Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
11/20.0GAETZ-F.E1
Relator: LAURA GOULART MAURÍCIO
Descritores: DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
DESPACHO
OMISSÃO
IRREGULARIDADE
Data do Acordão: 06/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. Ao invés do que defende o recorrente, não ocorre, no caso, a omissão do dever de fundamentação porquanto o despacho em crise contém as razões de facto e de direito que suportam a decisão, que é fundamentada, legal e faticamente, e esclarecedora das premissas da mesma, explicitando em termos lógicos a razão pela qual o Tribunal decidiu nos termos plasmados no despacho recorrido, cumprindo, cabalmente, tal dever, o qual, tratando-se de decisão interlocutória, não tem paralelo com o que é exigível na sentença, que a final conhece do mérito.
II. Acresce que a omissão do dever de fundamentação - onde se inclui a insuficiente fundamentação - não sendo cominada com a nulidade – posto que de sentença se não trata -, apenas acarretaria, como já supra dito, uma irregularidade, a arguir nos termos e prazos previsto no artigo 123.º do CPP, o que não sucedeu.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório
No âmbito dos autos com o NUIPC nº11/20.0GAETZ em que, entre outros, é arguido AA, foi ao mesmo, por decisão de 1 de outubro de 2021, aplicada a medida de coação de prisão preventiva.
De tal decisão foi pelo arguido interposto recurso, julgado não provido por Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25 de janeiro de 2022.
Em 30 de março de 2022 foi proferido o seguinte despacho (transcrição):
“Os arguidos AA e BB encontram-se sujeitos à medida de coacção de prisão preventiva, prevista no artigo 202º, nº1, alínea a) e c) do Código de Processo Penal desde 01.10.2021 e 14.10.2021.
Uma vez que foi proferida a acusação, importa proceder ao respectivo reexame.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido da manutenção da medida de coacção.
Compulsados os autos, verifica-se que, desde a aplicação da medida de coacção em causa, não se alteraram os pressupostos de facto e de direito que justificaram essa aplicação e é desnecessário proceder à audição dos arguidos (cfr.art.213º, nº3 do Cód. Processo Penal).
Atentos os fundamentos dos despachos de aplicação e de revisão das medidas de coacção, a fls.3, 34, 52, 55, 135 e 145 que aqui damos por integralmente reproduzidos, verifica-se que não foram rebatidos os fortes indícios nem os perigos que se pretenderam acautelar com a sujeição dos arguidos à medida de coacção de prisão preventiva, que saem reforçados com a prolação do despacho acusatório.
Não se mostra excedido o prazo máximo fixado para esta medida coactiva.
Termos em que se decide manter a medida de coacção de prisão preventiva aplicada aos arguidos ao abrigo do disposto nos artigos 191º a 196º, 202º, al.a), e 204º, al.c), todos do Código de Processo Penal.
Notifique e D.N.”
*
Inconformado com tal decisão, o arguido AA interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:
a) Vem o presente recurso interposto do despacho proferido a fls. , pelo qual, na sequência da prolação de acusação, foi considerado manterem-se os pressupostos da aplicação ao Arguido ora Recorrente da medida de coação de prisão preventiva, designadamente Perigo de perturbação do inquérito que findou pela Acusação!
b) Pior do que isto, só a constatação de que, quando o Tribunal a quo reavaliou a medida de coação aplicada, mantendo-a, consignou em despacho que os autos deveriam ser concluídos no dia 1 de abril, o que não deixa de ser curioso, se depois verificarmos que o despacho de acusação foi proferido precisamente no dia anterior à “programada” data, inexistindo qualquer acto de inquérito praticado nos três meses anteriores, ou seja, os três meses subsequentes à prisão preventiva fundada no perigo de perturbação do inquérito!
c) E pior ainda, só a constatação de que, sem que tenha sido realizada qualquer diligência em sede de inquérito durante três meses, no despacho que reavaliou os pressupostos da prisão preventiva três meses após a sua aplicação, é dada ordem de conclusão para o dia 01.04.2022; E – parece mentira – o Despacho de acusação foi proferido no dia 31.03.2022!!
d) À data da detenção, o Arguido era uma pessoa socialmente inserida, que explora um negócio próprio e que tem meios de sustento estáveis que lhe possibilitam viver sem recorrer a qualquer prática delituosa, que nunca antes foi condenado por crime desta natureza, revelando os factos indiciados uma situação subsumível ao “pequeno tráfico”, sendo as quantidades de produto estupefacientes apreendidas (e bem assim as que teriam sido transaccionadas, referidas nos factos que respaldam “escutas” e vigilâncias) objectivamente diminutas; Tudo, portanto, circunstâncias que a decisão recorrida não pondera e que são desde logo susceptíveis de afastar o recurso à prisão preventiva.
e) A primitiva decisão de aplicação da medida de prisão preventiva ao único arguido preventivamente preso e que é o único que tinha um negócio lícito próprio e uma vida estruturada, fundou-se, desde logo, no perigo de perturbação do inquérito, jamais reconduzido a quaisquer factos concretos que indiciassem uma actuação com o propósito de prejudicar a investigação, esquivando-se em anátemas e numa mera possibilidade de que tal acontecesse.
f) E bem vistas as coisas, nunca sequer tal perigo passou de um subterfúgio inventado pelo M.ºP.º e secundado pelo Tribunal a quo, já que, após decretamento da medida de coação – há três meses – nenhum acto de inquérito foi praticado; Não existiu qualquer necessidade de ulterior investigação;
g) Portanto, não só é manifesto que nunca tal perigo esteve realmente em causa, não passando de uma desculpa tabelar usada pelo M.ºP.º e secundada pelo Tribunal a quo para justificar a punição antes do julgamento, como na realidade surpreende que o próprio Tribunal a quo não interpele o M.ºP.º para esclarecer a razão pela qual promoveu a prisão preventiva com este fundamento, verificando-se depois a inexistência de qualquer acto de inquérito na pendência da prisão preventiva.
h) Crê-se, por isso, desde logo, que a aplicação da pena de prisão preventiva ao arguido, a mais violenta medida de coação que pode ser imposta e com efeitos de antecipação da punição, sem ponderação de qualquer outra medida – por exemplo a proibição de se ausentar para o estrangeiro; ou, já numa perspectiva mais ríspida, a obrigação de permanência na habitação – não dá respaldo aos princípios da legalidade (arts 29.º, n.º 1, da CRP e 191.º, do CPP), excepcionalidade e necessidade (arts 27.º, n,º 3 e 28.º, n.º 2, da CRP e 193.º, do CPP), adequação e proporcionalidade (art. 193.º do CPP), como emanação do princípio da presunção da inocência do arguido, contido no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição, bem como, o disposto no art.º 204º do CPP.
i) De resto, a propósito deste pretenso perigo de perturbação do inquérito, o despacho que aplicou a medida de coação ainda em vigor em consequência da decisão recorrida, funda-se numa narrativa totalmente abstracta -«Verifica-se em concreto o perigo de perturbação do decurso do inquérito, e isto porque há um suspeito que ainda não foram detido, tendo[se] (…) colocado em parte incerta na Roménia. Se estes arguidos AA, CC fossem restituídos à liberdade (…) de alguma forma, a prova a recolher poderia ficar comprometida, podendo aquele através da rede de contactos condicionar a prova testemunhal.» - que amálgama e confunde a fuga de um “suspeito” com o “condicionamento” da prova testemunhal, num argumento centrado no “tipo”, e não em qualquer actuação, concreta, dos arguidos cuja prisão preventiva determinou;
j) Agora, o despacho recorrido, constitui o resultado (formalmente falando) da reavaliação (também sem conceder) efectuada pelo Tribunal a quo, relativamente aos pressupostos da prisão preventiva.
k) Durante três meses não foi promovida ou efectuada qualquer diligência de inquérito, com todos os Arguidos em liberdade, inclusive, o Arguido CC, cuja prisão preventiva foi determinada com base nos mesmos factos e com fundamentos aliás comuns aos que serviram ao ora Recorrente, sem que, nesses três meses, se tenha verificado, quanto a qualquer deles, qualquer periculum libertatis...
l) Grave: o Arguido CC, foi libertado, porque o respectivo recurso, igual ao do ora Recorrente (porque iguais eram os pressupostos da prisão preventiva, os factos imputados e todas as demais circunstâncias; Tendo os Arguidos uma relação amorosa, vivendo em economia comum, estando juntos em todos os actos que lhes são imputados, tendo um negócio comum explorado no estabelecimento comercial onde ocorreram apreensões…), foi apreciado por diferente Secção do Tribunal da Relação de Évora.
m) É perante esta realidade, que o MM.º Juiz de Instrução Criminal decide, “chapa quatrio”, manter a medida de coação aplicada, a mais gravosa da bitola de que dispõe, com fundamento na inalteração dos pressupostos, todos eles alterados desde logo pela circunstância de o Arguido CC estar em liberdade (sem qualquer consequência processual, insista-se).
n) A fundamentação com que o faz é, objectivamente, nenhuma: inexiste no despacho recorrido qualquer referência factual, para além da fórmula tabelar que serve a qualquer despacho de idêntico escopo; sequer ao facto de ser impossível “perturbar” um inquérito que está findo!
o) Há que ser frontal: não houve reapreciação nenhuma, nem pode ter havido tal reapreciação, na medida em que nem sequer se tocou na questão de não ter sido, nestes três meses de privação de liberdade, praticado qualquer acto pelo M.ºP.º, que promoveu a prisão preventiva com fundamento no perigo de perturbação do inquérito!
p) Pasme-se: não foi sequer, ao menos, ponderada a impossibilidade de, findo que estava (e é ostensivo que já estava) o inquérito, já certamente concluso para acusação, não ser possível ocorrer qualquer perturbação do inquérito.
q) Por outro lado, se os fundamentos da prisão preventiva são, no primitivo despacho, comuns ao ora Recorrente e ao Arguido CC, são fundamentos cuja relevância está delimitada pelo momento do inquérito em que foi tal medida determinada, o que, igualmente, nem é perceptível da fundamentação do despacho recorrido!
r) Não foi a medida de coação reponderada face à circunstância de a decisão relativa ao Arguido CC ter sido revogada pelo Tribunal da Relação (sendo deveras curioso tal facto não ter determinado a verificação de qualquer dos “perigos” que constituíam fundamento da medida aplicada…
s) Não foi ponderada a circunstância de já não se poder manter o fundamento (comum à prisão preventiva aplica ao Arguido CC) de “avisarem” o “suspeito” BB de qualquer operação (o que se fosse o caso o Arguido CC já teria feito… E não há disso notícia).
t) Não foi ponderada a inexistência, por qualquer dos arguidos, da prática de qualquer acto que consubstancie, sequer, uma mera suspeita de que poderão prosseguir com uma (não demonstrada ainda) actividade criminosa.
u) Não foi sequer ponderada a circunstância de o companheiro e sócio do ora Recorrente, não ter fugido, nem sequer, praticado qualquer acto que o índice.
v) Não foi ponderado, objectivamente, nada; Pois se os fundamentos da decisão que inicialmente aplicaram a medida de coação são uma perfeita confusão entre os pressupostos de que a mesma depende, estes, inerentes ao despacho ora recorrido, nem fundamentos são.
w) E se, findo o inquérito, não pode haver perigo de perturbação do inquérito, a dura realidade é que não foi, sequer, ponderada a possibilidade de substituição da medida de coação de prisão preventiva, pela de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica ou pulseira electrónica, que sempre promoveria o afastamento do arguido da prática de novos crimes e acautelaria o perigo de fuga…
Termos em que deverá o presente recurso ser admitido e em consequência ser a decisão recorrida ser revogada –com estrondo e nota de censura - quanto à aplicação da medida de coação de prisão preventiva,
Assim se fazendo sã e serena JUSTIÇA!
*
O Ministério Público respondeu ao recurso interposto, pugnando pela respetiva improcedência e formulando as seguintes conclusões:
1. O recurso apresentado pelo arguido vem interposto do despacho que procedeu à revisão da prisão preventiva, proferido em 30.03.2022, na sequência da acusação pública deduzida pelo Ministério Público.
2. Analisado o teor do recurso interposto pelo arguido entende-se que é a seguinte a questão a apreciar: I - Dos pressupostos para a manutenção da prisão preventiva e da nulidade do despacho de aplicação das medidas de coacção por falta de fundamentação.
3. Entendemos que não merece acolhimento o recurso interposto, pois a medida de coacção aplicada é a única que se afigura adequada, necessária e proporcional a acautelar os perigos que no caso concreto se fazem sentir.
4. Entende o recorrente que deveria ter sido aplicada medida de coacção não privativa da liberdade, ou em ultima análise deveria ter sido aplicada a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com sujeitação a vigilância electrónica.
5. Ora, não lhe assiste razão.
6. As medidas de coacção são medidas exclusivamente cautelares, que constrangem a liberdade pessoal do arguido ou a disponibilidade do seu património, tendo em vista assegurar uma dupla finalidade: o decurso regular do processo e a execução das sentenças condenatórias.
7. No caso concreto mostram-se verificados os perigos de continuação da actividade criminosa, o perigo de conservação e aquisição da prova.
8. E contrariamente ao que pretende fazer crer o recorrente, tais perigos encontram-se devidamente fundamentos, não padecendo o despacho recorrido de qualquer vicio.
9. O recorrente parece fazer crer a V. Exas que nenhuma diligência de inquérito ocorreu, no entanto tal não corresponde à verdade, basta para o efeito analisar os autos de inquirição juntos aos autos, o relatório de pesquisa informática, cujos elementos apreendidos foram notificados ao recorrente e as demais diligências realizadas.
10. O recorrente parece também desconhecer que o perigo de perturbação do inquérito ou da instrução do processo, na vertente de perigo para aquisição e conservação ou veracidade da prova é transversal a todas as fases processuais.
11. Aliás tal perigo é muito relevante na fase de julgamento, pois caso o arguido tenha livre acesso às testemunhas poderá tentar condicionar o depoimento das mesmas, levando a que faltem à verdade.
12. Veja-se o que tem sido entendido pela jurisprudência, designadamente o vertido no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 26.03.2019, proferido no âmbito do processo n.º 85/18.3JAFAR-B.E1, cujo relator é Renato Barroso: “O perigo de perturbação do inquérito projecta-se em todas as fases processuais, pois o que está em causa é a recolha, conservação e veracidade da prova. II – Para esta necessidade de manter intacta a prova, é irrelevante a dedução da acusação, já que o que importa ajuizar é se a concreta prova recolhida poderá ser produzida em julgamento sem adulterações.”
13. O despacho recorrido encontra-se suficientemente fundamentado, pois não existe qualquer circunstância superveniente, quanto ao arguido em questão, que permita revogar ou alterar a medida de coacção aplicada.
14. Acresce que, a sujeição do arguido a prisão preventiva é a única medida de coacção que permite acautelar os perigos que no caso concreto se fazem sentir, designadamente o perigo de perturbação do inquérito, na vertente de conservação e aquisição da prova e o perigo de continuação da actividade criminosa.
15. Pois, na verdade a aplicação de medida de coacção não privativa da liberdade, ou a obrigação da permanência na habitação não se afiguram medidas de coacçao adequadas para atenuar as exigências cautelares que no caso concreto se fazem sentir.
16. Tal questão tem sido amplamente debatida na jurisprudência, entendendo-se que a obrigação de permanência na habitação apenas deverá ser aplicada aos arguidos que demonstrem a possibilidade alguma contenção nas suas condutas. Porém será inaplicável quando o crime em causa seja susceptíveis de cometido a partir e/ou no interior da residência, como é o tráfico de estupefacientes.
17. Veja- se o que consta do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 11.06.2019, proferido no âmbito do processo n.º 1534/17.3T9TVD-A.L1-5, cujo relator é José Adriano, “Por outro lado, a mencionada obrigação de permanência na habitação, ainda que com vigilância electrónica, não é, só por si, impeditiva de o referido arguido manter o mesmo negócio ilícito, contactando com os seus clientes a partir da sua residência - seja ela qual for – e ser por eles contactado, fazendo com que estes – sejam os mesmos de antigamente, ou outros diferentes - se desloquem à aludida residência.
Tendo em conta tais pressupostos, não cremos que a aplicação de qualquer outra medida coactiva, não privativa da liberdade, ou mesmo a obrigação de permanência na habitação, com recurso a meios técnicos de controlo, sejam suficientes para afastar o arguido/recorrente da prática de novos factos da natureza dos indiciados, de tráfico de estupefacientes, tornando-se, por isso, necessária a prisão preventiva, sendo a única medida adequada às exigências cautelares que no caso se fazem sentir e proporcional à sanção que previsivelmente lhe poderá ser aplicada, em caso de condenação (…)”
18. Face ao que antecede, considera-se que não merece qualquer reparo o despacho recorrido, e que não deve ser dado provimento ao recurso, devendo o arguido aguardar os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coacção de prisão preventiva.
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, entendemos que não deve ser concedido provimento ao recurso, e em consequência deve ser mantido o despacho recorrido devendo o arguido AA continuar sujeito à medida de coacção de prisão preventiva.
Assim se fazendo JUSTIÇA!
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No Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer nos seguintes termos:
“ (…)
2.1.1. O Recurso vem interposto pelo Arguido AA do despacho que procedeu à revisão da medida de coação de prisão preventiva, proferido em 30-3-2022 na sequência da dedução da acusação pública, nos termos do artigo 213.º do Código de Processo Penal e que, no seu dispositivo, manteve essa medida de coação.
2.1.2. O recorrente impugna a decisão por entender que os pressupostos da prisão preventiva deixaram de se verificar após a acusação e que o despacho que a manteve é nulo por falta de fundamentação, devendo ser-lhe aplicada medida de coação não privativa de liberdade ou medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica (OPHVE).
3. Parecer sobre as questões a decidir.
3.1. Quadro factual selecionado.
Ao arguido recorrente, imputado pelo cometimento de um crime de tráfico de estupefacientes, p.p. pelo artigo 21.º, n.º 1 do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro, foi-lhe aplicada a medida de coação de prisão preventiva em 2-10-2021 aquando do seu primeiro interrogatório judicial, sucessivamente revista e mantida, inclusivamente por douto acórdão deste Tribunal da Relação de Évora datado de 25-1-2022.
O recurso apresentado pelo arguido é mais uma tentativa de ver substituída a medida de coação aplicada, mas que o Tribunal da Relação de Évora já julgou improcedente.
Nesse contexto:
Está devidamente assente, nos factos e no direito convocável, que existem manifestamente fortes indícios da prática pelo arguido de crime doloso punível com pena de prião de máximo superior a 5 anos e enquadrável no conceito de criminalidade violenta – artigo 202.º, n.º 1, alíneas a) e b) do Código de Processo Penal.
O recorrente não põe em causa, no recurso, esse juízo, tanto mais que os fortes indícios já se transformaram em indícios suficientes por via da dedução da acusação pelo Ministério Público.
Nem põe em causa a subsunção jurídica dos factos ao crime de tráfico de estupefacientes p.p. pelo artigo 21.º do DL 15/93.
Ainda que ponha em causa a fundamentação do despacho recorrido, a mesma foi tida por manifestamente cumpridora do preceito que impõe o dever de fundamentação, conforme artigo 194.º, n.º 6 do Código de Processo Penal em relação ao despacho judicial que aplicou essa medida e para a qual o despacho recorrido remete.
Quanto aos perigos, enquanto pressupostos gerais da aplicação da medida de coação em causa (artigo 204.º do Código de Processo Penal), à exceção do perigo de fuga, que o Tribunal da Relação de Évora afastou no caso, foram tidos por atuais e concretos os perigos de perturbação do inquérito e de continuação da atividade criminosa.
Quanto à necessidade, proporcionalidade, adequação e legalidade da medida aplicada, que o recorrente volta a questionar, essas condições gerais foram tidas por verificadas, incluindo não haver razão para a substituição da prisão preventiva por OPHVE, que o recorrente volta a pedir.
Vejamos agora o que entender – com o risco de se repetirem as mesmas considerações - quanto à fundamentação do despacho recorrido e à verificação dos perigos que nele foram tidos por concretos e atuais e justificadores da manutenção da medida de coação de prisão preventiva em que se encontra o arguido.
Tanto no despacho judicial que a determinou, como no de revisão, este em 30-3-2022, se considerou existirem, com atualidade, os perigos de fuga, de perturbação do inquérito (por ocasião dos despachos que antecederam a acusação e a revisão imposta pelo artigo 213.º do Código de Processo Penal, supõe-se) e de continuação da atividade criminosa.
O douto despacho recorrido, cuja fundamentação remete para a fundamentação do despacho que aplicou a medida de coação de prisão preventiva e que já foi sindicado por acórdão deste Tribunal da Relação de Évora, atesta na sua fundamentação não haver alteração de circunstâncias que, salienta, são iguais na atualidade às que existiam aquando da detenção e sujeição a prisão preventiva.

3.2. Enquadramento jurídico:
3.2.1. Análise:
O arguido põe em causa que as exigências cautelares que determinaram a sua sujeição à medida de coação de prisão preventiva existam.
A forma argumentativa resulta redundante, tautológica e monótona, por não inovatória, face ao anterior recurso.
Ao arguido está imputado, com acusação deduzida, o cometimento em coautoria, de 1 (um) crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, com pena de prisão de 4 a 12 anos.
Ressalta da resposta do Ministério Público que a prova recolhida indiciou suficientemente os factos que lhe foram imputados e a atualidade dos perigos concretos que determinaram a aplicação e manutenção da prisão preventiva, que aqui não se julga necessário reproduzir.
Tanto no despacho que determinou a sujeição do recorrente à medida de coação de prisão preventiva, quanto nos que a mantiveram, tal como o destaca a resposta do Ministério Público na 1.ª instância, se identificaram os fatores necessários para sustentar a necessidade, proporcionalidade e adequação da medida de coação aplicada, para pugnar pela sua manutenção (artigo 193.º do Código de Processo Penal) e para aquilatar das condições gerais que, em concreto, se devem verificar (artigo 204.º do Código de Processo Penal).
A prisão preventiva ou a OPHVE, sendo a última ratio, são de aplicar quando as demais medidas de coação menos gravosas forem insuficientes para garantir a satisfação das exigências cautelares – art.º 193.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Daí que decorra do artigo 202.º do Código de Processo Penal que, para se aplicar a medida de coação da prisão preventiva, tal terá de ser fundamentado, nomeadamente, através de uma justificação negativa, (“se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas nos artigos anteriores”) ou seja, devem-se justificar as razões porque se considera que as outras medidas de coação são insuficientes ou inadequadas para a prossecução daquele fim ou fundamentar a aplicação dessas medidas de tal forma que fique excluída a consideração prévia das demais.
É aqui que o recurso se apresenta pouco assertivo e porventura contraditório, pois pretende-se com ele, em ultimo recurso, a substituição da prisão preventiva por medida de coação de gravidade equivalente, segundo a lei, pelo que os argumentos que rebate não deixam de estar em contradição com os perigos que implicitamente reconhece e dão sustentação legal tanto à prisão preventiva quanto à subsidiariamente solicitada OPHVE, sujeita às mesmas condições, pressupostos e reexame periódico.
Vejamos as condições gerais e os pressupostos específicos dessas medidas de coação e os critérios de seleção que as deve motivar.
Quanto à proporcionalidade ou proibição do excesso, princípio constitucionalmente consagrado, ela é tributária da gravidade do crime imputado e das sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas. No que respeita às circunstâncias em que o crime imputado foi cometido, o relato efetuado nos despachos que a aplicaram e que a mantiveram, remetendo para aquele, não deixam dúvidas quanto à gravidade, organização e plurisubsistência do tráfico de produtos estupefacientes indiciado. Acresce que o arguido não põe em causa todo esse arsenal indiciário e a respetiva qualificação jurídica e inerente gravidade.
Quanto à necessidade, retius, subsidiariedade da medida de coação de prisão preventiva, como é o caso dos autos, ela verifica-se sempre que o fim que se visa atingir com a concreta medida de coação a aplicar ou a manter não possa ser alcançado por qualquer outro meio menos oneroso para os direitos do arguido, devendo ainda cingir-se ao estritamente necessário para o cumprimento das exigências cautelares (artigo 193º, nº 4 Código de Processo Penal). Como bem refere o Ministério Público na 1.ª instância, e já o referira o douto acórdão deste Tribunal da Relação de Évora a que acima nos referimos, a natureza do crime e o modo como ele era levado a cabo pelo arguido não se atenua, reduz ou elimina com a OPHVE.
Quanto à adequação da prisão preventiva, ela deve ser estritamente idónea à satisfação das necessidades cautelares do caso, isto é, deverá ser adequada para alcançar o fim cautelar pretendido no caso concreto. Ora, os fins cautelares encontram no artigo 204.º do Código de Processo Penal a sua previsão, além do objetivo geral de serem o de impedir que o arguido, indiciado por crime de assinalável gravidade, se furte à ação da justiça (artigo 61.º, n.º 3 do CPP) e à forte e plausível aplicação de uma pena ou à efetividade da decisão final respetiva, sendo que a pena tem por limite mínimo, no caso, o de 4 anos de prisão, e máximo de 12 anos.
Além do perigo de fuga, também se pode verificar, não necessária nem cumulativamente, o perigo concreto de perturbação da instrução do processo e de aquisição, conservação e veracidade da prova ou perigo de continuação da atividade criminosa ou de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas.
Essas as condições gerais taxativas de aplicação e manutenção das medidas de coação além do TIR.
Não sendo admitido presumir o perigo de fuga, no caso dos autos a decisão sob recurso teve em consideração o facto de um outro individuo suspeito de estar implicado no crime imputado se encontrar em fuga, a que se associa a atividade criminosa indicada, que se desenvolvia também ela através de viagens ao estrangeiro, não sendo inédito que a OPHVE impeça uma eventual fuga. Portanto, há evidências concretas desse perigo, que não são nem virtuais, nem hipotéticas, nem abstratas, mas apoiadas em juízos de probabilidade e de experiência comum concretos.
Quanto ao perigo que visa acautelar que o arguido interfira na investigação, nomeadamente quanto à recolha de prova, sua conservação e genuinidade, ainda que a lei se refira ao inquérito e instrução, ele abrange todas as fases do processo, porquanto o termo ”instrução” referido no art.º 204.º, al. b) do Código de Processo Penal se refere a toda a atividade instrutória e processual de produção de prova, independentemente da fase processual, ainda que o artigo 194.º n.º 3 limite os poderes jurisdicionais quanto a esse fundamento.
Talvez aqui se possa considerar que, deduzida a acusação, esse perigo em concreto se mostre atenuado, mas não totalmente afastado - vide artigos 262.º, n.º 1, 292.º, n.º 1, 302.º, n.º 3, 340.º, n.º 1, e 360.º, n.º 1, sem prejuízo do disposto no n.º 4, todos do Código de Processo Penal e cf. o Acórdão do TRP, de 13-04-2016, Proc. n.º 5544/11.6TAVNG-N.P1., onde se lê no respetivo sumário que “O perigo para a aquisição e veracidade da prova subsiste durante o decurso do julgamento, pois os arguidos têm o direito a ser ouvidos e prestar declarações até ao encerramento da discussão, e as testemunhas, mesmo as já inquiridas, podem ser confrontadas com subsequentes pedidos de esclarecimento e acareações, pelo que o risco de interferência na veracidade da prova subsiste e é efectivo.”.
Quanto ao perigo de continuação da atividade criminosa ele refere-se, ainda em concreto, à prática de crimes da mesma natureza dos indiciados (e não a qualquer intuito de prevenção geral). Como bem defende o Ministério Público na 1.ª instância e ficou sustentado no citado acórdão do Tribunal da Relação de Évora proferido já neste processo, não é impossível, nem difícil manter a atividade criminosa a partir de casa em OPHVE, como não é impossível que ela seja praticada a partir de um estabelecimento prisional, como por vezes a realidade mediatizada comprova. Mas é certamente mais difícil e sujeita o agente a maiores riscos. Porém, ninguém sustenta que essa possibilidade justifique por si só a não sujeição a prisão preventiva de imputados por crime de tráfico de estupefacientes. Assim, o juízo de probabilidade concreto desse risco e de prognose de perigosidade a aferir segundo as circunstâncias anteriores e contemporâneas da conduta indiciada, substituindo-se a prisão preventiva pela OPHCE, é claramente intenso e fundado, até porque a atividade delituosa imputada ao arguido já tinha um grau de comprometimento e enraizamento relevantes.
A tudo o que fica dito se associa a devida ponderação de que outra medida não privativa da liberdade ou a OPHVE, como pede o recorrente, não esconjura devida e adequadamente o risco de lesão significativa de bens jurídicos – no caso do tráfico de estupefacientes, a defesa da saúde pública – como atrás se evidenciou, risco esse que afeta o sentimento colectivo de segurança próprio de um Estado de Direito fundado na legalidade democrática, cuja tutela é, em certos casos, antecipada em face da especial perigosidade de determinadas condutas, como acontece com os crimes de perigo - de que o tráfico de estupefacientes é exemplo -, além da inerente gravidade, elucidada no art. 51º do DL 15/93 de 22/1, que equipara os crimes de tráfico dos arts. 21.º a 24.º e 28.º aos crimes de terrorismo, criminalidade violenta e altamente organizada, para os efeitos do disposto no artigo 1.º do CPP.
Em suma, as finalidades processuais (cf. artigo 191.º Código de Processo Penal) só estão cautelarmente asseguradas com a prisão preventiva, não só por verificação concreta dos perigos de que depende a sua aplicação e manutenção, como porque se mostra necessária, adequada e proporcional, ao contrário da OPHVE (e muito menos de medida de coação não detentiva) que, no caso, se mostra inadequada e insuficiente a essas finalidades.
O disposto nos artigos 193.º, 202.º, 204.º, 212.º e 213.º do Código de Processo Penal foram corretamente interpretados e aplicados e nenhum outro preceito, constitucional ou legal, foi desrespeitado pela decisão recorrida.
No mais, se algo de útil foi aditado, acompanham-se as fundadas alegações de resposta ao recurso subscritas pelo Ministério Público na 1.º instância e que, fazendo a devida justiça, se alicerçam na bem fundamentada decisão judicial sob recurso, que deve ser mantida.

3.3. Conclusão:
Em conformidade, somos de parecer que ao recurso interposto pelo arguido deve ser negado provimento, confirmando-se integralmente a decisão recorrida.”
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Cumprido o disposto no art.417º, nº2, do CPP, não foi apresentada resposta ao Parecer emitido.
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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência.
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Fundamentação
Delimitação do objeto do recurso
Nos termos do disposto no art.412º, nº1, do C.P.P., e conforme jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça, o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes das motivações apresentadas, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente- cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, págs.74; Ac.STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, págs.96, e Ac. do STJ para fixação de jurisprudência de 19.10.1995, publicado no DR I-A Série de 28.12.1995.
São, pois, as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o Tribunal ad quem tem de apreciar.
No caso sub judice as questões suscitadas no recurso são:
- falta de fundamentação da decisão recorrida;
- inexistência dos pressupostos para manutenção da prisão preventiva.
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Apreciando
- Da invocada falta de fundamentação da decisão recorrida
O recorrente alega falta de fundamentação da decisão recorrida.
Não obstante a não aplicabilidade do art. 379º do CPP, tratando-se de ato decisório, terá de ser sempre fundamentado, especificando os motivos de facto e de direito que suportam o decidido (art.97º, nº.5, do CPP), cuja inobservância é legalmente cominada com irregularidade, a cujo regime respeita o art.123º do CPP (cfr. arts.118º, nºs.1 e 2, 119º e 120º do mesmo Código).
De qualquer modo, a existir irregularidade, esta deverá ser arguida pelos interessados no próprio ato ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado (art.123º, nº.1, do CPP), sob pena de ficar sanada, com exceção da possibilidade oficiosa de reparação nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, sendo que, para ambas as situações, esse vício, para ser relevante, terá, em concreto, de afetar o valor do ato a cuja prática respeita.
A necessidade de fundamentação das decisões dos tribunais, que não sejam de mero expediente, tem consagração no art. 205º, n.º 1, da C.R.P. e insere-se nas garantias de defesa de processo criminal a que alude o art. 32º, nº1, do mesmo diploma.
Este princípio constitucional é extensivo a todos os ramos do direito, designadamente ao processo criminal.
No âmbito deste princípio, o art.97º, nº5, do CPP estabelece que os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.
O objetivo de tal dever de fundamentação é permitir "a sindicância da legalidade do ato, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, atuando, por isso como meio de autodisciplina" (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág.294).
O dever genérico de fundamentação dos atos decisórios expresso no artigo 97º, nº 5 do CPP, encontra particular explicitação e desenvolvimento no artigo 374º, nº 2 do mesmo diploma legal, o que se percebe dada a natureza da peça processual a que se reporta.
Como qualquer despacho, até por imperativo constitucional [artigo 205º da CRP], a decisão que aplica uma medida de coação tem de ser fundamentada, cumprindo-se, por seu intermédio, simultaneamente, uma função de carácter objetivo – pacificação social, legitimidade e autocontrolo das decisões – e uma função de carácter subjetivo – garantia do direito ao recurso, controlo da correção material e formal das decisões pelos seus destinatários – [cf. Jorge de Miranda e Rui de Medeiros, “Constituição Portuguesa Anotada”, pág. 71].
Ora, ao invés do que defende o recorrente, não ocorre, no caso, a omissão do dever de fundamentação porquanto o despacho em crise contém as razões de facto e de direito que suportam a decisão, que é fundamentada, legal e faticamente, e esclarecedora das premissas da mesma, explicitando em termos lógicos a razão pela qual o Tribunal decidiu nos termos plasmados no despacho recorrido, cumprindo, cabalmente, tal dever, o qual, tratando-se de decisão interlocutória, não tem paralelo com o que é exigível na sentença, que a final conhece do mérito.
Acresce que a omissão do dever de fundamentação - onde se inclui a insuficiente fundamentação - não sendo cominada com a nulidade – posto que de sentença se não trata -, apenas acarretaria, como já supra dito, uma irregularidade, a arguir nos termos e prazos previsto no artigo 123º do CPP, o que não sucedeu.
Com efeito, mesmo que tal vício formal existisse, entende-se, na esteira de doutrina vária, que a falta de fundamentação dos atos decisórios, quando não tenha tratamento específico previsto na lei, constitui irregularidade, submetida ao regime do artigo 123º do Código de Processo Penal (caso de tratamento específico é o de falta de fundamentação da sentença, que, nos termos do artigo 379º/1/a), importa nulidade).
Assim, sempre se dirá que a falta de fundamentação, se existisse, constituiria irregularidade que, para ser conhecida, tinha de ser arguida nos termos do art.123.º, n.º 1, do CPP, sob pena de sanação do vício o que, no, caso, não sucedeu, pelo que o ato sempre se teria convalidado (cfr., neste sentido, Acórdãos do TRL de 2003/07/17 – proc. n.º 5669/03; de 2004/06/30 – proc. n.º 5405/04; e de 2006/05/31 – proc. n.º 4309/06).
Ora, o arguido só suscitou este vício formal quando interpôs o presente recurso, muito para além dos 3 dias previstos no nº 1 do artigo 123º do citado diploma.
Deste modo, não tendo sido arguida tempestivamente, no mencionado prazo, a irregularidade correspondente à alegada insuficiência de fundamentação, este vício formal, ainda que existisse, mostrava-se sanado.
Tudo para concluir que no despacho recorrido não ocorre falta de fundamentação, pese embora o arguido/recorrente dele discorde.
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Pretende o arguido a revogação da decisão recorrida “ (…) quanto à aplicação da medida de coação de prisão preventiva.”
A aplicação de qualquer medida de coação pressupõe a observância em concreto dos princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade (arts.192º e 193º do CPP), só devendo recorrer-se à prisão preventiva, sempre subsidiária das demais medidas de coação, apenas como "extrema ratio", isto é, quando as restantes medidas de coação se revelarem inadequadas ou insuficientes e houver fortes indícios da prática de crimes dolosos punidos nos termos previstos no art.202º, nº1, als.a) a e), do CPP.
De acordo com o disposto no artigo 191.º, n.º1, do CPP, as medidas de coação visam dar resposta a necessidades processuais de natureza cautelar, que resultam da existência dos perigos ou de algum dos perigos enunciados nas três alíneas do artigo 204º daquele mesmo diploma.
Estabelece o art.212º, nº1, als.a) e b) do CPP que as medidas de coação são imediatamente revogadas, por despacho do juiz, sempre que se verificar terem sido aplicadas fora das hipóteses ou das condições previstas na lei (al.a)), ou terem deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação (al.b)).
E dispõe o nº3 do mesmo art.212º do CPP que quando se verificar uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a aplicação de uma medida de coação, o juiz substitui-a por outra menos grave ou determina uma forma menos gravosa da sua execução.
Ora, como resulta do auto de interrogatório judicial de arguido detido, por despacho de 1 de outubro de 2021, foi aplicada ao arguido a medida de coação de prisão preventiva por se encontrar fortemente indiciada a prática, pelo mesmo, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art..21º, nº1, do D.L. 15/93, de 22 de janeiro.
Considerou-se, então, que só uma medida de coação privativa da liberdade respondia de modo adequado e proporcional aos perigos que se faziam sentir, determinando-se que o arguido aguardasse os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coação de prisão preventiva, ao abrigo do estatuído nos artigos 191º, 202º, nº 1, alíneas a) e c) e 204º, alíneas a), b) e c), todos do Código de Processo Penal.
De tal decisão, como já se disse, recorreu o arguido para o Tribunal da Relação de Évora, que, por Acórdão de 25 de janeiro de 2022, negou provimento ao recurso.
Alega o arguido no recurso ora interposto: “w) E se, findo o inquérito, não pode haver perigo de perturbação do inquérito, a dura realidade é que não foi, sequer, ponderada a possibilidade de substituição da medida de coação de prisão preventiva, pela de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica ou pulseira electrónica, que sempre promoveria o afastamento do arguido da prática de novos crimes e acautelaria o perigo de fuga…
Termos em que deverá o presente recurso ser admitido e em consequência ser a decisão recorrida ser revogada –com estrondo e nota de censura - quanto à aplicação da medida de coação de prisão preventiva”.
Ora, não resulta dos autos que a medida de coação tivesse sido aplicada "fora das hipóteses ou condições previstas na lei", ou que tivessem "deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação", ou sequer que tivesse ocorrido uma "atenuação das exigências cautelares".
No recurso ora apresentado pelo arguido, o mesmo acaba por pôr em causa os fundamentos constantes nas aludidas decisões, tanto no que respeita à verificação dos fortes indícios, como à intensidade dos perigos que se pretendem ver acautelados.
Pretende, assim, o arguido uma reformulação da primitiva decisão que lhe aplicou a prisão preventiva, concluindo que a mesma deve ser revogada, sendo certo que na conclusão w) faz referência a medida de coação sobre a qual o Tribunal já se havia pronunciado, em sede de primeiro interrogatório judicial, não a determinando.
Compulsados os autos, entende-se que, desde a data em que foi aplicada a prisão preventiva ao arguido/recorrente, inexistiram alterações fundamentais à sua situação que permitissem concluir por uma atenuação das circunstâncias que haviam determinado a aplicação da aludida medida de coação.
Com efeito a circunstância de já ter sido deduzida acusação mais não é que decorrência do decurso do inquérito, e circunstâncias atinentes à situação pessoal do ora recorrente já resultavam dos autos, não sendo, por isso, factos novos.
São fortes os indícios verificados e, relativamente aos requisitos de aplicação da medida de coação, elencados no art. 204º, que são alternativos (cfr. anotação do Cons. Maia Gonçalves ao art. 204), verificado que se mostre um desses requisitos, fica legitimada a aplicação da medida.
E os perigos elencados e julgados verificados em nada ficaram alterados e o risco de reiteração do comportamento não diminuiu, face aos elementos constantes dos autos.
Assim, apenas haveria fundamento para alteração com base em atenuação das exigências cautelares, se, por um lado, se verificassem factos supervenientes àqueles que determinaram a aplicação da medida de coação, devendo, por outro lado, a diminuição das exigências cautelares ser sempre aferida de harmonia com os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade impostos pelos arts.191º e 193º para a aplicação de qualquer medida de coação.
E na reavaliação das circunstâncias impõe-se saber se as mesmas deixaram de existir ou se encontram modificadas, e não fazer juízos de valoração sobre se as circunstâncias inicialmente existentes são fundamento da medida aplicada.
Ora, o teor do alegado pelo arguido no recurso ora interposto não infirma os fundamentos que determinaram a aplicação da medida de coação de prisão preventiva.
Com efeito, nada é alegado que infirme os fundamentos que determinaram a aplicação da medida de coação cuja revogação se pretende, sendo, ao invés, postos em causa os fundamentos que determinaram a aplicação da prisão preventiva ao arguido.
E o alegado não é suscetível de invalidar os invocados perigos, não sendo a permanência do arguido no domicílio, ainda que com vigilância eletrónica, suficiente para obstar a tais perigos, que se mantêm.
Os pressupostos que determinaram a manutenção da aplicação da medida de coação de prisão preventiva mantêm-se, não tendo o despacho que a determinou violado qualquer preceito legal ou constitucional, nem posto em crise os princípios que devem ser tidos em conta no processo penal e na aplicação das medidas de coação, e nomeadamente os princípios do processo justo, do contraditório e de presunção de inocência, assim como não valorou prova proibida.
E, não tendo sido trazido aos autos qualquer elemento relevante e justificativo da alteração da medida de coação aplicada, é de concluir que tal medida de coação se deverá manter por se mostrarem preenchidas as condições de aplicação da mesma.
Não se verifica, pois, qualquer alteração dos pressupostos de facto e de direito que determinaram a aplicação e manutenção da medida de coação de prisão preventiva ao arguido, inexistindo fundamento legal para alterar a sua situação processual.
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Decisão
Face ao exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
- Julgar improcedente o recurso interposto, mantendo o despacho recorrido.
- Condenar o recorrente em 3 UCs de taxa de justiça.
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Elaborado e revisto pela primeira signatária
Évora, 21 de Junho de 2022
Laura Goulart Maurício
Maria Filomena Soares
Gilberto da Cunha