Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
722/18.0T8STB.E1
Relator: JOSÉ MANUEL BARATA
Descritores: SOCIEDADE POR QUOTAS
GERENTE COMERCIAL
Data do Acordão: 06/27/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I.- A vinculação das sociedades por quotas é feita pela assinatura da maioria dos gerentes ou pelos que o contrato societário estipular – Art.º 261º do CSC.
II.- Se a sociedade só se obrigava com a assinatura de dois gerentes e o contrato foi assinado por apenas um deles, os direitos do terceiro de boa-fé têm de ser protegidos em obediência ao princípio da confiança, mormente nas relações comerciais, como estipula o artº 260º/1, do CSC.
III.- A oponibilidade a terceiros da representação sem poderes do gerente que assinou o contrato, só produz efeitos contra o terceiro se a sociedade demonstrar que o outro contraente sabia, ou não podia ignorar, que a sociedade só se vinculava com a assinatura de dois gerentes, não sendo suficiente para tal demonstração a publicidade conferida pelo registo comercial – Artº 260º/2, do CSC.
IV.- Se o contrato assinado apenas por um dos gerentes foi pontualmente cumprido por ambos os contraentes durante quase três anos, tal circunstância deve interpretar-se como aceitação tácita do contrato (artº 234º CC), representando venire contra factum proprium a alegação de que o contrato não a vincula porque assinado apenas por um dos dois gerentes.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc.º 722/18.0T8STB.E1


Acordam os Juízes da 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora



Recorrente: (…), Lda.


Recorrida: (…), Lda.
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No Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal Juízo Local Cível de Setúbal - Juiz 1, (…), Lda., propôs ação comum, contra (…), Lda., pedindo que seja a R. condenada a pagar à A. a quantia de € 42.394,80 acrescida de juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal.
Para tanto alegou que, em 10 de Novembro de 2010, celebrou com a R. um contrato misto de fornecimento de café, comodato e publicidade da marca (…), com a obrigação de exclusividade e de consumo de determinadas quantidades de café. Em Outubro de 2012, sem aviso prévio a R. deixou de consumir café da marca da A. e passou a adquirir café de marca concorrente.
Nestes termos, a A. resolveu o contrato e exigiu o pagamento da indemnização contratualmente acordada o que a R. não pagou.
Citada a R., contestou invocando que:
- Não aceita a caracterização do contrato como contrato de publicidade da marca (…);
- A R. não se vinculou ao contrato junto aos autos a fls. 4 v. a 5, porquanto a gerência nunca o aceitou, admitindo contudo que o mesmo possa ter sido assinado por um dos sócios-gerentes (…), no entanto, à data da assinatura do referido contrato a R. obrigava-se através da assinatura conjunta de dois gerentes, o que já acontecia desde 22 de Junho de 2010, e era do conhecimento da A.
Mais alega que a A. tinha conhecimento da entrada do novo sócio (…-Comércio e Serviços, Lda.), bem como da existência dos novos gerentes, uma vez que foram os próprios a contactar a A., tendo ocorrido uma reunião no início do Verão de 2010 com vista a contratar o fornecimento de cafés em novos moldes, pois o contrato antigo já não vinculava as partes.
Conclui alegando que a R. desconhecia a existência do contrato datado de 10 de Novembro de 2010, não lhe sendo este oponível, porquanto não foi assinado conjuntamente por dois gerentes.
Mais impugna os documentos a fls. 6 verso e 8, bem como o montante peticionado.
Invoca ainda o instituto do abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium.
A. respondeu ao invocado abuso de direito.
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Realizado julgamento foi proferida a seguinte decisão:
Pelo exposto, com fundamento nos factos e normas de direito supra referidas decide-se condenar a R. (…), Lda. a pagar à Autora (…), Lda. a quantia de € 22.396,33 (vinte e dois mil, trezentos e noventa e seis euros e trinta e três cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal, desde 18.09.2013 até integral e efectivo pagamento.
Quanto ao mais, absolve-se a R. (…), Lda.
Custas pela A. e R. na proporção do seu decaimento.

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Não se conformando com o decidido, a R. recorreu da sentença, formulando as seguintes conclusões, que delimitam o objeto do seu recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, artigos 608º/2, 609º, 635º/4, 639º e 663º/2 do CPC:

1ª Vem o recurso interposto da decisão do Tribunal de 1ª instância que julgou a acção intentada por (…), Lda., parcialmente procedente e em consequência condenou a Ré ora Recorrente a pagar à Autora supra referida, a quantia de € 22.396,33 (vinte e dois mil, trezentos e noventa e seis euros e trinta e três cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal, desde 18.09.2013, até efetivo e integral pagamento, absolvendo-a quanto ao mais.

2ª A recorrente foi condenada, segundo a fundamentação de direito, no pagamento da mencionada quantia, correspondente à indemnização contratual pelo incumprimento pela Ré do “contrato” celebrado com a A. em 10 de Novembro de 2010,

3ª Contrato esse que, embora assinado por apenas 1 gerente da Ré – (…) – e como tal não tendo respeitado a forma legal de obrigar a sociedade,

4ª Se conclui na sentença que, ainda assim o contrato vinculou a sociedade!

5ª Não se conformando com a douta sentença proferida a Ré argui que não pode proceder a conclusão da R. estar vinculada a um contrato assinado por um só gerente, quando era exigível a assinatura conjunta dos gerentes, e quando os factos provados apontam desde logo uma conclusão e caminho diverso daquele constante e plasmado na sentença que condenou a R.

6ª A sentença ao decidir nos termos que constam na mesma, enferma dos vícios de nulidade previstos nas alíneas c) e d) do nº 1 do artigo 615º do CPC, porquanto,

7ª Entende a Recorrente que tendo em conta os factos provados, os factos dados como não provados e a motivação de facto, havendo a devida relevância lógica e valoração e ligados entre si, impunham decisão diversa, pois que, existe obscuridade ambiguidade e contradição entre os factos provados 3, 5, 18, 20 e 23 e o facto c) dos factos não provados com omissão de pronúncia relativamente ao conhecimento que a A. tinha do modo de obrigar externamente a R.

8ª Desde logo, quanto ao facto provado 3 – o 1º contrato celebrado entre as partes – foi considerada provada a existência do mesmo, e conforme motivação de facto, aí consta que este facto se considerou provado pelo teor do contrato – documento – junto a fls. 43 verso e 45.

9ª Ora e sendo certo que nesse documento consta a assinatura dos então 3 gerentes, e deveria ter sido valorizado tal facto também, com pertinência para os autos, uma vez que evidencia, através destas “circunstâncias” que a Recorrida sabia, já em 2005, que não era apenas um gerente que vinculava a sociedade.

10ª Ou seja, não se averiguou quem e quantos dos sócios da R, assinaram efectivamente o contrato firmado em 1.12.2005 e quantos teriam de assinar para obrigar a Ré, o que é relevante para a decisão, para comparação com a situação de facto relativa ao contrato de 2010 – objecto dos autos – se a A. sabia ou teria de saber que a R era constituída por mais que um sócio e que a empresa se obrigava pela assinatura de mais que 1 sócio.

11ª Isto decorrente da experiência prática das relações comerciais mantidas pelo menos há 5 anos com a celebração do contrato desde 2005 e permanente relação comercial desde então, sendo que e em razão de tudo o supra exposto, há que dizer que a Mª Juiz não cuidou de saber como devia (omissão de pronuncia) da questão alegada de que a A sabia ou não podia ignorar que a Ré tinha mais do que um sócio e se obrigava com a assinatura de mais do que 1 gerente!

12ª O facto 5 considerado provado, trata-se da constatação de que entre a A. e a Ré foi assinado um outro contrato o datado de 10 de Novembro de 2010, este assinado apenas e só, pelo gerente da Ré – (…).

13ª Sendo que, tal facto, segundo a motivação de facto da sentença, foi considerado provado pelo teor do contrato - documento junto a fls. 4 v. a 5 dos autos, o qual adiante consta um facto provado – facto 20 – onde se diz “20. À data dos factos, a Ré tinha como forma de obrigar “pela assinatura obrigatória do gerente (…) conjuntamente com a assinatura de outro gerente.”

14ª Ora, inevitavelmente, consultando o documento junto aos autos e que fundamentou a prova – a certidão permanente da ré – haveria a concluir como releva para este facto 20 e ainda e também para o facto 17: que quem, desde 22 de Junho de 2010, obrigava a sociedade e como: “Pela assinatura obrigatória do gerente (…) conjuntamente com a assinatura de outro gerente.”

15ª No que concerne ao facto 18, considerado provado, resulta claramente que, a autora, ora recorrida, sabia da existência de novos sócios, foram-lhes apresentados no verão, antes da assinatura do contrato, factualidade esta aliás, que segundo a motivação de facto, foi assumida por todas, as testemunhas ouvidas em sede de audiência e julgamento.

16ª Logo o facto provado 18 conjugado com o facto 3, resulta que a A. mantinha um contrato com a R. desde há 5 anos (à data da assinatura do 2º contrato) e que nesse 1º contrato, o mesmo tinha sido outorgado por 3 sócios e não apenas por um deles – o (…) – logo ao serem apresentados novos sócios, seria obvio que, a Ré se obrigaria não apenas pelo (…), mas pelos demais também em simultâneo, como aliás antes acontecia,

17ª Logo, não podia ser considerado” não provado” que “a A. sabia que a assinatura de (…), por si só, no documento referido em 5 não poderia vincular a R.” , mas sim e antes pelo contrário, com base em toda a demais prova produzida e as regras da experiência comum e o especial conhecimento que a A. detinha da Ré e dos negócios sempre havidos entre ambas, seria de esperar que havendo novos sócios estes fossem também gerentes, tal e qual como em 2005 quando o mesmo sócio assinou com mais 2 sócios, até porque este facto provado 18, só faz sentido, (apresentação dos novos sócios à A.) pelo facto destes terem competências e responsabilidades de gerentes, daí a necessidade de os dar a conhecer porque dos mesmos dependeria também a administração e a gestão da empresa aqui recorrente!

18ª Cabendo ainda não esquecer que que a aqui Autora, não é uma “qualquer” empresa pouco experiente, mas, como é de conhecimento publico e notório, a A. é uma das empresas mais emblemáticas na actividade de fornecimento de café – café (…) – empresa esta que tem obrigação de conhecer e saber, como se obrigam as empresas em geral nos negócios que celebram em geral e que conhecia, em particular, esta empresa, pelos anos de relacionamento comercial, pelo que a conclusão a retirar da prova e da experiência, é que a Autora sabia como se vinculava a Ré, ou, mesmo que não o soubesse, tinha obrigação e não podia ignorar, tendo em conta as circunstâncias descritas, que aquele sócio (…), por si só não poderia vincular a sociedade!

19ª O facto provado nº 23 é a derradeira prova e o outro requisito que conduz á inevitabilidade da conclusão contrária àquela que ficou plasmada na sentença, e inevitavelmente leva a que o direito a aplicar fosse outro e a conclusão de direito outra.

A sentença recorrida incorreu em contradição, e ao fazê-lo em simultâneo, não pode deixar de se considerar ambígua.

20ª Assim, por contradição da própria factualidade dada como assente e por ambiguidade a decisão recorrida padece de obscuridade, ambiguidade e contradição entre os factos provados 3, 5, 18, 20 e 23 e o facto c) dos factos não provados com omissão de pronúncia relativamente ao conhecimento que a A. tinha do modo de obrigar externamente a R. e como tal se a Mª Juiz a quo, tivesse sido valorizado de forma coerente e lógica a prova nos pontos 3, 5, 18, 20 e 23., bem como o respectivo enquadramento legal previsto no artigo 260º nº2 do CSC, a conclusão seria contrária à que o Tribunal a quo chegou.

21ª E em função do vertido, e nos termos do disposto no art.º 662º n.º 2, alínea c), do CPC, requer-se ampliação dos factos e a anulação oficiosa de outro, relativamente à vinculação do contrato, por a mesma ser deficiente, obscura e contraditória, como já foi referido, pois que se impõe fixar mais detalhadamente o conhecimento que a A. tinha da necessidade de outros gerentes obrigarem a Ré, atentos os documentos apresentados pela Ré e considerados provados e aluídos na matéria de facto provada.

22ª E em função disso impõe-se ampliar a matéria de facto, considerando novos factos provados, como vai:

Ponto 3-A:

No contrato datado de 1 de Dezembro de 2005, designado por “contrato”, a Ré está representada pelos três sócios gerentes, em conformidade com a forma de obrigar em vigor nessa data, conforme registo societário.

23ª E, importaria anular o facto “não provado” alínea c) “ Que a A. sabia que a assinatura de (…), por si só, no documento referido em 5 não poderia vincular a sociedade”.

24ª E em consequência, ampliar a matéria de facto provada, levando a facto nº 24 (novo), como provado:

“Que a A. sabia ou não podia ignorar que a assinatura de (…), por si só, no documento referido em 5 não poderia vincular a sociedade”.

25ª Ainda assim sempre haverá que impugnar a matéria de direito pois que, pelo que fica dito ocorre violação do disposto no n.º 2 do artigo 260.º, existindo erro na determinação da norma aplicada, entendo a recorrente que, face aos factos provados, a Mª juiz deveria ter aplicado o disposto no artigo 260.º, n.º 2, da CSC.

24ª Dado que, seria lógico perante a prova produzida e dada como assente, concluir e decidir, pela absolvição da Ré do pedido formulado pela A. atendendo a que, o contrato datado de 2010, celebrado entre a A. e a Ré, não vinculou a Ré, porque, foi subscrito apenas por 1 gerente da Ré; a sociedade Ré obrigava-se em 2010, pela assinatura de 2 gerentes; a Ré só tomou conhecimento do contrato em causa, quando recebeu a carta da A. a resolver o contrato, em 13.09.2013; e a A. sabia ou não podia ignorar que a assinatura de (…), por si só, no contrato não poderia vincular a sociedade.

25ª Considera-se que no caso em apreço, não se deve dar tutela das expectativas jurídicas de terceiro porque não existem expectativas jurídicas tuteláveis quando estas se baseiam em factos contra legem: a confiança de terceiros não pode ser invocada, porque não há confiança legítima contra o que dispõe a lei, bem como face à matéria provada nos pontos 3, 18, 20 e 23.

26ª Ou seja, o acto praticado pelo único gerente (…), ao assinar em nome da Ré, um contrato com a A. em 2010, sozinho, não vinculou a sociedade de que era sócio e um dos gerentes, e trata-se de um acto sem réstia de dúvida ferido de ineficácia perante a Ré e aqui recorrente.

27ª E como tal não produzindo efeitos em relação a esta, pelo que a Ré ora Recorrente não poderia ser condenada ao pagamento de indemnização.


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A recorrida não contra-alegou.

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Foram colhidos os vistos por via electrónica.

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As questões que importa decidir são:

1.- Saber se deve ser ordenada a ampliação da matéria de facto, aditando-se o facto 3-A, e 24 e se deve eliminar-se o facto não provado c).

2.- Saber se existe obscuridade ambiguidade e contradição entre os factos provados 3, 5, 18, 20 e 23 e o facto c) dos factos não provados, com omissão de pronúncia relativamente ao conhecimento que a A. tinha do modo de obrigar externamente a R.

3.- Saber se a R se obrigou ao cumprimento do contrato celebrado em 10-11-2010, com a assinatura de apenas um gerente, quando o seu contrato de sociedade obrigava à assinatura conjunta de dois gerentes.


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A impugnação da matéria e facto.
Toda a matéria da impugnação da matéria de facto tem como objetivo central demonstrar que o contrato celebrado em 10-11-2010, com a assinatura apenas de um dos gerentes da R., não vinculou esta ao seu cumprimento, uma vez que a R., nesta data, só se vinculava com a assinatura de pelo menos dois gerentes como constava do seu contrato de sociedade.
Um dos argumentos esgrimidos é o facto de, se o contrato referido no ponto 3 da matéria de facto (celebrado em 1-12-2005) foi assinado por mais do que um gerente, a A. teria obrigatoriamente de saber que no contrato de 2010 (facto 5) também teria de ser assinado por mais do que um gerente (facto 20), sendo certo que os restantes gerentes da R. foram apresentados à A. antes da assinatura do segundo contrato (facto 18).
No facto 23 deu-se como provado que a R só teve conhecimento da celebração do contrato celebrado em 10-11-2010 (facto 5) quando recebeu a carta que comunicava a resolução do contrato enviado pela A.
De onde conclui a recorrente que devem ser aditados dois factos:
Facto 3-A
No contrato celebrado em 1-12-2005 a R. obrigava-se com a assinatura de 3 gerentes, forma de a obrigar nessa data.
E facto 24:
Que a A. sabia ou não podia ignorar que a assinatura de (…), por si só, no documento referido em 5 não poderia vincular a sociedade.
O que implica anular o facto não provado em c):
Que a A. sabia que a assinatura de (…), por si só, no documento referido em 5 não poderia vincular a sociedade”.
Apesar de a recorrente ter identificado e feito apelo ao depoimento de algumas testemunhas, não deu cumprimento ao que dispõe o artº 640º/1 a), b) e c), do CPC, pelo que se torna impossível apreciar tais depoimentos.
A impugnação da matéria de facto foi efectuada apenas com apoio na análise de documentos, o que implica dever verificar-se se do teor dos mesmos resulta que a matéria de facto dada como provada e não provada no tribunal a quo deve manter-se, alterar-se ou ampliar-se.
Vejamos.
No documento 1 junto com a petição inicial consta o contrato celebrado em 10-11-2010.
No lugar da segunda outorgante, a sociedade “(…), Lda., aqui representada pelo Sr. (…)”, foi aposta uma assinatura sobre um carimbo da empresa R., com os dizeres: “(…), Lda., Praça da (…), Setúbal, NIF (…), A Gerência”.
Por seu lado, no contrato celebrado entre a recorrente e a recorrida com data de 29-12-2005, junto pela recorrida com a resposta às excepções deduzidas em sede de contestação, constam como segunda outorgante a sociedade “(…), Lda., aqui representada pelos seus gerentes Srs. (…), (…) e (…)” e as assinaturas dos três gerentes.
É por este motivo que a recorrente defende que a recorrida tinha que saber, obrigatoriamente, que a sociedade só se vinculava perante terceiros com mais do que a assinatura do gerente (…).
Contudo, para além destes documentos, importa também analisar a certidão do registo comercial da recorrente junta com a contestação, para se verificar quais as alterações sofridas pelo contrato societário ao longo do período considerado, no que à forma de obrigar da sociedade diz respeito.
Verifica-se na certidão que, em 29-12-2005, a sociedade se obrigava perante terceiros com a assinatura de três gerentes, sendo sempre necessária a intervenção de (…).
Nesse momento, os gerentes eram o referido (…), (…) e (…).
A partir de 30-05-2008, a sociedade obrigava-se apenas com a assinatura do sócio (…), uma vez que os segundo e terceiro sócios renunciaram à gerência nesta data (vide AP. …/20080530); mas nessa mesma data, aqueles sócios foram substituídos pelo sócio gerente (…).
A sociedade passou a obrigar-se com a assinatura conjunta dos dois gerentes.
Em 21-05-2010 o sócio (…) renunciou também à gerência (AP. …/20100521).
E, nessa mesma data, o contrato de sociedade veio a ser alterado passando as três quotas da sociedade a ser tituladas por um único sócio – (…).
Pelo que a sociedade se obrigava “com a assinatura de um gerente” – o sócio único (…).
Que, em 14-06-2010, registou um aumento de capital das três quotas de que era titular.
A vida da sociedade continuou a evoluir e, em 23-06-2010, o contrato de sociedade sofreu nova alteração, sendo agora titulares das quotas, (…) e (…) – Comércio e Serviços, Lda.
A sociedade passou a obrigar-se pela “assinatura obrigatória do gerente (…), conjuntamente com a assinatura de outro gerente”.
Nessa data foram registados como gerentes, (…) e (…).
Deste excurso resulta, desde já, que há uma constante na vida da gerência da sociedade: a manutenção do sócio gerente (…).
E que, no período de 21-05-2010 e 23-06-2010 a sociedade se obrigava apenas com a assinatura do único gerente – (…).
É certo que no momento da assinatura do contrato em causa nos autos – 10-11-2010 – a sociedade se obrigava já com a assinatura obrigatória do sócio gerente (…) e um dos outros dois gerentes que assumiram funções em 23-06-2010.
Mas esta constatação faz cair por terra o argumento da recorrente de que era obrigatório ser do conhecimento da recorrida que a sociedade recorrente se obrigava com a assinatura de mais do que um gerente, uma vez que, em dado período muito próximo da data em que foi celebrado o contrato, a sociedade se obrigava apenas com a assinatura do gerente que outorgou sozinho o contrato em 11-10-2010.
Por outro lado, dos documentos analisados não podemos concluir que foram apresentados os novos gerentes, registados em 23-06-2010, à recorrida.
Com efeito, no facto dado como provado em 18 “Entre a R. e a A. foram encetados contactos no sentido de serem apresentados os novos sócios da R.”, não demonstra que destes contactos resultou a efectiva apresentação dos novos sócios ou dos novos gerentes, uma vez que os sócios sempre podem nomear quem muito bem entenderem para exercer a gerência, o que parece ter acontecido no caso dos autos.
O que se conclui também do facto provado em 19; deste resulta que no Verão de 2010 ocorreu uma reunião entre (…), (…) e (…), não se tendo dado como provado que ali tenham estado presentes os novos gerentes acima identificados (… e …).
E, como se sabe, são os gerentes que obrigam a sociedade não os sócios.
Em conformidade e congruência com esta factualidade, foi dado como não provado em b) Que na reunião ocorrida em 14 Março de 2013, (…), (…) e (…) tivessem falado sobre o contrato que a R. pretendia celebrar com a A. após a finalização das obras ocorridas no estabelecimento da R.
De onde se conclui que não pode ampliar-se a matéria de facto e dar-se como provado, como pretende a recorrente que:
(…) a A. sabia ou não podia ignorar que a assinatura de (…), por si só, no documento referido em 5 não poderia vincular a sociedade.
Bem como se não pode eliminar o facto não provado:
Que a A. sabia que a assinatura de (…), por si só, no documento referido em 5 não poderia vincular a sociedade”.
Por outro lado, torna-se irrelevante dar como provado que:
No contrato celebrado em 1-12-2005 a R. obrigava-se com a assinatura de 3 gerentes, forma de a obrigar nessa data.
Uma vez que este facto resulta da consulta da certidão do registo comercial da recorrente e não releva para a forma de obrigar exigida pelo contrato societário em 11-10-2010, data da celebração do contrato em causa nos autos, porque o contrato societário sofreu múltiplas e variadas alterações ao longo da sua vida.
E uma delas era mesmo exigir-se apenas a assinatura do sócio gerente que assinou o contrato em causa nos autos.
Logo, esta circunstância não seria tão inédita na vida da empresa, como pretende a recorrente.
Acresce que a matéria dada como provada no ponto 23: “A R. só teve conhecimento do documento referido em 5 quando recebeu a carta referida em 12” está em contradição com o acima decidido pelo que deve ser incluída na matéria de facto não provada.
Com efeito, sendo o subscritor do contrato celebrado em 11-10-2010 o sócio gerente da recorrente – o sócio gerente que sempre acompanhou a vida da empresa, o gerente sempre presente – cuja assinatura deveria obrigatoriamente constar em todos os contratos celebrados pela empresa, e tendo recebido e pago café desde 11-10-2010 até à carta enviada pela recorrida que fez cessar o contrato, não podia desconhecer o teor do contrato cujas clausulado observou e cumpriu durante quase 3 anos, 13 de Setembro de 2013 (facto 12), o que implica não poder a empresa desconhecer o clausulado no dito contrato
Pelo exposto, improcede a impugnação da matéria de facto, e as conclusões da recorrente nesta parte.
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A matéria de facto a considerar é a mesma que foi fixada no tribunal a quo, com a eliminação do ponto 23 acima referido, e é a seguinte:
A – Factos provados
1. A A. explora a actividade de comércio dos cafés e sucedâneos da marca (…).
2. Em Novembro de 2010, a R. explorava um estabelecimento comercial denominado “(…)”, sito na (…), em Setúbal.
3. A A. e R. outorgaram o documento escrito, datado de 1 de Dezembro de 2005, designado por «Contrato».
4. De acordo com a cláusula 2.º do documento referido em 3 ficou acordado como obrigação da R. “comprometendo-se ainda durante a vigência do presente contrato, a comprar à primeira contraente café marca (…), lote (…), nas quantidades mínimas mensais de 80 kg.”
5. A A. e R., esta representada pelo sócio gerente (…), outorgaram o documento escrito, datado de 10 de Novembro de 2010, designado por «Contrato»;
6. De acordo com a cláusula 2° do documento referido em 4, “constituem obrigações da primeira contraente: 1. Ceder à segunda contraente, em comodato, os bens abaixo identificados: a) máquinas ...)/205-dig. 2gr (usada), b) 3 moinhos brasília aut. (usado); c) 2 depuradores 8 litros.
1.1 O valor total do equipamento supra referido é de € 2.980,53 acrescido de IVA à taxa em vigor.
2. “Fornecer à segunda contraente os produtos por esta solicitados, quer em regime de entrega imediata no seu estabelecimento aquando da visita dos vendedores da primeira contraente, quer por entrega a solicitação da segunda contraente, por escrito, mail, telefax ou telefone, no prazo máximo de 48 horas a contar da recepção do pedido.”
3. “Prestar assistência técnica remunerada a pedido da segunda contraente aos equipamentos fornecidos pela primeira contraente e de acordo com a tabela de preços em vigor.”

4. “Prestar informação fidedigna sobre toda a gama de produtos fornecidos no âmbito do contrato, designadamente às qualidades, prazos de validade, modos de apresentação e comercialização.”

7. Ficou, também, estipulado na cláusula 2.º do documento referido em 5 que “constituem obrigações da segunda contraente: 1. manter e conservar os equipamentos fornecidos pela primeira contraente, através de uma utilização adequada e prudente; 2. Adquirir à primeira contraente, durante a vigência do contrato, em regime de exclusividade, 50 kg mensais do lote (…), perfazendo 2.400 kg totais; 3. Pagar pontualmente os produtos fornecidos pela primeira contraente, aos preços previstos na tabela geral de preços em vigor à data de cada fornecimento e nos termos previstos no presente contrato.”

8. De acordo com a cláusula quinta do documento referido em 5. foi ainda acordado que “1. O presente contrato é celebrado pelo prazo de quatro anos. 2. No caso da segunda contraente não ter adquirido a quantidade total prevista no número 2 da cláusula segunda, poderá a primeira contraente optar por prorrogar o contrato por mais um ano. 3. A segunda contraente poderá por termo ao contrato no mês seguinte a ter adquirido a totalidade do produto prevista na cláusula segunda n.º2. 4. Terminado o contrato pelo decurso do prazo, sem que a segunda contraente tenha adquirido a totalidade dos produtos a que se obrigou, a primeira contraente terá o direito a ser compensada pelo valor correspondente às quantidades não adquiridas.”

9. Mais estabeleceram na cláusula sexta do mesmo documento “1. Sem prejuízo do disposto no n.º 3 da cláusula quinta, o presente contrato poderá ser resolvido por qualquer dos contraentes nos termos gerais de direito. 2. A resolução do contrato comunicar-se-á por carta registada com aviso de recepção, a enviar para a sede das contraentes, considerando-se como data da resolução a que for fixada na comunicação. 3. Em caso de resolução fundada no incumprimento culposo das obrigações da segunda contraente, a primeira contraente tem o direito a ser indemnizada, pelo valor correspondente à diferença entre as quantidades do fornecimento previstas na cláusula segunda n.º 2 e as quantidades consumidas pela segunda contraente até à data da resolução do contrato. 4. Em caso de resolução por encerramento do estabelecimento da segunda contraente, por inviabilidade da actividade exercida ou por causa não culposa da segunda contraente, a primeira contraente tem o direito a ser compensada pelo montante correspondente ao valor por si investido a favor da segunda contraente proporcionalmente á quantidade prevista de café não adquirido. 5. O valor investido corresponde ao valor do equipamento constante da cláusula primeira. 6. Em qualquer dos casos de resolução contratual constante da presente cláusula, fica a segunda contraente obrigada a, no prazo de 10 dias, após a notificação da resolução, restituir à primeira contraente os bens comodatados.”
10. Em Dezembro de 2012 a R. encerrou o estabelecimento para obras, sem dar conhecimento à A.
11. No entanto, a partir de Outubro de 2012, a R. deixou de consumir café marca (…), Lote (…), tendo cessados os fornecimentos da A.
12. Em face do comportamento da R., a A. resolveu o contrato, o que fez através de carta registada com aviso de recepção, enviada para a morada convencionada do R. em 13 de Setembro de 2013 com o seguinte teor “ Fomos informados pelo nosso departamento comercial de Setúbal que deixaram V. Exas. de consumir no v/ estabelecimento denominado (…), o nosso café marca (…), lote (…). Constatámos, assim, o incumprimento por parte de V. Exas. das obrigações a que estavam cometidos por força do contrato em epígrafe e em particular da cláusula segunda n.º 2 que lhes impunha o dever de exclusividade com o consumo mensal de 50 Kg de café (…), Lote (…), até perfazer 2.400 kgs totais. Pelo exposto, e atendendo a que violaram a cláusula supra referida, ao abrigo do disposto na cláusula sexta n.º 2 e 4 resolve-se o sobredito contrato de fornecimento, com efeitos a contar do recebimento da presente notificação. Ainda ao abrigo do disposto na referida cláusula sexta n.º 4, notificamo-los para no prazo de 15 dias, após a recepção desta carta, nos indemnizarem com o valor de € 22.396,33 (IVA incluído à taxa em vigor), referente a 1960 Kgs de café não adquiridos x 9,29€/Kg. Caso não procedam ao pagamento no prazo estipulado, a referida quantia será acrescida de juros de mora à taxa legal, contados a partir da presente data até integral pagamento (…).
13. A A. interpelou a R. para proceder ao pagamento da quantia em dívida (em 16/10/2015 e 24/03/2016), por carta registada com aviso de recepção, enviada para a morada convencionada da R.
14. Até 12 de Outubro de 2012 a R. adquiriu 440 quilos de café marca (…), Lote (…).
15. Os equipamentos descritos em 6.(1.) que se encontravam no estabelecimento da R. foram levantados pela A.
16. Os equipamentos mencionados em 6 foram cedidos à R. no âmbito do acordo celebrado em 1 de Dezembro de 2005.
17. Através de apresentação n.º …/20100623, foi registada a alteração ao contrato de sociedade e designação de membros de órgãos sociais da R.
18. Entre a R. e a A. foram encetados contactos no sentido de serem apresentados os novos sócios da R.
19. Nessa sequência em reunião ocorrida em data não concretamente determinada mas anterior ao Verão de 2010, em que estiveram presentes, (…), (…) e (…), foi pela R. proposta para mudança de lote de café, colocação de novos equipamentos e ainda a colocação de um novo túnel/toldo.
20. À data dos factos, a R. tinha como forma de obrigar “pela assinatura obrigatória do gerente (…), conjuntamente com a assinatura de outro gerente”.
21. O preço do quilo de café lote (…) em Outubro de 2012 era de € 21,63.
22. Desde Dezembro de 2010 a Setembro de 2012 a R. consumiu no total 440 kg de café.

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B- Factos não provados
Com interesse para a causa, não se provou:
a) Para cumprimento da cláusula primeira do contrato referido em 5, a A. cedeu à R. em regime de comodato, duas máquinas de café (…) – modelo 205 Dig. 2 grupos, três moinhos de café marca Brasília modelo automático e dois depuradores 8 litros.
b) Que na reunião ocorrida em 14 Março de 2013, (…), (…) e (…) tivessem falado sobre o contrato que a R. pretendia celebrar com a A. após a finalização das obras ocorridas no estabelecimento da R.
c) Que a A. sabia que a assinatura de (…), por si só, no documento referido em 5, não poderia vincular a R.
d) A R. só teve conhecimento do documento referido em 5 quando recebeu a carta referida em 12.
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A nulidade da sentença por violação das alíneas c) e d) do nº 1 do artigo 615º do CPC.

A conclusão a que chegámos aquando da apreciação da impugnação da matéria de facto resolve a questão da obscuridade, ambiguidade e contradição ente os factos provados 3, 5, 18, 20 e 23 e o facto c) dos factos não provados, com uma pretensa omissão de pronúncia relativamente ao conhecimento que a A. tinha do modo de obrigar externamente a R.

Como acima se decidiu, a decisão sobre a matéria de facto é clara, congruente e está em consonância entre os factos provados e não provados, mormente após a inclusão do facto provado nº 23 na matéria e facto não provada, porque este sim, se mostrava incongruente como acima também se explanou.

Assim sendo, improcedem na totalidade as conclusões da recorrente nesta parte.


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O Direito.

O caso em apreciação tem como contornos jurídicos a existência de um contrato celebrado entre as sociedades recorrente e recorrida, tendo a recorrente outorgado o contrato com a assinatura de apenas um gerente, quando o contrato societário impunha a assinatura obrigatória deste gerente mas acompanhada de, pelo menos, um outro gerente.

A questão a dirimir é então a de saber se, prevendo o contrato societário a assinatura de pelo menos dois gerentes para se obrigar perante terceiros, se esta única assinatura vincula a recorrente ao cumprimento do contrato.

O Código das Sociedades Comerciais no artº 260º/1 dispõe que: Os actos praticados pelos gerentes, em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere, vinculam-na para com terceiros, não obstante as limitações constantes do contrato social ou resultantes de deliberações dos sócios.

O que é concretizado com ainda maior precisão no nº 4: Os gerentes vinculam a sociedade, em actos escritos, apondo a sua assinatura com indicação dessa qualidade.

O ato praticado pelo gerente no caso dos autos está contido dentro dos seus poderes de gestão da sociedade (artº 192º e 259º), pelo que, como dispõe aquele inciso a regra geral é a de que a assinatura de apenas um gerente vinculou a sociedade, não obstante o contrato societário obrigar à assinatura conjunta de dois gerentes.

A lei visa aqui proteger o contraente que desconhece os termos exactos em que a sociedade se obriga pelo contrato de sociedade, não sendo exigível, a todos os que querem celebrar contratos com a sociedade, que consultem diariamente o seu Registo Comercial para saberem quem os sócios decidiram que a deve obrigar, para além de que o registo ou a publicação do contrato de sociedade não fazem presumir o seu conhecimento. – Artº 192º/4, in fine, do CSC.

Repare-se que, no caso pressente, a sociedade chegou a mudar a forma de se obrigar perante terceiros no mesmo dia mas a horas diferentes. Se a certidão do registo fosse pedida de manhã já não coincidiria com a que fosse pedida da parte da tarde.

Por isso se tutela aqui o princípio da confiança nos negócios jurídicos, mormente os de índole comercial, o que é corroborado por Paulo Olavo Cunha em Direito das Sociedades Comerciais, Almedina, 5ª edição, pág. 685: “para os terceiros, o que interessa é a qualidade de gerente” não tendo “por isso, de conhecer a forma pela qual a sociedade se obriga…”.

Mas a regra geral, que no fundo resulta numa presunção iuris tantum, pode ser ilidida se a sociedade demonstrar que o terceiro sabia, ou não podia ignorar, a forma como a sociedade se obrigava perante terreiros, como estipula o nº 2 do mesmo preceito: A sociedade pode, no entanto, opor a terceiros as limitações de poderes resultantes do seu objecto social, se provar que o terceiro sabia ou não podia ignorar, tendo em conta as circunstâncias que o acto praticado não respeitava essa cláusula e se, entretanto, a sociedade o não assumiu, por deliberação expressa ou tácita dos sócios.

A questão pode apresentar um crescendo de complexidade nos casos de abuso do poder de representação do gerente, como assinala Raúl Ventura em Sociedades por Quotas/Comentário ao CSC, Vol. III, pág. 176, quanto ao facto de o nº 2 do artº 260° só abrir uma excepção à inoponibilidade a terceiros prevista no n.° 1 (limitações aos poderes representativos dos gerentes resultantes da cláusula do objecto social), sustenta este autor que a inoponibilidade a terceiros das limitações em causa “não resulta do art. 260.°, nem da sua letra, nem por analogia, que não parece lícita. Pode, contudo, resultar de outras normas gerais, mas para isso é necessário entender que o regime criado no art. 260.º, n.ºs 1 e 2, não tem a intenção de excluir a aplicação dessas outras normas legais”. Reportando-se a hipóteses de (1) conluio doloso entre o gerente e o terceiro para prejudicar a sociedade; (2) violação de limitações internas, mesmo sem intenção de prejudicar, quando delas tenha o terceiro conhecimento positivo; e (3) actuação consciente do gerente em prejuízo da sociedade, o A. entende dever aplicar-se o disposto no artº 269º do CC, o que o conduz à conclusão da não vinculação da sociedade quando o terceiro conhecia ou devia conhecer o abuso (artºs 268º/1, e 269º do CC.

Mas o caso dos autos apresenta maior simplicidade.

O cerne da defesa da recorrente centra-se na oponibilidade à recorrida do ato do seu gerente, que agiu sem poderes de representação quando assinou o contrato em causa nos autos.

No seu entendimento, ficou demonstrado (mais uma vez se repete) que, tendo a sociedade que contratou com a recorrente celebrado em 2005 um contrato em que esta se obrigou com a assinatura de três gerentes, tinha que saber ou não podia ignorar que, no contrato que celebrou em 2005 – decorrente, aliás, do primeiro –, também se deveria obrigar com a assinatura de dois gerentes.

Contudo, como decorre da matéria de facto provada, a sociedade deliberou várias modalidades de vinculação contratual que passaram de se obrigar com a assinatura de um, a dois e a três gerentes.

Ora, como já se assinalou acima, é contrário às exigências do tráfico comercial, sob pena de criação de entropias injustificáveis e contrárias à economia, que nas relações comerciais entre as empresas e as pessoas em geral, se consultem diariamente os Registos Comerciais das empresas para se saber com segurança quantos gerentes tem a sociedade e qual ou quais a obrigam.

Pode agora argumentar-se que, desta forma, os gerentes podem praticar os actos que entenderem, uma vez que a sociedade tanto se obriga com a assinatura de um gerente como com o número de assinaturas a que obriga o pacto societário.

Ma não é assim.

As consequências da prática de actos que excedem os poderes concedidos pelos sócios aos gerentes das sociedades, reflectem-se nas relações internas entre o gerente e os sócios, podendo ocorrer a sua destituição, com ou sem justa causa, como dispõe o artº 257º/1, 4 e 6, do CSC.

No caso dos autos, a recorrente não logrou ilidir a presunção de que a sociedade recorrida, que consigo contratou, sabia ou não podia ignorar que a sua vinculação perante terceiros apenas podia ocorrer com a assinatura de dois gerentes.

Não ficou demonstrado que os novos gerentes foram apresentado à recorrida nos termos alegados pela recorrente.

O que decorre da matéria de facto provada é que a recorrida sempre contratou com o gerente (…) e que foi este quem assinou os dois contratos.

O que equivale a dizer que a assinatura do gerente (…) aposta no contrato celebrado em 10-11-2020, vinculou a sociedade ao cumprimento das cláusulas contratuais nele previsto, e, como tal, deve ser pontualmente cumprido.

Como salienta Pedro Albuquerque, em Vinculação das Sociedades Comerciais por Garantias de Dívidas a Terceiros, in ROA, ano 55º, pág. 701: “a sociedade só não fica vinculada pela actuação dos seus órgãos quando eles não couberem, simultaneamente nos poderes que a lei confere ou permite conferir a tais órgãos de forma directa ou indirecta. Não basta uma proibição relativa para libertar a sociedade dos compromissos assumidos pelos gerentes. É necessária uma proibição legal absoluta.”
Deve ainda aqui interpretar-se o comportamento da recorrente relativamente ao contrato celebrado pelo seu gerente.
Durante quase três anos o contrato foi pontualmente cumprido, pelo que o silêncio da recorrente quanto à imperfeição do contrato durante todo este período só pode ser interpretado como aceitação do aperfeiçoamento do contrato (artigo 234º do CC) e a alegação de que se não encontra vinculada ao seu cumprimento representa um venire contra factum proprium.
Neste sentido Acórdão do STJ de 30-06-2011, Granja da Fonseca, Procº 1705/08.3TBGDM.P1.S1:
II – (…) o director de produção da fábrica da ré não tinha poderes para vincular a ré em negócio de colocação da máquina à experiência, ou em contrato de aquisição da máquina, uma vez que tal competência é reservada à administração da ré.
III - Não se tendo provado que o director de produção tivesse praticado os aludidos actos por mandato de administração, o negócio que aquele celebrou em nome da sociedade é ineficaz em relação à autora se não for ratificado pela ré.
IV - A laboração da máquina é acto da ré de onde se extrai, com toda a probabilidade, que a ré quis confirmar os actos do seu director de produção que justificaram, em primeira mão, a entrega do dia 02-11-2007, constituindo laboração declaração tácita de ratificação pela ré daqueles actos do seu director de produção.
VI - Ao contrário do que genericamente sucede, a lei admite posteriormente a celebração do negócio através do silêncio do comprador, pelo que não tendo este, no prazo da aceitação, tomado nenhuma iniciativa, deixando escoar sem qualquer declaração ou manifestação de vontade, não há senão que interpretar o seu silêncio como aceitação do aperfeiçoamento do contrato.
VII - Por isso, entregue que seja a coisa em condições de poder ser examinada pelo potencial comprador, estabelece-se o ónus a cargo desse comprador de declarar ao vendedor que não quer comprar, ou o ónus de lhe devolver a coisa, podendo essa devolução consistir em simples declaração de disponibilidade da coisa se o vendedor a quiser vir buscar.
VIII - Não se tendo a ré pronunciado dentro do prazo de trinta dias, considera-se o mesmo concluído em 02-12-2007, ficando a ré obrigada a pagar o preço da máquina.
IX - Ainda que a ré viesse a declarar, depois dessa data, que a máquina lhe não interessava, tal declaração seria irrelevante, dado que o contrato se encontrava concluído.
X - Desmente a declaração de falta de interesse na compra da máquina o uso sistemático que a ré lhe continuou a dar depois de decorrido o prazo fixado para a experiência.

E num caso com o dos autos, em que na gerência se verifica a preponderância objectiva de um gerente sobre os restantes, Ac. STJ de 24-12-2015, Pinto de Almeida, Procº 580/11.5TBMMN.E1.S1:
I - No que respeita ao exercício dos poderes de representação da sociedade por quotas, no caso de gerência plural, o critério supletivo legal é o da representação conjunta maioritária: a sociedade só fica vinculada se, no negócio, intervier a maioria dos gerentes ou se esta maioria o ratificar.
II - Nesse caso e salvo cláusula do contrato de sociedade que disponha de modo diverso, é a própria lei que impede a vinculação da sociedade por actos em que interveio um só gerente, não estando em causa qualquer limitação que conste do contrato de sociedade ou que derive de deliberação dos sócios, ou seja, qualquer limitação subsumível na previsão do art. 260.º, n.º 1, do CSC.
III - Se o contrato que serve de fundamento à acção foi outorgado apenas por um dos gerentes da sociedade ré (cujo pacto repete a referida regra legal supletiva) e o acto não foi ratificado pela maioria dos gerentes, aquele gerente, ao fazê-lo, foi além dos seus poderes, actuando ultra vires, não podendo vincular a sociedade.
IV - Todavia, no circunstancialismo provado – era (sempre foi) apenas esse gerente quem, de facto, geria efectivamente a ré e quem, na prática, a representava, perante a inacção, passividade e persistente alheamento da outra sócia e gerente; a ré cumpriu parcialmente as obrigações que para si emergiram do contrato; a outra parte (autora) cumpriu integralmente a prestação a que se vinculou, efectuando avultado investimento em bem da ré –, a invocação da falta de poderes do gerente para, por si só, vincular a sociedade ré constitui mero pretexto formal para esta se eximir ao cumprimento de obrigações que foram assumidas em seu nome e representação.
V - Neste caso, a invocação da falta de poderes é ilegítima e abusiva, por exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé e pelo fim social e económico desse direito.
VI - Traduz até autêntico venire contra factum proprium, uma vez que a inacção e passividade da ré e da outra gerente reflectem necessariamente implícito consentimento e aceitação da actuação daquele gerente, não sendo legítimo que, com base na aludida violação formal do contrato de sociedade, em que anuiu, a ré pretenda desvincular-se das obrigações que em seu nome foram assumidas.
No mesmo sentido, Acórdão da RE de 20-11-2014, Mata Ribeiro, Procº 474/12.7TBTVR.E1:
Mesmo no caso em que vigore o regime da gerência plural, aos interesses da sociedade ou dos titulares do respectivo capital social sobrepõem-se os de terceiros de boa fé que com a sociedade se relacionam, mantendo-se a validade dos efeitos jurídicos dos actos outorgados em nome da sociedade apenas por um dos gerentes, ainda que sem a intervenção conjunta dos demais.

Assim sendo, improcedem também as conclusões da recorrente nesta sede, pelo que bem decidiu a Mª Juiz, sendo a apelação totalmente improcedente.


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Sumário:

(…)


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DECISÃO.

Em face do exposto, a 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora julga a apelação improcedente e confirma a sentença recorrida.


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Custas pela recorrida – Artº 527º C.P.C.
Notifique.
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Évora, 27-06-2019

José Manuel Barata (relator)

Conceição Ferreira

Rui Machado e Moura