou censura nos merece.

É certo que o arguido negou, pura e simplesmente, a prática de todos os factos ora em discussão (com exceção de, com um pontapé, ter arrombado a porta).

Porém, e ao contrário até do que é habitual em casos semelhantes, ao cometimento dos factos assistiram várias outras pessoas (além do arguido e da ofendida).

Disso mesmo faz eco o tribunal a quo, na motivação da sua decisão fáctica, fundamentando a sua convicção de forma detalhada (ponto por ponto, prova por prova), percetível, clara e consistente.

Dito de outro modo: a análise da prova, que foi efetuada na sentença revidenda, não é merecedora de nenhum reparo ou de qualquer dúvida, em nada se revelando incorreta ou errada (aliás, e em bom rigor, nem na motivação de recurso esses eventuais reparos, erros e incorreções são apresentados, de modo concreto, pormenorizado e analisável por este tribunal ad quem).

A circunstância de o arguido ter negado a prática dos factos (assumindo-se, isso sim, como “vítima” das atitudes da ofendida) de muito pouco releva, não permitindo, minimamente, reverter o juízo probatório emitido pelo tribunal a quo.

Por outro lado, e ao contrário do que parece entender-se na motivação do recurso (cfr. conclusão 19ª extraída da motivação), o estado psíquico da ofendida decorrente dos comportamentos delitivos do arguido e o sofrimento psicológico da mesma resultante desses comportamentos, não necessitam de comprovação através de “relatórios médicos”, podendo ser provados, nos termos em que o foram, com recurso à prova testemunhal. Nessa matéria, e como se nos afigura óbvio, não existe a necessidade de produção de qualquer outro meio de prova (além das declarações da demandante e dos depoimentos de testemunhas). Isto é, não há aqui prova tabelar ou tarifada. Assim sendo, são totalmente inócuas e inconsequentes as alegações, constantes da motivação do recurso, relativas à necessidade da realização de perícias médico-legais para comprovação dos danos não patrimoniais sofridos pela ofendida.

Em suma: este tribunal ad quem, privado da imediação e da oralidade, não possui quaisquer elementos válidos (nem tais elementos se conseguem retirar da motivação do recurso) para reverter o juízo probatório emitido pelo tribunal de primeira instância.

Ou, por outras palavras (talvez mais simples): nada, de concreto e substancial, vem alegado na motivação do recurso que possa, sequer minimamente, colocar em crise os depoimentos das testemunhas ouvidas na audiência de discussão e julgamento e a credibilidade que o tribunal a quo lhes conferiu, limitando-se esta pretensão recursiva, bem vistas as coisas, a realçar a divergência entre, por um lado, as declarações prestadas pelo arguido (como se o tribunal nelas tivesse de acreditar), e, por outro lado, as declarações da demandante e os depoimentos das diferentes testemunhas.

Em face de tudo o que vem de dizer-se, e nesta primeira vertente, o recurso é manifestamente de improceder.

b) Da qualificação jurídica dos factos (crime de violência doméstica).

Alega o recorrente que os factos dados como provados na sentença revidenda, no tocante à violência doméstica, devem ser qualificados como crimes de ofensa à integridade física simples e de injúrias, e jamais como crime de violência doméstica.

Cumpre decidir.

Sob a epígrafe “violência doméstica”, dispõe o artigo 152º, nºs 1 a 3, do Código Penal:

1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:

a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;

é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

2 - No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.

3 - Se dos factos previstos no n.º 1 resultar:
a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;
b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos”.

Quanto ao bem jurídico protegido por esta incriminação, e como bem escreve o Prof. Taipa de Carvalho (in “Comentário Conimbricense do Código Penal - Parte Especial”, Coimbra Editora, Tomo I, pág. 332), trata-se de “bem jurídico complexo, que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afetado por toda uma multiplicidade de comportamentos que (…) afetem a dignidade pessoal do cônjuge”.

Mais esclarece o mesmo ilustre Professor (ob. e local citados), que a ratio do tipo legal de crime previsto no artigo 152º do Código Penal não está, pois, “na proteção da comunidade familiar, conjugal (...), mas sim na proteção da pessoa individual e da sua dignidade humana”.

No dizer de Plácido Conde Fernandes (in “Violência Doméstica - Novo Quadro Penal e Processual Penal”, Jornadas Sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, nº 8, 1º semestre de 2008, pág. 305), “o bem jurídico, enquanto materialização direta da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efetivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus tratos”.
A nosso ver, preenche este tipo legal de crime a prática de qualquer ato de violência que afete a saúde - física, psíquica ou emocional - da vítima (no caso, o cônjuge ou aquele que vive em condições análogas às dos cônjuges), diminuindo ou afetando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida naquela realidade conjugal.

O crime pode, pois, realizar-se através de uma pluralidade de atos, ou através de um único ato, que atinja a saúde física, psíquica ou moral do cônjuge e afete a sua dignidade pessoal.

Porém, é exigível, sempre, que os atos praticados (plúrimos ou isolados, reiterados ou não), apreciados à luz da vida em comum, possam, de modo relevante, colocar em risco a saúde do cônjuge, tornando-o vítima de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade.

À luz do exposto, e conforme bem salienta Nuno Brandão (in “A Tutela Penal Especial Reforçada da Violência Doméstica”, Revista Julgar, nº 12, pág. 19), no crime de violência doméstica “devem estar em causa atos que, pelo seu carácter violento, sejam, por si só ou quando conjugados com outros, idóneos a refletir-se negativamente sobre a saúde física ou psíquica da vítima”, sendo ainda necessária a avaliação da “situação ambiente” e da “imagem global do facto” para se decidir pelo preenchimento, ou não, do tipo legal de crime em questão.

Ora, em conformidade com o que vem de dizer-se, os factos dados como provados nestes autos são suficientes para o preenchimento dos elementos do crime de violência doméstica (pelo qual o arguido foi condenado em primeira instância).

Senão vejamos.

Analisada a factualidade dada como provada, na sua globalidade complexiva, verifica-se que o arguido, de modo repetido, praticou variados atos sobre a pessoa da ofendida, que vão das injúrias, à violência física e à ameaça (cfr., nomeadamente, os factos provados nºs 2, 3, 4, 5, 8 e 9), atos que, em nosso entender, constituem atitudes de degradação, humilhação e secundarização da vítima, afetando-a, de modo significativo e relevante, não só no seu bem-estar (físico e psíquico), como também na sua dignidade humana.

Na verdade, e em breve síntese:
- Em data não apurada do ano de 2011, durante um jantar, e na presença de uma terceira pessoa, o arguido virou-se para a ofendida disse-lhe: “és uma merda, desaparece daqui”, tendo, ato contínuo, agarrado a ofendida pelos ombros e desferido na mesma um forte empurrão, atirando-a contra a parede.

- Em datas não apuradas, mas posteriores a junho de 2012, o arguido, muitas vezes na presença da filha menor, disse à ofendida “que tivesse cuidado, pois podia-lhe acontecer o mesmo que aconteceu ao C” (um amigo que faleceu com dois tiros quando circulava de carro), e disse ainda à ofendida: “tem cuidado quando atravessares a passadeira”.

- Em data não concretamente apurada, à entrada do prédio da ofendida, o arguido apelidou a ofendida de “vaca” e de “cabra”.

- No dia 19 de abril de 2015, o arguido, com um pontapé, arrombou a porta de entrada da residência da ofendida, e, após, entrou no interior da habitação e empurrou a ofendida violentamente contra um armário.

- No dia 10 de julho de 2015, quando a ofendida saía da casa de uma amiga, o arguido, que estava ali a “vigiá-la”, “perseguiu”, com um veículo automóvel, o veículo conduzido pela ofendida, durante 15 minutos, pelas ruas de Santarém.

Com o devido respeito por diferente opinião, a reiteração e a gravidade das condutas levadas a cabo pelo arguido permitem-nos, sem dúvidas ou hesitações, considerar a existência, in casu, de um grau de ilicitude que não se compadece com a condenação pelos crimes parcelares invocados pelo recorrente (ofensa à integridade física simples e injúria - aliás, o recorrente, na motivação do recurso, “esqueceu-se” de aludir ao crime de ameaça, claramente plasmado nos factos dados como provados sob o nº 3 da sentença revidenda: disse o arguido que a ofendida tivesse cuidado, pois podia-lhe acontecer o mesmo que aconteceu ao C, um amigo que faleceu com dois tiros quando circulava de carro, e que tivesse cuidado quando atravessasse a passadeira).

Dos factos provados resulta, pois, demonstrado um estado de agressão (física e verbal) muito persistente e intenso, que permite concluir pelo exercício de uma relação de domínio do arguido sobre a vítima, com vista a diminuir a sua dignidade como pessoa.

Em abono deste nosso entendimento está até a circunstância de o arguido, mesmo na presença de terceiras pessoas, agredir a ofendida (verbal e fisicamente), o que denota, a nosso ver, que o arguido atuava em manifesta atitude de humilhação, de vilipêndio, de desestabilização e de secundarização da vítima, praticando, em relação à mesma, atos incompatíveis com a sua dignidade e liberdade.

Em resumo: considerando a “situação ambiente”, analisando a “imagem global do facto”, e vistos os concretos atos cometidos pelo arguido, entendemos estar preenchido o tipo legal de crime de violência doméstica, porquanto as condutas levadas a cabo pelo arguido contra a ofendida constituem um atentado à dignidade pessoal da mesma.

Como bem se escreve no Ac. deste T.R.E. de 03-07-2012 (relator Sérgio Corvacho, in www.dgsi.pt), a pedra de toque da distinção entre o tipo criminal de violência doméstica e os tipos de crime que especificamente tutelam os bens pessoais nele visados concretiza-se pela apreciação de que a conduta imputada constitua, ou não, um atentado à dignidade pessoal aí protegida”.

Ora, neste caso, repete-se, as condutas do arguido, pela sua gravidade e reiteração, constituem um atentado, relevante, à dignidade pessoal da ofendida.

Por conseguinte, e também nesta segunda vertente, o recurso é de improceder.

Face ao predito, o presente recurso não merece provimento.

III - DECISÃO
Nos termos expostos, nega-se provimento ao recurso interposto pelo arguido, mantendo-se, consequentemente, a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs..

Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 18 de abril de 2017

João Manuel Monteiro Amaro
Maria Filomena de Paula Soares