Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2998/10.1TBFAR.E2
Relator: CANELAS BRÁS
Descritores: DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
INÉRCIA DAS PARTES
Data do Acordão: 02/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Antes de julgar deserta a instância é preciso aquilatar se efectivamente há desinteresse da parte no cumprimento do que lhe foi determinado, ou se está mesmo impossibilitada de o fazer, por razões que não controla – até porque não podem pagar uns pela inércia de outros.
Decisão Texto Integral: RECURSO Nº. 2998/10.1TBFAR.E2 – APELAÇÃO (FARO)


Acordam os juízes nesta Relação:

A Apelante (…), residente na Rua (…), n.º 40-1.º, Dto., Faro – interessada e requerente dos presentes autos de inventário – vem interpor recurso do douto despacho que foi proferido a 22 de Novembro de 2018 (ora a fls. 827), e que veio a decidir: “considero deserta a instância e, em consequência, julgo extinta a lide (artigo 277.º/-c), do CPC)”, neste inventário cumulado que instaurara no 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial da comarca de Faro, para partilha dos bens das heranças abertas por óbito de (…) – ocorrida em 15 de Dezembro de 1965 –, de (…) – ocorrida a 11 de Maio de 1985 – e de (…) – ocorrida a 03 de Março de 2001 –, intentando agora a sua revogação e alegando, para tanto e em síntese, que discorda do assim decidido, não havendo nenhuma razão para o inventário não prosseguir os seus trâmites normais, com a partilha, e ter vindo a ser julgado extinto. Pois o que despoletou tal despacho foi o não cumprimento por parte do cabeça-de-casal, “de junção de certidões comprovativas da situação registral dos prédios que fazem parte das heranças”; porém, “nos termos da lei, não era exigível tal junção”, só o sendo “a exibição da caderneta predial ou a respectiva certidão matricial” (artigo 1346.º do CPC). Acresce que “a obtenção das certidões solicitadas é quase uma impossibilidade, pois que não estando os prédios registados, como ocorre no caso, é necessário fazer buscas indicando os partilheiros de cada prédio, anteriores possuidores e ante possuidores, sendo um trabalho muito moroso e difícil de obter tais elementos” – “quase uma probatio diabolica”, aduz. Pelo que tendo vindo a declarar-se extinta a instância por falta de impulso, e ainda que tais documentos fossem necessários, vêm a punir-se os demais interessados na partilha “face à inércia do cabeça-de-casal” (“o processo está maduro para a partilha, seja por acordo, seja por licitações”). São, assim, termos, conclui, em que deverá o recurso obter provimento, revogar-se a douta decisão recorrida e ordenar-se que os autos prossigam os seus ulteriores termos, com marcação da conferência de interessados em vista à partilha dos bens.
Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações de recurso.
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Provam-se os seguintes factos com interesse para a decisão:

1) A interessada, ora Apelante, (…), instaurou, em 10 de Novembro de 2010, os presentes autos de inventário cumulado, para partilha dos bens deixados por morte de (…) – ocorrida no dia 15 de Dezembro de 1965 –, de (…) – ocorrida a 11 de Maio de 1985 – e de (…) – ocorrida em 03 de Março de 2001 –, tudo conforme ao teor da douta petição de fls. 6 a 10 dos autos, e das certidões dos respectivos assentes de óbito que ora constituem fls. 14, 15 e 17 (a data da instauração da acção vem aposta a fls. 31 dos autos).
2) A 17 de Dezembro de 2010 prestou juramento e declarações o cabeça-de-casal (…), complementadas a 01 de Fevereiro de 2011 (vide as respectivas actas, a fls. 173 a 177 e 290 a 291 dos autos).
3) Em 14 de Janeiro de 2011 viera o mesmo apresentar a relação dos bens a partilhar, conforme ao documento de fls. 179 a 187 dos autos.
4) Alguns dos interessados na partilha constituíram advogado nos autos, e outros não, tudo conforme procurações de fls. 13 (de …), fls. 341 (de … e marido, …), fls. 348 (de …), fls. 362 (de …), fls. 401 (de … e mulher, …), fls. 402 (de … e marido, …) e de fls. 445 dos autos (de …).
5) Em 09 de Dezembro de 2012 faleceu o ilustre advogado, Dr. (…), ali mandatário dos interessados … e marido, … (fls. 341), de … (fls. 348) e de … (a fls. 362), conforme à certidão do respectivo Assento de Óbito que agora constitui fls. 460 dos autos.
6) Em 01 de Fevereiro de 2013 constituíram os interessados (…) e marido, (…), um novo advogado no processo (vide a procuração de fls. 477 dos autos).
7) E em 01 de Abril de 2013 constituiu a interessada (…) um novo advogado no processo (vide a procuração de fls. 487 dos autos).
8) Em 28 de Abril de 2014 foi proferido douto despacho a julgar deserta e extinta a instância com o teor: “Os autos encontram-se suspensos desde Janeiro de 2013, sem que tenha sido dado o competente impulso processual, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 281.º/1, do CPC, considero deserta a instância e, consequentemente, julgo a mesma extinta (artigo 277.º do CPC)” – (vide fls. 489 dos autos, aqui dado por reproduzido).
9) Douto despacho que foi, no entanto, revogado nesta Relação, em 04 de Setembro de 2014, e ordenado o prosseguimento dos autos (vide fls. 526 a 530).
10) Retomado o seu curso, a 20 de Janeiro de 2014 foram tomadas novas declarações ao cabeça-de-casal, conforme à acta de fls. 586 a 591 dos autos.
11) Em 05 de Maio de 2015 ocorreu uma tentativa de conciliação entre as partes, tendo aí sido ordenada a avaliação dos bens (vide a acta respectiva a fls. 610 a 612 dos autos).
12) Em 29 de Setembro de 2016 foi junto o relatório dessa avaliação, que ficou a constituir fls. 651 a 666 dos autos.
13) A 2 de Maio de 2017 foi proferido douto despacho que, entre o mais, veio a ordenar “a notificação do cabeça-de-casal para esclarecer se os imóveis relacionados na relação de bens, relativamente aos quais nada é dito quanto à sua situação registral, se os mesmos se encontram descritos ou estão omissos, juntando as respectivas certidões (de descrição ou omissão) em conformidade” (vide o seu teor completo a fls. 683 dos autos).
14) E em 07 de Junho de 2017 reiterou-se o ordenado, “sem prejuízo do disposto no artigo 281.º NCPC”, pelo douto despacho de fls. 688, pese embora a junção de documentação pelo cabeça-de-casal, que ora constitui fls. 684 a 687 verso dos autos.
15) Em 26 de Junho de 2017 o cabeça-de-casal veio juntar aos autos toda a documentação que neles ficou a constituir fls. 690 a 792, como lhe havia sido ordenado no douto despacho referenciado supra no ponto 13).
16) A 28 de Setembro de 2017 reiterou-se o ordenado supra no ponto 13), pelo douto despacho de fls. 796 dos autos.
17) Prorrogando-se o prazo para tal, a pedido do cabeça-de-casal, a 25 de Outubro de 2017 (a fls. 798 dos autos), a 29 de Novembro de 2017 (fls. 816), a 05 de Fevereiro de 2018 (fls. 815), a 24 de Setembro de 2018 (a fls. 817) e a 10 de Outubro de 2018 (a fls. 820 dos autos).
18) E já em 08 de Outubro de 2018 havia o cabeça-de-casal atravessado no processo o douto requerimento de fls. 818 verso, do seguinte teor: “(…), cabeça-de-casal, notificado que foi do despacho de V.ª Ex.ª, para junção dos documentos esclarecedores da situação registral dos prédios relacionados nos autos, no prazo de dez dias, vem respeitosamente requerer que lhe seja concedido novo prazo, nunca inferior a vinte dias, para concluir as buscas, uma vez que são muitas verbas, o que tem causado algumas dificuldades na obtenção da necessária documentação, a fim de cumprir o solicitado” (sic).
19) Em 22 de Novembro de 2018 foi proferido o douto despacho objecto do presente recurso, a julgar deserta a instância/extinta a lide, do seguinte teor: “Em face do silêncio do cabeça-de-casal e da falta de junção dos documentos necessários ao prosseguimento dos autos e conforme já havíamos anunciado no despacho de 24.09.2018, o presente processo encontra-se a aguardar desde Outubro de 2017 pelo competente impulso processual, que passava justamente pela junção da documentação em falta. Nestes termos, ao abrigo do disposto no artigo 281.º do CPC, considero deserta a instância e, em consequência, julgo extinta a lide (artigo 277.º/-c), do CPC). Custas pela requerente (artigo 527.º do CPC)” – (vide fls. 827 dos autos, aqui dado por inteiramente reproduzido).
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Ora, a questão que demanda apreciação e decisão da parte deste Tribunal ad quem é a de saber se o Tribunal a quo decidiu bem, no despacho impugnado, pela deserção da instância e consequente extinção do processo de inventário, ou se, ao invés, haverá motivos para o mesmo continuar os seus trâmites normais. É isso que hic et nunc está em causa, como se extrai das conclusões alinhadas no recurso apresentado.

Mas, adiantando razões, se verifica que a Mm.ª Juíza da 1ª instância não decidiu correctamente a questão que lhe estava colocada para decidir, ao acabar com o processo de inventário, pelo facto do cabeça-de-casal não ter vindo juntar a documentação relativa à situação registral dos prédios aí relacionados. E isso por ser, desde logo, preciso aquilatar se efectivamente há desinteresse do visado no cumprimento do que lhe fora determinado, ou se está mesmo impossibilitado de o fazer, por razões que não controla e, depois, porque não podem pagar uns pela inércia de outros – tal o ponto fulcral que tudo tem de orientar e iluminar, sob pena de ficar a perplexidade de quem tudo fez para um processo andar, e se vê confrontado com a sua extinção, sem nada ter contribuído para tal nem poder fazer algo para o evitar. Se um não junta a documentação, o que é que os outros podem fazer (podendo até ter-se agido propositadamente para se conseguir este desfecho)? E veem, por isso, acabar um processo em que apostaram e tinham legítimas expectativas de ver seguir até ao fim, como é este caso duma partilha judicial de bens em que os interessados se não entendem?

Pois do que resulta dos autos e se deixou exposto na matéria de facto tida por provada supra, nem parece que haja desleixo ou desinteresse do cabeça-de-casal em dar cumprimento ao que lhe foi ordenado – antes, tudo aponta para a existência de dificuldades, aparentemente intransponíveis, justamente dadas as características do caso, em que aparece uma plêiade de prédios em situação que, não custa a crer, esteja tudo menos regularizada; e se verifica que o cabeça-de-casal nunca deixou de acompanhar toda a situação, tendo passado mesmo a ser patrocinado por advogado, exactamente quando o processo bloqueou com estas dificuldades e pedindo sucessivas prorrogações de prazos para cumprir.
Ora, essa actuação não é compaginável com uma situação de desinteresse ou de desleixo da sua parte, antes pelo contrário, mostra é vontade na resolução.
E a declaração do fim do processo é uma penalização para esse desleixo!

Mas mesmo que se comprovasse esse desmazelo do cabeça-de-casal, não seria correcto e justo acabar com o processo e, dessa maneira, penalizar outros interessados no seu prosseguimento – maxime a Apelante, enquanto requerente do inventário – e que nada tinham contribuído para ocasionar um tal desfecho.

Haveria, assim, sempre, que buscar e achar alternativas menos gravosas à decisão de acabar com o processo – que poderiam passar por dispensar a junção de tais documentos, a notificação de toda a situação aos demais interessados, a fim de poderem colmatar as dificuldades encontradas ou substituir-se o próprio cabeça-de-casal. Mas não que haja aqui, neste concreto circunstancialismo, falta de impulso processual que conduza à extinção da instância, por deserção.

[É para notar, ainda em relação à documentação a juntar, que o n.º 2 do artigo 1346º do C.P.C., na redacção aqui aplicável, basta-se, para tal efeito, com a exibição das cadernetas prediais actualizadas dos prédios – sendo que Lopes Cardoso defendia, in “Partilhas Judiciais”, Almedina, 3ª edição, 1979, volume I, a págs. 461, que “posto não indispensável a aludida indicação, dispensada pela lei processual civil, o certo é que ela se torna conveniente para possibilitar o registo da transmissão na Conservatória, operada em consequência da partilha judicialmente feita”.]

Como consequência, num tal enquadramento, terá, agora, que revogar-se da ordem jurídica o douto despacho recorrido que assim não decidiu, e vindo a proceder o presente recurso de Apelação.
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Decidindo.

Assim, face ao que se deixa exposto, acordam os juízes nesta Relação em conceder provimento ao recurso, revogar o douto despacho recorrido, e ordenar o normal prosseguimento dos autos.
Não são devidas custas.
Registe e notifique.
Évora, 28 de Fevereiro de 2019
Mário João Canelas Brás
Jaime de Castro Pestana
Paulo de Brito Amaral