Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1871/21.2T8SLV-A.E1
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
RENDA
TÍTULO EXECUTIVO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
Data do Acordão: 01/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - Por força de disposição especial (artigo 14.º-A, n.º 1, do NRAU), o contrato de arrendamento acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida constitui título executivo para cobrança coerciva das rendas.
- A resolução é uma forma de supressão ou extinção dos efeitos de contratos válidos pelo que os contratos juridicamente inexistentes não são resolúveis.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 1871/21.2T8SLV-A.E1


Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório
1. (…) deduziu oposição, mediante embargos, à execução para pagamento de quantia certa que lhe foi instaurada por (…).

Alegou, em resumo, que a execução não tem título executivo porquanto a dívida de rendas que documenta foi objeto de transação judicial havida entre as partes em data posterior à formação do título e impugnou “os valores peticionados pela Executada, já que lhe falta a clarificação da dívida, origem, data de vencimento, e data da entrada em mora, e constituição da mora em incumprimento definitivo.”

Concluiu pela extinção da execução.

A Embargada contestou por forma a considerar válido e eficaz o título executivo dado à execução e improcedente a defesa da Embargante assente nos efeitos de uma transação judicial que não incluiu as rendas em atraso, as quais estão por pagar.

Concluiu pela improcedência dos embargos.

2. Foi proferido despacho saneador a afirmar a validade e regularidade da instância, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.

Houve lugar à audiência final e depois foi proferida sentença, assim concluída, na parte que releva:

(…) o Tribunal decide:

- julgar totalmente improcedente a presente oposição à execução mediante embargos da Executada e, em consequência, determinar o ulterior prosseguimento da execução;

- julgar improcedente o pedido de impugnação do benefício de apoio judiciário concedido à Embargante/Executada.”

3. A Embargante recorre da decisão e conclui:

“1. Andou mal o Tribunal a quo ao decidir como decidiu.

2. A Recorrida não tem título executivo.

3. Salvo o devido respeito o Tribunal a quo não fundamentou legalmente a existência desse título versando, tão só, as suas motivações pela consulta dos documentos que foram juntos pelas partes e que dizem respeito aos processos judiciais 826/19.1T8ABF e 1016/19.9T8ABF.

4. O Tribunal a quo não fez o enquadramento legal para justificar o reconhecimento da notificação judicial avulsa anterior às transações a que se alude no número anterior como título executivo.

5. O Tribunal a quo limitou-se a justificar a ineptidão de título executivo, referindo que: “A referida ineptidão constitui uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso e determina a nulidade de todo o processado e a consequente absolvição dos réus, nos termos conjugados dos artigos 186.º, n.º 1, 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, b) e 578.º, todos do Código de Processo Civil. No caso dos presentes autos, essa alegação vem no artigo 44.º da petição inicial.”

6. A ineptidão é só uma consequência legal da falta de título.

7. O Tribunal a quo estava obrigado a pronunciar-se sobre a verificação do título ta quale e não exclusivamente com a consequência do mesmo.

8. A Recorrida impugnou integralmente o requerimento executivo.

9. Não existe título executivo.

10. A Recorrida intentou a ação executiva com base num alegado título executivo previsto no artigo 14.º-A NRAU, ou seja, o contrato de arrendamento, acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do valor em dívida e após o que transacionou no âmbito dos processos declarativos já transitados em julgado.

11. Por força de um contrato de arrendamento a Recorrida intentou uma ação comum para reconhecimento desse mesmo contrato, processo esse que correu termos sob o n.º 826/19.1T8ABF, no Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Cível de Albufeira.

12. Por sua vez a Recorrida intentou uma ação de despejo por alegada falta de pagamentos de renda, processo esse que correu termos no Juízo Local Cível de Albufeira, sob o n.º 1016/19.9T8ABF, no Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Cível de Albufeira.

13. O processo declarativo ficou suspenso a aguardar decisão da ação de despejo.

14. No âmbito do processo n.º 1016/19.9T8ABF (ação de despejo) as partes chegaram a acordo em sede de audiência de partes, conforme Sentença de homologação.

15. Os termos do acordo foram os seguintes:

“1. Acordam as partes em pôr termo ao presente litígio, por via entrega do imóvel correspondente ao 2.º andar, letra A, do prédio n.º (…), da Av. da (…), no (…), em Albufeira, no dia 30 de julho de 2021, pelas 14:00 horas, pela Ré à Autora;

2. No dia e hora referidos em 1, encontrar-se-ão as partes no local do imóvel, fazendo-se cada uma representar por pessoa à sua escolha, afim de se proceder à entrega da chave e à verificação do estado do imóvel;

3. Considerando o referido em 1 e 2, as partes acordam também, no âmbito destes autos, em pôr termo à ação de processo comum que corre termos neste Juízo Local Cível, com o n.º 826/19.1T8ABF, na íntegra, e desistindo-se, naquela ação, igualmente do pedido reconvencional deduzido pela Ré, aqui Requerente;

4. Custas em partes iguais por Requerente e Requerida, nos presentes autos e na ação 826/19.1T8ABF, prescindindo as partes de custas de parte, quanto à presente ação, mas não na ação 826/19.1T8ABF, sem prejuízo do apoio judiciário de que a Requerida beneficia.”

16. A partes acordaram na entrega do locado e na desistência da ação declarativa e pedido reconvencional, no âmbito do processo com o n.º 826/19.1T8ABF.

17. Com a transação realizada as Partes desistiram dos pedidos quer no âmbito do processo 826/19.1T8ABF, quer no âmbito do processo 1016/19.9T8ABF.

18. As partes convencionaram que os litígios terminariam com a entrega do locado, entrega essa que ocorreu.

19. Desistências que consta do acordo homologado por Sentença e já transitadas em julgado.

20. A Recorrida como Exequente, após ter firmando um acordo judicial, não tem um qualquer direito de peticionar o valor das rendas que já peticionado numa ação judicial e que terminou por acordo no âmbito desse mesmo processo e que em que acordou que os litígios terminariam com a entrega do locado.

21. Ação essa que foi alvo de transação judicial esse mesmo contrato de arrendamento e o alegado valor em dívida, conforme a Sentença proferida no processo 1016/19.9T8ABF.

22.A Recorrida como Exequente chegou a um acordo e decidiu indevidamente executar as alegadas rendas em dívida.

23. Viola assim o princípio da certeza jurídica.

24. A Recorrida não detém qualquer título executivo.

25. O título executivo tem de estar dotado de uma força probatória material e processual que é o que confere o grau de certeza necessário para a aplicação das diligências executivas e demonstra a realidade dos factos que se alega.

26. O que não existe nos presentes autos.

27. Aceitar a existência de título é desvirtuar integralmente o regime executivo e aceitar a vulgarização dos títulos executivos, contra a certeza jurídica e o Estado de Direito.

28. A Sentença viola constitucionalmente os direitos da Recorrente enquanto Executada.

29. A Sentença está ferida de nulidade uma vez que, salvo melhor opinião, não se encontra fundamentada de direito e não sustenta a existência de título executivo por parte da Recorrida.

30. O Tribunal a quo deveria fundamentar o facto de aceitar que uma notificação Judicial Avulsa (NJA) após transito em julgado das transações entre as partes nos processos judiciais em que se envolveram e acima descritos é de facto um título executivo e que respeita todas as regras legais.

31. A NJA perde os seus efeitos com a transação judicial já que na data da execução inexistia contrato de arrendamento.

32. Não pode a NJA subsistir para além de uma transação e Sentença Judicial, aliás duas Sentenças judiciais.

33. Não pode a NJA ser valorada como título executivo quando subsequentemente os seus efeitos caducaram com as respetivas ações judiciais.

34. O Tribunal a quo fez errada aplicação dos artigos 9.º, 14.º-A e 15.º do NRAU, artigo 46.º do CPC e artigos 154.º, 607.º do CPC, artigo 1084.º, n.º 1 do Código Civil.

35. Bem como dos artigos 203.º e 204.º, n.º 1, da CRP.

36. Não se encontram demonstradas as características o direito de crédito da Recorrida que deve reunir para que, para a sua satisfação, se possa promover a execução com o facto de se demonstrar que a obrigação correspondente deve ser exigível, certa e líquida.

37. A exigibilidade da obrigação tem aqui um sentido específico, algo distinto do que tem no plano substantivo.

38. Obrigação exigível é a que está vencida ou que se vence com a citação do requerido e em relação à qual o credor não se encontre em mora na aceitação da prestação ou quanto à realização de uma contraprestação. Maneira que o vencimento da obrigação é sempre indispensável à sua exigibilidade – mas esta pode requerer algo mais do que esse vencimento.

39. No tocante às obrigações a prazo certo, a falta do decurso deste, quando tenha sido ou se presuma ter sido fixado em benefício do prazo, impede o vencimento da obrigação, pelo que o devedor não se encontra em mora antes do terminus ad quem desse prazo (artigos 779.º e 804.º, n.º 1, a), do Código Civil). Note-se, porém, que o devedor perde o benefício do prazo e, portanto, o credor pode exigir o imediato cumprimento da obrigação, se o devedor se tornar insolvente ou se, por causa que lhe seja imputável, diminuírem as garantias do crédito ou não forem prestadas as garantias prometidas (artigo 780.º, n.º 1, do Código Civil).

40. Se pela natureza da prestação se tornar necessário o estabelecimento de um prazo, a obrigação não é exigível antes da sua determinação pelas partes ou pelo tribunal (artigos 777.º, nºs 2 e 3, do Código Civil e 1456.º e 1457.º do CPC).

41. O que não se verifica no plano em concreto, já que as partes transacionaram muito posteriormente à apresentação da NJA.

42. A impossibilidade de determinar o conteúdo da prestação impede, evidentemente, a sua realização coativa.

43. A Recorrida não uma obrigação ilíquida.

44. As obrigações ilíquidas também não podem ser realizadas coativamente, pela razão evidente de que não se pode executar o património do devedor antes de determinar, por exemplo, a quantia devida.

45. A Sentença recorrida não se encontra devidamente fundamentada.

46. O Tribunal a quo não concretiza a existência do título executivo, nem o porquê de considerar válido o título executivo, quer em termos substantivos, quer em termos adjetivos.

47. O Tribunal a quo aceita a existência de título executivo, mas não o fundamenta, como também não fundamenta o facto de aceitar que uma NJA objeto de subsequente ação declarativa e transacionada judicialmente em que as partes livremente intervieram, seja suficiente para ser título executivo.

48. Também aqui, com o devido respeito, a Recorrente se insurge contra o facto de o Tribunal a quo considerar as duas transações judiciais entre as partes para aferir a existência do título executivo, quando vão muito aquém da NJA e que esta foi anterior ao processo judicial que pôs termo ao arrendamento.

49. Bem sabemos que a Livre Convicção da prova é formada “não em observância a qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios, mas antes estribada na sua análise segundo as regras da experiência comum, num complexo de motivos, referências e raciocínios de cariz intelectual e de consciência que deve de todo em todo ficar de fora a qualquer intromissão interna em sede de conhecimento” (v. g. Ac. do S.T.J. de 11/03/98, C.J., Acórdãos do S.T.J. – 1998, Tomo I, 220).

50. Mas o dever de fundamentação é imperativo quanto à fundamentação da lei substantiva a aplicar.

51. Ao julgador cabe, não um poder arbitrário, mas antes um dever de perseguir a chamada “verdade material”, a verdade prático-jurídica, segundo critérios objetivos e suscetíveis de motivação racional”.

52. É de particular e decisiva importância a fundamentação da Sentença, ou seja, a exigência de que dela conste não só a enumeração dos factos provados e não provados, mas ainda uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico do direito a aplicar que serviram para formar a convicção do Tribunal a quo.

53. Certo será que, “(...) tal fundamentação deverá, intraprocessualmente, permitir aos sujeitos processuais e ao Tribunal Superior o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, pela via do recurso” e, extraprocessualmente, “(...) assegurar pelo conteúdo um respeito efetivo pelo principio da legalidade na sentença, e a própria independência e imparcialidade dos juízes, uma vez que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais, mas a própria sociedade(...)”.

54. As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas e a justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados nas peças processuais e muito menos pela adesão interpretativa em Decisões em que as partes tenham sido intervenientes, sem dali derivar todos as consequências jurídicas e judiciais num todo e não apenas parcialmente e subjetivamente como se apresenta na Sentença de que se recorre.

55. O artigo 15.º, n.º 2, do NRAU, conjugado com o disposto no artigo 46.º, n.º 1, alínea d), do CPC, confere especificamente força executiva ao contrato de arrendamento desde que acompanhado do comprovativo da comunicação ao arrendatário do montante das rendas em dívida, para a sua cobrança judicial.

56. O artigo 15.º, n.º 2, do NRAU, conjugado com o disposto no artigo 46.º, n.º 1, alínea d), do CPC, confere especificamente força executiva ao contrato de arrendamento desde que acompanhado do comprovativo da comunicação ao arrendatário do montante das rendas em dívida, para a sua cobrança judicial.

57. O que tem força executiva ao invés do invocado pela Recorrida e aceite implicitamente pelo Tribunal a quo, sem justificar ou sequer fazer qualquer alusão à existência de título executivo é o contrato de arrendamento conjugado com a NJA.

58. As Partes resolveram livremente o contrato de arrendamento livremente, derivando aqui a inexistência do contrato para ser executado.

59. Levando à inexistência dos seus efeitos e da sua qualificação como título executivo.

60. A NJA só por si e com um contrato resolvido por comum acordo não têm a virtualidade de constituir título executivo válido.

61. Este título executivo complexo é composto por dois elementos, o contrato de arrendamento e o comprovativo da notificação, pelo que, faltando um deles, ou ambos, não haverá título.

62. As partes transacionaram sobre o contrato cessando a relação e pondo fim aos litígios que as opunha, fazendo cessar os efeitos das ações judiais e de tudo qua antecedeu.

63. A Recorrida não pode escolher “a la carte” os seus efeitos, muito menos escolhendo quais os efeitos que lhe beneficiam.

64. O Tribunal a quo não pode fazer juízos de valor sobre as transações realizadas em julgado escolhendo, sem fundamentar, quais os efeitos que ficam a valer para o futuro.

65. A Recorrida transacionou de forma livre esclarecida e não pode fazer ressuscitar os efeitos de uma “pré-acção” quando em sede de defesa máxima dos seus direitos transacionou.

66. Aceitar isto é aceitar que nenhum efeito é dado às transações quanto a interpelações anteriores às ações judiciais findadas e transitadas em julgado, é aceitar uma máxima desjudicialização e desconsideração das Sentenças transitadas quando o objeto de litígio já foi posto findado.

67. A Recorrente tem de se insurgir contra a Sentença já que a mesma tem o entendimento que a notificação judicial avulsa efetuada, no momento em que a Recorrida intenta a ação executiva não respeitava os formalismos legais e daí não se encontrar munida de título executivo suficiente.

68. Perante o disposto no n.º 1 do artigo 45.º do CPC., toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da execução. O título é a condição necessária e suficiente da ação executiva, já que não há execução sem título.

69. Dentro das espécies de títulos taxativamente previstos no n.º 1 do artigo 46.º do CPC., incluem-se os documentos a que por disposição legal, seja atribuída força executiva. Como refere, Lebre de Freitas, in, A acção Executiva, Depois da reforma da reforma, pág. 65, «Também documentos particulares podem constituir título executivo por disposição especial de lei, nomeadamente, o contrato de arrendamento de prédio urbano, acompanhado de comprovativo da comunicação ao arrendatário, efetuada nos termos do artigo 9.º do NRAU, da resolução ou da denúncia do contrato pelo senhorio, nos termos do artigo 1084.º, n.º 1, do Código Civil».

70.... mas nunca depois de ter transacionado sobre o mesmo objeto em ação judicial

71. As partes transacionaram livremente no âmbito dos processos judiciais 826/19.1T8ABF e 1016/19.9T8ABF, tendo sido resolvidos uma vez que houve acordo das partes e a relação jurídica não era indisponível.

72. Não sendo menos verdade que o Tribunal a quo estava limitado pelas questões levantadas pelas partes e não indo para além desta, e interpretando as transações que as partes atingiram; validando a existência de um título executivo para além do objeto dos próprios autos.

73. A Recorrida não tinha título executivo, nem a sua pretensão não era certa, líquida e muito menos exigível.

74. Nem clarificou a divida, origem, data de vencimento, e data de entrada em mora, e constituição da mora em incumprimento definitivo.

75. Andou mal o Tribunal a quo ao não se pronunciar sobre a qualificação do título como título executivo, evitando-se de o fundamentar em termos de direito, bem como em não se pronunciar sobre a certeza, liquidez e exigibilidade da obrigação clamada pela Recorrida.

Assim, nestes termos e melhores de Direito, deverá ser concedido provimento ao presente recurso e em consequência ser revogada a Sentença proferida.

Fazendo-se a acostumada JUSTIÇA”

Não houve lugar a resposta.
Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre decidir.

II. Objeto do recurso
Considerando que o objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 4 e 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), que nos recursos se apreciam questões e não razões ou argumentos e que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido, são questões a resolver: i) se a decisão é nula por falta de fundamentação, ii) se a transação havida entre as partes incluiu o pagamento de rendas, iii) se falta ao título, por inexistência, o contrato de arrendamento.

III. Fundamentação

1. Factos
Sem impugnação, a decisão recorrida julgou assim os factos:
Provado
1. … (Embargada) veio instaurar, em 16 de novembro de 2021, ação executiva para cobrança de quantia certa contra … (Embargante), com vista ao pagamento do valor global de € 17.487,82.
2. Liquidou o pedido nos seguintes termos:
A executada entrou em mora em outubro de 2018 e só entregou o locado em 30 de Julho de 2021.
A renda mensal era de 600 €.
Portanto, contados os 34 meses em mora, à razão mensal de 600 €, perfaz o valor de 20.400 €.
Por conta desta importância a executada entregou a quantia de 3.892,95 €.
Pelo que o capital em dívida se cifra em 16.507,05 €.
E, sobre ele, devem acrescer juros de mora à taxa para os juros civis que é de 4% ao ano, desde o vencimento de cada uma das rendas, sendo os vencidos até à presente data, de 980,77 €.
3. Para sustentar a sua pretensão, apresentou o contrato que juntou com o requerimento executivo, denominado de “contrato de arrendamento para habitação com prazo certo”, datado de 01 de julho de 2009 e a notificação judicial avulsa da Embargante, realizada em 16 de maio de 2019, cujos teores ora se dão por reproduzidos.
4. Entre as partes correu a ação n.º 1016/19.9T8ABF, que terminou com um acordo judicialmente homologado, por sentença de 04 de maio de 2021, cujos teores constam em anexo ao requerimento executivo e ora se dão por reproduzidos.

5. Entre as partes correu ainda a ação n.º 826/19.1T8ABF, que culminou com desistências recíprocas dos pedidos.

6. Em nenhuma das sobreditas ações estava peticionado o pagamento das rendas vencidas e não pagas pela Executada/Embargante.

Não provado:

A. Que a Embargante/Executada procedeu ao pagamento das rendas peticionadas na ação executiva.

2. Direito

2.1. Se a sentença é nula por falta de fundamentação
A Recorrente considera que a sentença é nula por falta de fundamentação; argumenta que a sentença “não fundamenta a existência de título executivo”, “como também não fundamenta o facto de aceitar que uma NJA objeto de subsequente ação declarativa e transacionada judicialmente em que as partes livremente intervieram, seja suficiente para ser título executivo.”
A lei considera nula a sentença que não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC).
A ausência de motivação que determina a nulidade da sentença é a omissão total ou absoluta, como se infere da expressão “não especifique os fundamentos de facto e de direito”.
“Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade”[1].
“A falta de motivação a que alude a alínea b) do n.º 1 é a total omissão dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito em que assenta a decisão; uma especificação dessa matéria apenas incompleta ou deficiente não afeta o valor legal da sentença"[2].
No caso, a sentença especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão e conheceu, aliás, das razões ou argumentos configurados pela Recorrente em defesa da “inexistência” de título executivo, mais apropriadamente da alegada perda de eficácia do título executivo por efeito da transação judicial havida entre as partes em data posterior.
A respeito, consignou (ressalvados aspetos de pontuação): “Segundo, a Exequente não dispõe de título executivo por força do acordo homologado no processo n.º 1016/19.9T8ABF do Juízo Local Cível de Albufeira. Na ação n.º 1016/19.9T8ABF, foi alcançado um acordo que pôs fim ao litígio e não previa o pagamento de rendas em atraso. (…) Ora, o acordo nada refere quanto ao pagamento de rendas em atraso. Em parte alguma se consignou que a Embargada/Exequente prescindia do recebimento de rendas, nem nenhuma das alíneas do acordo sugere tal convenção. Mas a verdade é que, nessa ação, nem sequer se encontrava peticionado o pagamento de rendas em atraso, mas tão somente a entrega do locado livre de pessoas e bens. O acordo versou, por isso, sobre o objeto do processo e a Embargante não dispõe de quaisquer elementos que lhe permitam afirmar que a Embargada, por via desse acordo, desistiu de receber as rendas vencidas e não pagas. Essa interpretação não tem apoio na letra do acordo. De resto, aquele pedido (entrega do locado) também se encontra patente, em sede de reconvenção deduzida pela Embargada, na ação n.º 826/19.1T8ABF. Nessa ação, a Autora foi a aqui Executada/Embargante e o que pedia era o reconhecimento da sua qualidade de arrendatária da fração geradora do dever de pagamento das rendas exequendas. Em sede de contestação, reconveio pedindo a condenação da Autora a pagar-lhe uma indemnização pela privação do uso do locado, não reconhecendo a vigência do contrato de arrendado então resolvido, e alegando lucros que deixou de auferir com a ocupação do mesmo por parte da Embargante. E terminou a ação com desistências recíprocas dos pedidos. Ora, não estavam peticionadas rendas devidas pelas Embargante / Executada, pelo que a desistência do pedido não abarca esta pretensão da Exequente. Em suma, o acordo alcançado entre as partes no processo n.º 1016/19.9T8ABF do Juízo Local Cível de Albufeira não coartou à Exequente/Embargada o direito ao recebimento de rendas vencidas até à entrega do locado.”
Ao invés do afirmado no recurso, a sentença recorrida indica as razões pelas quais a transação havida entre as partes não influiu sobre a questão da falta de pagamento de rendas: “(…) não estavam peticionadas rendas devidas pelas Embargante/Executada, pelo que a desistência do pedido não abarca esta pretensão da Exequente.”
A decisão recorrida mostra-se fundamentada.

O recurso improcede sobre esta questão.

2.2. Se a transação havida entre as partes incluiu o pagamento de rendas

Serve de título à execução o contrato de arrendamento para habitação com prazo certo, datado de 1/7/2009, celebrado entre a Embargada e a Embargante, na qualidade de senhoria e de inquilina, respetivamente, e a notificação judicial avulsa mediante a qual a primeira comunicou à segunda, a resolução do referido contrato de arrendamento, por falta de pagamento pontual e integral das rendas, por mais de três meses seguidos e a interpelou a pagar “as rendas vencidas, na importância de dois mil e quatrocentos euros e das que, até à efetiva entrega do arrendado, se vencerem, acrescida de juros, desde o vencimento de cada uma das rendas e até efetivo e integral pagamento.”
De acordo com a vigente redação do o artigo 14.º-A, n.º 1, do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27/2, o “contrato de arrendamento, quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente às rendas, aos encargos ou às despesas que corram por conta do arrendatário.”

Assim, por força de disposição especial, o contrato de arrendamento acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida constitui um título composto com força executiva [artigo 703.º, n.º 1, alínea d), do CPC].

No caso, a execução tem por objeto o pagamento de rendas e a ora Recorrida instruiu o requerimento executivo com o contrato de arrendamento e o comprovativo de comunicação à arrendatária, ora Recorrente, das rendas em dívida e vincendas, vindo a liquidar a quantia em dívida no requerimento executivo [cfr. ponto 2 dos factos provados], como prevê e permite o artigo 716.º do Código de Processo Civil (CPC).
A Recorrente não questiona os pressupostos, nem os cálculos da liquidação, afirma e reafirma que a execução não tem título (v.g. cclºs 2, 9, 24).
Argumenta, em defesa da inexistência de título executivo, que por transação homologada por sentença (proc. n.º 1016/19.9T8ABF) “as partes convencionaram que os litígios terminariam com a entrega do locado, entrega essa que ocorreu” [cclª 18º], alega que a Recorrida “após ter firmando um acordo judicial, não tem um qualquer direito de peticionar o valor das rendas que já peticionado numa ação judicial e que terminou por acordo no âmbito desse mesmo processo e que em que acordou que os litígios terminariam com a entrega do locado [cclª 20ª] e arguí que a notificação judicial avulsa “não pode (…) ser valorada como título executivo quando subsequentemente os seus efeitos caducaram com as respetivas ações judiciais, perdendo “os seus efeitos com a transação judicial já que na data da execução inexistia contrato de arrendamento” [cclª 32ª e 33ª].

Defesa que incorpora, toda ela, uma petição de princípio ao dar por demonstrado o que falta demonstrar, ou seja, parte da ideia que a transação havida entre as partes (também) teve por objeto as rendas em dívida e, adiantando, não podemos assentar neste ponto.

A razão é simples e foi demonstrada pela decisão recorrida: os litígios pendentes em juízo a que Recorrente e Recorrida puseram termo por acordo e por desistência dos pedidos, não tinham por objeto as rendas do locado [pontos 4 a 6 dos factos provados] e não resulta das cláusulas do acordo qualquer modificação ou desistência do direito a tais rendas.

O acordo foi alcançado no processo n.º 1016/19.9T8ABF, homologado por sentença de 04 de maio de 2021 [ponto 4 dos factos provados] e expressou-se assim:

“1. Acordam as partes em pôr termo ao presente litígio, por via entrega do imóvel correspondente ao 2.º andar, letra A, do prédio n.º (…), da Av. da (…), no (…), em Albufeira, no dia 30 de julho de 2021, pelas 14:00 horas, pela Ré à Autora;

2. No dia e hora referidos em 1, encontrar-se-ão as partes no local do imóvel, fazendo- se cada uma representar por pessoa à sua escolha, afim de se proceder à entrega da chave e à verificação do estado do imóvel;

3. Considerando o referido em 1 e 2, as partes acordam também, no âmbito destes autos, em pôr termo à ação de processo comum que corre termos neste Juízo Local Cível, com o n.º 826/19.1T8ABF, na íntegra, e desistindo-se, naquela ação, igualmente do pedido reconvencional deduzido pela Ré, aqui Requerente;

4. Custas em partes iguais por Requerente e Requerida, nos presentes autos e na ação 826/19.1T8ABF, prescindindo as partes de custas de parte, quanto à presente ação, mas não na ação 826/19.1T8ABF, sem prejuízo do apoio judiciário de que a Requerida beneficia.”

Mediante recíprocas concessões – transação – as partes fizeram terminar os litígios pendentes em juízo, obrigando-se a Recorrente a entregar o imóvel arrendado à Recorrida em dia certo, no proc. n.º 1016/19.9T8ABF e desistindo ambas dos pedidos formulados, na ação e na reconvenção, no processo n.º 826/19.1T8ABF.

Foram estas as obrigações que, respetivamente, resultaram para as partes da transação judicial havida e nelas não se inclui qualquer modificação ou desistência relativas ao pagamento de rendas em atraso.

Nos negócios jurídicos formais, como no caso se evidencia, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso [artigo 238.º, n.º 1, do CC] e o texto do acordo não contempla qualquer referência a rendas; não resulta expressamente das cláusulas do acordo, nem implicitamente das desistências dos pedidos formulados (máxime no proc. n.º 826/19.1T8ABF), uma vez que, já se referiu, prova-se e a Recorrente não impugna, que nas referidas ações as partes não haviam formulado qualquer pedido de pagamento de rendas [ponto 6 dos factos provados].

Assim, e apesar do comprovativo de comunicação à arrendatária do montante das rendas em dívida que compõe o título executivo ser de formação anterior à transação [pontos 3 e 4 dos factos provados] as recíprocas concessões em que esta se traduziu não tiveram por objeto, expresso ou implícito, qualquer renúncia ou perdão de rendas vencidas, razão pela qual o direito que se formou com tal comunicação e o contrato de arrendamento – o direito de executar a quantia correspondente às rendas – não caducou ou perdeu os seus efeitos com a transação, como afirma e pretende a Recorrente, sem complementar esforço demonstrativo.

As rendas em dívida não foram objeto do acordo que pôs termo aos processos 1016/19.9T8ABF e 826/19.1T8ABF e, assim, a transação e desistência do pedido, alcançados pelas partes, nos referidos processos, não modificou, limitou ou fez cessar os direitos e obrigações das partes relativamente às rendas.

O recurso improcede quanto a esta questão.

2.3. Se falta ao título, por inexistência, o contrato de arrendamento

Partindo da natureza composta do título executivo – o contrato de arrendamento acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida (artigo 14.º-A, n.º 1, do NRAU) – afirma a Recorrente que a resolução do contrato de arrendamento por acordo das partes implicou a “inexistência do contrato para ser executado” e, assim, a inexistência de título executivo, por insuscetível de valer como tal, só por si, o comprovativo da comunicação ao arrendatário do montante em dívida [cclªs 57ª a 60ª].

Apesar de não termos a certeza de haver compreendido todo o sentido e alcance desta argumentação resulta, a nosso ver, claro que inexistência e resolução do contrato, qualquer que ele seja, são figuras jurídicas perfeitamente distintas e cuja relação não pode, por definição, subsistir nos termos em que a Recorrente a coloca por uma simples, mas determinante razão: a resolução do contrato implica a extinção dos seus efeitos, seja por força de revogação, rescisão ou caducidade[3]e o ato jurídico inexistente não produz quaisquer efeitos, não havendo sequer necessidade de um reconhecimento judicial da sua invalidade, como acontece para os atos nulos[4], o que significa que a resolução de um determinado contrato não implica a sua inexistência, como afirma a Recorrente e, bem pelo contrário, a existência do contrato e sua aptidão para produzir efeitos jurídicos constitui pressuposto indispensável, antecedente lógico necessário dir-se-á, à sua resolução enquanto ato jurídico destinado a pôr termo a tais efeitos, por isto que ou o contrato, por existente e válido, produz efeitos e tem aptidão para ser resolvido, ou por juridicamente inexistente não produz efeitos e, por definição, não tem aptidão para ser resolvido; a resolução é uma forma de supressão ou extinção dos efeitos de contratos válidos pelo que os contratos juridicamente inexistentes não são resolúveis.

Em aproximação à situação posta nos autos dir-se-á, de qualquer forma, que à data da comunicação à arrendatária do montante em dívida, em 16/5/2019 [ponto 3 dos factos provados], as partes ainda não haviam resolvido o contrato por mútuo acordo, facto que só veio a ocorrer em 4/5/2021 [ponto 4 dos factos provados], o que significa que à data da formação do título executivo o contrato de arrendamento se mantinha válido na ordem jurídica, ao invés do afirmado no recurso.

Contrato de arrendamento que foi dado à execução acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida assim, valendo como título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente às rendas e indemnização pelo atraso na restituição da coisa (artigo 1045.º, n.º 1, do CC), obrigação certa por qualitativamente determinada, exigível por vencida no prazo certo convencionado pelas partes para o pagamento da renda [artigo 805.º, n.º 2, do CC] e liquida por especificado o seu quantitativo no requerimento executivo [artigo 716.º, n.º 1, do CPC].

O título dado à execução é apto a realizar a quantia exequenda, tal como ajuizado em 1ª instância.

Improcede o recurso, restando confirmar a decisão recorrida.

3. Custas

Vencida no recurso, incumbe à Recorrente o pagamento das custas (artigo 527.º, nºs 1 e 2, do CPC).

Sumário (da responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC): (…)


V. Dispositivo

Delibera-se, pelo exposto, na improcedência do recurso, em confirmar a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente.

Évora, 11/1/2024
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho
Mário Canelas Brás

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[1] A. Reis, Código Processo Civil anotado, 1952, vol. V, pág. 140.
[2] Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, 3ª ed., vol. III, pág. 194.
[3] Inocêncio Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, 4ª ed. pág. 381.
[4] Ob. cit. págs. 355 a 357 e Ana Prata, Dicionário Jurídico, vol. 1º, 5ª ed., pág. 768.