Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3125/15.4T8PTM.E1
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: DOMÍNIO PÚBLICO HÍDRICO
ZONA DE PROTECÇÃO
Data do Acordão: 09/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Situando-se um prédio urbano em zona de risco máximo de erosão e invasão de mar, o direito de propriedade privado sobre ele só pode ser provado nos termos dos n.ºs 2, 3 e 4 do art.º 15.º, da Lei n.º 54/2005, com a alteração introduzida pela Lei n.º 34/2014.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 3125/15.4T8PTM.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora

(…) e (…) intentaram acção declarativa de simples apreciação sob a forma de processo comum, contra o Estado Português, pedindo:
Que seja reconhecido o seu direito de propriedade sobre o prédio urbano, situado na Praia do (…), composto por rés-do-chão, com seis divisões e seis vãos, destinado a habitação, que confronta ao Norte com o domínio público marítimo, a Sul e a Nascente com caminho e a Poente com (…) e (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Aljezur sob o n.º (…)/19970623, da freguesia de Aljezur, inscrito na matriz predial urbana no artigo (…), da freguesia e concelho de Aljezur.
Para fundamentar esta sua pretensão alegam os autores, em síntese, que:
– A aquisição do mencionado prédio encontra-se devidamente registada na Conservatória do Registo Predial de Aljezur a seu favor, sobre a descrição n.º (…)/19970623, da freguesia e concelho de Aljezur;
– Entende a Agência Portuguesa do Ambiente que a parcela de terreno em questão pertence ao domínio público marítimo, nos termos do artigo 11.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, por inexistir delimitação administrativa ou decisão judicial a reconhecer a propriedade privada sobre o mesmo;
– Apesar disso, a habitação implantada no referido prédio situa-se no aglomerado urbano da Praia do (…), é anterior ao ano de 1951 e não se situa em zona de risco de desabamento da arriba.
Assim, concluem que estão demonstrados todos os requisitos para que o seu direito de propriedade sobre o terreno identificado seja reconhecido, devendo a acção proceder integralmente nos seus precisos termos.
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O Estado Português contestou a acção invocando a excepção dilatória de incompetência do tribunal em razão do território, concluindo que tal competência estava deferida à então Instância Local de Lagos, Secção de Competência Genérica. Suscitou como questão prévia a falta de delimitação administrativa da parcela implantada no domínio público marítimo, circunstância que impede o reconhecimento da pretensão dos autores, em virtude das exigências consagradas no Decreto-Lei n.º 353/07, de 26 de Outubro.
Por último, impugnou toda a materialidade alegada pelos autores, quer por desconhecimento, quer por articulação de factos destinados a afastar a sua verificação.
Concluiu pela procedência das excepções invocadas e pela total improcedência da acção, por falta de fundamento, com a consequente absolvição do Estado do pedido formulado.
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Foi e julgada procedente a excepção dilatória de incompetência territorial, com a remessa dos autos à Instância Local de Lagos, Secção de Competência Genérica, considerada com competência para o efeito.
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O processo seguiu os seus termos e, depois de realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que, julgando procedente a acção, condenou o R. no pedido.
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Desta sentença recorre o R. defendendo a sua revogação.
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Os AA. contra-alegaram defendendo a manutenção do decidido.
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Foram colhidos os vistos.
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A matéria de facto é a seguinte:
1. Através da AP. (…) de 2009/01/22 mostra-se registada, a favor dos autores, por dissolução de comunhão conjugal e sucessão hereditária de (…), a aquisição, em comum e sem determinação de parte ou direito do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Aljezur sob o n.º (…)/19970623, da freguesia de Aljezur, situado na Praia do (…), com a área total de 72 m2 [correspondente à área coberta de 40 m2 e área descoberta de 32 m2], composto de edifício de rés-do-chão, destinado a habitação, com seis divisões e seis vãos, a confrontar ao Norte com o domínio público marítimo, a Sul e a Nascente com caminho e a Poente com (…) e (…), inscrito na matriz predial urbana no artigo (…).
2. Esse prédio está inserido no Aglomerado Urbano de Nível III do (…), de acordo com a carta de ordenamento do Plano Director Municipal de Aljezur.
3. Fica situado junto a via pública pavimentada e é servido por rede pública de abastecimento domiciliário de água e de drenagem de esgotos, bem como de fornecimento de energia através de rede eléctrica nacional.
4. De acordo com o “Plano de Ordenamento da Orla Costeira Sines – Burgau”, o prédio encontra-se situado em área classificada como risco de erosão ou de invasão do mar.
5. O edifício implantado no referido prédio sito na Praia do (…), freguesia e concelho de Aljezur, foi construído em data anterior a 7 de Agosto de 1951.
6. O imóvel tem a forma rectangular, com a fachada orientada a ENE, num nível superior ao da praia e com um declive de cerca de 10 metros.
7. As arribas contíguas apresentam-se altas e escarpadas, são constituídas por rochas metamórficas, de maior resistência à erosão, protegendo aquela em que se encontra implantada a edificação das investidas das ondas, que não é batida por estas.
8. O edifício mantém a sua configuração, aparência, solidez e estabilidade desde, pelo menos, o ano de 1919.
9. A invasão do imóvel pelo mar, com ou sem desmoronamento da arriba, não é previsível, a não ser pela ocorrência de fenómenos da natureza extremamente graves e anormais.
10. A consolidação da arriba, para evitar a sua desagregação ou o colapso de sistemas naturais, edifícios e infra-estruturas, é a solução ambientalmente mais favorável.
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O recorrente termina as suas alegações desta forma:
A sentença recorrida concluiu estarem preenchidos todos os requisitos previstos na alínea c) do n.º 5 do citado artigo 15.º da L.T.R.H.., pese embora tenha reconhecido que, de acordo com o Plano de Ordenamento da Orla Costeira Sines-Burgau, o prédio se encontra em área classificada como risco de erosão e de invasão do mar.
Tal facto — o de estarmos perante uma zona de risco — constitui sim, condição para que se afaste o regime de prova contido na alínea c) do n.º 5 do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro (L.T.R.H.), cujos requisitos são de verificação cumulativa.
Encontrando-se o prédio em causa situado em área classificada como risco de erosão ou de invasão do mar, terá de ficar sujeito ao regime contido nos números 1 a 4 do citado artigo 15º, designadamente à necessidade de comprovação documental de que era objecto de propriedade particular ou comum antes de 31 de Dezembro de 1864 e, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de Março de 1868.
Apesar do Plano de Ordenamento da Orla Costeira ser um documento autêntico de valor probatório inquestionável, a sentença recorrida afastou a sua aplicação e optou por valorizar um relatório pericial.
Ao julgar propriedade privada dos AA. o prédio urbano localizado na Praia do … (que confronta a Norte com o domínio público marítimo), descrito na Conservatória do Registo Predial de Aljezur sob o n.º …/19970623, da freguesia de Aljezur, e inscrito na matriz predial urbana no artigo (…), da freguesia e concelho de Aljezur, a sentença interpretou erradamente, e violou o artigo 15.º, n.º 5 , alínea c), da Lei n.º 54/2005.
Consequentemente, não tendo os AA. feito a prova exigida pelo artigo 15.º, n.º 5, alínea c), da Lei n.º 54/2005 — nem outra exigida por esta norma — não pode ser procedente o seu pedido e a sentença deve ser alterada, absolvendo-se o Réu do pedido.
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Os recorridos contra-alegam defendendo que a classificação feita no Plano de Ordenamento da Orla Costeira Sines-Burgau não é suficiente para afirmar, no caso concreto, que a propriedade está efectivamente implantada em área de risco de erosão ou de invasão do mar.
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Note-se que «não se oferece qualquer dúvida de que o terreno reivindicado pelos autores se encontra em local qualificado por lei como de domínio público» (p. 18 da sentença).
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Começaremos por afastar o argumento que se refere a um documento autêntico, qual seja, o de que o Plano de Ordenamento é um documento daquela natureza e com a eficácia probatória estabelecida no art.º 371.º, Cód. Civil.
Não é um documento autêntico; é antes um regulamento administrativo (uma Resolução do Conselho de Ministros, publicada no D.R., I-B, n.º 300, de 30 de Dezembro de 1998) que «estabelece as condições de ocupação, uso e transformação dos solos sobre que incide» [e que são as zonas delimitadas nas plantas anexas, onde se inclui a praia aqui em questão (melhor dizendo, onde se inclui a referida praia onde está, por sua vez, inserido o prédio aqui em questão)].
Daí que não seja possível, juridicamente, afirmar que a sentença afastou a aplicação daquele regulamento e «optou por valorizar um relatório pericial» como se de uma questão de prova se tratasse. O que a sentença fez, bem diferentemente, foi considerar que, apesar «da proximidade com a linha de costa, a nosso ver, as circunstâncias do caso concreto apontam no sentido de que o prédio não se encontra em zona de invasão de mar ou de risco de erosão, que afaste o reconhecimento de direitos de natureza privada sobre o mesmo». Isto é, o tribunal entendeu que, neste caso, não existiam os perigos indicados e daí que tenha decidido que nada obstasse ao reconhecimento do direito de propriedade.
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Mas o problema que vem especificamente colocado no recurso prende-se com a prova do direito dos AA..
O que a lei define é um meio de prova (documental) e um objecto de prova (que os terrenos, antes de determinadas datas, eram propriedade particular).
O recorrente defende que aqueles deveriam ter feito prova do seu direito nos termos exigidos pelos n.ºs 2, 3 e 4 do art.º 15.º, da Lei n.º 54/2005, com a alteração introduzida pela Lei n.º 34/2014 (a anterior redacção, tal como o Decreto-Lei n.º 468/71, nada dispunham sobre este regime de prova) porque não se verifica a previsão do n.º 5, al. c), do citado preceito legal.
Ou seja, deviam provar «documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo, objecto de propriedade particular ou comum antes de 31 de Dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de Março de 1868»; na falta destes documentos, «deve ser provado que, antes das datas ali referidas, os terrenos estavam na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa; por último, quando «se mostre que os documentos anteriores a 1864 ou a 1868, conforme os casos, se tornaram ilegíveis ou foram destruídos, por incêndio ou facto de efeito equivalente ocorrido na conservatória ou registo competente, presumir-se-ão particulares, sem prejuízo dos direitos de terceiros, os terrenos em relação aos quais se prove que, antes de 1 de Dezembro de 1892, eram objecto de propriedade ou posse privadas».
Ao invés, a sentença entendeu que se verificava a previsão do n.º 5, isto é, entendeu que não eram necessários os meios de prova indicados nos números anteriores.
Em relação às duas primeiras alíneas do n.º 5 do art.º 15.º não se colocam quaisquer problemas dado que nem sequer estão aqui em questão. O problema coloca-se com a sua al. c).
Isto porque o que a citada alínea exige para dispensa daqueles meios de prova — ou seja, permite que se utilizem quaisquer outras provas — é que os terrenos estejam:
(1.º) «integrados em zona urbana consolidada como tal definida no Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação,
(2.º) fora da zona de risco de erosão ou de invasão do mar, e
(3.º) se encontrem ocupados por construção anterior a 1951, documentalmente comprovado».
São estes os três requisitos, e cumulativos (dado o emprego da conjunção coordenativa aditiva «e»), para que os particulares possam provar o seu direito de propriedade fora do regime estabelecido nos números anteriores. Os primeiro e terceiro não estão aqui em discussão uma vez que as partes e o tribunal concordam que eles existem.
Em relação ao segundo requisito, e como acima se disse, a sentença declara que «o prédio encontra-se situado em área classificada como risco de erosão ou de invasão do mar», classificação esta que foi feita pelo já referido Plano de Ordenamento, mas afasta-o com fundamento em especificidades do caso concreto.
A área de protecção das arribas (que é a que está sujeita àqueles riscos) é a que consta das plantas publicadas no final do Plano de Ordenamento e ninguém tem dúvidas que o prédio dos autos está dentro daquela área.
O art.º 11.º do Plano tem a indicação de três tipos de faixa da área de protecção:
a) Faixa de risco máximo para terra, com uma largura de 20 m, contados a partir do bordo superior da arriba para terra;
b) Faixa de protecção para terra, com uma largura de 20 m, contados a partir do limite interior da faixa referida na alínea a);
c) Faixa de risco máximo para o mar, com uma largura equivalente à altura da arriba, medida a partir da base da arriba.
Foi junto com a contestação um documento da A.P.A. onde consta que a casa dos AA. está situada dentro da faixa de risco máximo para terra dado se encontrar dentro dos 20 m que se contam a partir do bordo superior da arriba (não absolutamente coincidente com a linha do leito do mar).
Neste caso, só é possível o reconhecimento do direito de «propriedade privada sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar» (expressão utilizada no citado art.º 15.º, n.º 5, proémio) pelos modos indicados nos n.ºs 2 a 4 do n.º 5. Dito de outra forma, só poderá ser reconhecido o direito de propriedade quando o prédio estiver «fora da zona de risco de erosão ou de invasão do mar» — o que aqui não se verifica — e se for provado por documentos do séc. XIX que sobre o prédio já incidia o direito de propriedade ou a posse privados.
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Fizeram os AA. esta prova?
Todos estão de acordo com a resposta negativa a esta pergunta.
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Mas a sentença, e é este o fulcro do recurso, entendeu que no caso concreto não havia o perigo de erosão ou de invasão do mar o que foi suficiente para, aqui sim embora encapotadamente, afastar a aplicação do Regulamento que contém o Plano de Ordenamento. Não de trata, como já acima se escreveu, de arredar um determinado valor probatório de um documento face a outro meio de prova com outro valor. Trata-se simplesmente de dizer que não se aplica o Plano porque esta situação, mesmo que abrangida por ele, não oferece em concreto os perigos que aquele pretende evitar.
Mas a lei não exige a verificação, caso a caso, de um perigo concreto; o que a lei determina, para dispensar rígidos meios de prova do direito, é que o prédio não esteja na área de protecção das arribas. Se não estiver, de qualquer forma se provará o direito; se estiver, só pela utilização dos mencionados documentos se poderá provar o direito.
As definições de risco e perigosidade usadas na sentença (pp. 22-23) não impõem a conclusão que a definição de áreas perigosas, e menos ainda de faixas de protecção das arribas, se faz individualmente e em função da perigosidade da situação. Ao contrário, a lei estabelece medidas estritas, exactas, áreas definidas, contadas desde uma certa linha. A lei não se satisfaz com formulações falhas de concretização que possam depois ser preenchidas; antes fixa de forma inelutável a área de risco sem se prender com o facto de tal risco vir a degenerar em sinistro ou não.
É indiferente, pois, dar por provado que a «invasão do imóvel pelo mar, com ou sem desmoronamento da arriba, não é previsível, a não ser pela ocorrência de fenómenos da natureza extremamente graves e anormais» (n.º 9) uma vez que a lei não se contenta com isto; mas já não é indiferente excluir, com base nisto, o caso dos autos do regulamento aplicável pois que isto já constituirá solução contra o Direito.
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Estando o prédio situado em zona de protecção das arribas e não tendo os AA. apresentados os documentos do séc. XIX que a lei exige para prova do seu direito, a conclusão é que o direito alegado pelos AA. não pode ser reconhecido.
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Pelo exposto, julga-se procedente o recurso e revoga-se a sentença recorrida.
Custas pelos recorridos.
Évora, 13 de Setembro de 2018
Paulo Amaral
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho