Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
5020/23.4T8STB.E1
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: ACORDO NÃO HOMOLOGADO
OPOSIÇÃO
PREJUÍZO PARA OS CREDORES
Data do Acordão: 03/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – Em processo especial de acordo de pagamento, a homologação do acordo deve ser recusada, a requerimento dos credores, desde que hajam deduzido oposição à aprovação do acordo e demonstrem que a sua situação ao abrigo do acordo é previsivelmente menos favorável do que aquela em que estariam na ausência de acordo.
II – Demonstra tal prejuízo a credora que por efeito de penhora de bens do devedor, prevê o pagamento total do seu crédito em 257 meses, por oposição ao pagamento de 19% do seu crédito no período de 252 meses, resultante do acordo.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 5020/23.4T8STB.E1

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório
1. (…) e (…), residentes no Bairro (…), n.º 199, em Sines, instauraram no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo de Comércio de Setúbal Tribunal – Juiz 1, processo especial para acordo de pagamento.
Nomeado administrador judicial provisório e concluídas as negociações, o acordo foi aprovado, por maioria (77,44% de votos a favor e 22,56% de votos contra, do total de 95,82% dos votos expressos).

2. Submetido o acordo de pagamento a homologação judicial foi proferida decisão que recusou a sua homologação consignando-se designadamente o seguinte:
(…)
Dispõe o artigo 194.º, n.º 1, do CIRE, que o plano de insolvência (entenda-se no caso concreto o acordo de pagamento), obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas.
No caso do plano apresentado nestes autos, essa igualdade não se verifica quanto aos créditos comuns, entendendo-se igualmente que o esforço dos credores comuns relativamente à AT é desproporcional.
Vejamos.
Relativamente ao perdão, verifica-se que este incide sobre juros vencidos e vincendos, propondo os devedores o pagamento de 40% do capital em dívida.
Face a esta redação, desde logo se verifica que a credora Caixa Geral de Depósitos, SA não receberá qualquer montante através deste plano, pois a dívida reconhecida a esta credora não inclui capital, mas apenas juros e custas.
E apesar de o seu crédito representar apenas 0,11% dos créditos reconhecidos, não é por este motivo que terá de perdoar 100% dos créditos que lhe foram reconhecidos.
Por outro lado, o perdão dos juros vencidos e vincendos, na prática, vai traduzir um perdão muito superior aos 60% proposto pelos devedores.
Com efeito, do crédito total reclamado e reconhecido a (…) – STC, SA, € 64.462,56 é de capital e € 72.244,92 de juros.
Assim, num total de € 136.707,48, esta credora apenas receberá, em 240 prestações, € 25.785,02 (40% do capital), ou seja, 18,86% do total da dívida.
Já quanto ao credor (…), o seu perdão será muito inferior.
Na verdade, do total de € 433.490,41, receberá € 160.000,00 (40% do capital), ou seja, 36,91 % dos créditos por si reclamados, percentagem que quase duplica em relação à credora (…), SA, igualmente credora comum.
O mesmo se passa relativamente aos credores (…) e (…).
Estes credores, do total de € 33.484,93, receberão € 12.000,00 (40% do capital), ou seja, 35,83% dos créditos por si reclamados, percentagem que igualmente quase duplica em relação à credora (…), SA, igualmente credora comum.
Logo, entende o Tribunal que, quer por força do perdão total proposto quanto à credora Caixa Geral de Depósitos, SA, quer por força da diferente percentagem dos créditos reconhecidos a receber pelos credores, sendo certo que são todos comuns, o plano apresentado viola o princípio da igualdade entre os credores, não podendo por isso ser homologado.
Mas mesmo que não se entenda que existe a violação do princípio da igualdade entre os credores comuns (que se encontram em situações de facto iguais), igualmente o plano não poderia ser homologado, pois esse princípio foi violado entre o pagamento a assegurar à Autoridade Tributária e aos credores comuns.
É certo que o plano pode conter diferenciações entre credores de categorias diferentes ou da mesma categoria, desde que as razões dessa diferenciação sejam compreensíveis.
Os devedores nada referem ou explicam no plano a esse nível, embora se saiba que o voto favorável da AT apenas pode ocorrer caso sejam assegurados os pagamentos mensais decorrentes da lei, por força do princípio da indisponibilidade dos créditos previsto no artigo 30.º, nºs 2 e 3, da LGT.
No entanto, embora se aceite a diferenciação entre os credores, no caso concreto a dimensão da desigualdade é enorme.
Um perdão de 60% do capital em dívida, acrescido do perdão de juros vencidos e vincendos, que como se viu, na prática, num caso representa perdão integral da dívida e noutro caso um perdão superior a 80%, é manifestamente exagerado, não permitindo a homologação do plano apresentado pelos devedores.
(…)
Face ao acima exposto, entende-se que ocorre violação não negligenciável de norma aplicável ao conteúdo do plano que impede a sua homologação, a saber do artigo 194.º do CIRE, pelo que, nos termos do artigo 215.º do CIRE, aplicável ex vi do artigo 222.º-F, n.º 5, do mesmo diploma, há que recusar a homologação do acordo de pagamento apresentado pelos devedores e aprovado pela maioria dos seus credores.

3. Os Devedores recorrem da decisão, motivam o recurso e concluem:
“I) Pelos Devedores foi apresentado plano de revitalização, cujas formas de pagamento previram no ponto 5.2 do plano, subdividindo os seus credores em duas categorias:
O pagamento à Autoridade Tributária e Aduaneira; e o Pagamento a “Todos os demais credores” (uma vez que, conforme consta da lista de credores constante do plano todos, à excepção da AT, foram qualificados como credores comuns).
II) Quanto à credora AT previu o plano que esta receberia os seus créditos integralmente, de acordo com a legislação em vigor, sem perdões e no máximo em 150 prestações mensais; e para todos os demais credores (comuns) propuseram os devedores Perdão integral de juros vencidos e vincendos; Perdão de 60% do valor do capital em dívida; Estabelecimento de um período de carência de pagamentos de 12 meses após o trânsito em julgado da decisão que vier a homologar o presente plano; e o Pagamento de 40% do capital reclamado da seguinte em 240 prestações mensais iguais e sucessivas.
III) Não obstante a aprovação do plano (pela maioria de credores de 77,44% dos votos emitidos), o Tribunal recorrido entendeu que deveria Recusar a sua homologação, por alegada violação do Princípio da Igualdade de credores em três (aqui sumárias) vertentes:
a) A primeira relacionada à Credora Caixa Geral de Depósitos (representante de 0,11% dos créditos reconhecidos) – que no entendimento do Tribunal, por ter só reclamado juros e o plano TER previsto o perdão total dos mesmos, acabaria (no fundo) por não receber nada, enquanto que todos os outros credores (de capital e juros) iriam receber pelo menos 40% do capital (em 240 prestações mensais);
b) A Segunda vertente, fundamentada na diferente percentagem de recebimentos pelos credores comuns, que o plano acarretaria aquando do pagamento aos mesmos.
c) E a terceira e última, porque se tratou a Autoridade Tributária de forma diferente dos credores comuns.
DA 1º VERTENTE ALEGADA PARA A VIOLAÇÃO DO PP DA IGUALDADE (PONTO 9 AL. A)
IV) A proposta prevista no plano dos devedores de aplicar a todos os credores comuns um perdão de juros vencidos e vincendos e o perdão de 60% de capital reclamado, que acarreta que o credor comum que só reclamou juros (atento o perdão de juros previsto) nada acabe por receber, não configura uma violação do Princípio da igualdade.
V) Com efeito, os devedores limitaram-se a dar o mesmo tratamento aos credores da mesma natureza e não podiam ser impedidos de propor uma medida que a lei lhes permite aplicar (perdão de juros vencidos e vincendos), apenas porque com o cumprimento do plano, um determinado credor (no caso a CGD) iria ser afectado de forma mais negativa que os demais, por circunstâncias que são absolutamente alheias aos devedores.
VI) Eventualmente, e no limite, o não recebimento de qualquer valor pela Credora CGD (decorrente da proposta de plano) poderá ser visto, no caso concreto, como um dano colateral do efectivo cumprimento pelos devedores do PP da Igualdade, mas nunca se poderia dizer que no plano os devedores trataram de forma diferenciada os credores comuns.
VII) A este respeito, sempre cumpre referir que a credora CGD representa no caso uma ínfima percentagem dos créditos reconhecidos (apenas 0,11%), sendo sim violador daquele princípio que os devedores tivessem previsto o pagamento – nem que fosse parcial de juros àquela credora, quando efectivamente se viram na necessidade de prever o perdão total aos demais – isto sim, seria beneficiar um credor comum em detrimento dos demais.)
DA SEGUNDA VERTENTE ALEGADA PARA A RECUSA DA HOMOLOGAÇÃO (PONTO 9 AL. B)
VIII) Também não assiste razão ao Tribunal recorrido ao apontar como violador do PP da igualdade, o facto dos credores comuns receberem (com o cumprimento do plano) percentagens muito diferentes dos seus créditos – usando-se assim como fundamento um facto que acontece necessária e obrigatoriamente em todos os planos de revitalização...
IX) Com efeito, se os créditos reconhecidos na lista de credores são de montantes diferentes a título de capital e juros, e se num plano se prevê o perdão parcial de capital e o perdão total de juros, é natural, consequente, proporcional e sobretudo justo, que os credores que reclamaram mais de juros que de capital, (como no caso a …), ou que só reclamaram juros (como no caso a CGD) acabem por sofrer uma constrição maior no recebimento e por conseguinte, e tento em conta o reclamado globalmente, serão diferentes as percentagens de recebimento de cada um.
X) A seguir este entendimento do Tribunal de 1ª Instância, dir-se-á que nunca mais nenhum PEAP poderia ser homologado, já que as diferentes percentagens de pagamentos são uma inevitabilidade no decurso de um plano apresentado ao abrigo do presente instituto legal – a não ser que todos os credores dos devedores tenham a mesma natureza e reclamem exactamente o mesmíssimo valor quer de capital, quer de juros, caso em que não se admitiria (de facto) as referidas diferentes percentagens nos respectivos recebimentos.
DA TERCEIRA VERTENTE DA VIOLAÇÃO DO PP DA IGUALDADE – DESIGUALDADE DE TRATAMENTO DA CREDORA AT E CREDORES COMUNS (PONTO 9 AL. C)
XI) Por último, também não assiste razão ao Tribunal a quo ao alegar que sempre o plano violou o PP da Igualdade de Credores, dada a proposta de pagamento da totalidade do crédito à Autoridade Tributária, quando por sua vez previu para os credores comuns um perdão de 60%, uma vez que, como inclusivamente se demonstra sabido pelo Mm.º Juiz a quo, a AT é um credor (a par da Segurança Social) com regalias, na medida em que o crédito tributário é indisponível, estando, por isso, ab initio, em posição distinta dos credores comuns.
XII) Acresce que, se os credores comuns tivessem de ser tratados pelos devedores como os credores do Estado têm (sem a possibilidade de perdões), então dir-se-ia que os PEAP, bem como os PER´s, perderiam toda e qualquer razão de existência e interesse para os devedores que se apresentam a eles, na medida em apenas a eles recorrem sabendo que o plano a apresentar pode fixar a redução ou o perdão dos créditos e juros, a constituição de garantias e por em causa a validade e relevância das anteriormente constituídas, nos termos do disposto nos artigos 196.º e 197.º do CIRE.
XIII) Com o fundamento supra citado, olvidou-se o Tribunal recorrido do escopo de um PEAP, fazendo tábua rasa do facto de com a introdução do PER no CIRE pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, a satisfação dos direitos dos credores ter deixado de ocupar o lugar privilegiado que vinha tendo, por sobreposição às possibilidades de recuperação dos devedores. Recuperação esta que surge à frente como mera eventualidade, totalmente dependente da vontade dos credores, mas cuja primazia não funciona apenas em detrimento daqueles devedores: ela exige, também, o sacrifício de credores dos mesmos, daí estes planos serem susceptíveis de impor aos credores uma compressão generalizada e grave das suas faculdades típicas, podendo afectar a esfera jurídica dos interessados e interferir com os direitos de terceiros independentemente do seu consentimento, podendo limitar ou restringir a esfera dos direitos de cada um, ou alguns, dos credores.
XIV) Razão pela qual, se tem de concluir que o tratamento diferenciado da credora AT não configura qualquer violação do princípio da Igualdade de credores.
Assim, nos melhores de direito, e sempre com o douto suprimento de V/ Exas., deve o presente Recurso ser julgado totalmente procedente, revogando-se a Sentença de Recusa Homologação do Plano de Recuperação apresentado pelos devedores, decidindo-se pela homologação do mesmo.
Assim se fazendo a acostumada e desejada JUSTIÇA”
Não houve lugar a resposta.
Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso
O objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo de alguma, ou algumas, das questões suscitadas ficar prejudicada pela solução dada a outras – cfr. artigos 635.º, n.º 4, 639.º, n.º 1, 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil.
Vistas as conclusões das motivações dos recursos são as seguintes as questões suscitadas: (i) se o de pagamento não viola o princípio da igualdade entre os credores e, em qualquer caso, (ii) se o acordo de pagamento deve ser homologado.

III. Fundamentação
1. Factos
A decisão recorrida considerou provado:
1. A Sra. AJP reconheceu nos autos os seguintes créditos:
a) Autoridade Tributária e Aduaneira: Capital - € 4.195,44; Juros - € 257,41; Custas - € 345,25; Total - € 4.798,10.
b) Caixa Geral de Depósitos, SA: Capital -; Juros - € 135,76; Custas - € 590,04; Total - € 725,00.
c) (…): Capital € 400.000,00; Juros - € 33.490,41; Total - € 433.490,41.
d) (…), STC, SA: Capital € 17.500,00; Juros - € 9.106,64; Total - € 26.606,64.
e) (…) e (…): Capital € 30.000,00; Juros - € 3.484,93; Total - € 33.484,93.
f) (…) – STC, SA: Capital € 64.462,56; Juros - € 72.244,92; Total - € 136.707,48.
2. O plano apresentado pelos devedores, relativamente ao pagamento aos credores, diz o seguinte:
- Autoridade Tributária e Aduaneira:
A regularização ocorrerá nos termos dos n.ºs 2 e 3 do artigo 30.º e n.º 3 do artigo 36.º da LGT e artigos 196.º e 199.º do CPPT, ou seja:
1–Regime legal aplicável aos Créditos Tributários Pagamento em regime prestacional, nos termos do artigo 196.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), ou seja:
a) As prestações são mensais, iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira até ao final do mês seguinte ao terminus do prazo previsto no n.º 5 do artigo 222.º-D do CIRE.
b) Número máximo de prestações:
i. Até ao máximo de 36 prestações, não podendo nenhuma delas ser inferior a 1 unidade de conta (atualmente € 102,00)
ii. Até 150 prestações mensais, não podendo nenhuma delas ser inferior a 10 unidades de conta (atualmente € 1.020,00);
A redução dos créditos fiscais só se dará, por juros de mora vencidos e vincendos, nos termos do Decreto-Lei n.º 73/99, de 16 de Março, aceitando-se as taxas que vierem a ser acordadas para a Segurança Social, face à renúncia dos demais credores e às garantias constituídas e/ou a constituir;
Não haverá lugar à redução de coimas e custas;
Não haverá lugar a qualquer moratória.
Para os efeitos previstos do n.º 1 do artigo 222.º-E do CIRE, determina-se, nos termos da sua parte final, que a extinção dos processos fiscais só se dará nos termos do CPPT.
A suspensão prevista naquele normativo cessa, conforme o que ocorrer primeiro, com o decurso das negociações ou do prazo previsto na lei para conclusão das mesmas (n.º 5 do artigo 222.º-D do CIRE).
-Todos os demais créditos:
A regularização da dívida aos demais Credores deverá ocorrer da forma que de seguida se discrimina:
1. Perdão integral de juros vencidos e vincendos;
2. Perdão de 60% do valor do capital em dívida;
3. Estabelecimento de um período de carência de pagamentos de 12 meses após o trânsito em julgado da decisão que vier a homologar o presente plano;
4. Pagamento de 40% do capital reclamado da seguinte em 240 prestações mensais iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira no último dia do 13º mês posterior ao do trânsito em julgado da decisão de homologação do presente plano, e as seguintes e igual dia dos meses subsequentes, a ratear pelos credores na proporção relativa e direta dos seus créditos.
3. Por Contrato de Cessão de Créditos, assinado em 20 de Dezembro de 2019, a Caixa Geral de Depósitos, S.A. cedeu os créditos que detinham sobre os devedores e todas as garantias acessórias a ele inerentes, à (…) e (…), SA.
4. Os devedores enviaram a 27.07.2023, carta registada à credora Hefesto STC HA, onde lhe deram conhecimento do presente PEAP e a convidaram para colaborar e participar nas negociações.
5. É a sociedade (…), STC, SA a atual detentora dos créditos que a (…) e (…), SA vem mencionar no seu requerimento desde 01.04.2020.
6. No processo executivo n.º 7186/16.0T8STB, a Sra. AE notificou a entidade patronal do devedor para proceder mensalmente à penhora do valor de € 533,02 no seu vencimento. Importa ainda considerar o seguinte, com fundamento em documentos juntos aos autos a fls. 189 a 195 e acordo das partes (artigos 607.º, n.º 4 e 663.º, n.º 2, do CPC, ex vi do disposto no artigo 17.º, n.º 1, do CIRE):
a) Para recuperação dos créditos reclamados pela credora (…) – STC, S.A., encontra-se em curso o processo executivo n.º 7186/16.0T8STB que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal – Juízo de Execução – J3, no qual foi penhorado o vencimento dos Devedores.
b) No mesmo processo foram penhorados um imóvel identificado como fracção “J” do prédio urbano descrito na CRP de Sines sob o n.º (…), e um direito de superfície do prédio urbano descrito na CRP de Sines sob o n.º (…), avaliados no total de € 107.663,75, bens estes em fase de venda no proc. n.º 5374/18.4T8STB, por efeito de penhora anterior.

2. Direito
O processo especial para acordo de pagamento (doravante PEAP) permite ao devedor, pessoa singular ou pessoa jurídica não titular de empresas, que comprovadamente se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, designadamente, por falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito, estabelecer negociações com os respetivos credores com vista ao estabelecimento e aprovação de um acordo de pagamento (artigos 222.º-A e 222.º-B do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, como o serão os demais artigos infra indicados sem menção de proveniência).
Iniciado o procedimento a requerimento do devedor e de, pelo menos, um dos credores, o juiz do tribunal competente para declarar a insolvência do devedor nomeia um administrador judicial provisório [222.º-C, n.ºs 1, 3 e 4], segue-se a reclamação de créditos (222.º-D, n.º 2), tendo em vista a formação do quórum deliberativo para votação (222.º-F), as negociações destinadas à elaboração de acordo de pagamento participadas, orientadas e fiscalizadas pelo administrador provisório (222.º-D, n.º 9), concluídas estas com a aprovação do plano, por maioria, qualquer interessado pode solicitar a não homologação do plano, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 215.º e 216.º, com as devidas adaptações e, por último, o acordo é submetido ao juiz que o homologa ou recusa a sua homologação, por aplicação, com as necessárias adaptações, das regras aplicáveis ao plano de insolvência ( artigo 222.º-F, n.ºs 2 e 5); vejamos, pois, estas.
A lei reconhece aos credores amplas liberdades de estipulação na definição do conteúdo do plano de insolvência, admitindo que o pagamento dos créditos sobre a insolvência, a liquidação da massa insolvente, a sua repartição pelos titulares daqueles créditos e pelo devedor depois de findo o processo de insolvência possa ser regulado em derrogação de normas do CIRE (artigo 192.º, n.º 1).
Em termos de conteúdo, o plano de insolvência é, no dizer de Menezes Leitão, um negócio atípico[1].
Mas há limites; “o plano só pode afectar por forma diversa a esfera jurídica dos interessados, ou interferir com direitos de terceiros, na medida em que tal seja expressamente autorizado neste título ou consentido pelos visados (artigo 192.º, n.º 3) e “obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas”, dependendo a validade do “tratamento mais desfavorável relativamente a outros credores em idêntica situação (…) do consentimento do credor afectado, o qual se considera tacitamente prestado em caso de voto favorável” (artigo 194.º, n.ºs 1 e 2).
O princípio é o da igualdade de tratamento dos credores na definição do plano de pagamento dos créditos sobre a insolvência e da sua repartição pelos respetivos titulares; as diferenciações entre credores só são admissíveis por razões objetivas e a validade do tratamento mais desfavorável relativamente a credores em idêntica situação só é admitido com o consentimento, expresso ou tácito, do credor afetado.

2.1. Se o acordo o acordo de pagamento não viola o princípio da igualdade entre os credores
O princípio da igualdade, tal como tem sido entendido na jurisprudência do Tribunal Constitucional, não proíbe (…) distinções – proíbe apenas diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, sem uma justificação razoável, segundo critérios objectivos e relevantes. (…) tolera, pois, (…) diferenciações no tratamento jurídico de situações que se afigurem, sob um ou mais pontos de vista, idênticas, desde que, por outro lado, apoiadas numa justificação ou fundamento razoável, sob um ponto de vista que possa ser considerado relevante.”[2]
No caso, o acordo prevê o pagamento integral, em prestações, do crédito da Autoridade Tributária e um perdão de 60% de capital e de 100% dos juros vencidos e vincendos relativamente aos créditos comuns, com pagamento destes créditos em 240 prestações mensais, a que acresce um período de 12 meses de carência [ponto 2 dos factos provados].
Ora, reconhece-se, sem dúvida, que o acordo com esta disciplina introduz uma diferenciação de tratamento entre o crédito da Autoridade Tributária e os créditos comuns, mas importa reconhecer, com igual facilidade, que tal diferenciação se mostra fundada em critérios objectivos e relevantes, aliás, decorrentes da lei.
2 - O crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária.
3 - O disposto no número anterior prevalece sobre qualquer legislação especial” [artigo 30.º da Lei Geral Tributária, aprovada pelo DL n.º 398/98, de 17/12].
(…) os princípios da igualdade e da legalidade tributária prevalecem hoje sobre qualquer legislação especial (artigo 30.º, n.º 3, da Lei Geral Tributária, resultante da alteração da Lei n.º 55-A/2010, de 31/12) o que significa que os créditos tributários não podem ser modificados pelo plano de revitalização e, caso o sejam, o plano é ineficaz em relação ao credor público.”[3]
Como anotam Carvalho Fernandes e João Labareda a “razão objectiva porventura mais clara que fundamenta a diferença de tratamento assenta na distinta classificação dos créditos (…) O que está vedado é, na falta de acordo dos lesados, sujeitar a regimes diferentes credores em circunstâncias idênticas.”[4]
Sujeitando a regimes diferentes os créditos comuns e os créditos da Autoridade Tributária, a diferenciação de tratamento mostra-se justificada segundo critérios objetivos relevantes e, assim, observado o princípio da igualdade dos credores.
No mais, o regime aprovado pelo acordo é igual para todos os créditos comuns: perdão de 60% de capital e de 100% dos juros vencidos e vincendos e o pagamento destes créditos em 240 prestações.
E sendo igual o critério proposto para o pagamento dos créditos comuns, ademais proporcional, o acordo confere igual posição, em matéria de direitos e deveres, a todos os credores e, por conseguinte, não viola – nem, por definição, é susceptível de violar, se bem vemos – o princípio da igualdade dos credores. Os resultados da concreta aplicação do acordo, evidenciados pela decisão recorrida, são consequência da composição dos créditos – só juros ou mais juros/menos capital – mas não encerram diferenciação no tratamento dos créditos; diferenciação existiriam se o critério de pagamento sofresse alterações pontuais em função da composição dos créditos, ou seja, previsse o pagamento de créditos de igual natureza – v.g. juros – em percentagens diferentes sem qualquer fundamento razoável ou justificação objetiva e racional.
O plano não viola, a nosso ver, o princípio da igualdade dos credores.
Os Recorrentes têm razão neste ponto, mas tal não significa que o acordo deva ser homologado.

2.2. Se o acordo de pagamento deve ser homologado
No decurso do prazo de votação, a credora (…), STC, SA, veio requerer a não homologação do acordo, alegando que a sua situação ao abrigo do acordo é previsivelmente menos favorável do que aquela que interviria na ausência de qualquer acordo de pagamento.
Admitindo a possibilidade de conhecer desta questão no recurso e notificados os Recorrentes para exercerem o contraditório vieram opor-se argumentando que o âmbito de conhecimento do tribunal de recurso “está limitado ao objecto do Recurso delimitado pelas conclusões dos recorrentes”, “não podendo o Tribunal conhecer de questão que delas não conste”, como é o caso, e que a credora “não recorreu da decisão, nem arguiu a nulidade da mesma”, não podendo o tribunal de recurso “substituir-se à mesma”.
Sem razão, a nosso ver.
Segundo o artigo 665.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, se o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha de elementos necessários.
É o caso.
A apelação procede e o tribunal recorrido não conheceu do fundamento de “não homologação” suscitado pela credora (…), STC, SA, por tal conhecimento se revelar prejudicado pela solução que deu ao litígio – a não homologação do acordo de pagamento por violação do principio da igualdade dos credores – importando agora conhecer da questão prejudicada, isto é, verificar se a situação da credora (…), STC, SA ao abrigo do acordo é previsivelmente menos favorável do que aquela que interviria na ausência de qualquer acordo.
Conhecendo.
Sob a epígrafe “não homologação a solicitação dos interessados”, dispõe o artigo 216.º:
1 - O juiz recusa ainda a homologação se tal lhe for solicitado pelo devedor, caso este não seja o proponente e tiver manifestado nos autos a sua oposição, anteriormente à aprovação do plano de insolvência, ou por algum credor ou sócio, associado ou membro do devedor cuja oposição haja sido comunicada nos mesmos termos, contanto que o requerente demonstre em termos plausíveis, em alternativa, que:
a) A sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, designadamente face à situação resultante de acordo já celebrado em procedimento extrajudicial de regularização de dívidas;
b) O plano proporciona a algum credor um valor económico superior ao montante nominal dos seus créditos sobre a insolvência, acrescido do valor das eventuais contribuições que ele deva prestar.”
A possibilidade conferida aos credores de alegarem que a sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que aquela em que ele estaria na ausência de plano permite confirmar, nas autorizadas palavras de Catarina Serra, “a soberania dos interesses dos credores (…) todo o plano de insolvência – de recuperação de empresa – pode sucumbir por causa de um credor, basta que ele alegue e prove o seu prejuízo nos termos referidos.”[5]
O interessado deve demonstrar em termos plausíveis o fundamento pelo qual requer a não homologação do plano, isto é, a lei não exige uma prova absoluta, “mas um mero juízo de plausibilidade ou probabilidade, que funcione como justificação para a decisão do juiz[6].
Demostra-se, no caso, que a credora (…), STC, SA., beneficia da penhora do vencimento dos devedores e da penhora de um bem imóvel e de um direito se superfície avaliados globalmente em € 107.663,75 [ponto 6 e alíneas a) e b) dos factos provados] e decorre da lei que o “exequente adquire pela penhora o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior” [artigo 822.º, n.º 1, do Código Civil].
Assim e embora não seja viável, reconhece-se, emitir um qualquer juízo de prognose sobre o resultado desta última penhora por se desconhecer o montante da quantia exequenda no proc. 5374/18.4T8STB, à ordem do qual existe penhora anterior do imóvel e do direito de superfície, a provada penhora do vencimento do devedor, no montante de € 533,02, é o que basta, a nosso ver, para concluir que a situação da credora (…), STC, SA, à luz do acordo de pagamento, é pior do que aquela que lhe resulta da ausência de qualquer acordo.
À credora (…), STC, SA foi reconhecido um crédito no montante de € 136.707,48, correspondendo € 64.462,56 a capital e € 72.244,92 a juros [ponto 1, alínea f) supra]; por aplicação dos critérios previstos no acordo de pagamento, o crédito será reduzido a € 25.785,02 [40% do capital e perdão total dos juros] quantia esta a pagar em 240 prestações e, assim, à razão de € 107,43 [25.785,02:240] mensais, a que acresce um ano de carência; ora, a referida credora, de acordo com a situação atual que demonstra, isto é, considerando apenas a penhora do vencimento do devedor, € 533,02 mensais e ainda que, ao invés do que é previsível, este vencimento não venha a beneficiar de qualquer actualização, obterá o pagamento integral do seu crédito em 257 meses [136.707,48:533,02 = 256,47], ou seja, em mais cinco meses [257 - (240+12)=5] do que o tempo necessário para, de acordo com o plano, receber menos de 19% [(25.785,02x100):136707,48] do crédito que lhe foi reconhecido.
Assim, e entrando apenas em consideração com a penhora do vencimento de um dos devedores, por quantificado, resulta suficientemente claro que a situação da credora (…), STC, SA, ao abrigo do acordo de pagamento é previsivelmente menos favorável – fica a receber cerca de 1/5 daquilo que já recebe durante o mesmo tempo, aproximadamente – do que aquela que lhe resulta na ausência de qualquer acordo.
A situação da credora (…), STC, ao abrigo do acordo de pagamento é, previsivelmente, menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer acordo e a referida credora manifestou nos autos a sua oposição anteriormente à sua aprovação; o acordo de pagamento não justifica homologação (artigo 216.º, ex vi do artigo 222.º-F, n.º 5).
Com fundamentos diferentes, mantem-se a decisão recorrida.
Improcede o recurso.

3. Custas
Vencidos no recurso, incumbe aos Recorrentes o pagamento das custas (artigo 527.º, nºs 1 e 2, do CPC).

Sumário (da responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC)
(…)

IV. Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, na improcedência do recurso, em manter a decisão recorrida com a consequente recusa de homologação do plano de pagamento.
Custas pelos Recorrentes.
Évora, 19/3/2024
Francisco Matos
Ana Margarida Leite
Vítor Sequinho dos Santos


__________________________________________________
[1] Direito da Insolvência, 4ª ed., pág. 285.
[2] Ac. Tribunal Constitucional n.º 187/01, de 2/5/2001, https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20010187.html
[3] Ac. do STJ de 17/4/2018, em www.dgsi.pt
[4] Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, anotado, 3ª ed., pág. 712.
[5] Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, pág. 321.
[6] Menezes Leitão, Direito da Insolvência, pág. 294.