Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
102576/22.6YIPRT-A.E1
Relator: MARIA JOÃO SOUSA E FARO
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECONVENÇÃO
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
NULIDADE PROCESSUAL
VALOR DA CAUSA
Data do Acordão: 06/15/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I. A lei não prevê a prolação de despacho liminar sobre a admissibilidade da reconvenção, sendo que a pronúncia sobre a sua admissibilidade deve ocorrer, em regra, no despacho saneador;
II. O que o Tribunal deverá fazer perante a dedução de um pedido reconvencional é certificar-se se mantém a competência em razão do valor e, caso tal não suceda, declará-lo e remeter o processo para o tribunal competente;
III. Para tanto, deverá ter apenas ter em conta o valor atribuído à causa pelo autor adicionado ao atribuído à reconvenção pelo réu.
IV. Também não deve nesse momento fixar o valor da causa, já que tal fixação deve ocorrer, por regra, também no despacho saneador;
V. O valor atribuído pelas partes, quer na acção, quer na reconvenção, é, até à sua fixação no despacho saneador, meramente provisório.
VI. A apreciação prematura da admissibilidade da reconvenção por um Tribunal que não tinha (pacificamente) competência para o fazer – art.º 93º, nº2 do CPC – configura uma nulidade processual nos termos do disposto no art.º 195º, nº1 do CPC.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
1. RELATÓRIO


1. PLANO CONTRASTE – PINTURAS E CONSTRUÇÃO CIVIL UNIPESSOAL, LDA., Autora nos autos à margem identificados, nos quais é Ré NOVA TRANSFOR, S.A., veio recorrer do despacho que conheceu da reconvenção no sentido da sua admissibilidade, formulando na sua apelação as seguintes conclusões:

A. O Tribunal a quo não tem competência para julgar a presente ação em razão do valor, resultando na sua incompetência para julgar a Reconvenção procedente;
B. A presente ação tem por base uma Injunção regulada pelo DL n.º 269/98, de 1 de Setembro, pelo que, e tendo sido apresentada Oposição pela Ré, a mesma foi distribuída nos termos do artigo 16.º do mesmo diploma legal para o Tribunal Judicial da Comarca de Ourém, Juízo Local Cível; o que não poderia ter acontecido em razão do valor, mesmo havendo pacto de competência – estipulado na Cláusula Vigésima do referido contrato, no qual determinava que “ambas as partes acordam que o foro competente é o da Comarca de Ourém, com expressa renúncia a qualquer outro” –, sendo que a Secção de Ourém apenas dispõe de Juízo Local Cível e Criminal;
C. Pelo que, intentada ação de valor superior a 50.000,00€, a competência do Tribunal – em razão do valor – nunca poderia ser convencionada em Ourém (conforme disposto nos artigos 66.º do Código de Processo Civil, artigos 41.º, 117.º e 130.º da Lei n.º 62/2013 de 26 de Agosto);
D. No caso sub judice, por forma a cumprir o pacto convencional celebrado entre as partes acabou por se indicar Ourém como “Tribunal competente para a distribuição”, erradamente, suscitando uma situação de incompetência relativa nos termos do artigo 102.º do Código de Processo Civil - uma vez que a competência em razão do valor é sempre de conhecimento oficioso, conforme dispõe o artigo 104.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, o Tribunal a quo deveria ter remetido imediatamente o processo para o Tribunal competente.
E. Nada podia ter sido apreciado pelo Tribunal a quo quanto à Reconvenção – ainda que se invocasse a competência do mesmo para tal nos termos do artigo 93.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, uma vez que a ação nunca poderia ter sido distribuída a priori para Ourém.
F. Logo que a Oposição deu entrada, o Tribunal a quo deveria ter conhecido oficiosamente da sua incompetência e remeter para o Juízo Central de Santarém, Comarca de Santarém e, este, após recebimento dos autos, apreciaria a contestação-reconvenção, pelo que a admissão da Reconvenção verificada no douto despacho (V/Ref.ª 92495485) deverá ser considerada nula por V/Exas.;
G. Não obstante, se assim não se entender, o que só por mero dever de patrocínio se concede, vem à cautela a Recorrente, alegar que, dispõe o artigo 583.º do Código de Processo Civil que a reconvenção deve ser expressamente identificada e deduzida separadamente na contestação, nos termos das alíneas d) e e) do artigo 552.º, n.º 1 do mesmo diploma legal, ou seja: (i) deve expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à ação e (ii) deve formular o pedido;
H. Acontece que na alegada Reconvenção apresentada, a Ré limita-se a “dar por reproduzido o conteúdo” de determinados artigos da oposição acima deduzida;
I. Dada a possibilidade ao Réu de deduzir um pedido reconvencional, a par da sua Oposição, acabamos por entrar numa situação em que “tudo se passa como se existissem no mesmo processo duas ações, com dois ou mais objetos processuais cruzados, incumbindo ao réu, tal qual como ao autor na petição inicial, a tarefa de expor os factos e as razões de direito em que funda a reconvenção, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 552.º”, o que acaba por não concretizar na Reconvenção pois não descreve expressamente os factos que constituem a causa de pedir, o que é uma clara violação aos artigos mencionados;
J. Deduzida separadamente e com os elementos e indicações das das alíneas d) e e) do artigo 552.º do Código de Processo Civil, a Reconvenção apresenta a estrutura formal da petição inicial (fundamentos de facto; fundamentos de direito, pedido; valor da causa; elementos complementares eventuais);
K. A Reconvenção pode ser “considerada inepta, como a petição inicial; mas a consequência de tal ineptidão não é, evidentemente, a nulidade de todo o processo, apenas a nulidade circunscrita da própria reconvenção, com a consequente absolvição do reconvindo da instância reconvencional” (negrito nosso);
L. Ademais se acrescenta que o Réu formula contra o Autor um pedido autónomo, fundamentado em factos que constituirão a respetiva causa de pedir e, consequentemente, este pedido não se trata de uma mera consequência da defesa do Réu;
M. Embora a Contestação e a Reconvenção possam constar da mesma peça processual, a última deve ser claramente destacada (separada), por forma a permitir ao autor compreender facilmente que contra ele também foi proposta uma ação e formulado um pedido — não obstante a Ré destacar a Reconvenção na sua Oposição (mais concretamente, no título B.), aquela não foi fundamentada com os factos que constituem a causa do pedido que é formulado no artigo 39.º da Oposição, e tão só são apresentadas razões de direito (artigos 36.º a 38.º da oposição/reconvenção);
N. A exposição da matéria de facto da Reconvenção tem de se distinguir da defesa – direta ou indireta – da ação! Porquanto, sendo a Reconvenção um articulado em que o réu (reconvinte) formula um pedido contra autor (reconvindo), terá necessariamente de observar os requisitos formais exigidos para a PI — o reconvinte tem, pois, de dar satisfação às mesmas exigências que a lei processual estabelece para o autor no que respeita à petição inicial.
O. Ora, em processo civil, se a Petição Inicial for julgada improcedente por despacho saneador, a Reconvenção poderá sozinha prosseguir os seus termos – por se considerar outra ação distinta - e, nesse caso, não poderá existir uma Petição Inicial reconvinte com a mera indicação que dá “(…) por reproduzidos todos os factos” que estão alegados noutra peça, a petição inicial originária, que nem sequer estará já em julgamento;
P. Sufragando a Recorrente por inteiro as doutrinas invocadas nas suas motivações, a Reconvenção pode ser considerada inepta nos termos do artigo 186.º do Código de Processo Civil (ex vi artigo 583.º, n.º 1 parte final do CPC), por não apresentar os fundamentos da causa de pedir (factos essenciais), conforme artigo 552.º, n.º 1, al. d), primeira parte do CPC — embora o pedido seja existente, a causa de pedir não é constante da peça processual autónoma, a Reconvenção, sendo referida em termos completamente genéricos, que não constituem a alegação de factos concretos;
Q. Consequentemente, se o reconvinte não alegar os factos concretos que lhe servem de fundamento nesta peça autónoma, a Reconvenção, baliza, por falta de indicação dos parâmetros a atividade do douto Juiz do Tribunal a quo, e, obviamente, torna a defesa do reconvindo deficiente, pois este necessita de conhecer os factos em que assenta o pedido autónomo;
R. A reconvenção, no caso sub judice, sofre de um vício de conteúdo, vício esse cujo controlo cabe ao douto Juiz (e não à secretaria); aliás, pode o douto Tribunal pugnar pela sua sanação – apresentando-se uma Reconvenção aperfeiçoada (corrigindo-se o vício), com todos os factos essenciais devidamente expostos, fundamentando a causa de pedir;
S. O que não aconteceu, tendo o douto Tribunal a quo simplesmente requerido que o Reconvinte viesse “(…) aos autos, no prazo de 10 dias, indicar o valor da reconvenção, sob pena da mesma não ser atendida, nos termos do artigo 583º, nº2, do Código de Processo Civil” — por conseguinte, aqui se prova o desmérito por parte do Reconvinte na execução do próprio pedido de Reconvenção, que nem o cuidado teve de atribuir valor ao próprio pedido;
T. Em suma, a reconvenção deve ser expressamente identificada e deduzida separadamente na contestação, expondo-se os fundamentos e concluindo-se pelo pedido, nos termos das alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 552.º do CPC, ex vi 583.º, n.º 1 do CPC;
U. A ineptidão da petição inicial gera a nulidade do processo, conforme dispõe o artigo 186.º do CPC – mas, estando perante uma reconvenção, a nulidade reportar-se-á apenas à própria, com a consequente absolvição do reconvindo da instância reconvencional.
Por tudo o exposto, e sem necessidade de mais amplas considerações, deverá a presente apelação ser julgada procedente por provada e, consequentemente, deverá
(i) ser declarada a nulidade do douto despacho por incompetência relativa do douto Tribunal a quo, e (ii) declarada a ineptidão da Reconvenção por sofrer de vício nos termos dos artigos 186.º do Código de Processo Civil (ex vi artigo 583.º, n.º 1 parte final do CPC), por não apresentar os fundamentos da causa de pedir (factos essenciais), conforme artigo 552.º, n.º 1, al. d), primeira parte do mesmo diploma legal.”.


2. Contra-alegou o R./reconvinte defendendo a manutenção do decidido.

3. O objecto do recurso, delimitado pelas enunciadas conclusões da apelante (cfr.artºs 608º/2, 609º, 635º/4, 639º e 663º/2 todos do CPC) reconduz-se à apreciação das seguintes questões:

3.1. Da incompetência em razão do valor do Tribunal “a quo” para conhecer da (in) admissibilidade da reconvenção[1]; consequências.

3.2. No caso de se concluir pela competência, se a reconvenção é nula por inepta.

II. FUNDAMENTAÇÃO


4. Transcreve-se o despacho proferido pelo Tribunal “a quo” em 16.2.2023 que contempla, num dos seus segmentos, o recorrido que se realça:

“Determina o artigo 7º, nº1, do D/L nº 32/2003, de 17-2, que o atraso no pagamento de transacções comerciais confere ao credor o direito a recorrer à injunção, independentemente do valor da dívida. Por sua vez, determina o nº2, daquele artigo 7º, que para valores superiores à alçada do tribunal da Relação, a dedução de oposição no processo de injunção determina a remessa dos autos para o Tribunal competente, aplicando-se a forma de processo comum.

Deste modo, os presentes autos irão prosseguir sob a forma de processo comum.

Notifique.

*

Da análise da contestação apresentada pela R. constata-se que a reconvenção que deduziu preenche os requisitos processuais e substantivos para poder ser admitida.

Na verdade, no que se refere ao pedido reconvencional de condenação da A. a pagar à R. uma indemnização pelos danos alegadamente sofridos por esta última em resultado do cumprimento defeituoso realizado por aquela, o mesmo resultará do facto jurídico que serve de fundamento à defesa apresentada por ela. Na verdade, na sua contestação a R. vem alegar que a A. cumpriu defeituosamente a obrigação que a mesma se tinha vinculado no contrato de empreitada entre elas celebrado.

Deste modo, a reconvenção deduzida pela R. e reconvinte enquadra-se na previsão do pressuposto substantivo da mesma constante da alínea a), do nº2, do artigo 266º, do Código de Processo Civil.

Por outro lado, tanto o pedido formulado pela A. na acção principal, como o pedido reconvencional, deverão ser processados em acção comum. Deste modo, não se registará qualquer incompatibilidade processual entre eles, nos termos dos artigos 37º e 266º, nº3, do Código de Processo Civil.

Por todo o exposto, admite-se o pedido reconvencional deduzido pela R.

Notifique.

*

Conforme referimos, resulta dos autos que a R. deduziu uma reconvenção. Verifica-se ainda que a R. atribuiu a esta reconvenção o valor de 11.387,20 euros.

Deste modo, nos termos do artigo 299º, nº2, do Código de Processo Civil, o valor da presente acção passará a corresponder à soma daquele valor que foi atribuído ao pedido principal, isto é o de 66.401,76 euros, com o do pedido reconvencional, que é, como referimos de 11.387,20 euros. Deste modo, o valor processual da presente acção será corresponderá ao montante total de 77.788,96 euros.

Notifique.

**
Tendo em conta a decisão anterior, verifica-se que a presente acção declarativa de processo comum passou a ter um valor superior a 50.000 euros.

Deste modo, nos termos do artigo 117º, nº1, alínea a), da Lei nº 62/2013, de 26-6, passou a ser o Juízo central civil do Tribunal Judicial de Santarém a ter a competência para preparar e julgar a presente acção.

Em conformidade, declara-se este Juízo local cível do Tribunal Judicial de Ourém como incompetente para aqui ser processada a julgada a presente acção.

Consequentemente, após trânsito, remeta os presentes autos ao Juízo central civil do Tribunal Judicial de Santarém para aí prosseguirem os seus termos.

Notifique.”.

5. Do mérito do recurso

5.1. Como se vê do despacho transcrito, o Tribunal “a quo”, começou por decidir da admissibilidade da reconvenção, após o que fixou o valor da causa e, por último, declarando-se incompetente em razão do valor, determinou a remessa dos autos ao Juízo Central Cível de Santarém.

A questão que se coloca é se poderia ter conhecido da admissibilidade da reconvenção ou se tal questão deveria ter sido relegada para o Tribunal competente em razão do valor por a modificação do mesmo se produzir automaticamente, i.e. independentemente da admissibilidade do pedido reconvencional.

O conhecimento da (in) admissibilidade da reconvenção é, a nosso ver, e desde logo, absolutamente prematuro.

A lei não prevê a prolação de despacho liminar sobre a admissibilidade da reconvenção, sendo que a pronúncia sobre a sua admissibilidade deve ocorrer, em regra, no despacho saneador[2] (art.º 595º a) do CPC).

Além disso, ao admiti-la, vinculou o Tribunal competente a uma decisão que no caso até é controvertida.[3]

O que o Tribunal deverá fazer perante a dedução de um pedido reconvencional é certificar-se se mantém a competência em razão do valor e, caso tal não suceda, declará-lo e remeter o processo para o tribunal competente (art.º 299º, nº1 e nº2 e art.º 93º, nº1 e nº2 do CPC).

Como proficientemente referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, “sempre que o pedido reconvencional determine o aumento do valor da acção (art.º 299º, nº2) passando a exceder o valor de € 50.000,00 pode daí resultar uma modificação da competência do Tribunal inicialmente fixada em função do valor indicado na petição ( art.º 310º, nº1). Aquele efeito processual manter-se-á mesmo que porventura, no despacho saneador, venha a ser declarada a inadmissibilidade de reconvenção por falta de requisitos formais ou substanciais uma vez que as vicissitudes por que passar o pedido reconvencional não determinam a repristinação do valor que a causa tinha aquando da sua dedução ( art.º 299º, nº1).”[4]

No mesmo sentido, Miguel Teixeira de Sousa em anotação ao acórdão do TRL 14/7/2020 (23074/18.3PRT-A.L1-6)[5] refere: “O que importa resolver é, em termos simples, o seguinte: a alteração do valor da causa que se encontra estabelecida no art. 299.º, n.º 1, CPC depende da mera dedução da reconvenção ou da intervenção principal ou depende da admissibilidade dessa dedução?. Noutros termos: basta a dedução da reconvenção ou da intervenção principal para que o valor da causa se altere ou, para que isto suceda, é necessário que a reconvenção ou a intervenção principal seja admissível?

Para responder à pergunta formulada, pode estabelecer-se um paralelismo com a propositura de uma acção: a acção, uma vez proposta, tem um determinado valor e não deixa de o ter pela circunstância de a petição inicial ser liminarmente indeferida pela verificação de uma excepção dilatória insanável ou de o réu vir a ser absolvido na instância com base nesta mesma excepção.

Seguindo esta orientação, basta que a reconvenção ou a intervenção principal seja deduzida para o que o valor do respectivo pedido seja somado, nas condições estabelecidas no art. 299.º, n.º 2, CPC, ao valor inicial da acção.

Parece ser esta a solução mais adequada. O art.º 296.º, n.º 1, CPC estabelece que o valor da causa "representa o valor económico do pedido"; logo, o disposto no art. 299.º, n.º 1, CPC significa que a acção passa a ter o valor correspondente à soma do valor do pedido inicial com o valor do pedido reconvencional ou do pedido formulado na intervenção principal, mesmo que a reconvenção ou a intervenção principal seja considerada inadmissível (…)”.

Aliás, também nem sequer devia ter sido fixado o valor da causa, já que tal fixação deve ocorrer, por regra, também no despacho saneador (art.º 306º, nº2 do CPC).

É que, para o efeito de aferição da competência em razão do valor, após a dedução da reconvenção, dever-se-á apenas ter em conta o valor atribuído à causa pelo autor adicionado ao atribuído à reconvenção pelo réu.

Só no adequado momento processual é que, perante os elementos do processo ou mediante diligências indispensáveis, caso o juiz não aceite o valor indicado pelas partes, deverá ser fixado o valor da causa (art.º 308º do CPC).

O mesmo é dizer que o valor atribuído pelas partes, quer na acção, quer na reconvenção, é, até à sua fixação no despacho saneador, meramente provisório.

Imagine-se uma acção de reivindicação na qual o Autor atribui ao imóvel reivindicado um valor irrisório e que o Réu deduz reconvenção por benfeitorias às quais atribui também um determinado valor.

Nada impede que o Tribunal, no momento oportuno, determine a avaliação do imóvel reivindicando e que perante o valor apurado venha a fixar um valor da causa que somado ao da reconvenção seja superior ao que inicialmente resultava da mera adição dos dois[6].

Estabelecido que a fixação do valor da causa não está dependente da admissibilidade da reconvenção, resta-nos retirar as consequências desta ter sido, como dissemos, prematuramente apreciada por um Tribunal que não tinha (pacificamente) competência para o fazer – art.º 93º, nº2 do CPC.

Recorda Rui Pinto[7] que: “Como qualquer outro acto processual, a própria decisão judicial pode padecer das nulidades inominadas do artigo 195.º, n.º 1. Assim, suponha-se que a sentença ou decisão é proferida parcialmente no início da audiência de julgamento, antes da produção de prova ou das alegações, ou que constitui uma decisão surpresa, com violação do artigo 3.º, n.º 3, ou que se trata de um despacho que ordena a citação do requerido para um procedimento cautelar que não admite citação prévia (cf. artigo 378.º). A decisão não pode deixar de ser nula.”.

Revelando-se a nulidade processual em causa na decisão, deverá ser no recurso desta decisão, caso o mesmo seja admissível, que deve ser invocada a nulidade, sob pena de não o fazendo, a decisão transitar em julgado.

A nulidade do despacho que conheceu da reconvenção no sentido da sua admissibilidade foi, como vimos, invocada pela apelante e ter-se-á por procedente por ser inequívoco que é susceptível de influir no exame ou decisão da causa.

Conclui-se, assim, pela procedência do recurso.

Fica prejudicado o conhecimento da outra questão que deixámos enunciada.

III. DECISÃO

Por todo o exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, anulando-se o despacho recorrido que conheceu da reconvenção no sentido da sua admissibilidade.

Custas pela apelada.

Évora, 15 de Junho de 2023
Maria João Sousa e Faro ( relatora)
José António Penetra Lúcio
Graça Araújo

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[1] Incompetência que a ora apelante refere se ter verificado “ ab initio” “uma vez que a ação nunca poderia ter sido distribuída a priori para Ourém”. Porém, e uma vez que este acabou por remeter o processo para o Tribunal competente em razão do valor, a questão tem-se por ultrapassada.

[2] Também neste sentido, Ac. TRL de 23.2.2022, Proc. 823/20.4T8CSC.L1-7, consultável na Base de dados do IGFEJ.

[3] Cfr. Ac. TRL de 23.2.2021, Proc. 72269/19.0YIPRT.L1-7 no qual se expõe as diversas orientações sobre a questão.

[4] In Código de Processo Civil anotado, Vol. I, 3ªed., pag.130.

[5] In https://blogippc.blogspot.com/

[6] Se ao invés, resultar um valor inferior, nem por isso o Tribunal deixa de ser competente ( art.º 310º, nº3 do CPC).

[7] In “ Os meios reclamatórios comuns da decisão civil (artigos 613.º a 617.º CPC), 2019, https://www.linkedin.com