Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
105/17.9TBOLH.E1
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
CESSÃO
INÍCIO DO PRAZO
Data do Acordão: 03/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Existindo bens ou direitos a liquidar, o encerramento do processo de insolvência, nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 230.º do CIRE, porquanto destinado exclusivamente a determinar o início do período de cessão do rendimento disponível, não obsta à prossecução dos demais termos do processo de insolvência.
Decisão Texto Integral: Proc. nº 105/17.9TBOLH.E1

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
1. Banco (…), S.A., com sede na Praça D. (…), (…), Porto, instaurou contra (…) e mulher, (…), residentes na Rua das (…), nº (…), em Faro, ação especial de declaração de insolvência.

Declarada a insolvência dos devedores e liminarmente admitido o pedido de exoneração do passivo restante, foi proferido o seguinte despacho:

“ 2. ENCERRAMENTO DO PROCESSO

Foi proferido despacho inicial relativamente ao pedido de exoneração do passivo restante, nos termos a que alude o art. 237º, al. b), do CIRE.

Existem bens a liquidar.

Assim sendo:

1) Declaro encerrado o processo de insolvência, nos termos do previsto no art. 230º, nº 1, al. e), do CIRE, estritamente para efeito de início do período de cessão.

2) Não existindo motivos, de acordo com o relatório apresentado pelo(a) Sr.(ª) Administrador(a) da Insolvência, para considerar que a insolvência é culposa, declara-se que a mesma é fortuita – art. 233º, nº 6, do CIRE.

3) Declaro que não se produzem os efeitos previstos no art. 233º, do CIRE.

Registe e dê cumprimento ao disposto nos arts. 230º, nº 2, e 247º do CIRE, publicitando esta decisão nos seguintes termos:

1) Notifique o(a) Insolvente;

2) Notifique o Ministério Público;

3) Notifique todos os credores;

4) Publique-se, devendo, quanto ao encerramento, ser indicada a razão determinante do mesmo: início do período de cessão.

5) Comunique à/s Conservatórias do Registo Civil competente/s, com a mesma indicação.

6) Registe no Registo Informático de Execuções;

7) Comunique ao Banco de Portugal.”

2. O Ministério Público recorre deste despacho formulando as seguintes conclusões que se reproduzem:

1. O Mmo. Juiz a quo, após a prolação do despacho liminar de admissão do pedido de exoneração do passivo restante, decidiu declarar encerrado o processo de insolvência, nos termos do previsto no art.º 230º, n.º 1, al. e) do CIRE, estritamente para o efeito de início do período de cessão e declarar que não se produzem os efeitos previsto no art.º 233º do CIRE.

2. A única questão a decidir nos presentes autos consiste em saber se uma vez proferido o despacho inicial de exoneração do passivo restante, e perante a existência de ativo a liquidar, podia ter sido ordenado o encerramento do processo, estritamente para o efeito do início do período de cessão.

3. O corpo do n.º 1 do art.º 230º do CIRE delimita o seu campo de aplicação, restringindo-se aos factos determinantes do encerramento do processo de insolvência que se verificam na hipótese de ele prosseguir após a declaração de insolvência.

4. Quando o processo prossiga as causas do seu encerramento constam das alíneas do n.º 1, merecendo especial relevo para a decisão do presente recurso as alíneas a) e e), esta introduzida pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril.

5. Prosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o encerramento só deverá ser determinado depois de realizada a liquidação e o rateio final, ressalvando-se apenas a situação prevista no art.º 239º, n.º 6, do CIRE.

6. Só se procede ao rateio final e distribuição do respetivo produto pelos credores após a liquidação dos bens que integram a massa insolvente, donde para que esta possa ser feita deve estar pendente a instância insolvencial.

7. Tendo sido requerida a exoneração do passivo restante, duas situações podem ocorrer: ou há património que deve ser liquidado na pendência do processo ou não há e, então, o processo pode e deve ser encerrado no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante.

8. O que resulta da alínea e) do n.º 1 do art.º 230º é que o prosseguimento do incidente de exoneração do passivo restante não obsta ao encerramento do processo de insolvência de que pende, e se à data do despacho inicial já existirem elementos que revelem a inexistência de bens, deve o tribunal declarar o encerramento.

9. Se a liquidação ainda não tiver sido iniciada ou concluída, não há fundamento para a aplicação da alínea e) do art.º 230º do CIRE, aplicando-se o regime regra previsto na alínea a) do mesmo preceito legal.

10. Não faz qualquer sentido, uma declaração de encerramento do processo, com a inevitável cessação das atribuições do administrador da insolvência, quando ainda não foi levada a cabo a primordial função do mesmo, erigida pelo legislador a finalidade do processo de insolvência, a liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores (cfr. art.º 1º, n.º 1, do CIRE).

11. A existência de bens na massa para liquidar impede o encerramento no despacho inicial de apreciação do pedido de exoneração do passivo restante, razão porque inevitável é o art.º 230º, n.º 1, al. e), dever ser objeto de interpretação restritiva.

12. O encerramento do processo de insolvência constitui uma fase final do mesmo, pelo que deverá ocorrer uma vez realizados os fins previstos no mesmo processo, a que se refere o art.º 1º do CIRE.

13. Assim, se à data do despacho inicial do pedido de exoneração do passivo restante já existirem elementos nos autos que revelem a inexistência de ativo a liquidar, deve o juiz declarar o encerramento do processo de insolvência.

14. Mas se o património do devedor tiver bens para liquidar e a liquidação e o rateio ainda não tiver terminado, então não existe fundamento para encerrar o processo no despacho liminar de deferimento do pedido de exoneração do passivo restante, mesmo que esta decisão seja apenas para efeitos de início do período de cessão.

15. Ao interpretar o art.º 230º, n.º 1, al. e), do CIRE como se o mesmo permitisse encerrar o processo de insolvência sem a liquidação e o rateio estarem realizados, o tribunal interpretou erradamente aquela norma, dando-lhe um sentido que não é adequado à situação concreta.

Nestes termos deverá ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida e ordenando-se o prosseguimento dos autos para realização da liquidação e rateio final.

Decidindo Vossas Excelências nesta conformidade, farão a costumada justiça!”

Não houve lugar a resposta.

Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso.
O objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões da motivação do recurso, sem prejuízo das questões que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio e do conhecimento de alguma das questões suscitadas vir a ficar prejudicada pela solução dada a outras – cfr. artigos 635º, nº 4, 639º, nº 1, 608º, nº 2 e 663º, nº 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).
Considerando as conclusões da motivação do recurso, importa decidir se o processo reúne as condições para ser encerrado para efeitos de início do período da cessão de rendimentos.

III. Fundamentação.
1. Factos
Relevam os factos referidos no relatório supra.

2. Direito
2.1. Se o processo reúne as condições para ser encerrado para efeitos de início do período da cessão de rendimentos.
Sob a epígrafe “quando se encerra o processo” dispõe o artº 230º do CIRE[1]:

“1 - Prosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o juiz declara o seu encerramento:

a) Após a realização do rateio final, sem prejuízo do disposto no n.º 6 do artigo 239.º;

b) Após o trânsito em julgado da decisão de homologação do plano de insolvência, se a isso não se opuser o conteúdo deste;

c) A pedido do devedor, quando este deixe de se encontrar em situação de insolvência ou todos os credores prestem o seu consentimento;

d) Quando o administrador da insolvência constate a insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente.

e) Quando este ainda não haja sido declarado, no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante referido na alínea b) do artigo 237.º

2 - A decisão de encerramento do processo é notificada aos credores e objeto da publicidade e do registo previstos nos artigos 37.º e 38.º, com indicação da razão determinante.”
O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores (artº 1º do CIRE).
À luz desta causa/função compreendem-se as causas de encerramento do processo referidas nas alíneas a) a c), porquanto se reportam a factos que supõem alcançados os fins a que o processo se destina e também se compreende que a constatação da insuficiência da massa insolvente para fazer face às respetivas dívidas [alínea d)], designadamente as custas do processo e a remuneração do administrador da insolvência (artº 51º do CIRE), justifique o encerramento do processo, por ser então evidente que a ausência de produto para repartir pelos credores torna inútil a sua prossecução.

A causa de encerramento prevista pela al. e), introduzida pela alteração da Lei nº 16/2012, de 20/4 tem, a nosso ver, uma justificação diferente das anteriores.

No caso da insolvência de pessoas singulares a lei permite, a requerimento do devedor, a exoneração do passivo restante, ou seja, permite que venham a considerar-se extintos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no decurso do processo ou nos cinco anos posteriores ao se encerramento (artºs 235º e 245º, nº 1, ambos do CIRE).

Este prazo de cinco anos, a contar do encerramento do processo, tem a maior relevância para o devedor, por constituir o período de cessão, ou seja, o período durante o qual o rendimento disponível do devedor deverá ser entregue a um fiduciário, designadamente com o propósito de o afetar ao pagamento dos créditos sobre a insolvência que não obtiveram pagamento (artºs 239º, nº 2 e 241º do CIRE), cessão de rendimento que, por sua vez, constitui condição da exoneração do passivo restante, porquanto o seu injustificado incumprimento é fundamento de recusa da exoneração (artºs 244º, nº 2 e 243º do CIRE).

Contando-se o prazo da cessão de rendimentos – cinco anos –, forçosamente, a partir do despacho que declara encerrado o processo, compreende-se a intenção do legislador ao incumbir o juiz de declarar encerrado o processo de insolvência – quando tal declaração não haja já ocorrido – no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante, por constituir esta proclamação formal o início do improrrogável período de cessão.

Declaração formal – encerramento do processo – que visa documentar a data do início do período da cessão, mas não postergar os fins do processo de insolvência, ou seja, não se destina a impedir a repartição pelos credores do produto obtido na execução universal que a insolvência representa.

A cessão de rendimentos do devedor, durante o referido período da cessão, acresce ao património do devedor insolvente, insuficiente para satisfazer integralmente as suas dívidas e não obsta à liquidação e rateio de todos os bens apreendidos para a massa insolvente, fim último do processo de insolvência.

“Na verdade, o processo de exoneração do passivo restante implica já uma dupla oportunidade de os credores obterem a satisfação dos créditos, uma vez que, após o encerramento do processo de insolvência, e portanto esgotada a função do administrador de insolvência com a repartição do saldo do património atual (…) pelos credores, ainda se efetua a cessão do rendimento disponível do devedor a um fiduciário durante cinco anos, com a função de o repartir pelos credores (artº 239º), colocando-se assim também o património a adquirir futuramente pelo devedor (…) durante um longo período igualmente afeto à satisfação dos seus credores.”[2]

Como acertadamente se anota conclusões do recurso, um dos efeitos do encerramento do processo de insolvência é a cessação de funções do administrador da insolvência (artº 233º, nº 1, al. b), do CIRE), a quem incumbe designadamente preparar o pagamento das dívidas do insolvente à custa das quantias em dinheiro existentes na massa insolvente, designadamente das que constituem produto da alienação, que lhe incumbe promover, dos bens que a integram (artº 55º, nº 1, al. a), do CIRE) e a cessação de funções do administrador – por efeito da declaração de encerramento – em momento anterior a estes pagamentos, como ocorre no caso de existirem bens para liquidar, obstaria à liquidação de tais bens.

Ao fiduciário não incumbem tais funções (artº 241º do CIRE).

Disciplina que impunha a leitura restritiva desta causa de encerramento, proposta pelo Recorrente, por forma a ter lugar apenas nas situações em que, não obstante a inexistência da declaração de encerramento, já ocorreu a realização do rateio final ou já se mostra adquirida no processo a insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas e, assim, a exclusão de tal declaração nas situações em que à data da prolação do despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante ainda existissem bens a liquidar.

Contudo, como se ajuizou no acórdão desta Relação de 25/01/2018 (proc. nº 1170/15.9T8OLH-E1) em caso similar ao dos autos, “o legislador veio tomar posição expressa (…) e promoveu uma alteração ao regime de regulação do encerramento da insolvência ao nível dos seus efeitos, clarificando em que momento deve ser proferida a decisão sub judice e qual o alcance da mesma na tramitação dos autos.

Atualmente, de acordo com a disciplina precipitada no nº 7 do artigo 233º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, o encerramento do processo de insolvência nos termos da alínea e) do nº 1 do artigo 230º, quando existam bens ou direitos a liquidar, determina unicamente o início do período de cessão do rendimento disponível.

Recorde-se que a regra foi introduzida pelo Decreto-Lei nº79/2017, de 30 de Junho, cuja entrada em vigor ocorreu em 1 de Julho de 2017.

(…)

Neste novo enfoque legislativo, à luz da letra da lei é claro que se divisa a intenção de conceder autonomia à al. e) do nº 1 do artigo 230º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e assim o intérprete fica compelido a declarar o encerramento do processo de insolvência no despacho inicial de exoneração do passivo restante, quando tal ainda não tenha previamente sucedido.

Ao nível da definição da sua finalidade objetiva, perfilhamos assim a posição sustentada por outro aresto do Tribunal da Relação de Évora[3] quando sublinha que se coloca «assim, o devedor insolvente a salvo da demora desgastante em que frequentemente se traduz a atividade de liquidação e a própria tramitação do processo de insolvência, conferindo-se eficácia renovada ao incidente da exoneração do passivo restante: o princípio do “fresh start”, visando a reintegração plena do devedor na vida económica, não se compagina com a manutenção do devedor paralisado por longo período durante o qual ocorrem as vicissitudes do processo de insolvência, sendo antes imperioso que possa cumprir, desde logo e durante o prazo fixo de cinco anos, as obrigações legais que lhe permitirão alcançar a sua reabilitação económica».

Todavia, ao enlaçar todos os interesses conflituantes, isso não significa que o processo seja declarado totalmente extinto, pois a eficácia dessa medida não contende com o prosseguimento da reclamação de créditos ou com a liquidação do ativo, fases processuais que não ficam com o seu objeto esgotado.

(…)

Efetivamente, tal ficou assinalado na decisão recorrida, o Tribunal «a quo» declarou encerrado o processo de insolvência, nos termos do previsto no art. 230º, nº 1, al. e), do CIRE, estritamente para efeito de início do período de cessão. E, assim, nesta ordem de ideias, embora a fórmula encontrada para expressar o futuro desenvolvimento processual possa ser suscetível de causar alguma dúvida interpretativa, ao fazer essa restrição decisória, a sentença prolatada não merece censura.

Este é um encerramento atípico condicionado (…).”

Em conclusão, existindo bens ou direitos a liquidar, o encerramento do processo de insolvência nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 230.º, porquanto destinado exclusivamente a determinar o início do período de cessão do rendimento disponível, não obsta à prossecução dos demais termos do processo de insolvência.

Por haver sido este o alcance da decisão recorrida, resta confirmá-la.


IV. Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, na improcedência do recurso, em confirmar a decisão recorrida.
Sem custas.
Évora, 22/3/2018
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho

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[1] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo D.L. nº 53/2004, de 18 de Março, alterado pelos Decretos-Leis 200/2004, de 18/8, 76-A/2006, de 29/3, 282/2007, de 7/8, 116/2008, de 4/6 e 185/2009, de 12/8 e pela Lei nº 16/2012, de 20/4, Lei n.º 66-B/2012, de 31/12, DL n.º 26/2015, de 6/2, DL n.º 79/2017, de 30/6 e Lei n.º 114/2017, de 29/12.
[2] Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 4ª ed., pág. 316.
[3] Ac.RE de 25-01-2018, disponível em www.dgsi.pt.