Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
33/14.0YREVR
Relator: ANTÓNIO JOÃO LATAS
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DIVERSA
MEDIDA DE SEGURANÇA
Data do Acordão: 06/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: DEFERIDA COM EXCEPÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DOS FACTOS E CONSEQUENTE RELEVÂNCIA NA DURAÇÃO DA MEDIDA DE SEGURANÇA
Sumário: A coerência do sistema de cooperação judiciária internacional em matéria penal implica que a qualificação jurídica dos factos possa ser levada a cabo pelo Estado da execução com vista ao estabelecimento da duração máxima da medida de segurança de internamento a executar no nosso país, se o acórdão condenatório proferido no Estado da condenação não se pronunciou sobre a duração da medida e o nosso ordenamento jurídico faz depender a duração máxima da medida de segurança da qualificação jurídica dos factos.
Decisão Texto Integral:
Revisão de sentença estrangeira nº33.14.0YREVR

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório
1. O Ministério Público nesta Relação veio requerer a revisão de sentença penal estrangeira, com vista à transferência para Portugal do cidadão português A, (…), com residência habitual em Portugal, antes de detido, (…), em Aljezur, atualmente internado no Hospital de Execução de Medidas de Segurança de Berlim (3ª secção), Alemanha, para cumprir em Portugal, de onde é nacional, a medida de segurança de internamento que lhe foi imposta no âmbito do processo (515) 234 [s 375/12Ks (1/13), com os seguintes fundamentos:

No âmbito do processo (515) 234 [s 375/12Ks (1/13), o 15º Grande Juízo Criminal do Tribunal Regional de Berlim, Alemanha, por acórdão proferido em 12 de março de 2013, transitado em julgado a 20 de março de 2013, ordenou o internamento do supra identificado nacional português em hospital psiquiátrico, por haver cometido factos integradores de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos §§ 211º, 20º, 23º e 63º, e o seu estado patológico (esquizofrenia paranoico-alucinatória, de que padece pelo menos desde 2009) constituir um perigo para a sociedade, visto ser expetável a prática, por via dele, de outros factos ilícitos graves.

Consoante se extrai da documentação que a este requerimento vai junta, aquele acórdão transitou oportunamente em julgado e está em execução, encontrando-se aquele nacional português a cumprir a medida de segurança de internamento no Hospital de Execução de Medidas de Segurança de Berlim, numa primeira fase, desde 22 de outubro de 2012, a título de medida cautelar (mandado de internamento emitido pelo Tribunal Judicial de Tiergarten - 350 Gs 2492/12), e depois, desde 20 de março de 2013, por força do internamento que veio a ser ordenado, ao abrigo do disposto no § 63º do Código Penal alemão, pelo acórdão condenatório.

O condenado/internado deu o seu consentimento relativamente a uma sua transferência para Portugal, a fim de que aqui a medida de internamento possa vir a ser executada,

Transferência que, para o dito fim, veio a ser considerada lícita por decisão do 4º Senado Penal do Supremo Tribunal Regional de Berlim, datada de 26 de setembro de 2013.

A transferência do identificado nacional português para Portugal, de onde é nacional, aonde se encontra o seu núcleo familiar próximo e persistem em exclusivo as suas relações afetivas, permitir-lhe-á a promoção do processo de recuperação e, uma vez extinta aquela medida de internamento, gozar do apoio dos seus progenitores, com os quais projeta passar a viver, como ocorria antes dos factos que deram origem à decisão de internamento, tendo em vista uma melhor reinserção social.

Ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 122º da lei n.º 144/99, de 31/8, e do disposto no artigo 3º da Convenção do Conselho da Europa Relativa à Transferênda de Pessoas Condenadas, a Senhora Ministra da Justiça de Portugal, por despacho datado de 14 de fevereiro de 2014, considerou admissível o pedido de transferência para Portugal do predito cidadão português, para aqui continuar a cumprir a medida de internamento.

O presente requerimento vai instruído e documentado de acordo com as exigências legais, designadamente, as prescritas no artigo 3º da citada Convenção e as constantes no artigo 117º da lei n.º 144/99, ex vi artigo 122º, n.º 1, da mesma lei.

Este tribunal da Relação é o competente, de harmonia com o estatuído no artigo 123º, n.º 1, da já citada lei n. 144/99, em face da residência (Aljezur) do condenado anteriormente aos factos que determinaram o seu internamento, e dos seus progenitores, disponíveis para procederem ao acompanhamento do seu filho durante a execução da medida de internamento em Portugal e ao apoio que deles necessitar, uma vez extinta a mesma.
Nos termos expostos, atenta a referida Convenção Relativa à Transferência de Pessoas Condenadas e o disposto nos artigos 122º e 123º da lei n.º 144/99, de 31/8, requer-se que seja revisto e confirmado o acórdão proferido a 12 de março de 2013 pelo 15º Grande Juízo Criminal do Tribunal Regional de Berlim, Alemanha.

2. O requerimento foi instruído com os documentos pertinentes, nomeadamente cópias do acórdão condenatório proferido pelo 15º Grande Juízo Criminal do Tribunal Regional de Berlim, Alemanha, cópia da decisão do 4º Senado Penal do Supremo Tribunal Regional de Berlim, datada de 26 de setembro de 2013 que declarou ser lícita a transferência, declaração do arguido requerido sobre o local da sua residência após a extinção da medida de segurança e sobre os elementos de identificação e contactos dos seus pais, com quem irá viver, bem como Declaração de consentimento do mesmo requerido.

3. O requerido foi citado nos termos do art. 981º do C.P.Civil (atual) ex vi do art. 240º do CPP e não deduziu oposição.

4. Facultado o processo para alegações, vieram o MP e o requerido apresentá-las. O M.P. reafirma o essencial do seu pedido e o requerido suscitou as questões que podem ver-se do articulado que ora se reproduz integralmente:

« A, requerente nos autos supra identificados, tendo sido notificado para o efeito, vem, muito respeitosamente, apresentar as suas alegações, nos termos do art. 982.° do CPC, ex vi 240.°, aI. a), do CPP, nos termos e com os seguintes fundamentos:
1) A revisão e confirmação é um mecanismo instrumental de um processo de cooperação internacional, neste caso de transferência de condenado para Portugal, para aqui cumprir medida privativa da liberdade aplicada no estrangeiro;
2) Não se verificam os obstáculos à cooperação previstos nos arts. 6.° a 8.° da Lei 144/99, de 31.08;
3) A transferência de condenado e revisão e confirmação de sentença encontra-se prevista na Convenção Europeia sobre Transferência de Pessoas Condenadas (STE 112), da qual tanto a República Portuguesa e a República Federal da Alemanha são Estados-Parte[1], não tendo qualquer dos Estados apresentado declaração ou reserva excludente da aplicação da Convenção a medidas de segurança, bem como nos arts. 100.°,122.° e 123.° da Lei 144/99, de 31.08;
4) Encontra-se, desta forma, preenchido o pressuposto da aI. a), do n,? 1, do art. 237.°, do CPP;
5) Nos termos do disposto no art. 8.° da CRP e art. 3.°, n.? 1, da Lei 144/99, de 31.08, são directamente aplicáveis as disposições da Convenção;
Ora,
a. O requerente tem nacionalidade portuguesa;
b. Os factos pelos quais foi condenado são puníveis pela lei penal portuguesa;
c. A decisão que o condenou transitou em julgado em 20.03.2013;
d. A duração da medida de segurança de internamento que lhe foi aplicada é indeterminada;
e. O requerente requereu e consentiu na transferência;
f. A República Portuguesa e a República Federal da Alemanha aceitaram a sua transferência para Portugal, para aqui cumprir a medida de segurança que lhe foi aplicada;
6) Estão, assim, preenchidos os pressupostos previstos na Convenção;
7) A transferência deve ter lugar na sequência da decisão de revisão e confirmação (art, 9.°, n.º 1, al. a), da Convenção, e Declaração a) e b) apresentada por Portugal);
8) A revisão e confirmação pressupõe a admissibilidade da execução da decisão do Tribunal alemão em Portugal, nos termos dos arts. 95.0 e 96.0 da Lei 144/99, de 31.08;
9) Estão preenchidas as condições especiais de admissibilidade constantes do art. 96.°, n.º 1, da Lei 144/99, de 31.08;
10) Em particular, a execução da sentença em Portugal justifica-se pelo interesse da melhor reinserção social do condenado,
11) Pois este não tem qualquer ligação com a República Federal da Alemanha, país onde se encontrava ocasionalmente no momento da prática do crime;
12) O requerente residia habitualmente em Portugal à data da prática dos factos, conforme provado no acórdão condenatório;
13) É em Portugal, e mais concretamente em Aljezur, no Algarve, que o requerente tem o seu suporte familiar, constituído pelos seus pais, bem como o apoio dos seus amigos, que poderão ajudá-lo, quando esse momento chegar, a reinserir-se e viver em sociedade;
14) O requerente não tem quaisquer ligações com a República Federal da Alemanha, onde nunca residiu com carácter de permanência, nem fazia tenções de aí residir, quando se deslocou para esse Estado, no momento da prática do facto, o que também ficou dado como provado;
15) O requerente não domina a língua alemã, o que torna extremamente difícil a sua integração no sistema de execução de medidas de segurança alemão, bem como a realização de psicoterapia necessária ao seu tratamento,
16) Facto que foi, desde logo, reconhecido no acórdão que ora se junta, no qual foi considerado ser ideal o cumprimento da medida de segurança em Portugal;
17) O requerente tem em Portugal, apesar de todas as suas dificuldades ao longo da vida e que culminaram na aplicação da medida de segurança, adequado suporte familiar;
18) A distância da família e de quaisquer amigos que lhe possam prestar apoio ou visitá-lo no Hospital em que se encontra a cumprir a medida de segurança tem causado grande angústia ao requerente, o qual inclusivamente já tentou por termo à sua vida, e prejudica as finalidades da execução da medida de segurança e a sua recuperação e integração na sociedade;
19) A família, bem como alguns amigos residentes em Portugal, tem feito um enorme esforço para, à distância, apoiar o ora requerente; não obstante, não goza de uma situação económica que permita visitar o requerente, menos ainda com frequência;
20) Até à data, só foi possível à família visitar o requerente por uma vez, tendo a sua mãe, que não domina qualquer língua estrangeira, viajado para a Alemanha (acompanhada de um amigo do requerente), e isto após a tentativa de suicídio do requerente;
21) A família tem mantido contacto por telefone e correspondência com o ora requerente, sofrendo de enorme angústia pela sua situação e pela incapacidade de prestar um apoio mais próximo, directo e presencial, que potencie o tratamento necessário e a
recuperação desejada do requerente;
22) Do ponto de vista do seu tratamento, como sublinham os clínicos que o acompanham na Alemanha, é essencial a sua vinda para Portugal, onde estará inserido no seu meio e poderá beneficiar de assistência médica e psicológica prestada na sua língua;
23) Desta forma, é admissível e deve ser concedida a revisão e confirmação da sentença de 12.03.2013 do Landgericht Berlin que condenou o ora requerente em medida de segurança de internamento;
24) Ao proceder à revisão e confirmação, o Tribunal encontra-se vinculado à matéria de facto fixada na decisão proferida no Estado da condenação (art. 100.°, n,ºws 2, al. a), da Lei 144/99, de 31.08, e art. 11.0 da Convenção) .
25) O Tribunal não se encontra, porém, vinculado à qualificação jurídica aplicada no Estado da condenação, podendo (e devendo) enquadrar os factos à luz do seu direito, desde que tal enquadramento não resulte numa agravação da reacção penal, ou na conversão de uma pena privativa de liberdade em pena pecuniária (art. 100.0, n.º 2, als. b), e c), da lei 144/99, de 31.08);
26) Nestes termos, urge enquadrar juridicamente os factos constantes da decisão do Tribunal alemão nas disposições penais portuguesas, acto que não deve ser automático ou acrítico;
27) Em particular, é essencial enquadrar juridicamente os factos constantes da decisão do Tribunal alemão para concluir se os mesmos devem ser qualificados no âmbito do art. 131.0 do CP ou no do art.132.0 do CP, conjugados com o art. 22.° e 23.0 do CP;
28) Com efeito, na República Federal da Alemanha o requerente foi acusado pela prática de um crime de homicídio simples na forma tentada;
29) Foi, no entanto, condenado pelo Tribunal pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. § 211 do StGB[2];
30) O tribunal alemão enquadrou os factos no crime de homicídio qualificado por ter considerado que, no momento do crime, o requerente agiu com perfídia, aproveitando­se da falta de desconfiança e da vulnerabilidade da vítima;
31) E considerou ainda que o facto de o requerente, por doença, não ter capacidade para se aperceber que se estava a aproveitar de tal situação não impedia o enquadramento jurídico naquele tipo de crime;
32) Esta qualificante seria equivalente, do ponto de vista do tipo de ilícito, à al. i), parte final, do art. 132.°, n." 2, do CP;
33) Porém, é sabido que o tipo de homicídio qualificado na nossa ordem jurídica não é um mero tipo de ilícito agravado, tratando-se, antes, de um tipo de culpa agravado;
34) Não basta, na nossa ordem jurídica, a verificação externa, objetiva, do preenchimento de uma das alíneas constantes do n.º 2, do art. 132.°, bem como da existência de imputação subjectiva a título doloso daquele crime;
35) A verificação do circunstancialismo previsto nas referidas alíneas apenas permite indicar a prática de crime de homicídio qualificado;
36) Para condenar o arguido por crime de homicídio qualificado, é necessário provar que este agiu com "especial censurabilidade e perversidade", ou seja, com um grau de culpa especialmente censurável;
37) Ora, tal exigência é incompatível, por natureza, com o estado de inimputabilidade por anomalia psíquica em que o requerente se encontrava, conforme a decisão do Tribunal alemão, porquanto tal estado impede o requerente de tomar consciência da ilicitude e de conformar a sua conduta com o direito;
38) A aplicação do tipo de homicídio qualificado previsto no Código Penal português é, pois, incompatível com a situação de inimputabilidade por anomalia psíquica;
39) Neste sentido já se pronunciou o nosso Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 20.11.2002[3]
“O crime prevenido no art. 132 do CP não é senão "uma forma agravada de homicídio simples em consequência de uma forma de culpa também agravada", como se escreve no Ac. deste STJ de 12.4.2000 (proc. 72/2000-3ª), assumindo particular e fundamental relevância e significado a própria culpa do próprio arguido, porque reveladora de uma especial perversidade e perigosidade, e desse modo alterando e qualificando o crime de homicídio pelo maior desvalor da sua própria atitude e o acentuado da sua culpa.
E porque assim, é óbvio que não se pode falar no art. 132 do CP como consagrando um quadro típico de ilicitude. O ilícito típico do crime de homicídio é e encontra-se fixado e prevenido no art. 131 do CP, limitando-se o art. 132 a uma sinalização exemplificativa e situações enformadoras de u[4]ma culpa agravada e não a consignar e a consagrar um facto ilícito típico.
Assim, no caso em apreço, e seguindo de perto o douto Acórdão de 12.4.2000, "sendo o inimputável incapaz de culpa, óbvio se torna não poder, quanto a ele, valer como "facto ilícito típico” (art. 91, nº 1 do CP), pressuposto da medida de segurança de internamento, o homicídio qualificado do art. 132 do C. Penal, por aqui não estar previsto um tipo de ilícito, seja no seu todo ou em qualquer das suas alíneas, mas tão somente um tipo especial agravado de culpa que, por sua própria natureza, não pode ser atribuída ao inimputável".
Pelo que, e consequentemente, "como facto ilícito típico", pressuposto da medida de segurança de internamento, terá de se equacionar o crime de homicídio simples prevenido no art. 131 do CP., esse, sim, um facto ilícito típico, como aliás expressamente se exara no mencionado Acórdão (vide ainda Ac. STJ de 31.10.90, aí citado), com os limites do internamento a ser definidos, no caso em apreço, pelas disposições conjugadas dos arts. 91, nºs 1 e 2 e 92 do C. Penal, e dos arts. 131, com referência aos arts. 22, 23 e 73, nº 1, a), do mesmo diploma. O que, natural e consequentemente, não deixaria de determinar a fixação do internamento por um período mínimo de 3 anos, findando tal medida quando cessar o estado de perigosidade criminal, sem que, contudo, possa exceder os 10 anos e 8 meses."
40) No caso em concreto, os factos provados evidenciam a impossibilidade de sustentar, na situação do requerente, a possibilidade de culpa, menos ainda culpa agravada, porquanto se provou que:
a. "o arguido sofre, desde 2006 ou, o mais tardar desde 2009, de uma esquizofrenia paranóico-alucinatória (lCD-10 Nr. F 20.0). Não persistem dúvidas sobre o diagnóstico, pois esta doença foi constatada ao longo dos últimos quatro anos[5].
b. "A doença que persistia assim sem qualquer sombra de dúvida à altura do crime, foi o factor que regeu o ato, pois A encontrava-se sob a influência de um agudo surto psicótico."
c. A esquizofrenia paranóico-alucinatória que agiu assim de forma aguda aquando do crime (síc), constitui uma perturbação psíquica patológica na acepção §20.º do Código Penal, que eliminou certamente a capacidade de o arguido se dar conta da iniquidade do seu ato. No contexto do seu sistema de ideias delirantes, o impulso dado pelas vozes imperativas para atacar B no qual o arguido vira o diabo, constituiu um fator a que não pôde resistir.:[6]"
41) Por este motivo deverão V. Exas. rever e confirmar a medida de segurança aplicada ao requerente, aplicando a medida de internamento prevista no art. 91.° do CP, por referência ao facto ilícito típico previsto no art. 131.° do CP, em conjugação com os arts. 22.0 e 23.0 do mesmo diploma,
42) E, como tal, medida que deve cessar quando cesse o estado de perigosidade criminal, sem nunca ultrapassar o limite de duração de 10 anos e 8 meses, nos termos do art. 92.°, n.º 1 e 2, do CP;
43) Deverá ainda ser ordenado o cumprimento de tal medida de internamento no estabelecimento de execução de medida de segurança "mais próximo do local da residência ou da última residência em Portugal do condenado", nos termos do art. 102.°, n.? 1, do CP,
44) Ou seja, tal medida de internamento, de execução de medida de segurança, deverá ser cumprida no estabelecimento mais próximo de Aljezur, no Hospital Júlio de Matos, em Lisboa;
45) O internamento do ora requerente em instituição próxima da sua residência reveste extrema importância para o seu tratamento, pois só assim poderá a sua família prestar-lhe o necessário apoio e suporte familiar;
46) Com efeito, o cumprimento da medida de segurança na Alemanha tem sido particularmente penoso para o ora requerente por implicar um total afastamento do meio familiar e social do requerente;
47) Tanto que apenas foi visitado uma vez pela família, que não tem possibilidades para o visitar naquele país, dada a distância, os custos associados e a barreira linguística existente, o que dificulta o sucesso do seu tratamento;
48) Vindo para Portugal, será essencial para o sucesso do seu tratamento que o requerente possa ficar no estabelecimento mais próximo de casa que, ainda assim, está situado a cerca de 300km de distância da sua residência familiar.
Termos em que, deve o acórdão do Landgericht de Berlim ser revisto, condenando-se o requerente, ao abrigo do CP português, em medida de segurança pela prática de um crime de homicídio simples na forma tentada, nos termos do disposto nos arts. 20.°, 22.°, 23.°, 91.°, 131.° do CP, e ordenando o cumprimento da medida no estabelecimento de cura e tratamento mais próximo da sua residência, no Hospital Júlio de Matos, em Lisboa, nos termos do art. 102.° da Lei 144/99, de 31.08. »

5. Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.

II. Fundamentação
1. Nos presentes autos está em causa a revisão e confirmação de sentença estrangeira na sequência de pedido de transferência para Portugal de cidadão português que foi condenado pelo Tribunal Regional de Berlim a cumprir medida de internamento em hospital psiquiátrico, nos termos dos artigos 20º e 63º C. Penal Alemão, por ter praticado nesse país factos integradores de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos §§ 211º e 23º do mesmo Diploma legal, quando se encontrava em estado de inimputabilidade devido à sua patologia (esquizofrenia paranoico-alucinatória, de que padece pelo menos desde 2009).
Este tribunal da Relação é o competente e o MP tem legitimidade para o pedido de revisão e confirmação de sentença penal estrangeira - artigos 235.º e 236.º do CPP.
2. Aplicação do direito ao caso concreto
2.1. O pedido de transferência para Portugal de nacional português condenado por tribunal alemão rege-se em primeira linha pela Convenção Europeia sobre Transferência de Pessoas Condenadas de que são partes tanto a República Portuguesa[7] como a República Federal da Alemanha, cujas disposições são diretamente aplicáveis e prevalecem mesmo sobre as normas de direito interno, quando incompatíveis com estas, nos termos do art. 8º da CRP e do art. 3º nº1 da Lei de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal (LCJIMP), aprovada pela Lei nº 144/99 de 31/8, alterada pelas Leis nº 104/2001 de 25/8, 48/2003 de 22/8 e 48/2007 de 29/8.
No caso concreto mostram-se preenchidas as condições de transferência estabelecidas no art. 3º da Convenção, pois o requerido tem nacionalidade portuguesa, a sentença condenatória é definitiva, visto que transitou em julgado em 20.03.2013, a duração da medida de segurança de internamento que lhe foi aplicada é indeterminada, o arguido requerido consentiu na transferência, tanto o Estado da condenação como Portugal, Estado da Execução, estão de acordo quanto à transferência e os factos pelos quais o requerido foi condenado são igualmente puníveis pela lei penal portuguesa, pois aqueles mesmos factos, que a seguir se transcrevem, integram, pelo menos, os elementos constitutivos de um crime de homicídio tentado previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 131º, 22º e 23º, do Código Penal Português.
Os factos provados são os seguintes:
- 1. O arguido que, à altura do ato contava 32 anos de idade, tem a nacionalidade portuguesa e viveu ultimamente em Portugal. A mãe foi de Angola para Portugal, aproximadamente pela altura em que o mesmo nasceu, o pai seguiu a família devido à exacerbação da guerra em Angola nos anos de 1982/1983. Entre o pai, um homem que gozava a vida, e a mãe, que levava uma vida mais tradicional e tolerante, ocorreram frequentes desavenças.
- A foi criado na pequena cidade de Aljezur, tendo aí frequentado o jardim de infância público, a escola primária e a secundária, onde recebeu a recomendação de seguir para o liceu. Todavia, como este ficava a 30 quilómetros de distância de Aljezur, em Lagos, o arguido era obrigado a levantar-se muito cedo, levando muito tempo a chegar à escola. Começou então a faltar frequentemente às aulas, deixando definitivamente de frequentar o liceu em 1997/1998.
- Trabalhou em seguida na construção civil, consumia marijuana e cocaína em quantidades cada vez maiores e ocupou, juntamente com uns amigos, uma habitação chamada Casa Velha. Durante este tempo, A foi caindo visivelmente e cada vez mais num estado de abandono e desleixo. Para conforto emocional, e sobretudo para apoio financeiro, procurava seus pais, cuja preocupação e desespero era tão grande que, a título de exemplo, por ocasião de uma visita sua, o pai esvaziou os pneus da mota de seu filho para o impedir de se ir embora.
- Mas só no ano de 2001 a família conseguiu tirar o arguido do ambiente nefasto em que vivia. Uma tia, que se encontrava de visita, reconheceu o estado do sobrinho e levou-o consigo para a Suíça. Aí, em breve o seu estado apresentou melhoras, tendo o arguido aprendido então rapidamente a falar francês e absolvido com grande êxito uma formação para jardineiro paisagista. No ano de 2006 conheceu uma francesa na Suíça, com a qual manteve um relacionamento durante três anos. A separação ocorrida no ano de 2009 foi muito problemática para A.
- Durante umas férias passadas em Portugal no ano de 2010, apaixonou-se por uma turista alemã, visitou-a na Alemanha e juntos fizeram planos para o futuro. Quando se encontrava na Suíça para regular diversos assuntos, a namorada acabou com a relação por SMS. A notícia abalou deveras A que não se conformou com a separação e viajou novamente para a Alemanha, a fim de reconquistar a namorada, o que todavia não logrou.
- O arguido permaneceu ainda por algum tempo na Suíça, mas regressou pouco depois a Aljezur onde montou nos últimos anos um centro de jardinagem e comprou uma carrinha Volkswagen para transportar os instrumentos de trabalho. Ultimamente auferia cerca de 1000 euros mensais. O arguido não tem cadastro na Alemanha.
- Já durante a relação com a francesa nos anos de 2006 a 2009, A notou uma alteração das suas percepções e vivências. Contudo, escondeu os sintomas para não pôr a relação em perigo. O mais tardar a separação ocorrida em 2009, causou no arguido uma angústia depressiva por receio de falhar, assim como o surto de uma doença psicótica.
- Visto que, após a separação, o seu estado piorou rapidamente, A deu entrada de urgência numa clínica da Suíça, onde permaneceu durante cerca de um mês e, em seguida, dado que apenas um tratamento sintomático não se revelou ser suficiente, recebeu tratamento numa clínica de assistência diária com o nome de "Bel Air" durante aproximadamente três meses. Ao longo deste período, o arguido já não estava à altura de limitar estímulos interiores e exteriores, nem de orientar a sua atenção e passou a desenvolver um mundo fantasiado a fim de conseguir ordenar as suas vivências. A sensação percebida nitidamente de que algo se havia descontrolado, provocou reações de pânico no arguido. Só após o eficaz tratamento nas clínicas mencionadas, A conseguiu voltar em 2009 à sua vida quotidiana, ainda que estivesse diminuído na sua capacidade de suportar adversidades.
- Após a separação da sua namorada alemã no ano de 2010, passaram a ocorrer ataques de pânico cada vez mais frequentes, como uma vez num centro comercial, onde numa escada rolante foi dominado por um imenso medo de ser destruído. Durante este período, o arguido, para quem o trabalho era também extremamente desgastante, tentou mitigar o seu estado, tomando benzodiazepinas e sedativos.
- O regresso definitivo a Aljezur significou para A uma procura da sua vida anterior e da sua identidade original, mas não trouxe consigo qualquer melhoria do seu estado. Pelo contrário, sentia-se cada vez mais inseguro e sofria de tais ataques de pânico que tentou finalmente suicidar-se.
- Foi assim internado na clínica psiquiátrica de Portimão onde lhe foi diagnosticado um estado delusório relativamente ao término da relação, assim como uma doença psicótica. Nessa altura, A ouvia vozes e ruídos e tinha a sensação de que as outras pessoas podiam ler os seus pensamentos e de que falavam sobre si.
- Depois de sair da clínica, conseguiu voltar ao dia-a-dia, montando um centro de jardinagem e comprando uma carrinha Volkswagen para transportar os instrumentos de trabalho. Contudo, o arguido sofria constantemente de ataques de pânico, que considerava serem apenas episódios, pelo que tomava apenas ansiolíticos e não medicamentos anti-psicóticos, não reconhecendo assim o perigo de uma (nova) descompensação.
Foi com esta situação que A e o seu amigo B se decidiram a viajar juntos para a Alemanha na carrinha Volkswagen
Acontecimentos do dia anterior
- A conhecia B já desde a infância passada em Aljezur. Há alguns anos que eram amigos íntimos. No dia 8 de julho de 2012 puseram-se a caminho da Alemanha na carrinha Volkswagen do arguido, fazendo paragens em Espanha e França. A 12 de julho de 2012 chegaram ao Electro-Festival de Música em Rhinow perto de Berlim, onde o arguido comprou LSD que pretendia trocar mais tarde por outras drogas. A 17 de julho de 2012 chegaram ambos finalmente a Berlim.
- Aí, A mostrou ao amigo muitas partes da cidade, do palácio de Charlottenburg até ao lago Müggel. De noite dormiam na parte de trás da carrinha. Na sexta-feira à noite, dia 20 de julho de 2012, B conheceu uma moça numa discoteca e encontrou-se com ela no dia seguinte. O arguido passou assim este dia sozinho. À noite, A foi para um bar até cerca das 22h, onde bebeu cerveja, mas não tomou quaisquer drogas. Contudo, antes de se dirigir a uma discoteca, consumiu algo do LSD que tinha comprado.
No dia do crime, a 22 de julho de 2012, A só voltou para a carrinha quando o dia já clareava. Perguntou a B se o queria acompanhar a uma feira, mas este recusou, ficou no veículo e continuou a dormir.
Decurso do crime
- Cerca das 15h, quando o arguido voltou da feira, B levantou-se e saiu da carrinha, pois queria ir agora à feira. A estava a preparar a cama para se deitar quando, de repente, começou a ver tudo vermelho, sentiu a cabeça "quase a rebentar" e viu o diabo dirigindo­se para si O arguido, atacado por um surto psicótico agudo, ouviu uma voz que lhe dizia que B era o diabo e que tinha de intentar qualquer coisa contra o mesmo. Na mesa da carrinha estava um canivete suíço (que a polícia apreendeu no local do crime e que o arguido e a testemunha C reconheceram na audiência principal como sendo o instrumento do crime) com um cabo vermelho e um botão para desbloquear a lâmina da faca de oito centímetros de comprimento. As vozes, contra as quais A, segundo a sua impressão, não se conseguia defender, ordenaram-lhe que pegasse na faca e atacasse com ela o diabo.
O- arguido obedeceu-lhes. Saltou da carrinha e deu três facadas no lado direito das costas de B. Este não contava de forma alguma com o ataque, pois estava de costas para o veículo para se pôr a caminho da feira e porque o arguido era um grande amigo seu. Ao princípio, B pensou que o arguido "apenas" lhe estava a dar murros nas costas. Só depois do segundo ou terceiro golpe é que notou que algo lhe penetrava nas costas e que alguma coisa escorria. Quando compreendeu que estava a ser esfaqueado, tentou agarrar a faca e feriu-se no polegar direito. Não tinha qualquer explicação para o ato do seu amigo, pois não tinha havido qualquer discussão, nem outro motivo para o que estava a acontecer. O que lhe pareceu foi que o arguido "tinha enlouquecido" .
Durante a luta, A e B caíram no chão, entre a carrinha e o veículo estacionado ao lado. Aí, o arguido esfaqueou duas vezes a vítima no lado esquerdo das costas, estendendo o braço por cima do ombro da mesma, e por fim deu-lhe uma facada tão forte na ilharga direita que a lâmina penetrou no corpo até ao cabo da faca.
- Pouco antes de ambos os homens terem caído no chão, o casal D e C estacionou o seu automóvel a cerca de dois metros de distância do local do crime. C instou o arguido a parar com os ataques. Como não se conseguisse fazer ouvir, após curta hesitação, C aproximou-se dos lutadores e "descascou" a faca da mão de A, colocando-a em seguida no tejadilho da carrinha e assim, fora do alcance do arguido. Foi aí que a polícia encontrou mais tarde a faca.
- Depois de lhe ter sido tirada a faca, o arguido, que estava agora satisfeito consigo mesmo pois tinha atacado o diabo, ficou de pé no passeio sem dizer palavra e quase sem se mexer. B recebeu entretanto cuidados de pessoas que iam a passar e, em especial, de D que lhe administrou os primeiros socorros com uma ligadura, até a polícia e a ambulância chegarem pouco depois ao local. A, cujos pés e mãos estavam ensanguentados, deixou-se prender sem oferecer qualquer resistência.
- Na totalidade, B sofreu cinco ferimentos provocados por facadas nas costas, dois deles por baixo da omoplata esquerda e três por baixo da direita, além disso uma ferida profunda na ilharga direita. Todos estes ferimentos tinham um comprimento entre um centímetro e um centímetro e meio. Sofreu ainda um corte no polegar em consequência de uma típica reação de defesa. As facadas no lado direito das costas causaram um ligeiro pneumotórax e um pronunciado enfisema dos tecidos moles, tendo a facada dada na parte direita mais baixa atingido ainda os rins, o que foi comprovado especialmente por aparecimento de sangue na urina. B esteve internado nove dias. Encontra-se curado sem consequências todos os condicionamentos provocados pela ocorrência, inclusive a lesão dos rins que poderia ter potencialmente causado complicações.
- Para provocar uma lesão nos pulmões, perfurando a musculatura e a camada dos tecidos moles, como aconteceu, a lâmina da faca, no caso de um corte a direito, teria de penetrar no corpo, no mínimo, quatro a cinco centímetros, no caso de um corte tangencial, a penetração teria de ser ainda mais profunda. Os efeitos das facadas constituem potencialmente um risco de morte, dado que o corte na ilharga poderia ter atingido os intestinos e a facada no peito poderia ter provocado uma grave lesão dos pulmões; além disso, no caso de a lâmina da faca ter penetrado completamente no corpo, teria sido possível acontecer uma lesão da aorta e do coração. Contudo, dado que a perda de sangue foi limitada, não houve perigo de vida concreto, o que mais tarde se comprovou igualmente, dado que durante o tratamento da lesão pulmonar, não foi necessário proceder-se a uma drenagem do tórax e a lesão renal, que constituía potencialmente um risco de morte, pôde ser tratada simplesmente de forma conservadora mediante colocação de uma tala na uretra.
Decurso do internamento após o crime
- Após a detenção provisória levada a cabo no dia da ocorrência, o Tribunal Judicial de Tiergarten emitiu a 23 de julho de 2012 um mandado de detenção contra o arguido (381 Gs 215/12). Este mandado foi revogado após apresentação de um parecer provisório elaborado pelo perito Dr. Kreutzberg e substituído por um mandado de internamento do Tribunal Judicial de Tiergarten, com data de 22 de outubro de 2012 (350 Gs 2492/12), por força do qual o arguido se encontra desde então no hospital para execução de medidas cautelares.
- Foi aí tratado com medicamentos antidepressivos e com o antipsicótico Zyprex, o que promoveu a sua disponibilidade para o diálogo e um considerável abrandamento dos sintomas. Ao mesmo tempo, o comportamento do arguido revelou-se como sendo "moroso" e retardado. De início, não se recordava do que tinha realmente acontecido no dia do crime, mas não contestava os factos, pelo contrário, notava-se que o arguido se sentia consternado e desesperado em face do ato que lhe era imputado. Não havia dúvidas de que A lutava por se recordar do que havia acontecido.

2.2. - Mostram-se igualmente verificadas as condições gerais para a efetivação daquela modalidade de cooperação judiciária previstas nos artigos 6º, 7º e 8º da Lei de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal (LCJIMP), aprovada pela Lei nº 144/99 de 31/8, alterada pelas Leis nº 104/2001 de 25/8, 48/2003 de 22/8 e 48/2007 de 29/8.
O nº 6 da LCJIMP estabelece os requisitos gerais negativos da cooperação judiciária internacional em matéria penal, de que se destaca a título de exemplo o desrespeito das exigências da CEDH ou ouros instrumentos internacionais relevantes, por parte do processo penal onde teve lugar a condenação do requerido, resultando claramente dos autos que não se verifica no caso presente nenhuma das situações enumerados no preceito.
O art. 7º prevê como casos de recusa relativa à natureza da infração, ser a infração de natureza política ou constituir crime que não seja simultaneamente previsto na lei penal, comum, o que, manifestamente não se verifica no caso presente.
O art. 8º da mesma Lei 144/99 considera inadmissível a cooperação nas situações de extinção do procedimento penal nele previstas, sem que se verifique qualquer delas no caso presente.

2.3. Há que verificar ainda se estão preenchidos os requisitos e condições especiais de confirmação da sentença penal estrangeira previstos no art 237º do CPP e no art. 96º da citada Lei 144/99 (LCLIMP).
Quanto aos primeiros, concluímos já que a sentença a rever pode ter força executiva em Portugal por força da Convenção Europeia sobre Transferência de Pessoas Condenadas e que os factos que motivaram a condenação do requerido são também puníveis pela lei penal portuguesa, sendo certo que a medida de segurança de internamento não só não é proibida pela lei portuguesa como é mesmo prevista e regulada em termos muito semelhantes aos previstos no C. Penal Alemão. Não está em causa crime contra a segurança do Estado, resulta dos autos que o arguido foi assistido por defensor (cfr fls 29) e nada permite concluir pela falta de intérprete, pois o requerido não só não a invoca como afirma mesmo encontrarem-se preenchidos os requisitos de que depende a confirmação da sentença em alegações devidamente estruturadas e fundamentadas.
No que concerne às condições especiais de admissibilidade da confirmação de sentença penal estrangeira previstas no art. 96º da citada Lei 144/99 (LCLIMP), encontram-se as mesmas igualmente verificadas.
Em face dos elementos trazidos ao processo, os tribunais alemães eram competentes para conhecer do crime, o julgamento não teve lugar na ausência do arguido, a sentença não contem disposições contrárias aos princípios fundamentais do ordenamento jurídico português, o facto não foi objeto de procedimento penal em Portugal, o condenado é português e o facto é punível pela lei portuguesa, como vimos. O reconhecimento, por parte do Estado da condenação, da extinção da responsabilidade penal do condenado com o integral cumprimento da sentença em Portugal consta expressamente de fls 50 para além de resultar do art. 8º da Convenção. A duração da sanção a cumprir não é inferior a um ano e é mesmo indeterminada e o requerido deu o seu consentimento, como vimos.
Concluímos ainda que a execução da sentença se justifica pelo interesse da melhor reinserção social do condenado, conforme previsto na al. g) do nº1 do art. 96º pois, conforme se refere nas alegações do requerido:
- Este residia habitualmente em Portugal à data da prática dos factos, conforme provado no acórdão condenatório;
- É em Portugal, e mais concretamente em Aljezur, no Algarve, que o requerente tem o seu suporte familiar, constituído pelos seus pais, bem como o apoio dos seus amigos, que poderão ajudá-lo, quando esse momento chegar, a reinserir-se e viver em sociedade;
- Não tem quaisquer ligações com a República Federal da Alemanha, onde nunca residiu com carácter de permanência, nem fazia tenções de aí residir, quando se deslocou para esse Estado, no momento da prática do facto, o que também ficou dado como provado;
- Não domina a língua alemã, o que torna extremamente difícil a sua integração no sistema de execução de medidas de segurança alemão, bem como a realização de psicoterapia necessária ao seu tratamento,
- Foi, desde logo, reconhecido no acórdão condenatório ser ideal o cumprimento da medida de segurança em Portugal;
- O requerido tem em Portugal, apesar de todas as suas dificuldades ao longo da vida e que culminaram na aplicação da medida de segurança, adequado suporte familiar.
Não resulta igualmente dos autos que tenha ocorrido alguma das situações que nos termos do art. 980º do C.P.Civil (por remissão expressa do nº2 do art. 96º da Lei 144/99) impediriam a confirmação, sendo certo que a maioria delas foi já considerada supra.

2.4.Nada obstando à pretendida revisão e confirmação do acórdão condenatório proferido pelo tribunal alemão, impõe-se decidir agora de questão suscitada nas alegações do requerido respeitante aos termos em que deve ter lugar esta mesma confirmação.
Está em causa saber se, como pretende o requerido, o tribunal de revisão deve proceder ao enquadramento jurídico-penal da factualidade típica julgada provada no acórdão condenatório de acordo com a lei penal portuguesa, ou se aquele acórdão deve ser confirmado nos termos em que decidiu aquela mesma qualificação jurídico-penal.
Como pode ver-se das suas alegações, o requerido entende que à luz do código penal português a factualidade provada não permitiria a integração dos factos no tipo de homicídio qualificado tentado, contrariamente ao decidido pelo tribunal alemão, mas apenas no tipo fundamental de homicídio simples, na forma tentada, o que se reflete no limite máximo do internamento, que será de 10 anos e 8 meses no caso de homicídio simples tentado e de 16 anos e 8 meses caso de homicídio qualificado tentado.
Vejamos.
2.4.1. – Conforme pode ver-se da resolução da A/R nº 8/93 de 20 de abril que aprovou, para ratificação, a Convenção relativa à Transferência de Pessoas Condenadas, Portugal formulou diversas declarações, entre as quais a prevista na respetiva alínea a) que é do seguinte teor:
- “ Portugal utilizará o processo previsto na al. a) do nº1 do art. 9º, nos casos em que seja o Estado de execução”.
Por sua vez, o art. 9º da Convenção, que regula os efeitos da transferência para o Estado da execução, prevê nas alíneas a) e b) do seu nº 1 duas modalidades ou processos alternativos de dar execução àqueles mesmos efeitos. Na al. b) a designada “Conversão da condenação” e na alínea a) o processo de “Continuação da execução” pelo qual Portugal optou, como vimos, segundo o qual as autoridades do Estado de execução devem “Continuar a execução da condenação imediatamente ou com base numa decisão judicial ou administrativa, nas condições referidas no art. 10º …”
Com especial interesse para a questão que nos ocupa, determina o nº1 daquele art. 10º que “No caso de continuação da continuação da execução, o Estado da execução fica vinculado pela natureza jurídica e pela duração da sanção, tal como resultam da condenação”.
Significa isto que, em princípio, a natureza e medida da sanção são impostas aos tribunais portugueses de execução, pelo que não poderão os mesmos proceder a diferente qualificação jurídica dos factos. Se da nova qualificação resultasse a mesma sanção o procedimento seria inútil. Se dela resultasse medida diferente não seria a mesma admissível por desrespeitar a regra da vinculação do Estado de execução à duração da sanção fixada pelo Estado da condenação.
Todavia, em situações como a presente, não resulta da modificação da qualificação jurídica dos factos alteração da duração de sanção aplicada no Estado da condenação. Por um lado, o acórdão condenatório limita-se a qualificar juridicamente os factos, sem proceder a eventual determinação da medida concreta da sanção ou indicar um limite temporal para a medida de segurança de internamento aplicada. Por outro, não resulta das normas legais traduzidas nos autos (cfr fls 46 - 50) que o ordenamento jurídico alemão estabeleça um limite máximo específico para o internamento em função da moldura legal aplicável ao crime ou de outro fatort.
É face à lei penal portuguesa que aquela qualificação jurídica determina indiretamente a duração (máxima) do internamento, pois o art. 92º nº2 do código penal português – diploma legal que não prevê a determinação de medida concreta para a medida de segurança - faz coincidir o limite máximo, regra, da medida de segurança de internamento com o limite máximo da pena aplicável ao crime cometido pelo inimputável.
Assim sendo, afigura-se-nos que a coerência do sistema de cooperação judiciária internacional em matéria penal implica que a qualificação jurídica dos factos possa ser levada a cabo pelo Estado da execução com vista ao estabelecimento da duração máxima da medida de segurança de internamento a executar no nosso país, uma vez que, como referido, o acórdão condenatório proferido no Estado da condenação não se pronunciou sobre a duração da medida e é o nosso ordenamento jurídico que faz depender a duração máxima da medida de segurança da qualificação jurídica dos factos, sendo certo que também a execução da medida de internamento é feita de acordo com a lei portuguesa – cfr art. 101 nº1 da Lei 144/99.
Não se mostra assim violada a regra da vinculação do Estado da execução à duração da sanção aplicada no Estado da condenação acolhida no no citado nº1 do art. 10º da Convenção, tanto mais que, conforme resulta do exposto, não está em causa operação judicial de determinação da sanção que pudesse sobrepor-se a operação similar levada a cabo no Estado da condenação.
Em todo o caso, sempre se diga que a regra da vinculação do Estado da execução à duração da sanção aplicada no Estado da condenação não tem caráter absoluto. Se a natureza ou duração da sanção tal como resultam da condenação, forem incompatíveis com a legislação do Estado da execução ou se a legislação deste Estado o exigir, o nº2 daquele mesmo art. 10º admite que o Estado de execução adapte aquela sanção à pena ou medida prevista na sua legislação para infrações da mesma natureza, limitando-se o nº 2 do art. 10º da Convenção a proibir que o Estado de execução possa agravar, pela sua natureza ou duração, a sanção imposta no Estado da condenação ou exceder o máximo previsto pela lei do Estado da execução.
Também o art. 237º nº3 do C.P.Penal português prevê regra idêntica, ao determinar que os tribunais portugueses reduzam até ao limite adequado pena aplicada pelo tribunal estrangeiro em medida superior ao máximo legal admissível segundo a lei portuguesa.
Ora, a adaptação à legislação portuguesa levada a cabo no caso sub judice com a diferente qualificação jurídica dos factos, não conduz à agravação da sanção (vd ainda art. 100º nº2 c) da Lei 144/99), antes pelo contrário, uma vez que o limite máximo, regra, do internamento resultante da qualificação jurídica dos factos de acordo com a lei portuguesa – como veremos - é de 10 anos e 8 meses para o crime de homicídio simples na forma tentada, sendo tal limite de 16 anos e 8 meses (de acordo com a lei portuguesa) se considerássemos a qualificação jurídica feita pelo tribunal da condenação ( homicídio qualificado na forma tentada).
2.4.2. Posto isto, impõe-se apenas afirmar expressamente ser igualmente nosso entendimento que, tal como defende o requerido, a condenação pelo crime de homicídio qualificado p. e p. pelo art. 132º do C.Penal em função da "especial censurabilidade e perversidade" indiciada pelo preenchimento das diversas alíneas do seu nº2, é incompatível com a prática do facto em estado de inimputabilidade por anomalia psíquica, porquanto tal estado implica incapacidade de culpa do agente e o efeito qualificativo daquelas alíneas depende essencialmente da culpa agravada do agente do crime.
Assim sendo, apesar de a factualidade julgada provada pelo tribunal da condenação ser eventualmente subsumível à alínea i) do nº2 do art. 132º do C.Penal, a circunstância de o arguido ter sido julgado inimputável em razão de anomalia psíquica implica o não preenchimento da cláusula geral acolhida no nº1 do mesmo art. 132º do C.Penal, pelo que face
à lei penal portuguesa não pode considerar-se que a tentativa de homicídio foi praticada em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do arguido e, portanto, que o arguido tenha incorrido na prática de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, mas apenas de um crime de homicídio tentado previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 131º, 22º e 23º, do C.Penal, com pena até 10 anos e 8 meses de prisão, como referido.

A revisão e confirmação do acórdão condenatório proferido pelo Tribunal Regional de Berlim far-se-á, pois, de acordo com a lei portuguesa quanto à qualificação jurídica dos factos e aos efeitos da mesma na duração máxima do internamento.
2.6. Na medida em que o tribunal da condenação não considerou aplicável no caso qualquer período mínimo de internamento, a confirmação do acórdão condenatório far-se-á nos seus precisos termos, sem considerar o período mínimo de 3 anos previsto no art. 91º nº2 do C.Penal, dado o disposto na parte final do nº3 do art. 237º do C.P.Penal e na al. c) do nº2 do art. 100º da Lei 144/99, que expressamente determina que o tribunal, quando se pronunciar pela revisão e confirmação, não pode agravar em caso algum a reação estabelecida na sentença estrangeira.
2.7. Por último, não se defere a requerida colocação do arguido em estabelecimento próximo da sua residência uma vez que tal matéria, apesar de referida no art. 102º da Lei 144/99, não se encontra jurisdicionalizada.

III. Dispositivo

Por todo o exposto, acordam os juízes da secção criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
a) Declarar revisto e confirmado o acórdão proferido em 12 de março de 2013, transitado em julgado a 20 de março de 2013, pelo 15º Grande Juízo Criminal do Tribunal Regional de Berlim, Alemanha, no âmbito do processo (515) 234 [s 375/12Ks (1/13), que ordenou o internamento de A, nacional português, em hospital psiquiátrico, exceto no que respeita à qualificação jurídica dos factos e à consequente relevância da mesma para efeitos de duração da media de segurança;
b) Julgar que a factualidade provada descrita no acórdão condenatório confirmado integra, antes, a prática pelo arguido - em estado de inimputabilidade em razão de anomalia psíquica - de um crime de homicídio tentado p. e punível pelos artigos 131º, 22º e 23º, do C.Penal Português, com pena até ao máximo de 10 anos e 8 meses de prisão.
- Determinam ainda que seja levada em conta todo o período de internamento já sofrido pelo arguido à ordem do processo no âmbito do qual foi proferido o acórdão ora revisto e confirmado.

Sem tributação ( art. 26º da LCJIMP ).
Após trânsito, comunique-se à Procuradoria-Geral da República para efeitos do disposto no art.123.º n.º 2 da Lei n.º 144/99 e observe-se o nº 3 do art. 103º da LCJIMP.

Évora, 17 de junho de 2014

António João Latas
Carlos Jorge Berguete

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[1] Cf. http://www.gddc.pt/cooperação/materia-penal
[2] Cf. ponto IV da decisão do Landgerícht, p. 9.
[3] Processo n. º 02P3317, Relator Borges Pinho. Disponível em www.cigsipt.
[5] Cf. ponto IV da decisão do Landqericht, p. 10.
[6] Cf. ponto IV da decisão do Landqericht, p. 11.
[7] Portugal ratificou a convenção pelo Decreto do Presidente da República nº 8/93 de 20 de abril. A Convenção entrou em vigor para Portugal em 1.10.1993 segundo o aviso nº 205/93 de 21 de agosto, de onde consta igualmente que em 1.03.1993 a Alemanha era um dos países que havia ratificado a mesma Convenção.