Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
6/10.1 GARMZ.A.E1
Relator: ANTÓNIO JOÃO LATAS
Descritores: BUSCA DOMICILIÁRIA
CONSENTIMENTO DO VISADO
Data do Acordão: 12/06/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
É irrelevante que o mandado de busca domiciliária, a que se faz alusão no auto de busca e apreensão, tenha caducado, se o visado pela diligência deu o seu consentimento expresso à realização da mesma.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório

1. Nos autos de processo criminal em epígrafe que correm termos no T. J. da Comarca de Vila Viçosa em que é arguido Manuel J, foram emitidos mandados de busca domiciliária, para a residência daquele, conforme requerido pelo MP.

Foi efetuada a diligência no dia 26-05-2011, e em resultado de tais buscas foram apreendidos vários objetos (descritos a fls. 787 e 788), nomeadamente um telemóvel, de cor preta, marca Samsung.

O Ministério Público validou tal apreensão a fls. 780 e requereu à senhora Juiz de Instrução Criminal de Évora autorização para transcrição da lista telefónica do telemóvel apreendido, pertencente ao arguido, com vista à identificação dos indivíduos consumidores que contactavam o arguido para adquirirem produtos estupefacientes.

2. A senhora JIC indeferiu o exame requerido, nos seguintes termos (fls 38 dos presentes autos de recurso em separado):

- : “ (…) No que concerne às buscas por nós autorizadas, foram os mandados cumpridos após o decurso do prazo para o efeito (tendo sido concedido 15 dias, os mandados emitidos no dia 6/05/2011, vieram a ser cumpridos apenas no dia 26/5/2011) – cfr. fls. 765.
*
Tendo em conta que o telemóvel foi apreendido em diligência ferida de nulidade, indefere-se o exame ao mesmo (…)”.

3. Inconformado com este despacho, vem o MP dele recorrer, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:

« III – Conclusões

1ª Nos presentes autos, a fls. 622, conforme requerido, foi determinado a emissão de mandados de busca domiciliária, para a residência sita na Rua ---, em Vila Viçosa, onde reside o arguido Manuel J.

2ª Foi efetuada a diligência no dia 26-05-2011, e em resultado de tais buscas foram apreendidos vários objetos (descritos a fls. 787 e 788), nomeadamente um telemóvel, de cor preta, marca Samsung.

3ª O Ministério Público validou tal apreensão, nos termos e no prazo a que alude o art. 178.°, n.° 5 do CPP, a fls. 780 e requereu à Mmª JIC, a fls. 789, a autorização para transcrição da lista telefónica do telemóvel apreendido, pertencente ao arguido Manuel J, com vista à identificação dos indivíduos consumidores que contactavam o arguido para adquirirem os produtos estupefacientes, para a recolha da prova testemunhal.

4ª A Mmª JIC entendeu indeferir o exame requerido, por considerar que o telemóvel foi apreendido em diligência ferida de nulidade.

5ª É do despacho proferido a 27-05-2011, de fls. 793 e 794, que ora se recorre, por dele discordarmos, por entendermos que a diligência não está ferida de nulidade.

6ª Com efeito, em conformidade com o n.º 2, do artigo 174.º do Código de Processo Penal, uma busca apenas pode e deve ser realizada quando houver indícios de que objetos relacionados com um crime ou que possam servir de prova se encontram em lugar reservado ou não livremente acessível ao público.

7ª As buscas são, em princípio, ordenadas ou autorizadas por despacho da autoridade judiciária competente, podendo, no entanto, nos casos delimitados no n.º 5, do artigo 174.º do CPP, ser efetuadas por órgão de polícia criminal sem a mencionada ordem ou autorização.

8ª Tratando-se de uma busca em casa habitada (permanente, alternada ou ocasionalmente), ou, numa sua dependência fechada a competência para a ordenar ou autorizar esse ato pertence ao juiz (artigo 177.º, n.º 1 do CPP), sem prejuízo de, em determinados casos, ela poder também ser ordenado pelo Ministério Público ou efetuado por órgão de polícia criminal (n.º 3 do mesmo artigo).

9ª Da leitura atenta e conjugada dos preceitos indicados, verificamos que, para assegurar a regularidade da diligência, basta o consentimento da pessoa por ela afetada e que também tenha a livre disponibilidade quanto ao local onde a diligência é efetuada.

10ª Pelo que nenhuma questão deve ser levantada no que concerne à validade da busca realizada, nos autos, no dia 26.05.2011, à residência, sita na Rua --- em Vila Viçosa., uma vez que foi expressamente autorizada pelo arguido Manuel J, tendo o consentimento prestado ficado documentado por escrito nos autos (cfr. fls. 767 e 768).

11ª Pese embora os mandados emitidos para o efeito tenham sido cumpridos após o decurso do prazo concedido, a busca domiciliária realizada teve o consentimento do visado.

12ª O auto de busca e apreensão foi assinado pelo próprio arguido e menciona, em local próprio, que este “consentiu expressamente na busca”, não necessitando assim tal diligência nem de autorização nem de validação judicial.

13ª A validade da realização da busca domiciliária basta-se com o consentimento da pessoa afetada que era e que tenha a livre disponibilidade, quanto ao local onde a diligência é efetuada e que possa ser por ela afetado.

14ª O consentimento do visado para a realização da busca, incluindo a domiciliária, não exige qualquer específico formalismo na sua prestação, importando, apenas, que ele fique documentado por qualquer forma.

15ª Assim, tendo ocorrido consentimento do titular do direito à inviolabilidade do domicílio e visado pela busca, mostra-se respeitado o disposto nos art. 174.°, n.°5, al. b) e 177.°, n.° 3, al. a) e b) do CPP, não padecendo a busca e apreensão efetuada na residência sita na Rua ---, em Vila Viçosa, de qualquer vício ou nulidade, diversamente do entendido pela Mmª JIC.

16ª Donde o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 174.°, n.°5, al. b) e 177.°, n.° 3, al. a) do CPP.

Termos em que, e nos mais que doutamente se suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, sendo revogado o despacho recorrido e substituído por outro que determine que a busca e apreensão realizadas não padecem de qualquer vício ou nulidade e defira o exame ao telemóvel apreendido.»

4. – Antes de ordenar a subida do recurso, a senhora JIC sustentou a sua decisão acrescentando que, “ …resulta claramente da certificação dos mandados de fls 765 que as buscas foram realizadas em cumprimento dos mesmos».

5. - Nesta Relação, a senhora Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

Cumpre agora apreciar e decidir o presente recurso.

II. Fundamentação

1. Questão a decidir

É pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Vistas as conclusões da motivação do MP recorrente, a questão a decidir no presente recurso é a de saber se a busca domiciliária em que foi encontrado e apreendido o automóvel a que se pretende aceder foi legalmente efetuada por ter sido autorizada pelo arguido ou se a busca em causa é nula por ter sido realizada em cumprimento do mandado judicial antes requerido e deferido, embora para além do prazo concedido, conforme entendeu a senhora juíza recorrida.

2. Decidindo.

2.1. – Estando em causa busca domiciliária, estabelece o art. 177º nº 1 do CPP que a mesma só pode ser ordenada ou autorizada pelo juiz. Não se trata, porém, de determinação absoluta, pois logo o nº3 do mesmo art. 177º prevê que as mesmas possam ordenadas pelo MP ou ser efetuadas por órgão de polícia criminal (OPC) nas situações aí previstas, entre as quais se conta o caso de consentimento do visado desde que documentado por qualquer forma. Esta regra mostra-se conforme com a delimitação da proteção constitucional do domicílio que, conforme decorre claramente do art. 126º nº3 do CPP, pressupõe a falta de consentimento do visado.

No caso presente, nada obstaria, pois, a que a busca domiciliária em causa fosse realizada por OPC, mediante consentimento do arguido e, em boa verdade, a senhora juíza a quo não questiona esta interpretação da lei.

O que resulta de forma mais clara do seu despacho de sustentação é que a senhora juíza entendeu que a busca terá sido realizada ao abrigo do mandado de busca que emitira, e não ao abrigo do consentimento do arguido, razão pela qual a mesma seria nula, pois foi realizada para além do prazo judicialmente estipulado para a sua realização.

2.2. – Do auto de busca, que constitui fls 26 e 27 dos presentes autos de recurso, correspondentes a fls 767 e 768 dos autos de inquérito, resulta efetivamente alguma ambiguidade, uma vez que embora se faça constar logo de início a assinatura do arguido após a locução, “Consentiu expressamente a busca e vai assinar”, refere-se a seguir, em texto escrito no ato, que se procedeu à entrega de cópia do despacho e do Mandado de Busca ao arguido, dando-se início á diligência na hora ali indicada. Esta mesma ambiguidade parece igualmente presente no espírito do MP recorrente que afirma na sua conclusão 11ª terem os mandados sido cumpridos após o decurso do prazo concedido, embora não retire daí qualquer consequência em virtude de, como diz, a busca ter sido autorizada pelo visado.

Ora, perdoe-se-nos o tom um pouco coloquial, mas das duas uma. Ou a busca foi realizada com o consentimento do arguido e não só é inútil mas mesmo inadequada qualquer referência ao mandado judicial que anteriormente a ordenara, ou aquela busca foi efetuada em cumprimento deste mesmo mandado, não fazendo sentido a obtenção do consentimento do visado, tanto mais que é diverso o respetivo enquadramento processual.

Esta ambiguidade, porém, não invalida só por si o consentimento prestado. Independentemente da relevância que possa assumir noutro contexto processual, a verdade é que o consentimento do arguido, tal como se encontra documentado, é suficiente para permitir que o OPC realize a busca, por força do disposto no art. 177º nº3 do CPP, como referido supra, pois não resulta dos autos que tal consentimento se encontre viciado por qualquer forma, nem tal questão foi colocada.

Sendo assim, como entendemos que é, não pode concluir-se pela invalidade ou irrelevância do consentimento do arguido, de modo a poder afirmar-se com a senhora juíza a quo que a busca foi realizada em cumprimento do mandado de busca e não ao abrigo do consentimento do arguido.

Em face dos elementos disponíveis a busca foi validamente realizada por ter sido consentida pelo arguido, nada obstando, pois, a que a senhora JIC venha a autorizar o acesso aos dados constantes do telemóvel apreendido na sequência da dita busca, caso se verifiquem todos os requisitos legais.

III. Dispositivo

Nesta conformidade, acordam os Juízes na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder total provimento ao recurso interposto pelo MP, revogando o despacho judicial recorrido e determinando que, em sua substituição, a senhora juíza a quo profira despacho em que aprecie os demais requisitos de que dependa a pretensão que lhe foi apresentada pelo MP, no pressuposto de que é válida a busca de que resultou a apreensão do telemóvel em causa.

Sem custas.

Évora, 6 de Dezembro de 2011.

(Processado em computador. Revisto pelo relator.)

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(António João Latas)

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(Carlos Jorge Berguete)