Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
139/10.4JAFAR.E1
Relator: MARTINHO CARDOSO
Descritores: CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
PESSOA COLECTIVA
LEGITIMIDADE
Data do Acordão: 07/02/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
I – No nosso ordenamento jurídico as pessoas colectivas (entre elas, as sociedades, e, mais concretamente, as sociedades comerciais) não se confundem com as pessoas singulares, e nem tão pouco os seus sócios se confundem com elas.

II - As pessoas colectivas são centros autónomos de imputação de direitos e deveres, possuem personalidade jurídica e personalidade judiciária.

III - Se em parte alguma do requerimento para abertura da instrução a requerente alega que o arguido prejudicou ou se apropriou do património dela (antes, sim, da sociedade de que a requerente alegadamente é sócia e/ou gerente), há a concluir que a requerente não tem legitimidade para intervir como assistente, em nome próprio, em defesa do património societário.
Decisão Texto Integral:
I
Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

Na sequência de duas queixas apresentadas por A contra JN, à data casados entre si mas em processo de divórcio litigioso, ambos sócios gerentes da sociedade S..., Lda., investigou-se nos presentes autos acima identificados, da 1.ª Secção dos Serviços do M.º P.º do Tribunal Judicial de Loulé, a prática pelo denunciado de crimes de abuso de confiança fiscal, burla qualificada, abuso de confiança, infidelidade, insolvência dolosa e branqueamento de capitais, tudo referente ao pretenso desvio de quantias monetárias pelo denunciado na mencionada sociedade do casal.

Tendo o M.º P.º arquivado os autos por falta de indícios, requereu a denunciante a sua constituição como assistente e a abertura de instrução para pronúncia do arguido pelos crimes de burla qualificada, p. e p. pelo art.º 218.º, n.º 2 al.ª a); abuso de confiança, p. e p. pelo art.º 205.º, n.º 4 al.ª b); e falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256.º, todos do Código Penal e todos também referentes ao desvio de quantias monetárias pelo denunciado na mencionada sociedade do casal.

São os seguintes os factos pelos quais a denunciante pretende ver pronunciado o arguido:

Atento o exposto, entendemos que o Denunciado deve ser pronunciado nos presentes autos, nos termos seguintes:

A) A Assistente e o Denunciado são os únicos sócios da sociedade comercial por quotas de responsabilidade limitada denominada "S..., Lda.", com o NIF n.° ---, com sede na Av...., Loulé.

B) A gerência de facto da citada sociedade comercial era exercida exclusivamente pelo denunciado desde a sua constituição até 2010.

C) Era o Denunciado que procedia em exclusivo a todo o giro comercial da sociedade comercial, adquirindo bens, admitindo pessoal, procedendo a pagamentos, tomando as várias decisões a ela atinentes, procedendo igualmente a todo o movimento bancário a crédito e débito, nomeadamente, depósitos, levantamentos e transferências bancárias.

D) O Denunciado auferia a quantia mensal líquida de 1.369€.

E) A Assistente era, em exclusivo, Professora Universitária leccionando na Universidade do Algarve.

F) Assistente e Denunciado eram casados sob o regime da separação de bens, tendo o seu casamento sido dissolvido por sentença transitada em julgado, proferida nos autos n.° ---/09.0TMFAR, do 1° Juízo do Tribunal de Família e Menores de Faro.

G) Por outro lado, a Assistente e denunciado eram titulares das seguintes contas bancárias:

Conta bancária n.° ---, aberta no Banco Português de Negócios;
Conta bancária n.° ---, aberta no B.P.I..

H) Era o Denunciado que procedia ao movimento bancário, a crédito e débito, levantamentos e transferências nas contas bancárias indicadas no artigo anterior. Ora,

O Denunciado recebeu os seguintes valores, que eram destinados á sociedade comercial "S..., Lda." e que o Denunciado fez depositar nas contas bancárias indicadas em «G)»:

No B.P.N.:
Em 2002 a quantia total de 209.033,90€;
Em 2003 a quantia total de 351.262,96€;
Em 2004 a quantia total de 146.141,56€;
Em 2005 a quantia total de 37.975,00€;
Em 2006 a quantia total de 5.000€;
Em 2007 a quantia total de 10.500€;
Em 2008 a quantia total de 10.000€;
Em 2009 a quantia total de 8.000€.

No B.P.I.:
- Em 2004 a quantia total de 33.661€;
Em 2005 a quantia total de 192.966,32€;
Em 2006 a quantia total de 35.020€;
Em 2007 a quantia total de 14.250,11€;
Em 2008 a quantia de 20.023,73€;
Em 2009 a quantia de 215.307€.

J) Por outro lado, o Denunciado é o único titular da conta bancária aberta no B.P.I. sob o n.° .....Ora,

L) O Denunciado procedeu á transferência de verbas existentes nas contas indicadas em G) para a conta de que é único titular identificada em J), do seguinte modo:

Da conta do B.P.N. transferiu para a sua conta, contra a vontade e á revelia da assistente, e fazendo-as suas as seguintes verbas:

Em 2002 a quantia total de 209.033,90€;
Em 2003 a quantia total de 351.262,96€;
Em 2004 a quantia total de 146.141,56€;
Em 2005 a quantia total de 37.975,00€;
Em 2006 a quantia total de 5.000€;
Em 2007 a quantia total de 10.500€;
Em 2008 a quantia total de 10.000€;
Em 2009 a quantia total de 8.000€.
– Tudo num total de 777.913,42€.

Da conta do B.P.I. transferiu para a sua conta, contra a vontade e á revelia da assistente, e fazendo-as suas as seguintes verbas:

Em 2004 a quantia total de 33.661€;
Em 2005 a quantia total de 192.966,32€;
Em 2006 a quantia total de 35.020€;
Em 2007 a quantia total de 14.250,11€;
Em 2008 a quantia de 20.023,73€;
- Em 2009 a quantia de 215.307€.
Tudo num total de 511.228,16€.

M) Com o seu comportamento, o Denunciado apropriou-se em seu exclusivo beneficio, da quantia global de 1.289,141,58€, contra a vontade da assistente, bem sabendo que a tal não tinha direito e que estava a cometer ilícitos criminais.

N) Com tais quantias o Denunciado adquiriu em seu benefício exclusivo, nomeadamente, uma embarcação de recreio, um jipe Mitsubishi com a matrícula xxxx, empréstimos vários e constituição de uma sociedade denominada "D.., Lda.".

N) O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que com a sua conduta infringia a Lei.

Tais pretensões, a de constituição como assistente e a de abertura de instrução, foram indeferidas pelo Senhor Juiz de Instrução Criminal através do seguinte despacho:

A. veio requerer a sua constituição na qualidade de assistente, e, bem assim, a abertura da instrução.

Cumpre decidir.

A apreciação da pretendida constituição como assistente opera aqui como questão prévia à apreciação daquele requerimento para instrução, pelo que, apesar de dever ser efectuada em função do objecto do procedimento tal como este foi definido com este requerimento, não se confunde com a sua apreciação.

Segundo preceitua o art. 68°, n° 1, do Cód. P. Penal:

"1- Podem constituir-se assistentes no processo penal (...):
a) Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação (...)".

O mesmo conceito estrito, imediato ou típico de "ofendido" encontra-se plasmado no art. 113° do Cód. Penal.

Como refere Germano M. da Silva, a propósito do conceito de "ofendido", e socorrendo-se, para o efeito, de Cavaleiro Ferreira: "Não é ofendido qualquer pessoa prejudicada com o crime; ofendido é somente o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime. O objecto jurídico mediato é sempre de natureza pública; o objecto imediato é que pode ter por titular um particular." (Curso de Processo Penal, 1, 2° Edição, Verbo, 1994, pág. 235).

Acrescentando, ainda: "Recordemos apenas que só se considera ofendido, para os efeitos do art. 68°, n° 1, al. a), o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime (...)" (obra e autor citados, págs. 302 e 303).

Mostra-se relevante lançar um olhar sobre a jurisprudência que se tem debruçado sobre a questão, sendo que, entre outros, no sentido de que as pessoas dos sócios, mesmo que representantes legais (administradores ou gerentes), são realidades distintas das sociedades para efeitos de legitimidade para intervir na qualidade de assistente (questão que não se confunde com a legitimidade para a formulação da queixa), vejam-se as seguintes decisões dos Tribunais superiores:

­-- Ac. da Relação de Lisboa de 03.06.2008, Proc. 3185/08 5ª Secção, disponível in http/hww;pgdlisboa.pt: I- Num processo penal por factos susceptíveis de integrar o crime de burla, será ofendido, para efeitos de constituição de assistente, o titular do património que foi directamente prejudicado pela acção delituosa. II. O recorrente é gerente de sociedade cujo património, de acordo com os factos denunciados e os que constam do requerimento de abertura de instrução, foi directamente prejudicado pela acção do arguido pois de tal património saíram carne e derivados que foram enriquecer urna outra sociedade. III. Assim, sendo uma sociedade pessoa jurídica, o património social pertence-lhe e não aos sócios ou gerentes, sendo que a estes cabe apenas a administração e a representação da sociedade pelo que, ainda que o recorrente haja invocado prejuízos materiais indirectos e prejuízos não patrimoniais, tais prejuízos, embora confiram ao recorrente o estatuto de lesado, não o credenciam para entrar no círculo dos ofendidos, tal como são delimitados pela alínea a) do n°.1 do art. 68°. do C.P.P. IV. Os prejuízos invocados pelo recorrente legitimariam apenas a dedução de pedido de indemnização cível, tendo presente o seu estatuto de lesado e o estatuído no art.74°., n°.1 do C.P.P.
V. Pelo exposto, não merece reparo a decisão que não admitiu o recorrente a intervir nos autos como assistente e, em consequência, falece também legitimidade ao recorrente para reagir contra o despacho de arquivamento através de abertura de instrução.

-- Ac. da Relação de Lisboa de 20.06.2007, Proc. 4721/07, consultável in http://www.dgsi,pt: "Os sócios de uma sociedade comercial não têm legitimidade para se constituírem assistentes nos processos penais em que é ofendida a sociedade.".

-- Ac. da Relação de Lisboa de 02.05.2007, Proc. 6979/06 3ª Secção, disponível in http://ww.pgd1isboa.pt : I- No crime previsto e punido no art.° 224° do Código Penal (crime de infidelidade) protege-se o património e a "confiança do tráfego jurídico" merecendo, assim, protecção o património da sociedade da qual o arguido era o gerente. II - A sociedade é pessoa jurídica distinta dos sócios e os interesses patrimoniais da sociedade são os que a lei especialmente quis proteger pela incriminação. III - Assim sendo, uma sócia da sociedade não tem legitimidade para se constituir assistente pelo crime de infidelidade.

-- Ac. da Relação de Lisboa de 22.09.2005, Proc. 7063/05 9ª Secção, disponível in http://ww.pgdlisboa.pt: I- Está em causa a prática de um crime de infidelidade p. e p. no art.° 244° do C.P., de natureza semi-pública, relativamente a uma sociedade e verifica-se a invocação de prejuízos patrimoniais, por virtude de actos praticados pelo arguido. II - O M°P° decidiu-se pelo arquivamento do inquérito considerando, para além do mais, não estar o direito de queixa validamente exercido por ter sido apresentada a queixa por uma sócia, que não pela sociedade. III - Do despacho que admitiu a queixosa a intervir como assistente e que deferiu a abertura de instrução concomitantemente requerida, interpôs recurso o arguido, recurso este que merece provimento uma vez que '... estando em causa um alegado crime de infidelidade administrativa relativamente a interesses patrimoniais da sociedade, é o património desta o bem jurídico tutelado pela incriminação e, como tal, será esta a titular do interesse imediata e directamente tutelado pela norma incriminadora.

-- Ac. da Relação de Lisboa de 08.07.2004, disponível in http://www.dgsi.pt (estando em causa o procedimento pelo crime de furto):

"Pese embora o recorrente (AP) tenha denunciado crimes de natureza semipública, não é o titular dos interesses protegidos pelas normas incriminadoras, já que a proprietária do imóvel sobre o qual teriam sido cometidos os crimes é uma sociedade financeira (a "Financex, SA"), de que o queixoso é apenas o administrador.

A pessoa colectiva constitui uma entidade própria, com personalidade jurídica e património próprios. Logo, o queixoso/denunciante não sendo o "ofendido", não é o titular do interesse protegido que a lei quis acautelar, pelo que não tinha legitimidade para se constituir e intervir nos autos corno assistente (cfr. art.º 113° Cód. Penal e 68° do CPP).

A violação de um bem jurídico na esfera da pessoa colectiva não se repercute, assim, na esfera jurídica de cada um dos seus representantes.

O bem jurídico violado, e que constitui o objecto imediato da norma incriminadora, reporta-se apenas à sociedade financeira "Financex, SA" e não ao queixoso que é apenas o administrador.
Assim sendo e, tendo em conta os factos denunciados (e apenas estes), o recorrente não tem legitimidade "ad causam" para se constituir assistente nos autos (...)".

-- Ac. da Relação de Lisboa de 08.05.2003, Proc. 2278/03 9ª Secção, disponível in httpd/ww.pgdlisboa.pt: I- O interesse protegido nos crimes de burla e de abuso de confiança não é apenas o interesse público do Estado de garantia das relações jurídico-patrimoniais, abrangendo igualmente o património concreto do lesado particular. II- No entanto, o sócio de uma sociedade concretamente ofendida por um daqueles crimes, ainda que gerente, não tem legitimidade para se constituir assistente em seu nome pessoal e em substituição da sociedade - que é um ente jurídico autónomo -, porquanto foi o património da sociedade o directamente prejudicado; é que os direitos aos ganhos (lucros ou dividendos), bem como o direito ao bom nome, enquanto factores de valorização da quota são, certamente, respeitáveis e atendíveis, mas são apenas interesses mediatos ou indirectos dos respectivos sócios.

-- Ac. da Relação de Lisboa de 17.10.2002, Proc. 6580/02 9ª Secção, disponível in http://ww.pgdlisboa.pt: 1- No crime de burla, o interesse protegido não é apenas o interesse público de garantir a confiança na constituição das relações patrimoniais, isto é, a protecção do património em geral, mas ainda a protecção do património de lesado. II - Em conformidade com o artigo 68.°, n.° 1, alínea a), do Código de Processo Penal, podem constituir-se assistentes em processo penal, além das pessoas a quem leis especiais confiram tal direito, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos. Neste conceito estrito de ofendido não cabem, assim, o titular de interesses mediata ou indirectamente protegidos, o titular de uma ofensa indirecta, ou o titular de interesses morais. Podem estes ser lesados e nesta qualidade sujeitos processuais como partes civis, mas não constituir-se assistentes. III - Na medida em que esteja em causa o património da sociedade, os seus sócios-gerentes não têm legitimidade para, nesta qualidade, intervirem como assistentes, já que não está em causa de forma directa o património destes na qualidade de sócios. O direito aos ganhos da sociedade, bem como o direito ao seu bom nome e à sua valorização, enquanto factores de valorização da quota, são apenas interesses mediatos ou indirectos dos sócios.

-- Ac. da Relação de Lisboa, de 17.10.2002. Proc. 6580/02 9ª Secção, disponível in htta://ww.pgdlisboa.pt: I- Em conformidade com o artigo 68.°, n ° 1, alínea a) do Código de Processo Penal podem constituir-se assistentes em processo penal, além das pessoas a quem leis especiais conferirem esse direito, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos. II - Neste conceito de ofendido não cabem, por isso, o titular de interesses mediata ou indirectamente protegidos, o titular de uma ofensa indirecta ou o titular de interesses morais. Podem estes ser lesados e nessa qualidade sujeitos processuais como partes civis mas não constituir-se assistentes. III - Os sócios gerentes de uma sociedade não podem constituir-se assistentes no processo penal por crime patrimonial cometido contra a sociedade como tal. Uma vez que a lesada directamente é a sociedade e não qualquer dos seus sócios.

-- Ac. da Relação de Lisboa de 19.12.2001, Proc. 10513/00 3ª Secção, disponível in http://ww.pgdlisboa.pt: I- Os sócios de sociedades comerciais não têm legitimidade para se constituírem assistentes nos processos penais em que é ofendida a sociedade; II - Por isso, a denunciante, na sua mera qualidade de accionista (e portanto sócia) da firma "Soltróia - Sociedade Imobiliária de Urbanização e Turismo de Tróia, S.A.", não tem legitimidade para se constituir assistente num processo de inquérito em que esta é ofendida, por factos abstractamente integradores de um crime de burla qualificada.

-- Ac. da Relação de Lisboa de 05.07.2001, Proc. 6765/01 9ª Secção, disponível in http://ww.pgdlisboa.pt: I- Um sócio de uma sociedade prejudicada com a prática de crimes contra o património (furto-204° CP, infidelidade-224° CP e falsificação de documentos-229° CP) de natureza pública tem legitimidade para exercer queixa-crime contra os seus agentes. II- Porém, porque não é o ofendido (sendo-o a Sociedade) nem é o titular do interesse que a tutela penal quis proteger, não tem legitimidade para requerer, apenas em seu nome, a sua constituição como assistente e a abertura de instrução.

-- Ac. da Relação de Lisboa de 06.04.2000, Proc. 1519/2 9ª Secção, disponível in http://ww.pedtisboa.pt : I- As condutas ilícitas imputadas aos arguidos atingiram o sujeito jurídico que é uma sociedade, os seus interesses patrimoniais e não os do recorrente. II - Dai que o recorrente não tem legitimidade para se constituir como assistente e que apesar de ter sido admitido a intervir no processo nessa qualidade a decisão respectiva não formou caso julgado formal.

No caso dos autos, atento o seu objecto, dele se retira que o titular dos interesses imediata e directamente tutelados, cuja afectação vem alegada, apenas poderá ser a sociedade mencionadas pela requerente.

Sendo assim, será naquela sociedade que radicará a legitimidade para intervir na qualidade de assistente, sendo ela a titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com tais incriminações, sendo que, como se sabe, no nosso ordenamento jurídico as pessoas colectivas (entre elas, as sociedades, e, mais concretamente, as sociedades comerciais) não se confundem com as pessoas singulares, e nem tão pouco os seus sócios se confundem com elas.

As pessoas colectivas são centros autónomos de imputação de direitos e deveres, possuem personalidade jurídica e personalidade judiciária.

Em parte alguma do requerimento para abertura da instrução a requerente alega que o arguido prejudicou ou se apropriou do património da requerente (antes, si, da sociedade de que a requerente alegadamente é sócia e/ou gerente).

Deste modo, há a concluir que a requerente A. não tem legitimidade para intervir como assistente, nos presentes autos, o que, só por si, acarreta uma outra consequência, que é falta de legitimidade para requerer a abertura da instrução e promover nesses termos o prosseguimento do processo.

Pelo exposto:

a) Por falta de legitimidade, não se admite a intervenção de A. como assistente nos presentes autos; e

b) Por ser inadmissível, não se admite a instrução requerida por A.
Notifique.
#
Inconformado com o assim decidido, a denunciante interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões:

A) Deve a recorrente ser admitida a intervir nos autos como assistente e igualmente admitir-se a abertura de instrução requerida.

B) A recorrente participou factos ilícitos, criminais, cometidos pelo ora arguido, juntando prova e pretendendo produzir mais prova através da abertura de instrução.

C) Na verdade, a ora recorrente e o ora arguido são os únicos titulares da conta bancária n.° --, aberta no Banco Português de Negócios.

D) A ora recorrente e o ora arguido são os únicos titulares da conta bancária n.° ---, aberta no BPI pertence, metade á ora recorrente e a outra metade ao ora arguido. Assim,

E) O numerário existente nestas contas bancárias, abertas no B.P.N. e B.P.I. pertence, metade á ora recorrente e a outra metade ao ora arguido. Ora,

F) O arguido apropriou-se da totalidade do numerário existente nestas contas bancárias, abertas no BPN e BPI. Donde,

G) A recorrente é ofendida, titular de interesses que a lei especialmente quis proteger.

H) A entender-se pela ilegitimidade da ora recorrente, sempre a solução correcta seria a prolacção de despacho de aperfeiçoamento e não de indeferimento.

I) A douta decisão proferida, objecto do presente recurso, violou, entre outros, os preceitos contidos no artigo 68° do C.P.P. e 32, n.° 7 da C.R.P..

Termos em que,

Deve ser concedido provimento ao presente recurso e, por via dele, revogar-se o douto despacho recorrido, com todas as legais consequências. Nomeadamente, declarar-se que a recorrente tem legitimidade para se constituir assistente e, declarando-se a recorrente como assistente admitir-se a abertura de instrução, (…)
#
A Ex.ma Procuradora Adjunta do tribunal recorrido respondeu, pugnando pela manutenção do decidido.
#
Nesta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Cumpriu-se o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Procedeu-se a exame preliminar.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

II

De acordo com o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado, sem prejuízo da apreciação dos assuntos de conhecimento oficioso de que ainda se possa conhecer.
De modo que as questões postas ao desembargo desta Relação são as seguintes:

1.ª – Que a denunciante A. deve ser admitida a intervir nos autos como assistente e igualmente admitir-se a abertura de instrução por si requerida no tocante aos crimes de burla qualificada, p. e p. pelo art.º 218.º, n.º 2 al.ª a); abuso de confiança, p. e p. pelo art.º 205.º, n.º 4 al.ª b); e falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256.º, todos do Código Penal e todos também referentes ao desvio pelo arguido para proveito próprio de quantias monetárias da sociedade S..., Lda., da qual a denunciante e o arguido eram sócios gerentes; e

2.ª – Que, de qualquer modo e a não ser assim, o tribunal "a quo" devia ter antes proferido um despacho de aperfeiçoamento e não de indeferimento.
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E fazendo-o.

No tocante à 1.ª das questões postas:

Nos termos do art.º 287.º, n.º 1 al.ª b), do Código de Processo Penal, a abertura de instrução só pode ser requerida pelo arguido ou pelo assistente e, neste último caso, só se o procedimento não depender de acusação particular e relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.

Daí a imprescindibilidade de a denunciante se constituir assistente nos autos como condição sine qua non para a abertura de instrução

No recurso, apesar de a denunciante expôr os factos pelos quais pretende ver o arguido pronunciado como se fosse uma pura subtracção pelo arguido de dinheiros de contas bancárias solidárias do casal para uma conta bancária da qual o arguido é o único titular – o que se segue é que, sendo os factos pelos quais pretende ver o arguido pronunciado os por si descritos no requerimento de abertura de instrução (RAI), nestes consta que:

A) A Assistente e o Denunciado são os únicos sócios da sociedade comercial por quotas de responsabilidade limitada denominada "S..., Lda.", com o NIF n.° ---, com sede na Av...., Loulé.
(…)

G) Por outro lado, a Assistente e denunciado eram titulares das seguintes contas bancárias:
Conta bancária n.° ---, aberta no Banco Português de Negócios;
Conta bancária n.° ---, aberta no B.P.I..
(…)

O Denunciado recebeu os seguintes valores, que eram destinados á sociedade comercial "S..., Lda." e que o Denunciado fez depositar nas contas bancárias indicadas em «G)»:

No B.P.N.:
Em 2002 a quantia total de 209.033,90€;
Em 2003 a quantia total de 351.262,96€;
Em 2004 a quantia total de 146.141,56€;
Em 2005 a quantia total de 37.975,00€;
Em 2006 a quantia total de 5.000€;
Em 2007 a quantia total de 10.500€;
Em 2008 a quantia total de 10.000€;
- Em 2009 a quantia total de 8.000€.

No B.P.I.:
- Em 2004 a quantia total de 33.661€;
Em 2005 a quantia total de 192.966,32€;
Em 2006 a quantia total de 35.020€;
Em 2007 a quantia total de 14.250,11€;
Em 2008 a quantia de 20.023,73€;
Em 2009 a quantia de 215.307€.

J) Por outro lado, o Denunciado é o único titular da conta bancária aberta no B.P.I. sob o n.º---.Ora,

L) O Denunciado procedeu á transferência de verbas existentes nas contas indicadas em G) para a conta de que é único titular identificada em J), do seguinte modo:

Da conta do B.P.N. transferiu para a sua conta, contra a vontade e á revelia da assistente, e fazendo-as suas as seguintes verbas:

Em 2002 a quantia total de 209.033,90€;
Em 2003 a quantia total de 351.262,96€;
Em 2004 a quantia total de 146.141,56€;
Em 2005 a quantia total de 37.975,00€;
Em 2006 a quantia total de 5.000€;
Em 2007 a quantia total de 10.500€;
Em 2008 a quantia total de 10.000€;
Em 2009 a quantia total de 8.000€.
– Tudo num total de 777.913,42€.

Da conta do B.P.I. transferiu para a sua conta, contra a vontade e á revelia da assistente, e fazendo-as suas as seguintes verbas:

Em 2004 a quantia total de 33.661€;
Em 2005 a quantia total de 192.966,32€;
Em 2006 a quantia total de 35.020€;
Em 2007 a quantia total de 14.250,11€;
Em 2008 a quantia de 20.023,73€;
- Em 2009 a quantia de 215.307€.
Tudo num total de 511.228,16€.

Ou seja, o que está em causa são valores, que eram destinados á sociedade comercial "S..., Lda.".

Daí que, tal como consta do despacho recorrido:

No caso dos autos, atento o seu objecto, dele se retira que o titular dos interesses imediata e directamente tutelados, cuja afectação vem alegada, apenas poderá ser a sociedade mencionada pela requerente.

Sendo assim, será naquela sociedade que radicará a legitimidade para intervir na qualidade de assistente, sendo ela a titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com tais incriminações, sendo que, como se sabe, no nosso ordenamento jurídico as pessoas colectivas (entre elas, as sociedades, e, mais concretamente, as sociedades comerciais) não se confundem com as pessoas singulares, e nem tão pouco os seus sócios se confundem com elas.

As pessoas colectivas são centros autónomos de imputação de direitos e deveres, possuem personalidade jurídica e personalidade judiciária.

Em parte alguma do requerimento para abertura da instrução a requerente alega que o arguido prejudicou ou se apropriou do património da requerente (antes, sim, da sociedade de que a requerente alegadamente é sócia e/ou gerente).

Deste modo, há a concluir que a requerente A. não tem legitimidade para intervir como assistente, nos presentes autos, o que, só por si, acarreta uma outra consequência, que é falta de legitimidade para requerer a abertura da instrução e promover nesses termos o prosseguimento do processo.

E em abono e conforto da decisão que toma, invocou o Senhor Juiz de Instrução Criminal recorrido praticamente toda a jurisprudência que actualmente existe publicada sobre o assunto.

Pelo que improcede, pois, a pretensão da recorrente.

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No tocante à 2.ª das questões postas, a de que, de qualquer modo, o tribunal "a quo" devia ter antes proferido um despacho de aperfeiçoamento e não de indeferimento:

Não explica a recorrente o que é que entende por despacho de aperfeiçoamento, quais os termos em que o mesmo devia ser proferido.

Quando a recorrente alega que o tribunal "a quo" devia ter antes proferido um despacho de aperfeiçoamento, talvez se esteja a referir a que o tribunal "a quo" devia ter convidado a denunciante A. a requer a constituição com assistente não por si, em seu nome individual, mas em nome e em representação da sociedade S..., Lda., alterando depois no RAI tudo o que fosse necessário por forma a adequá-lo à nova personagem que assim nasceria.

Acontece que não existe nesta específica matéria disposição legal ou prática jurisprudencial – nem a recorrente as indica – que permita ao tribunal "a quo" o afecto de assim beneficiar um dos sujeitos processuais, assessorando-o quanto às melhores opções jurídicas para a sua causa, transmitindo-lhe a ciência para uma melhor prossecução e um melhor desempenho dos seus objectivos pessoais, em detrimento do outro sujeito processual.

III
Termos em que se decide negar provimento ao recurso e manter na íntegra a decisão recorrida.

Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça, atendendo ao trabalho e complexidade de tratamento das questões suscitadas, em quatro UC’s (art.º 513.º e 514.º do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9, do RCP e tabela III anexa).

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Évora, 2 de Julho de 2013

(elaborado e revisto pelo relator, que escreve com a ortografia antiga)

JOÃO MARTINHO DE SOUSA CARDOSO
ANA BARATA DE BRITO