Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3292/08-3
Relator:
MARIA ALEXANDRA SANTOS
Descritores: IMPUGNAÇÃO DE PATERNIDADE
INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
Data do Acordão: 07/09/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO CÍVEL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I – É admissível a formulação na mesma acção dos pedidos relativos à impugnação e ao reconhecimento da paternidade.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

“A” intentou contra “B”, “C”, “D”, “E” e marido “F”, “G” e marido “H” e ainda MINISTÉRIO PÚBLICO, a presente acção de impugnação de paternidade pedindo:
a) Se declare que o A. não é filho do pai presumido “B”, presunção essa que resulta por ser marido da mãe à data do seu nascimento e a que ficou estabelecida na Conservatória do Registo Civil de …,
b) Mais deve declarar que o A. é filho biológico de “I”;
c) Face a tais declarações, deve a paternidade do presumido pai ser afastada porque impugnada e serem todos os RR. condenados a reconhecer que o A. é filho de “I” e não do marido da mãe, por presunção legal estabelecida, com todas as legais consequências;
d) Deve a douta sentença produzir efeitos na Conservatória do Registo Civil de …, concretamente, no assento de nascimento relativo ao A., ano de 1960, fls. …, Registo n° …, Cédula nº …, Série …, Registado no livro de emolumentos n° … e assim ser substituída a paternidade do A., deixando de figurar “B” e passar a figurar “I”.

Citados, contestaram o Ministério Público excepcionando a ilegitimidade passiva do R. Estado, concluindo pela sua absolvição da instância e os RR. “D”, “G”, “H”, “E” e “F” nos termos certificados a fls. 83 e segs., designadamente, excepcionando a intempestividade da acção e concluindo pela sua absolvição do pedido.
O A. respondeu nos termos de fls. 87/88 concluindo pela improcedência das excepções invocadas.

Os RR. “D” e outros treplicaram ainda nos termos certificados a fls. 89, concluindo como na contestação.
Em sede de despacho saneador, a Exmª Juíza a quo julgou procedente a excepção dilatória da ilegitimidade passiva quanto aos 3° a 5° RR, “D”; “E” e “G” e RR. cônjuges “F” e “H” e, em consequência, absolveu os mesmos da instância.
Na mesma sede, considerando não ser admissível a cumulação da acção de investigação de paternidade com uma acção de impugnação de paternidade, sendo a de impugnação de paternidade prévia face à de investigação, absolveu todos os RR. da instância quanto aos pedidos deduzidos pelo A. nas alíneas b), c) 2a parte e d) 2ª parte do seu petitório.

Inconformado com esta última decisão dela agravou o A. alegando e formulando as seguintes conclusões:
1 - Numa acção de paternidade presumida é possível não só se impugnar essa paternidade, a que consta do registo civil, como simultaneamente requerer-se, no âmbito da mesma acção, investigação da paternidade, desde que os factos e os pedidos sejam subsequentes um aos outro, ou seja,
2 - Primeiro, trazem-se os factos que integram a causa de pedir e o pedido relacionado com a impugnação da paternidade presumida; depois, trazem-se os factos que integram a causa de pedir e o pedido relacionado com a investigação de paternidade.
3 - A não ser assim, está-se a violar o art° 494° do CPC, por não se vislumbrar, das excepções dilatórias aí constantes qual é aquela que se está a violar.
4 - Depois, viola-se o princípio da economia processual.
5 - Finalmente, viola-se toda a lei civil e processual civil que diz respeito a esta matéria porquanto não se verificar que exista normativo que impeça de numa mesma acção se discutir uma impugnação e uma investigação da paternidade, quando já são trazidos aos autos todos os factos atinentes a estes dois tipos de acções.
6 - Alterando-se a douta decisão, prosseguindo a acção, com a impugnação e a investigação da paternidade em simultâneo, estarão V.Exas, Exmºs Senhores Juízes Desembargadores a fazer a costumada boa Justiça.

Não foram apresentadas contra-alegações.
Após a prolação do despacho saneador supra referido e selecção dos factos assentes e controvertidos, vieram os RR. “D” e outros, declarados partes ilegítimas nos autos, deduzir incidente de intervenção de terceiros requerendo que sejam admitidos a intervir como "assistentes" nos termos dos art°s 335° e 338° do CPC, alegando, em resumo, que têm interesse em que a acção não proceda, dado que são herdeiros do alegado pretenso pai do aqui Autor, dependendo eventual instauração da acção de investigação de paternidade da procedência dos presentes autos de impugnação da paternidade.
O incidente foi julgado improcedente por os requerentes não serem titulares de interesse jurídico em que a presente acção seja desfavorável ao aqui Réu.

Inconformados, agravaram os requerentes alegando e formulando as seguintes conclusões:
1 - Na lógica do douto despacho da Mmª Juíza "a quo" que ordenou a alteração do douto despacho saneador, alterando os quesitos formulados na base instrutória, o 5° devia ter sido eliminado como o foram os restantes e substituído por um, único, como o novo 1°, o que ainda pode e deve ser ordenado visto que se está a discutir uma acção de impugnação de paternidade e não de investigação;
2 - Caso se entenda ser tal quesito de manter o que, atento tudo o que ficou decidido nos autos, nunca se compreenderá, não podem os ora recorrentes deixar de ser admitidos a intervir, ao menos na qualidade de assistentes nos termos dos art°s 335° e segs. do C.P.C ..
3 - Ao assim não entender, a Mmª Juiz "a quo" violou as disposições constantes do CPC.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Em sede de instrução do processo, pelo despacho certificado a fls. 49 a Exmª Juíza determinou "a realização de exames hematológicos às mencionadas pessoas a fim de se dar resposta ao artº 1º da base instrutória, que constitui o objecto da perícia que ora se determina, constituindo o seu único quesito", sendo que as "mencionadas" pessoas são as identificadas no ofício certificado a fls. 125 do IML, ou seja, o A. “A”, o R. “B” e as RR absolvidas da instância, “C”, “E”, “G” e “D”.

Inconformadas, agravaram estas, alegando e formulando as seguintes conclusões:
1 - Sendo certo que os recorrentes não são partes nos autos de acção de impugnação de paternidade, ora em causa,
2 - Sendo certo que não foi, nem poderia ter sido requerida qualquer perícia na pessoa dos RR. nos presentes autos;
3 - Sendo certo que a Mmª Juíza "a quo" não ordenou, nem deferiu, em devido tempo, ou em qualquer outro, qualquer perícia na pessoa dos recorrentes;
4 - Sendo certo que o quesito único objecto da perícia ordenado nada tem a ver com as pessoas dos recorrentes;
5 - Sendo certo que o Instituto Nacional de Medicina Legal não pode ordenar a perícia dos ora Recorrentes na ausência de mandado ou decisão judicial,
6 - Os Recorrentes têm direito a não comparecer a tais exames e a resistir à sua realização.
7 - Tendo, quanto a eles, o despacho recorrido, violado o disposto nos art°s 519° n° 3 al. a) do CPC, 17°, 25° nº 1, 26° n° 1 e 21 ° da Constituição da República Portuguesa.

Não foram apresentadas contra-alegações.
O Exmº Juiz manteve as decisões recorridas conforme consta do despacho de fls. 59.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Delimitando-se o âmbito dos recursos pelas conclusões das respectivas alegações, abrangendo apenas as questões aí contidas (art°s 684° n° 3 e 690 n° 1 do CPC), verifica-se que são as seguintes as questões a decidir em cada um dos recursos interpostos:
1 - No Agravo interposto pelo A. da decisão certificada a fls. 40/43, saber se são cumuláveis as acções de impugnação e investigação de paternidade.
2 - No Agravo interposto pelos RR. “D” e outros saber se se verificam os pressupostos de admissibilidade da sua intervenção na acção na qualidade de "assistentes".
3 - No Agravo interposto pelos mesmos RR. saber se estão os mesmos obrigados a submeter-se aos exames hematológicos determinados pelo tribunal.

Conhecendo dos recursos interpostos pela ordem de interposição:

1 - Agravo da decisão que considerando não ser admissível a cumulação da acção de investigação de paternidade com uma acção de impugnação de paternidade, sendo a de impugnação de paternidade prévia face à de investigação, absolveu todos os RR. da instância quanto aos pedidos deduzidos pelo A. nas alíneas b), c) 2a parte e d) 2a parte do seu petitório.
Conforme resulta dos respectivos fundamentos, louvou-se a decisão recorrida nos acórdãos da R.P. de 20/06/1994 e 09/05/2002, nos quais, com base na interpretação do art. 1848° do C.C., entendeu-se que sendo a acção de impugnação prévia à acção de investigação de paternidade, verifica-se uma excepção dilatória inominada por falta do pressuposto da prévia acção de impugnação da paternidade constante do registo de nascimento do A. e, em consequência absolveu todos os RR. da instância.
Insurge-se o agravante contra tal decisão defendendo que é possível numa mesma acção impugnar a paternidade presumida e, simultaneamente, requerer-­se no âmbito da mesma acção a investigação de paternidade desde que os factos e os pedidos sejam subsequentes um ao outro.
Vejamos.
Sobre a questão em apreço não abunda a jurisprudência, conhecendo-se no sentido defendido na decisão recorrida para além dos acórdãos nela citados um outro da R. Lx. de 28/01/97 e, em sentido contrário, o Ac. do STJ de 21/05/92 onde se considerou admissível por serem compatíveis e inexistirem os obstáculos fixados no art. 31° do CPC, formular no mesmo processo pedidos de impugnação da maternidade constante do registo de nascimento e de reconhecimento da maternidade em contrário do que consta desse mesmo registo (BMJ, 417, 743).
Mais recentemente, foi publicado nesta Relação o Acórdão relatado pelo Exmº Desembargador Dr. Acácio Neves na apelação n° 1672/06-3 que defendeu a admissibilidade da formulação na mesma acção dos pedidos relativos à impugnação e ao reconhecimento da paternidade e, consequentemente, a não verificação de qualquer excepção inominada, tal como foi sustentada na decisão ora recorrida.
Subscrevemos, inteiramente tal posição pelo que aqui seguiremos de perto os argumentos alinhados no referido acórdão.
Com efeito, dispõe o art° 1848° n° 1 do C. Civil, relativamente ao reconhecimento da paternidade, que "não é admitido o reconhecimento em contrário da filiação que conste do registo de nascimento enquanto este não for rectificado, declarado nulo ou cancelado".
Todavia, como bem se refere no acórdão em apreço tal disposição "(de natureza claramente substantiva - daí a sua inclusão no Código Civil e não no CPC)
apenas determina que o reconhecimento de paternidade contrária à constante do registo de nascimento só possa ter lugar depois de esta ter sido eliminada (por rectificação, declaração de nulidade ou cancelamento).
Tal significa assim que, estando em causa o cancelamento da paternidade registada (por presunção legal) por via de acção de impugnação de paternidade (como é o caso dos autos), o pedido de reconhecimento de (outra) paternidade (como também é o caso dos autos) só possa ser apreciado e decidido depois de decidido favoravelmente o pedido respeitante àquela impugnação.
Aliás, não faria naturalmente sentido se assim não fosse, sob pena de, pelo menos durante algum tempo, ficarem a constar do registo, em simultâneo, duas paternidades distintas.
Todavia, afigura-se-nos que nessa perspectiva, nada impeça que tais pedidos possam ser deduzidos e apreciados numa mesma acção, conforme o caso dos autos.
Oo que acontece é que o tribunal apenas poderá apreciar o pedido de reconhecimento depois de apreciar e julgar procedente o pedido de impugnação, sendo que a improcedência deste implicará, necessariamente e automaticamente, por via da disposição legal acima citada, a improcedência daquele.
Assim, em resultado da procedência dos dois pedidos, o registo da nova paternidade só poderá ser efectuado depois de cancelado o anterior registo.
E nesta perspectiva, o novo registo, ainda que efectuado no mesmo acto (mas sempre depois de feito o cancelamento) jamais implicará qualquer tipo de duplicação.
Aliás, sendo a perfilhação e a decisão judicial em acção de paternidade as formas de reconhecimento de paternidade (art.º 1847° do C.C.), se nos termos do n° 2 do citado art° 1848° do C.C., a falta de rectificação, de declaração de nulidade ou de cancelamento da paternidade constante do registo não invalida a registada, não se vê porque razão o reconhecimento judicial da paternidade (a outra forma de reconhecimento da paternidade) não possa avançar pelo menos em simultâneo com o pedido de impugnação, ficando todavia a procedência (eficácia) daquele dependente da procedência deste conforme já referido. Trata-se, em bom rigor de dois pedidos respeitantes, cada um deles, a réus diferentes (enquanto que o de impugnação respeita à mãe do menor e ao pai registado, o de reconhecimento respeita à mãe do menor e ao pai registando). Assim, não se estando perante uma situação de cumulação de pedidos, a que alude o art° 470° do CPC (a qual pressupõe a dedução de vários pedidos contra o mesmo réu) está em causa uma situação de coligação a que alude o n° 1 do art° 30° do mesmo diploma, nos termos do qual "... é permitido a um autor demandar conjuntamente vários réus, por pedidos diferentes, quando a causa de pedir seja a mesma e única ou quando os pedidos estejam entre si numa relação de prejudicialidade ou dependência"
Não estando em causa, in casu, uma mesma causa de pedir (enquanto a impugnação assenta na falta de relações de sexo com a mãe do menor geradoras do nascimento por parte de um dos réus, o reconhecimento assenta na existência dessas mesmas relações por parte do outro réu) estamos, todavia, perante uma situação de prejudicialidade ou dependência, na medida em que o reconhecimento da nova paternidade está dependente, conforme acima referido, da impugnação e consequente cancelamento da paternidade constante do registo. Não se verificam, assim, a nosso ver, quer à luz do disposto no nº 1 do art° 1848° do C.C., quer à luz do disposto no nº 1 do art° 30° do CPC, quaisquer entraves a que numa mesma acção se peça primeiramente a eliminação da paternidade registada e depois o reconhecimento de nova paternidade.
Aliás, tal entendimento até se afigura o mais adequado, atentas as razões de economia processual, evitando-se dessa forma, a necessidade de se instaurarem duas acções em vez de uma só, com todo o cotejo de implicações daí
decorrentes ao nível da boa, rápida e mais económica aplicação da justiça."
Subscrevendo-se inteiramente a argumentação atrás expendida, entendemos, pois, que, in casu, assiste inteira razão ao A. agravante ao propor e pretender fazer seguir nesta acção os pedidos relativos à impugnação e ao reconhecimento de paternidade, alegando na petição factos que fundamentam ambos os pedidos, não se verificando a declarada excepção dilatória inominada que conduziu à absolvição dos RR. da instância quanto aos pedidos deduzidos nas alíneas b) e c) 2a parte e d) da p.i.

Pelo exposto, impõe-se a revogação da decisão recorrida e, em face dela, ficam sem efeito todos os actos subsequentes do processo posteriores à sua prolação, devendo os autos prosseguir com nova selecção dos factos assentes e controvertidos tendo em consideração a decisão ora proferida.
Em face do decidido fica prejudicado o conhecimento dos agravos interpostos pelos RR. “D” e outros, posteriormente à decisão ora revogada.
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DECISÃO
Nesta conformidade, acordam os Juízes desta Relação em conceder provimento ao agravo do A. e, em consequência, revogar a decisão recorrida, ficando sem efeito todos os actos posteriores à sua prolação, determinando-se o prosseguimento dos autos com nova selecção dos factos assentes e controvertidos tendo em consideração a decisão ora proferida.
Sem custas.
Évora, 2009.07.09