Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1261/08-2
Relator: EDUARDO TENAZINHA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
SEGURO DE ACIDENTES DE TRABALHO
DIREITO DE REGRESSO DA SEGURADORA
Data do Acordão: 07/03/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO CÍVEL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
Os Tribunais de competência genérica são os competentes para apreciarem um pedido de direito de regresso deduzido pela seguradora de acidentes de trabalho, contra o seu segurado.
Decisão Texto Integral:
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PROCESSO Nº 1261/08 – 2
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
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“A”, com sede no …, nºs …, …, instaurou (15.7.2005) na Comarca de …, contra “B”, com sede na …, uma acção declarativa sumária que fundamenta nos seguintes factos, em resumo:
No exercício da sua actividade de seguradora celebrou com a Ré um contrato de seguro do ramo "acidentes de trabalho" (apólice nº …) relativamente a “C”, o qual, no dia 30.12.2002, pelas 13,00 horas, durante a prestação de trabalho para a Ré, sua entidade patronal, sofreu um acidente de que resultou a amputação de um dedo e a laceração de outros, por nessa circunstância manobrar um aparelho cujo peso não podia suportar e que era transportado numa máquina por condutor inexperiente e não habilitado. Com esses ferimentos a A. suportou o pagamento de despesas médicas, hospitalares e de peritagem no montante de € 11.552,30 cujo reembolso pretende da Ré.
Termina pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 11.552,30 e juros vencidos e vincendos.
Contestou alegando que o segurado desobedeceu às ordens que lhe deu e que agiu sem cuidado.
No despacho saneador o Mmo. Juiz julgou o Tribunal absolutamente incompetente em razão da matéria e absolveu a Ré da instância, por considerar que a questão emerge de um acidente de trabalho não julgado, razão porque são competentes os Tribunais de Trabalho em conformidade com o que se estabelece no art. 85° alínea c) Lei nº 3/99, 13 Jan., segundo o qual esses Tribunais a competência para conhecer das questões emergentes de acidente de trabalho.
Recorreu de agravo a A., alegou e formulou as seguintes conclusões:
a) Em 15.7.2005 a ora agravante intentou no Tribunal "a quo" - Tribunal comum com competência genérica - acção declarativa de condenação invocando o seu direito de regresso contra o ora agravado, com base no disposto no art. 21º alínea b) do REGUL/ISP 27/99 de 30 Nov. (Apólice Uniforme do Seguro de Acidentes de Trabalho Para Trabalhadores Por Conta de Outrem) bem como nos arts. 18° e 37° nº 2 Lei nº 100/97, 13 Set.;
b) "Grosso modo" alegou a ora agravante que celebrou com o agravado um contrato de seguro do ramo acidentes de trabalho por conta de outrém titulado pela apólice nº …, ao abrigo do qual assumiu a responsabilidade infortunística laboral do tomador do seguro em relação aos trabalhadores ao seu serviço, nomeadamente em relação ao sinistrado nos autos;
c) A agravante reparou em primeira linha um acidente de trabalho sofrido pelo trabalhador ao serviço do tomador do seguro, acidente esse que ocorreu por violação de regras de segurança cuja inobservância foi imputada ao R. ora agravado;
d) O Tribunal "a quo" entendeu que "é inequívoco que as questões a apreciar emergem directamente de um acidente de trabalho e integram a competência dos Tribunais do Trabalho, sendo "in casu" competente o Tribunal do Trabalho de …";
e) O Tribunal "a quo" partiu do princípio de que o acidente dos autos não tinha sido submetido à apreciação de qualquer Tribunal com jurisdição laboral, todavia, ainda que a A. ora agravante não tenha alegado a existência de tal processo laboral, da análise dos documentos juntos com a p.i. (nos quais consta nomeadamente o pagamento do capital de remição) é manifestamente perceptível o inverso da conclusão a que chegou o Tribunal "a quo";
f) Por outro lado, o Tribunal "a quo" sempre poderia ter notificado a ora agravante para a mesma esclarecer se a acção emergente do acidente de trabalho já havia sido julgada ou não, o que não sucedeu;
g) O Tribunal "a quo" entendeu que o Tribunal competente era o Tribunal do Trabalho de …, porém, antes da entrada da presente acção no Tribunal recorrido, em 28.2.2005 a ora agravada havia intentado a mesma acção, com a mesma causa de pedir formulando o mesmo pedido contra o R. nos presentes autos, no Tribunal do Trabalho de …, o qual decidiu que a acção devia correr por apenso ao processo resultante do acidente de trabalho que correu termos no Tribunal do Trabalho do …;
h) Consequentemente, em 15.4.2005 foi ordenada a remessa dos autos para o Tribunal do Trabalho do …, conforme cópia do despacho proferido (v. doc. 1);
i) Sucede que o Tribunal do Trabalho do … em 18.6.2005 proferiu despacho saneador/sentença no qual julgou procedente a excepção de incompetência material do Tribunal do Trabalho fundamentando que "o Tribunal comum é o competente para conhecer de acção proposta por seguradora - ramo acidente de trabalho - que, no exercício do direito de regresso reclama as quantias que pagou";
j) Fundamentou ainda o Tribunal do Trabalho do … que "não constituindo o objecto processual uma questão emergente de acidente de trabalho, não sendo uma relação laboral, nem se verificando qualquer outra situação especificamente atribuída à jurisdição laboral pela L.O.F.T.J., afigura-se-nos que este Tribunal é materialmente incompetente para a presente acção ( ... ) consequentemente absolve-se a Ré da instância";
k) Há mais de um ano que a A. demandou o R., porém o exercício do seu direito tem sido sucessivamente impossibilitado pelo facto do Tribunal do Trabalho, bem como do Tribunal comum se considerarem ambos incompetentes em razão da matéria para conhecer do direito em causa;
l) Decidiu o Supremo Tribunal de Justiça no acórdão proferido em 18.11.2004 que "compete ao Tribunal de competência genérica ou ao juízo de competência cível específica, conforme os casos, conhecer da acção em que a seguradora, no exercício do seu direito de regresso, pede contra a tomadora do seguro de acidentes laborais e empregadora, a sua condenação no pagamento de quantia que a mais pagou a um sinistrado laboral em cumprimento de decisão do Tribunal do Trabalho ( ... )";
m) Entendeu ainda o S.T.J. que "o confronto do Tribunal do Trabalho e do Tribunal de competência genérica é essencialmente determinada à luz da estrutura do objecto do processo, envolvida pela causa de pedir e pelo pedido formulados na petição inicial, independentemente da estrutura civil ou laboral das normas jurídicas substantivas aplicáveis";
n) O Tribunal recorrido é materialmente competente para julgar a presente acção;
o) Atendendo à causa de pedir dos autos a questão a decidir não é uma questão emergente de um acidente de trabalho, nem a agravante pretende discutir o acidente de trabalho;
p) Em causa está o exercício de um direito de regresso entre responsáveis nos termos gerais de Direito;
q) O Tribunal "a quo" violou o disposto no art.77° nº 1 alínea a) L.O.F.T.J.

Não foram apresentadas contra-alegações.
O Mmo. Juiz proferiu despacho de sustentação.
Como previsto no art.85° alínea c) L.O.F.T.J. (Lei nº 3/99, 13 Jan.), em matéria cível compete aos Tribunais do Trabalho conhecer das questões emergentes de acidente de trabalho.
Nesta acção a A. pretende a condenação da Ré a pagar-lhe certa quantia pecuniária, com fundamento no direito de regresso. E fundamenta este direito na existência de um contrato de seguro do ramo "acidentes de trabalho" que celebrou com a ora Ré, relativamente a um empregado desta, no âmbito de cujo contrato desembolsou a aludida quantia, como pagamento indemnizatório, cujo reembolso agora pretende.
Para o Mmo. Juiz, sendo a causa de pedir o facto jurídico donde emerge o pedido (v. art.498° nº 4 Cód. Proc. Civil), nesta acção condenatória o pedido de efectivação do direito de regresso emerge daquele contrato de seguro, razão porque será esta relação jurídica contratual a causa de pedir.
Segundo o art. 467° nº 1 alínea c) Cód. Proc. Civil (sob epígrafe "Requisitos da petição inicial") na petição inicial o A. deve "Expor os factos e as razões de direito que servem de fundamento à acção". À luz daquele art.498° nº 4 Cód. Proc. Civil, o "fundamento" da acção de que fala aquele art.467° nº 1 alínea c) não é, nem mais, nem menos, do que o facto jurídico donde emerge o pedido, isto é, a causa de pedir.
Apesar de apenas estar previsto que o autor deve articular os -factos que constituem a causa de pedir, normalmente são também articulados outros factos que, não constituindo o núcleo daquela, todavia dizem-lhe directamente respeito. Estes últimos são os factos com cuja alegação o autor pretende demonstrar a existência da causa de pedir.
O Cód. Proc. Civil 1939 no art.480° § 1 ° ("Função e requisitos da petição inicial") falava nos "fundamentos" da acção ("Os fundamentos da acção serão deduzidos por artigos numerados"), o que levou a que se estabelecesse a diferença entre "fundamento" e "fundamentos" da acção. O "fundamento" da acção seria o facto jurídico de que emergia o pedido, isto é, a causa de pedir, enquanto que os "fundamentos" seriam todas as circunstâncias de facto e razões jurídicas em que o autor se apoiava para demonstrar a que aquele facto jurídico existia (v. Prof. Paulo Cunha, Processo Comum de Declaração, vol. I, pág. 115). Os factos respeitantes ao fundamento da acção seriam os factos essenciais e deles dependia a procedência daquela, os outros, os respeitantes aos fundamentos da acção, incluir-se-iam nos factos não essenciais ou instrumentais.
O art.467° nº 1 alínea c) Cód. Proc. Civil aprovado pelo Dec. Lei n° 44129, 28 Dez. 1961, tal como actualmente, como se disse acima, fala apenas no "fundamento" da acção. Expressamente se refere aos" .... factos ... que servem de fundamento à acção", o que, com base naquela distinção que se fazia entre fundamento e fundamentos, continua a ter o mesmo significado de factos essenciais à procedência da acção.
Tomando por base a distinção, se se considerasse a causa de pedir como constituída apenas pelo contrato de seguro, todos os outros factos que a A. alegou na petição respeitantes ao acidente de trabalho e ao pagamento da indemnização se incluiriam nos outros "fundamentos" da acção, isto é, nos factos-instrumentais, não essenciais para a-procedência da acção.
Nos termos do art.498° nº 4 (2aparte) Cód. Proc. Civil, "Nas acções reais, a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; Nas constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido", o autor não deverá alegar como causa de pedir apenas a relação jurídica donde emerge o direito que pretenda fazer valer. Terá que alegar o facto jurídico.
Poderia alegar apenas a relação jurídica se a causa de pedir fosse apenas uma relação jurídica, como considerou o Mmo. Juiz quando disse na decisão recorrida que" ... a causa de pedir consubstancia-se prima facie no contrato de seguro por acidente de trabalho outorgado entre a A. e a Ré ... ".
Mas para além da ideia de que a causa de pedir seja constituída apenas por uma relação jurídica vai o referido art.467° nº 1 alínea c) Cód. Proc. Civil quando se refere aos " ... factos ... que servem de fundamento à acção", e também o referido art.498° nº 4 do mesmo diploma quando na 1ª parte reza, como se disse, que "Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico", e na 2a parte estabelece que "Nas acções reais, a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; Nas constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido".
A simples invocação da relação jurídica contratual como causa de pedir não basta, porque só por si não gera o direito de crédito de regresso. "Se a acção se destina a fazer valer um direito de obrigação ... não basta apontar o objecto dela .. , é indispensável especificar o facto ou factos constitutivos do direito". (Prof. J. A. Reis, Cód. Proc. Civil Anotado, vol.II, pág.353).
O direito de regresso não nasce imediatamente por efeito do contrato de seguro. Para que possa nascer é essencialmente necessário que se verifique desde logo a existência de contrato de seguro de trabalho, depois, a ocorrência de um acidente de trabalho, e, finalmente, que a seguradora tenha indemnizado. Só depois de se ter verificado a ocorrência destes factos sucessivos é que o direito de regresso nasce e pode ser exercido.
Por conseguinte, quando a A., para além da matéria respeitante ao contrato de seguro alegou os factos respeitantes ao acidente de trabalho, fê-lo, não porque pretendesse discutir esse acidente, mas porque o respectivo facto jurídico é um dos elementos integradores da causa de pedir. Outra conclusão não se pode extrair precisamente porque, pelo pedido que formulou, a A apenas pretende exercer o seu direito de regresso.
No caso de dúvidas sobre se o acidente de trabalho constitui questão ainda não encerrada, seria a A. a fazer a respectiva prova, porque a competência para apreciar e decidir sobre essa matéria é dos Tribunais do Trabalho (v. art.85° nº 1 alínea c) L.O.F.T.J.).
Como a A. não pediu a apreciação da matéria respeitante ao acidente de trabalho, mas apenas do direito de regresso, são os Tribunais de competência genérica os competentes para apreciar e decidir sobre a respectiva matéria, competência que é residual, isto é, resulta de não serem outros os Tribunais competentes (v art.77° nº 1 cit. L.O.F.T.J.).
Procedem as conclusões das alegações sob as alíneas f) e n) a q) e o recurso.

Pelo exposto acordam em julgar procedente o recurso de agravo e, consequentemente, competente em razão da matéria o Tribunal Judicial da Comarca de … para apreciar e decidir sobre a matéria de direito de regresso alegada neste processo.
Sem custas (art.2° nº 1 alínea g) Cód. Custas).
Évora, 3 de Julho de 2008