Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
921/13.OPBFAR
Relator: FELISBERTO PROENÇA DA COSTA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
UNIDADE DE ACÇÃO
VIOLÊNCIA
Data do Acordão: 02/24/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Sendo hoje inequívoco que a tutela da violência doméstica se projecta não apenas sobre casos de reiteração ou habitualidade de comportamentos violentos, mas também potencialmente aplicável a uma conduta violenta, não é qualquer acção isolada de violência exercida no âmbito doméstico que poderá ser qualificada como de maus tratos com vista ao preenchimento do tipo.
Importa, nesses casos, descortinar se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é susceptível de ser classificada como “maus tratos”.
Decisão Texto Integral:
Recurso n.º 921/13.OPBFAR

Acordam, em Conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora.
Nos autos de Processo Comum Singular, com o n.º 921/13.OPBFAR, a correrem termos pela Comarca de F, Instância Local – Secção Criminal – J1, mostra-se deduzida pela Digna Magistrado Ministério Público acusação contra o arguido:
- MJCL, filho de (…), natural da freguesia da S, concelho de F, nascido em 06/05/1990, solteiro, operador de manutenção e limpeza hoteleira, residente na Praceta SM, bloco J, 5.º Dt.º, em F, e titular do BI n.º 13759523;
Imputando-lhe a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. b), do Código Penal (CP).

O «Centro Hospitalar do A, E.P.E» deduziu pedido de indemnização civil contra MJCL, peticionando a condenação deste no pagamento da quantia de €224,14 (duzentos e vinte e quatro euros e catorze cêntimos), referente à assistência prestada a BT, sendo a quantia €112,07 (cento e doze euros e sete cêntimos) relativa ao episódio de urgência de 21/04/2013 e a quantia de €112,07 (cento e doze euros e sete cêntimos) relativa ao episódio de urgência de 08/11/2013, acrescida de juros de mora desde a notificação para contestar até efectivo e integral pagamento.

Devidamente notificado, o arguido não apresentou contestação.

Procedeu-se à realização da audiência de julgamento, com observância das formalidades legais.
Nessa sede, foi comunicada uma alteração não substancial dos factos. Foi, ainda, comunicada uma alteração da qualificação jurídica, por se entender que os factos são susceptíveis de integrar a prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181.º, do C.P, e dois crimes de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art. 143.º, n.º 1 do C.P.

Posteriormente, veio-se a prolatar pertinente Sentença, onde se Decidiu:
Parte Criminal
a) Absolver o arguido MJCL da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. b), do Cód. Pen., que lhe vinha imputado;
b) Julgar verificada a ilegitimidade do Ministério Público para promover a acção penal pelos factos susceptíveis de integrar a prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181.º, n.º 1 do Cód. Pen., e de dois crimes de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º, n.º 1 do Cód. Pen., por não exercício do direito de queixa, que se encontra extinto por caducidade, e, em consequência, declarar a extinção do procedimento criminal;
Parte Civil
c) Condenar o demandado MJCL a pagar à demandante «Centro Hospitalar do A, E.P.E», a quantia de €112,07 (cento e doze euros e sete cêntimos), relativa ao episódio de urgência de 08/11/2013, a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a notificação do pedido cível até efectivo e integral pagamento, absolvendo-o do demais peticionado

Inconformado com o assim decidido, traz o Magistrado do Ministério Público o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:
1. Preceitua o art. 152º, no seu nº 1, aI. b), do Código Penal, que: "Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal".
2. O bem jurídico protegido por este tipo legal de crime é a saúde, esta entendida enquanto saúde física, psíquica e mental e, por conseguinte, podendo ser afectada por uma diversidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal desenvolvimento de uma pessoa, afectem a dignidade pessoal e individual do cônjuge.
3. Os maus tratos podem ser infligidos de modo reiterado ou não.
4. Porém, em lado algum se exige que só em situações excepcionais o comportamento violento único, pela gravidade intrínseca do mesmo, preencha o tipo de ilícito.
5. Após a vigência da redacção dada pela Lei nº 59/2007 é legítimo sustentar que foi acolhido o entendimento segundo o qual um só ato de ofensas corporais já configura um crime de violência doméstica.
6. Portanto, tendo em atenção o bem jurídico protegido (que orienta a interpretação do tipo legal aqui em causa) e o caso concreto, para a consumação do crime de violência doméstica não é necessário que a conduta do agente assuma um carácter violento, no sentido de exceder os crimes de ofensa à integridade física e de injúria.
7. Reportando-nos aos factos ocorridos no dia 07.09.2013 praticados dolosamente pelo arguido contra a sua companheira são idóneos a afectar o seu bem-estar psicológico, pois além de representarem total desrespeito para com a sua companheira, atentavam contra a sua integridade física e eram humilhantes e rebaixavam quem fosse vítima deles.
8. Relativamente aos factos ocorridos no dia 08.11.2013, o arguido agiu com intenção de causar dores e lesões na ofendida e demonstrou persistência na sua actuação, já que nem o facto de ofendida ter caído no solo o dissuadiu de a continuar agredir com pontapés ao longo do corpo, sendo que praticou tais factos em plena via pública e na presença dos amigos que os acompanhavam.
9. Na verdade, em nosso entendimento, tais factos são per si passíveis de configurar a prática de um crime de violência doméstica porquanto demonstram um total desrespeito pela pessoa da sua companheira e evidenciam um estado de enfraquecimento e aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo Srio para a saúde da vítima.
10. De todo o modo, mesmo que se entenda que os factos isoladamente considerados não sejam passíveis de integrar o crime de violência doméstica, discordamos totalmente que o somatório dos factos não se mostra suficiente para se considerar preenchido o requisito da reiteração ou habitualidade.
11. Com efeito, verifica-se que o período de vivência em comum decorreu ininterruptamente entre 02 de Fevereiro de 2013 até ao dia 08 de Novembro de 2013 e, durante esse parco período, o arguido agrediu (e injuriou) pelo menos por duas vezes a vítima BT num intervalo de 2 meses.
12. Pelo que, dada a proximidade temporal dos eventos parciais e uma vez que a prática dos factos ocorridos no dia 08.11.2013 motivou a separação do casal, é forçoso concluir que factualidade provada consubstancia a colocação da pessoa, a ofendida, numa situação que se deva considerar de vitima de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal e que afecta a saúde física, psíquica e emocional da vítima, diminuindo e afectando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida numa realidade conjugal igualitária.
13. Os factos provados são, assim, demonstrativos e preenchem os elementos típicos do crime.
14. Assim sendo, uma vez demonstrado o dolo do arguido, deverá dar-se como provados os seguintes factos:
a) Ao agir da forma referida, o arguido maltratou física e psicologicamente a ofendida, atentando a sua dignidade.
15. Ao decidir como decidiu, absolvendo o arguido da prática do crime de que vinha acusado, o Tribunal a quo violou o artigo 152.º, n.º 1, al. b), do Código Penal.
16. Consequentemente, face aos motivos expostos, deverá o arguido ser condenado pela prática de um crime de violência doméstica, nos termos do artigo 152.º, n.º 1, al. b), do Código Penal.

Termos em que, dando provimento ao presente recurso, entendemos, consequentemente, que deverá o Venerando Tribunal da Relação de Évora condenar o arguido MJCL pela prática de um crime de violência doméstica, nos termos do artigo 152º, n.º 1, al. b), do Código Penal.

Respondeu ao recurso o arguido, Dizendo:
Dispõe o artigo 152º, n.º 1 do Código Penal que - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”
Para que este crime se consume, o comportamento do agente, reiterado ou não, deve revelar uma intensidade tal, ao nível do desvalor (quer da acção, quer do resultado), que seja capaz de lesar o bem jurídico protegido – a saúde física, psíquica ou emocional -, pondo em causa a dignidade da pessoa humana.
Neste tipo criminal, o bem jurídico protegido é, assim, a integridade corporal, saúde física e psíquica e dignidade da pessoa humana em contextos de coabitação conjugal ou análoga.
No caso dos autos, os factos que são imputados ao arguido, dados como provados na sentença recorrida, não são suficientes para considerar verificada a prática, pelo mesmo, de um crime de violência doméstica.
Estes factos não revelam mais do que uma situação de ofensa à integridade física e injúria ocorrida no dia 7 de Setembro de 2013 e uma situação de ofensa à integridade física ocorrida no dia 8 de Novembro de 2013, tal como foram considerados pelo Tribunal a quo.
Nem individualmente nem em conjunto tais factos podem consubstanciar um crime de violência doméstica, no sentido previsto no artigo 152º do CP, porquanto as condutas imputadas ao arguido não têm a gravidade bastante para se poder afirmar que, com elas, foi ofendida a dignidade pessoal de BT ou que o seu bem-estar físico e emocional tenha sido intoleravelmente lesado.
Foram duas situações ocasionais, mas não se provou que a ofendida, no contexto de vida em comum com o arguido sentisse medo, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade ou de humilhação em relação ao agente.
Nem sequer conjuntamente, estes dois episódios, separados no tempo por dois meses, são susceptíveis de configurar uma situação de maus tratos integrante do crime de violência doméstica, pois este tipo criminal não se consubstancia na soma de várias situações de ofensa, faltando, como falta no caso dos autos, a prova de que a ofendida vivesse num clima de medo e de angústia na presença do arguido.
Pelo que, ao decidir pela absolvição do arguido, o Tribunal a quo proferiu uma decisão que é conforme com o Direito, não se mostrando violada qualquer norma jurídica, nomeadamente a contida no artigo 152º, n.º 1, al. b) do C.P.

Termos em que deverá ser negado provimento ao recurso interposto pelo recorrente, mantendo-se a douta sentença recorrida nos precisos termos em que foi proferida, fazendo-se assim a costumada JUSTIÇA.

Nesta Instância, a Sra. Procuradora Geral-Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

Em sede de decisão recorrida foram considerados os seguintes Factos:
Factos Provados
1. O arguido viveu com BT, como se de marido e mulher se tratassem, partilhando casa, mesa e cama, desde 02 de Fevereiro de 2013 até ao dia 08 de Novembro de 2013.
2. No dia 21 de abril de 2013, pelas 23h23, BT foi assistida no Hospital, dando origem ao episódio de urgência n.º 13041651, e apresentava equimose pronunciada no braço esquerdo e ombro direito, hematoma e equimose na zona posterior da coxa esquerda e edema discreto na região da articulação mandibulofacial à direita.
3. No dia 07 de Setembro de 2013, entre as 5h00 e as 6h00, o arguido e BT começaram a discutir em virtude de esta ter perdido a aliança que aquele lhe ofereceu.
4. Em local não inteiramente determinado do percurso entre a baixa de F e a Praceta SM, em F, o arguido, por diversas vezes, apelidou a BT de “puta”.
5. Quando se encontravam próximos do prédio correspondente ao lote J, daquela artéria, o arguido agarrou, com força, pelo braço da BT.
6. Já no interior do prédio, quando BT se encontrava sentada nas escadas, a chorar, o arguido puxou-a por um dos braços e empurrou-a, tendo a mesma embatido na parede.
7. Em virtude do sucedido, BT sentiu dores e ficou com um hematoma no braço.
8. Nas circunstâncias descritas, o arguido tinha consumido bebidas alcoólicas em excesso.
9. No dia 08 de Novembro de 2013, entre as 5h00 e as 6h00, na Travessa de P, em F, na sequência de uma discussão, o arguido começou a agarrar a sua companheira e desferiu-lhe pontapés em várias partes do corpo, fazendo-a cair ao solo.
10. Já depois da mesma estar prostrada no solo, o arguido continuou a desferir-lhe pontapés pelo corpo, só cessando com as agressões devido à intervenção de terceiros.
11. Em consequência directa e necessária das agressões, BT sofreu trauma na face, no abdómen, no pescoço e no membro inferior direito, lesões que directa e necessariamente lhe determinaram 11 (onze) dias de doença, sendo o primeiro deles com incapacidade para o trabalho geral e profissional.
12. No dia 18 de Novembro de 2013, BT apenas apresentava dor à palpação do nariz e equimose infracentimétrica no dorso do nariz.
13. Nas circunstâncias descritas, o arguido tinha consumido bebidas alcoólicas em excesso.
14. Ao bater na ofendida, o arguido agiu sempre com o intuito concretizado de lhe causar danos no corpo e na saúde. 15. Ao dirigir-lhe a expressão supra descrita, o arguido bem sabia que a atingia na sua honra e consideração, o que quis.
16. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei penal.
17. Em virtude do sucedido no dia 08 de Novembro de 2013, o «Centro Hospitalar, E.P.E» prestou a BT os cuidados de saúde a que se refere a factura n.º 14101885, na parte relativa ao episódio de urgência n.º 13114907, no valor €112,07 (cento e doze euros e sete cêntimos).
18. O arguido reside com o avô materno, sua principal figura afectiva de referência, e dois tios já adultos, em apartamento perspectivado como detentor de normativas condições de habitabilidade.
19. O enquadramento no agregado do avô data desde o nascimento do arguido, uma vez que foi ali que a mãe se alojou após o falecimento do cônjuge, ocorrido ainda no decurso do período de gestação do arguido.
20. O arguido acompanhou a mãe aquando da sua autonomização, verificada após o encetar de uma nova relação marital.
21. Contudo, dada a total incapacidade de entendimento entre o arguido e o padrasto, aquele acabou por regressar à residência do avô.
22. Tal instabilidade, geradora em idade muito precoce de uma marcada revolta no arguido, encontrou-se aliada ao ignorar sistemático da normatividade imposta pela mãe e avô, bem como ao constante envolvimento em situações de risco comportamental.
23. Os seus problemas de conduta tornaram-se extensíveis ao contexto escolar, manifestando o arguido uma acentuada incapacidade em cumprir as regras/normas impostas, bem como em acatar a autoridade dos adultos e traduziram-se em constantes fugas ao estabelecimento de ensino frequentado.
24. Aos 11 anos, o arguido anuiu à sua institucionalização, concretizada no Centro de Assistência Social.
25. A reintegração no agregado do avô viria a ocorrer volvidos 4 anos, após completar o 8.º ano de escolaridade.
26. Com o regresso a F, o arguido retomou o seu modo de vida destruturado, assente no contrariar das orientações maternas e no privilegiar da sua associação a pares conotados com a prática de crimes/ilícitos.
27. Aos 18 anos, após concluir o 9.º ano através de um curso de educação e formação de adultos (EFA), o arguido ingressou no mercado de trabalho como talhante e, posteriormente, como ajudante de cozinha.
28. Em Fevereiro de 2013, o arguido encetou a união de facto com BT, passando o casal a coabitar em casa do avô do arguido.
29. Durante os 9 meses de vida em comum, o arguido integrou o mercado de trabalho na empresa (...), como empregado de balcão.
30. O acesso a um vencimento fixo, sem encargos acrescidos, permitiu ao arguido manter o estilo de vida pautado pelas saídas nocturnas, ingestão abusiva de bebidas alcoólicas e envolvimento em situações de risco comportamental, contexto que dominou o período de vida em comum do jovem casal.
31. A relação, embora descrita como afectivamente investida, encontrava-se associada ao vivenciar de situações de conflito relacional, despoletadas por ciúmes do arguido relativamente ao ex-namorado de BT e enquadradas num contexto de consumo excessivo de bebidas alcoólicas.
32. Após 8/11/2013, o casal optou pela separação.
33. Conquanto o retomar da relação tenha ocorrido ainda no decurso do mês de Novembro de 2013, foi consensual a necessidade de residirem em espaços habitacionais distintos, ou seja, manterem a integração nos respectivos agregados de origem.
34. Desde então, a dinâmica relacional entre o casal dá mostras de uma maior acalmia, para a qual muito tem contribuído a gravidez de BT, que se encontra no 4.º mês de gestação, o cessar de ingestão de bebidas alcoólicas por parte do arguido e a sua recente reintegração no mercado de trabalho.
35. O arguido integrou a 19/04/2014 o mapa de pessoal do V. Hotel, (...), actividade no âmbito da qual aufere cerca de €500,00/mês.
36. O arguido revela capacidade de efectuar uma correcta avaliação do valor jurídico em causa, não legitimando o recurso a qualquer tipo violência como forma de resolução de conflitos. 37. Os factos dos autos não aparentam encontrar-se associados a crenças ou estereótipos que façam prever a sua repetição por convicções associadas à sua masculinidade, mas antes a alterações de conduta registadas após o consumo de bebidas alcoólicas.
38. Em contexto social, o arguido dá mostras de uma maior acalmia comportamental, centrando o seu quotidiano no desenvolvimento da sua actividade profissional e/ou no convívio com a namorada.
39. Também a relação com a mãe e o padrasto aparenta encontrar-se assente numa maior cordialidade.
40. Por decisão de 05/06/2013, transitada em julgado em 05/06/2013, proferida no processo n.º 1129/12.8PBFAR, deste Juízo Criminal, o arguido foi condenado pela prática, em 11/10/2012, na pessoa da ofendida MCCS, de um crime de ofensa à integridade física simples, na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de €5 (cinco euros), num total de €700 (setecentos euros).
Factos não provados
Com relevância para a decisão da causa, não resultaram provados outros factos, em contradição com aqueles ou para além deles, designadamente, os seguintes (...):

Em sede de fundamentação da decisão de facto consignou-se o seguinte:
O Tribunal fundou a sua convicção, concreta e globalmente, no confronto, apreciação e análise crítica das declarações do arguido, do depoimento das testemunhas inquiridas e da documentação constante dos autos, tudo conjugado com as regras da experiência e da normalidade do acontecer.
(…)
Não se respondeu à restante matéria por ser conclusiva.

Como consabido, são as conclusões retiradas pelo recorrente da sua motivação que definem o objecto do recurso e bem assim os poderes de cognição do Tribunal ad quem.
Face ao teor das conclusões tecidas pelo aqui recorrente, decorre que se pretende o reexame da matéria de direito e dentro de tal âmbito de conhecimento a questão atinente à subsunção jurídica a operar face à factualidade tida como assente- saber se deve ter-se o arguido como incurso na prática de um crime de violência doméstica, p. e p., pelo art.º 152.º, n.º 1, al. b), do Cód. Pen.
No que respeita ao crime de violência doméstica, rege o art.º 152.º, do Cód. Pen., na parte que aos autos importa, onde se diz no seu n.º 1, que quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
Como ensina o Prof. Américo Taipa de Carvalho, o intento de prevenir e reprimir as ofensas que rebaixem de modo socialmente insuportável a dignidade pessoal da vítima está por certo na base da criminalização específica dos maus tratos domésticos.[1]
Sobre o bem jurídico tutelado pelo crime de violência doméstica, vária tem sido a discussão não existindo unanimidade de entendimento.
Para Nuno Brandão, ao contrário do que vem sendo defendido pela jurisprudência, não é de sufragar o entendimento que vai no sentido de o bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica ser a dignidade humana.
Porquanto, com o delito em causa se pretende dirigir e actuar sobre condutas que estão muito longe de uma tal dignidade.
Sendo mais adequada á teleologia da específica criminalização dos maus tratos intra-familiares, á sua inserção sistemática e á eficácia operativa do preceito apontar a saúde como o bem jurídico do crime de violência doméstica.
Sendo objecto de tutela a integridade das funções corporais da pessoa nas suas dimensões física e psíquica[2].
Para Miguez Garcia o bem jurídico protegido pela norma será um bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, a liberdade nas suas expressões sexual e de natureza pessoal.[3]
Para Plácido Conde Rodrigues, o bem jurídico protegido pelo tipo de crime em apreço será a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral[4].
Como afirmação de que o bem jurídico protegido pelo tipo legal de crime em apreço é, em geral, a dignidade da pessoa humana e, em particular, a saúde, vemos vários arestos dos nossos Tribunais Superiores, de onde destacamos, entre outros, o Acórdão da Relação do Porto, de 26.05.2010, no Processo n.º 179/08.3GDSTS.P1.
E estaremos perante um crime específico impróprio, cuja ilicitude é agravada em virtude de uma relação familiar, parental ou de dependência entre o agente e a vítima.
E pressupondo que o sujeito activo se encontre numa determinada relação para com o sujeito passivo, a vítima dos seus comportamentos. O sujeito passivo ou vítima só pode ser a pessoa que se encontre, para com o agente ou sujeito activo, numa relação de coabitação conjugal ou seja cônjuge.[5]
De salientar que a lei prescinde da existência de laços familiares entre a vítima e o agente ao temo do facto.
Do que de tal dá bem nota o segmento da lei ao abranger o ex-cônjuge ou pessoa com quem o agente “tenha mantido” relação análoga á dos cônjuges.
Alargando-se, desta sorte, a tutela às relações parentais não familiares.
A conduta típica da violência doméstica tanto se pode revestir de maus-tratos físicos, onde se incluem as ofensas corporais, como de maus tratos psíquicos, designadamente humilhações, provocações, molestações, ameaças ou outros maus tratos, como sejam as ofensas sexuais e as privações da liberdade.
E como refere Nuno Brandão, in ob. cit., a págs. 21 a 22, no crime em apreço devem estar em causa actos que pelo seu caracter violento sejam, por si só ou quando conjugados com outros, idóneos a reflectir-se negativamente sobre a saúde física ou psíquica da vítima.
Sendo que a circunstância de uma certa acção poder, a priori, integrar o conceito de maus tratos não significa necessariamente que se dê sem mais como preenchido o tipo-de-ilícito do crime de violência doméstica, tudo dependendo da respectiva situação ambiente e da imagem global do facto.
Entre todas as acções que podem ser tidas como maus tratos físicos temos de aí incluir os comportamentos agressivos contra o corpo e que preencham a factualidade típica da ofensa á integridade física; mesmo que se não comprove uma efectiva lesão da integridade corporal da pessoa visada.
No que respeita aos maus tratos psíquicos, aí podemos incluir todos os comportamentos que passem pelos insultos, as criticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, as ameaças, as privações de liberdade, as perseguições…
Para se assumirem como actos típicos de maus tratos, estes comportamentos não têm de possuir relevância específica no seio de outros tipos legais de crime. Seja no sentido de que nem remotamente poderiam ser integrados em qualquer outra previsão típica, seja no de que a conduta seria de molde a preencher um específico tipo-de-ilícito, mas fica aquém do necessário para esse efeito, como se costuma enfatizar em relação às ameaças.
Há que analisar, de seguida, se para o preenchimento do tipo em questão se basta a prática de um acto isolado ou antes se tem de exigir a reiteração de conduta.
Com a alteração legislativa operada pela Lei n.º 59/07, de 4 de Setembro, veio decidir-se no sentido de bastar para o preenchimento do tipo legal de crime de violência doméstica a prática de um acto isolado e sem que se exija a reiteração de conduta.
Pondo, desta forma, fim à polémica que existia no seio da doutrina e da jurisprudência, a respeito.
Sendo hoje inequívoco que a tutela da violência doméstica se projecta não apenas sobre casos de reiteração ou habitualidade de comportamentos violentos, mas também potencialmente aplicável a uma conduta violenta.
Porém, não é qualquer acção isolada de violência exercida no âmbito doméstico que poderá ser qualificada como de maus tratos com vista ao preenchimento do tipo.
Como refere Nuno Brandão, in ob. cit., a págs. 21, com a revisão de 2007 foi inequivocamente aberto caminho para a integração de alguns dos casos (do facto único) no ilícito-típico de violência doméstica. Na versão final da revisão deixou de constar a referência á intensidade dos maus-tratos como alternativa á reiteração, que fazia parte da proposta de Lei 98-X.
Na jurisprudência anterior à revisão era já largamente maioritária a posição de que o crime de maus tratos não prossupunha uma reiteração de condutas, podendo bastar-se com um único comportamento agressivo.
Para tal, muitas vezes, erigiu-se como critério relevante que a ofensa se revestisse de uma certa gravidade, que, fundamentalmente, traduzisse crueldade e insensibilidade ou até vingança desnecessária por parte do agente.
Mais recentemente, na Relação de Coimbra, vem-se aflorando a ideia da dignidade pessoal da pessoa ofendida e á possibilidade de á mesma ser atribuído o estatuto de vítima, considerando-se que “o que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apresentados á luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade de vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal”.[6]
Apesar de entender de que os citados arestos apontam na direcção correcta, entende, porém, o Autor que há que exigir que o comportamento violento seja um tal que, pela sua brutalidade ou intensidade ou pela motivação ou estado de espírito que o anima, seja de molde a ressentir-se de modo indelével na saúde física ou psíquica da vítima.[7]
Ou como se deu nota no Acórdão da Relação do Porto, de 19.09.2012, no Processo n.º901/11.0PAPVZ.P1, como a própria expressão legal sugere, a acção não pode limitar-se a uma mera agressão física ou verbal, ou à simples violação de alguma ou algumas das liberdades da vítima, tuteladas por outros tipos legais de crimes. Importa que a agressão em sentido lato constitua uma situação de “maus tratos”. E estes só se verificam quando a acção do agente concretiza actos violentos que, pela sua imagem global e pela gravidade da situação concreta são tipificados como crime pela sua perigosidade típica para a saúde e bem-estar físico e psíquico da vítima.
Se os maus tratos constituem ofensa do corpo ou da saúde de outrem, contudo, nem toda a ofensa inserida no seio da vida familiar/doméstica representa, imediatamente, maus tratos, pois estes pressupõem que o agente ofenda a integridade física ou psíquica de um modo especialmente desvalioso e, por isso, particularmente censurável.
Não são os simples actos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus tratos a cônjuge, o que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade de vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal.
O tipo subjectivo só pode ser preenchido dolosamente. Sendo que o conhecimento correcto da identidade e das características da vítima é fundamental para a conformação do dolo do agente, como refere Pinto de Albuquerque, in ob. cit., págs. 406.
Com base nos ensinamentos acabados de mencionar, debrucemo-nos sobre o caso em apreço nos autos.
Importando, desta feita, descortinar se a conduta do agente no caso em apreço, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é susceptível de ser classificada como “maus tratos”.[8]
O mesmo é dizer se estamos perante uma especial gravidade da conduta maltratante, onde se incluem os casos mais chocantes de maus tratos em cônjuges ou em pessoa em situação análoga.
Onde se tem de incluir o tratamento cruel, excessivo, sem respeito pela dignidade do companheiro, tudo com aproveitamento de uma autoridade do agente que lhe advém do uso e abuso da sua força física.
Visando-se, dessa feita, proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, como ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças. Está em causa a dignidade humana da vítima, a sua saúde física e psíquica, a sua liberdade de determinação, que são brutalmente ofendidas, não apenas através de ofensas, ameaças ou injúrias, mas essencialmente através de um clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade, humilhação, tudo provocado pelo agente, que torna num inferno a vida daquele concreto ser humano.[9]
Para tanto, importa reter duas situações- relativas ao comportamento do arguido para com a ofendida - que os autos nos descrevem, a saber:
Uma, ocorrida no dia 07 de Setembro de 2013, entre as 5h00 e as 6h00, em que ocorre uma discussão entre o arguido e BT, sua companheira, por esta ter perdido a aliança que aquele lhe ofereceu.
Em local não inteiramente determinado do percurso entre a baixa de F e a Praceta SM, em F, o arguido, por diversas vezes, apelidou BT de “puta”.
Quando se encontravam próximos do prédio correspondente ao lote J, daquela artéria, o arguido agarrou, com força, pelo braço da BT.
Já no interior do prédio, quando BT se encontrava sentada nas escadas, a chorar, o arguido puxou-a por um dos braços e empurrou-a, tendo a mesma embatido na parede.
Outra, ocorrida no dia 08 de Novembro de 2013, entre as 5h00 e as 6h00, na Travessa de S. Pedro, em F, na sequência de uma discussão, o arguido começou a agarrar a sua companheira e desferiu-lhe pontapés em várias partes do corpo, fazendo-a cair ao solo.
Com esta prostrada no solo, o arguido continuou a desferir-lhe pontapés pelo corpo, só cessando com as agressões devido à intervenção de terceiros.
Sofrendo em consequência da agressão trauma na face, no abdómen, no pescoço e no membro inferior direito, lesões que directa e necessariamente lhe determinaram 11 (onze) dias de doença, sendo o primeiro deles com incapacidade para o trabalho geral e profissional.
No dia 18 de Novembro de 2013, BT apenas apresentava dor à palpação do nariz e equimose infracentimétrica no dorso do nariz.
Do acabado de descrever não resulta, nem pode resultar, a conclusão de que se está perante a concretização de actos violentos que, pela sua imagem global e pela sua gravidade, devam ser tidos como desrespeitadores da pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, e logo, susceptíveis de serem classificados como maus tratos.
De sorte a que sejam punidos no âmbito dos tipos legais de ofensas à integridade física ou injúrias e não passem a ser punidos ao nivel do crime de violência doméstica.
Tem, assim, razão o M.mo Juiz a quo ao ter absolvido o arguido do crime de violência doméstica, que lhe vinha imputado.
Sendo nestes vectores que o aqui recorrente estrutura o seu recurso e sem curar de outras de longas ou considerandos, impõe-se concluir pela improcedência do recurso, devendo manter-se a Sentença revidenda.

Termos são em que Acordam em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a Sentença recorrida.

Sem custas, por não devidas.

(texto elaborado e revisto pelo relator).


Évora, 24 de Fevereiro de 2015
(JoS Proença da Costa)
(Gilberto Cunha)










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[1] Ver, Comentário Conimbricense do Código Penal, Vol. I, Comentário ao art.º 152.º, § 4.
[2] Ver, A Tutela Penal Especial Reforçada Da Violência Doméstica, págs. 14 e 15.
[3] Ver, O Direito Penal Passo a Passo, Vol. I, págs. 205.
[4] Ver, Violência Doméstica- Novo Quadro Legal e Processual Penal, Revista do C.E.J., n.º 8, págs. 305.
[5] Ver, Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, págs. 405 e Ac. Rel. Porto, de 296.09.2012, no Processo n.º 176/11.1SLPRT.P1.
[6] Ver, Ac., de 29-01-2003, e bem assim os Acórdãos da mesma Relação de 13.06.2007 e de 28.01.2010, no Processo n.º 361/07.0GCPBL.C1.
[7] Ver, Ac. S.T.J., de 6.04.2006, no Processo 1167/06.
[8] Ver, ainda, Acórdão da Relação do Proto, de 8 de Outubro de 2014, no Processo n.º 956/10.5PJPRT.P1.
[9] Ver, Acórdão da Relação de Lisboa, de 7 de Dezembro de 2010, no Processo n.º 224/05.4GCTVD.L1-5.