Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
413/12.5TBVVC.E1
Relator: JAIME PESTANA
Descritores: CRÉDITO AO CONSUMO
CUMPRIMENTO DEFEITUOSO
Data do Acordão: 03/12/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Uma vez celebrado o contrato de compra e venda, desencadeiam-se efeitos simultaneamente reais e obrigacionais: o efeito real consiste na transferência da propriedade da coisa, que se verifica no momento do contrato e por efeito deste, se ela aí estiver já identificada; os efeitos obrigacionais consistem em que o vendedor se encontra obrigado a efectuar a entrega da coisa vendida e o comprador está obrigado ao pagamento do preço.
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 413/12.5TBVVC.E1 – 1.ª secção


Acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora


(…) e (…) intentaram a presente acção declarativa de condenação, com processo sumário, contra Auto (…) – Comércio Automóvel, Lda. e Banco (…), S.A., peticionando:

A resolução do contrato de compra e venda do veículo automóvel marca (…), modelo (…) 11, Break Diesel Fase 1, com a matrícula (…), outorgado entre os AA. e a Ré Auto (…) – Comércio Automóvel, Lda e ainda a condenação desta Ré à devolução das quantias pagas pelos AA. aquando da celebração do contrato de compra e venda, nomeadamente, o valor do veículo entregue por estes, a que corresponde a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros) e a entrega em dinheiro de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros);

A resolução do Contrato de crédito n.º (…), outorgado entre os AA. e o Réu Banco (…) no qual este concedeu um crédito àqueles, para aquisição do veículo identificado na alínea anterior, pelo valor global de € 13.953,60 (treze mil, novecentos e cinquenta e três euros e sessenta cêntimos), com uma taxa nominal fixa de 7.573, em 72 prestações mensais e sucessivas no valor de € 193,80 (cento e noventa e três euros e oitenta cêntimos), devendo este pagamento ser debitado na conta n.º (…) da Caixa Geral de Depósitos, nos termos e para os efeitos;

A devolução aos AA. da quantia referente à totalidade das prestações pagas, desde Julho de 2008 até à última prestação efectivamente paga por estes, as quais totalizam, até à entrada da acção em juízo a quantia de € 10.271,40 (dez mil, duzentos e setenta e um euros e quarenta cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos desde a citação até Integral pagamento,

Alegam, em síntese, os autores a celebração de um Contrato de compra e venda de um veículo automóvel com a Ré Auto (…), cujo preço foi pago através da entrega de um outro veículo e a quantia de 7.500,00 euros, tendo, ainda, celebrado um contrato de mútuo com o Réu Banco no valor de 11.091,65 euros para proceder ao pagamento do remanescente do preço da viatura adquirida. O veículo em causa não foi acompanhado dos documentos pelo que os AA não conseguiram transferir a propriedade do veículo para o seu nome, não obstante as várias tentativas ocorridas junto da Auto (…). Desta forma, consideram existir incumprimento do contrato de compra e venda do veículo, requerendo a respectiva resolução e nessa medida tal resolução atingirá igualmente o contrato de mútuo, por no seu entender existir entre ambos RR uma relação de exclusividade no acesso ao crédito, no momento da aquisição dos veículos.

Apenas o Réu Banco contestou invocando, por um lado, abuso direito na modalidade de venire contra factum proprium, por banda dos AA. ao arguirem a invalidade do Contrato de mútuo já numa fase adiantada do cumprimento deste último, isto é, quando os AA já tinham pago 53 prestações das 72 que se comprometeram entregar) e por outro lado, por não se verificar uma relação de exclusividade entre ambos RR no financiamento da aquisição de veículos pelos clientes da Auto (…). Pugna pela improcedência da acção.

Realizada a Audiência de Discussão e Julgamento foi proferida sentença que

Declarou resolvido o contrato de compra e venda do veículo automóvel marca (…), modelo (…) 11, Break Diesel Fase I, com a matrícula (…), outorgado entre os AA. e a Ré Auto (…) – Comércio Automóvel, Lda.;

Condenou a Ré Auto (…) – Comércio Automóvel, Lda. a devolver as quantias pagas pelos AA. aquando da celebração do contrato de compra e venda, nomeadamente, o valor do veículo entregue por estes, a que corresponde a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros) e a entrega em dinheiro de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros);

Declarou resolvido o contrato de crédito n.º (…), outorgado entre os AA. e o Réu Banco (…) no qual este concedeu um crédito àqueles, para aquisição do veículo identificado na alínea a), pelo valor global de € 13.953,60 (treze mil, novecentos e cinquenta e três euros e sessenta cêntimos), com uma taxa nominal fixa de 7.573, em 72 prestações mensais e sucessivas no valor de € 193,80 (cento e noventa e três euros e oitenta cêntimos), devendo este pagamento ser debitado na conta n.º (…) da Caixa Geral de Depósitos;

Condenou o Réu Banco (…) a devolver aos AA. a quantia referente à totalidade das prestações pagas, desde Julho de 2008 até à última prestação efectivamente paga por estes, as quais totalizam, a quantia de € 10.271,40 (dez mil, duzentos e setenta e um euros e quarenta cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos desde a citação até integral pagamento.


Inconformado recorreu o R. Banco (…), S.A. tendo concluído as suas alegações nos seguintes termos:


A Sentença a quo padece de dois erros fundamentais: uma incorrecta apreciação da matéria de facto e uma incorrecta subsunção dos factos ao Direito,

Tais vícios deram origem a uma Sentença confusa, aparentemente com “decisões subsidiárias ou alternativas”, não se compreendendo muito bem qual das justificações avançadas foi utilizada para o desfecho que apresentou.

Mas seja como for, independentemente da solução escolhida, o desfecho teria de ser, sempre, a absolvição do Recorrente do pedido.

Começando pela matéria de facto, não se conforma o Recorrente com a resposta dada aos pontos 19 e 20, considerando que deveria ter sido incluído um outro facto na matéria, que decorre das regras de experiência comum, é público, notório e foi alegado pelo Recorrente, ou seja, “que por norma os stands de automóveis não registam a propriedade dos veículos a seu favor”.

Começando pelo ponto 19 da matéria provada, existe uma impossibilidade lógica e jurídica no mesmo, uma vez que não seria possível ao Recorrente ter conhecimento que a propriedade não pertencia à Ré Auto (…).

Quando, conforme ficou amplamente demonstrado supra e será ainda infra tratado, a propriedade pertencia de facto à Auto (…).

Assim, não podia o Recorrente ter conhecimento de um facto se este facto não existia, razão pela qual o ponto 19 deveria ter sido dado como não provado.

Em relação ao ponto 20, e conforme ficou cabalmente demonstrado pela transcrição do depoimento da testemunha (…), verifica-se que, ao contrário do decidido, não foi feita qualquer prova de que o Recorrente, neste caso em concreto (único em julgamento), tenha assumido qualquer risco na transferência do capital mutuado directamente para a Ré Auto (…), e não ficou também porque a testemunha que alegadamente influenciou o julgamento do Tribunal nesta matéria, disse repetidamente não ter qualquer recordação dos factos em discussão nos autos, não se lembrou dos Autores, do veículo, da situação, de nada.

Ou seja, não prestou depoimento sobre qualquer facto e como tal, logicamente, nenhum facto poderia ter sido provado à custa do seu testemunho.

Como tal, o Ponto 20 da matéria de facto deveria ter sido dado como não provado.

Por fim, entende o Recorrente que deveria ter sido aditado um facto provado à matéria, ou seja, que por norma “os stands de automóveis não registam a propriedade dos veículos a seu favor”.

Isto porque em primeiro lugar é um facto público e notório, qualquer leigo sabe que assim é.

Mas além disso, foi um facto alegado no art.º 34. da Contestação e não impugnado, e se isso não bastasse, foi confirmado pelo legal representante da Ré Auto (…) ao minuto 17:44 da gravação 20140108121810_26947_65340.

E assim, deveria este facto ter sido atendido, por essencial para a discussão dos presentes factos, e como tal inserido na matéria de facto dada como provada.

Concluindo, no tocante à matéria de facto, deveriam ter sido julgados não provados os Pontos 19 e 20 (que erroneamente foram dados como provados) e deveria ter sido aditado um ponto à matéria de facto dada como provado que dissesse que por norma, os stands de automóveis não registam a propriedade a seu favor.

Tratada a matéria de facto, passaremos de seguida para o rol de erros de Direito que se sucedem na Sentença recorrida, alguns profundamente marcados pela resposta errada à matéria de facto supra indicada.

As Sentenças devem ser claras, objectivas e líquidas, dando a perceber aos intervenientes processuais, não só qual o sentido da decisão, mas também e sobretudo qual o raciocínio lógico-jurídico que levou a essa mesma decisão.

Na Sentença recorrida, não se consegue descortinar qual o caminho adoptado pelo Tribunal, porque foram indicados vários, em jeito de pedidos/pressupostos alternativos ou subsidiários, e esta forma de decidir, que não é exclusiva da presente, não só gera incerteza, como gera, sobretudo, perdas de tempo e eficiência.

A Sentença começa por errar na análise que faz do regime do contrato de compra e venda, pois não teve em consideração um ponto essencial do regime, ou seja, que os contratos de compra e venda de bens móveis, ainda que sujeitos a registo, tal como os automóveis, são contratos quod effectum, em que a transferência da propriedade opera por mero efeito do contrato,

Sendo totalmente irrelevante, no que à transferência de propriedade diz respeito, a entrega de documentos do veículo ou sequer o pagamento do preço, conforme resulta dos artigos 874.2, 879.2, 886.2 do Código Civil.

Não teve também em consideração que para este tipo de contratos, vigora o princípio da liberdade de forma contido no art.º 219.º do Código Civil, e como tal, não havia qualquer necessidade de serem reduzidos a escrito.

Ignorando-se os pontos-chave do regime do contrato de compra e venda, então a Sentença só poderia apresentar uma enorme incoerência entre a matéria de facto dada como provada e o resultado jurídico a que se chegou,

Pois conforme resulta do Ponto 11 da matéria de facto dada como provada, a Ré Auto (…) adquiriu o veículo em causa a (…), logo, era sua proprietária.

E resulta também do Ponto 3 da matéria de facto dada como provada que os Recorridos adquiriram o veículo em causa à Ré Auto (…).

Nos termos do disposto no art.º 1.º, n.º1 do Código do Registo Automóvel, o registo automóvel não tem qualquer efeito constitutivo.

E daqui, aplicando-se os normativos supra indicados, e ao contrário do que foi decidido pela Sentença a quo, só poderemos chegar a uma conclusão: os recorrentes são os proprietários do veículo em causa desde 8 de Julho de 2008 e adquiriram-no a quem tinha legitimidade para o vender.

Esta simples conclusão, a que o Tribunal não conseguiu chegar, inquinou de morte toda a restante Sentença, como se verá.

Daqui resulta que não houve qualquer incumprimento culposo por parte da Ré Auto (…), sendo que deveriam os Recorridos ter exigido a entrega dos documentos do veículo a (…) que ilegitimamente se apoderou deles e os recusou entregar, como decorre do Ponto 12 da matéria de facto dada como provada.

E ao transferir a propriedade do veículo para os Recorridos, a Auto (…) deixou de ter legitimidade para exigir essa documentação a (…), sendo que essa legitimidade transferiu-se para os Recorridos, que não fizeram qualquer esforço nesse sentido, e como tal não podem imputar a responsabilidade à Auto (…), quando esta não estava capaz de cumprir por motivos que lhe eram alheios.

A recusa de (…) em entregar os documentos era e é totalmente ilícita, sendo que quanto a uma eventual excepção de não cumprimento, esta nunca seria oponível aos Recorridos, nos termos do disposto no art.º 431.2 do Código Civil.

Não havendo qualquer comportamento culposo por parte da Ré Auto (…), pelo menos que permitisse verificar-se uma situação de incumprimento ou cumprimento defeituoso ou culposo, caí por terra a primeira proposta de decisão, que como se verá, irá inquinar a aplicação do art.º 12, n.º 2, do DL 359/91.

Erra a Sentença recorrida ao defender a teoria da venda de bens alheios, por alegadamente a propriedade não ter sido transferida para a Auto (…), por preterição da “novíssima” exigência de forma legal que institui.

Conforme deixámos já bem explícito supra, da aplicação dos art.ºs 219.º, 874.º, 879.º e 886.º do Código Civil resulta, inequivocamente, que a propriedade transferiu-se em primeiro lugar de (…) para a Auto (…) e depois da Auto (…) para os Recorridos,

Sendo estes os actuais proprietários do veículo, pelo que, sem mais, cai igualmente por terra a segunda “proposta de decisão” assente na teoria da venda de bens alheios.

E assim, caídos por terra as duas “propostas de decisão” supra, não havia fundamento para aplicação do regime da coligação/união de contratos prevista no art.º 12.º, n.º 2 do DL 359/91, desde logo porque não houve qualquer incumprimento ou cumprimento defeituoso por parte do vendedor ou do credor.

Mas, ainda que tivesse havido incumprimento ou cumprimento defeituoso, o que não se concede mas apenas por facilidade de exposição se admite, a aplicação do art.º 12.º, n.º 2 do DL 359/91 efectuada pela Sentença a quo, estaria, ainda assim, incorrecta.

Com efeito, o regime previsto no art.º 12.º, n.º 2 do DL 359/91 tem como requisitos, além da existência de incumprimento ou cumprimento defeituoso, a pré-existência de um acordo de exclusividade pelo qual o crédito é concedido exclusivamente pelo mesmo credor aos clientes do vendedor para a aquisição de bens fornecidos por este último e naturalmente, que o crédito em questão seja obtido no âmbito deste acordo.

Ora, resulta da própria matéria de facto, neste caso da não provada. Na sua alínea a), o seguinte: a Ré Auto (…) – comércio automóvel, Lda. mantinha com o Réu Banco (…), SA exclusividade no acesso ao crédito dos clientes daquela”.

Ou seja, a própria Sentença deu como não provada a relação pré-existente de exclusividade, mais resultando da matéria de facto dada como provada, designada mente nos Pontos 17 e 18, que “Ponto 17: A ré Auto (…), para além do Réu (…), trabalhava com outras financeiras, nomeadamente, com o Banco (…);” e “Ponto l8: A Ré Auto (…) tinha publicidade no stand tanto do Réu (…), como do Banco (…), existindo panfletos e cartazes, em igualdade de circunstâncias”.

Como tal, uma vez mais, estamos perante uma contradição insanável entre a matéria de facto e a consequência jurídica atribuída a essa mesma matéria de facto.

Tenta, inexplicavelmente, a Sentença recorrida justificar esta Contradição, dizendo que a matéria de facto noutros pontos, designadamente nos pontos 5, 8, 16, 19, 20 e 26.

É um paradoxo tentar justificar a inexistência de algo, com supostos indícios dessa existência, quando está já dada como adquirida essa mesma inexistência, no caso em apreço, a relação pré-existente de exclusividade.

Ainda assim, a verdade é que os indícios indicados nos Pontos 5, 8, 16, 19, 20 e 26 em nada apontam para uma possível existência de uma relação de exclusividade – que se recorde, já foi dada como não provada.

Não podendo colher, independentemente dos caminhos escolhidos, qualquer interpretação do art.º 12.º, n.º 2 do DL 359/91 que levasse a considerar que o eventual incumprimento do vendedor, aqui Auto (…), pudesse ter qualquer efeito sobre o contrato de crédito,

Pelo que também aqui foi mal aplicado o Direito, no caso em apreço o art.º 12.º, n.º 2 porquanto a tal relação pré-existente de exclusividade não existia e como tal não foi dada como provada.

Por outro lado errou a Sentença recorrida ao entender que haveria abuso de direito por parte do Recorrente ao alegar a inexistência de exclusividade prevista no art.º 12.º, n.º 2 do DL 359/91, por considerar que deveria o Recorrente ter avisado os Recorridos que a propriedade não se encontrava registada a favor do Stand vendedor.

Além de ser um facto público e notório que os stands que se dedicam à compra e venda de veículos usados não registam a propriedade dos veículos a seu favor, porquanto além do registo implicar custos e os stands de automóveis não tem qualquer necessidade de se fazerem valer da presunção conferida pelo registo, desvalorizam os veículos,

Incumbia aos Recorridos a responsabilidade de se certificarem que estavam a adquirir o veículo – como sucedeu – de quem tinha legitimidade para o vender, não tendo nunca o Recorrente assumido perante os Recorridos, fosse por que forma fosse, a obrigação de proceder a essa certificação.

O abuso de direito só pode ser aplicado se o referido abuso for manifesto, sendo que a Jurisprudência já deixou bem claro que para existir abuso de direito tem de haver uma conduta, um comportamento, por parte daquele que alegadamente abusa do seu direito, de forma a criar no outro a convicção de que não o iria fazer.
Agora Venerandos Juízes Desembargadores, questiona-se em que Ponto, momento, segundo, minuto, o que seja, é que foi alegado, provado, sequer indiciado, que em algum momento de tempo tenha o Recorrente feito, dito, actuado, o que fosse, de forma a criar qualquer expectativa nos Recorridos?

A resposta é simples: não consta de qualquer elemento probatório (sequer indicado na matéria de facto pasme-se} a eventual ou sequer indiciária criação de tal expectativa, pela simples razão que ela não foi criada.

De contrário ao decidido na Sentença Recorrida, existiu sim, abuso de direito, mas este claramente imputável aos Recorridos.

Os Recorridos celebraram o contrato de crédito com o Recorrente em 10 de Julho de 2008 – cfr. Ponto 6 da matéria de facto dada como provada.

Os Recorridos entregaram ao Recorrente 53 (!) das 72 prestações devidas no âmbito desse contrato – cfr. Ponto 21 da matéria de facto dada como provada.

Até 9 de Abril de 2011, os Recorridos não manifestaram qualquer desagrado, reclamação, desconforto, o que fosse, perante o Recorrente, data em que o Recorrido (…) interpôs uma acção declarativa de condenação contra o Recorrente e a Ré Auto (…) – cfr. Ponto 23 da matéria de facto dada como provada,

Sendo que só em Janeiro de 2013, quase 5 anos após a outorga do contrato, é que deixaram de cumprir o contrato – cfr. Ponto 22 da matéria de facto dada como provada,

Tendo a acção referida no Ponto 23 da matéria de facto provada sido julgada improcedente por preterição de litisconsórcio necessário – cfr. Ponto 24 a matéria de facto dada como provada.

Os Recorridos criaram a expectativa junto do Recorrente, que tudo estaria bem com o contrato e que nenhum vício lhe havia a apontar, estando o Recorrente absolutamente convicto da vontade dos Recorrentes em cumprir com o mesmo, não sendo expectável que existisse qualquer grau de insatisfação por parte dos Recorridos.

Ficou amplamente demonstrado supra, que toda a actuação dos Recorridos em relação ao Recorrente foi, não só apta, como inequívoca, a criar (como criou) a expectativa de que estes não iriam invocar qualquer nulidade do Contrato.

E como tal, ainda que, por mera hipótese académica, nada do Supra dito fosse relevado, então a actuação dos Recorridos teriam de ser considerada manifestamente abusiva e como tal, sancionada nos termos do disposto no art.º 334.º do CC e n.º 3 do art.º 576.º do CPC.

Não se descortina o sentido da secção que na sentença recorrida figura como “Consequência”, mas seja como for, por tudo o que já foi dito, não pode o ali exposto proceder, porquanto resulta inequívoco da matéria de facto que não ficou provada a relação de exclusividade que constitui requisito cumulativo previsto no art.º 12.º, n.º 2 do supra citado diploma para que as supostas vicissitudes do contrato de compra e venda se repercutissem no contrato de crédito.

Assim, sendo, considerados os apontados vícios insanáveis constantes da Sentença recorrida, deverão V. Exas. revogar a mesma, substituindo-a por outra que absolva o Recorrente dos pedidos.

Não foram apresentadas contra alegações.

Colhidos os vistos cumpre apreciar e decidir

O Tribunal recorrido julgou provada a seguinte matéria de facto:

1-A Ré Auto (…) – Comércio de Automóvel, Lda. dedica-se à compra e venda de veículos automóveis.

2-O Réu Banco (…), SA tem, entre outras, como actividade a concessão de crédito ao consumo.

3-No dia 8 de Julho de 2008, por acordo escrito denominado “Contrato de Compra” a Ré Auto (…) entregou aos AA. o veículo automóvel marca (…), modelo (…) II, Break Diesel Fase 1, com a matrícula (…), contra a entrega de € 23.500,00 (vinte e três mil e quinhentos euros).

4-Na circunstância referida em 3. os AA obtiveram um desconto de € 500,00, entregaram uma viatura (matrícula …), no valor de 5.000,00 euros e efectuaram uma entrega em dinheiro de 7.500,00 euros.

5-Para entrega do valor remanescente em falta, a Ré Auto (…) tratou de todos os procedimentos necessários, junto do Réu Banco, para que este emprestasse aos AA. a quantia necessária até perfazer os 23.000,00 euros.

6-No dia 10 de Julho de 2008, os AA subscreveram com o Réu Banco (…) um acordo escrito denominado “contrato de crédito n.º (…)”, no qual este entregou a quantia € 11.091,65 à Ré Auto (…) para aquisição do veículo identificado em 3 por banda dos AA.

7-Por força do acordo escrito mencionado em 6, os AA ajustaram com o Réu Banco a entregar-lhe a quantia de 11.091,65 euros, com uma compensação à taxa nominal fixa de 7.573, no valor total de 13.953,60 euros, em 72 prestações mensais e sucessivas no valor de € 193,80 (cento e noventa e três euros e oitenta cêntimos), devendo esta quantia mensal ser debitada na Conta n.º (…) da Caixa Geral de Depósitos.

8-A quantia de 11.091,65 euros foi creditada pelo Réu Banco numa Conta da Ré Auto (…) e destinava-se a completar o valor em falta até perfazer a quantia mencionada em 5.

9-A fim de poder circular com o veículo descrito em 3, a Ré Auto (…) passou aos AA. um documento de circulação, pelo período de um mês, renovável.

10-No dia 14 de Julho de 2009, o A. (…) recebeu um escrito enviado por (…), onde este lhe dá conta que é o dono do veículo mencionado em 3 e que, pretende a restituição do mesmo no prazo de 10 dias.

11-A Ré Auto (…) adquiriu o veículo mencionado em 3 a (…), tendo este entregue o aludido veículo àquela.

12-(…) não entregou os documentos necessários para efectuar a transferência da propriedade do veículo mencionado em 3 para a Ré Auto (…) porque esta não restituiu a (…) a quantia a título de contraprestação pela entrega do veículo.

13-A Ré Auto (…) não restituiu os documentos necessários para efectuar o registo da propriedade em nome dos AA (do veículo mencionado em 3) nem ao Réu (…) nem ao autor (…), porque não os tinha.

14-O autor (…) contactou pessoalmente, três ou quatro vezes, a ré Auto (…) a solicitar os documentos, exigindo que a propriedade do veículo fosse transferida para o seu nome.

15-O Réu (…) não solicitou os documentos do veículo mencionado em 3 à Ré Auto (…), tendo inclusivamente transferido o dinheiro para a conta da Auto (…) sem que o registo estivesse feito ou assegurado em nome dos AA..

16-A Auto (…) recebia valores compreendidos entre os € 50,00 e os € 100,00 por cada cliente que celebrasse contrato de financiamento e desde que não se tratasse de margens de lucro reduzidas para a ré (…).

17-A ré Auto (…), para além do Réu (…), trabalhava com outras financeiras, nomeadamente com o Banco (…).

18-A Ré Auto (…) tinha publicidade no stand tanto do Réu (…) como do Banco (…), existindo panfletos e cartazes, em igualdade de circunstâncias.

19-Aquando da transferência da quantia mencionada em 8 para a conta bancária da Ré Auto (…), o Réu Banco (…) tinha conhecimento que aquela não era a dona do carro.

20-O Réu Banco assumiu o risco de transferir a quantia mencionada em 8 para conta bancária da Auto (…), para que esta, por sua vez, restituísse a quantia em falta a (…) e assim obter a documentação necessária para proceder ao registo do veículo mencionado em 3 em nome dos AA.

21-Os AA entregaram ao Réu Banco 53 das 72 prestações aludidas em 7.

22-Desde Janeiro de 2013 que os AA deixaram de entregar a quantia mensal de 193,80 euros ao Réu Banco (…).

23-No dia 9 de Abril de 2011, o A (…) interpôs uma acção declarativa de condenação n.º …/11.3TBVVC contra os ora RR, que correu termos neste Tribunal.

24-Na acção mencionada em 24, por decisão transitada em julgado no dia 14/03/2012, os RR foram absolvidos da instância por preterição de litisconsórcio necessário.

25-Os RR não podem circular com o veículo mencionado em 3 por não terem os documentos necessários.

26-Desde 2008 que a Ré Auto (…) era um ponto de venda do Réu Banco (…).



É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, salvo questões de conhecimento oficioso (art.º 639.º CPC).

Invoca o recorrente erro na apreciação da prova que determina alteração à matéria de facto contida aos pontos 19 e 20 da fundamentação de facto da decisão recorrida sustentando ainda que deve ser julgado provado o facto alegado no art.º 34.º da contestação.

O Tribunal recorrido julgou provado que «Aquando da transferência da quantia mencionada em 8 para a Conta bancária da Ré Auto (…) o Réu Banco (…) tinha conhecimento que aquela não era a dona do carro» (ponto 19) e que «o Réu Banco assumiu o risco de transferir a quantia mencionada em 8 para conta bancária da Auto (…), para que esta, por sua vez, restituísse a quantia em falta a (…) e assim obter a documentação necessária para proceder ao registo do veículo mencionado em 3 em nome dos AA» (ponto 20).

Entende o recorrente que tais factos devem ser julgados não provados.

No art.º 34.º da contestação o recorrente alegou que é facto do conhecimento público que os Stands de automóveis não registam a propriedade dos veículos que adquirem, de modo a não suportarem os custos emolumentares associados ao registo, já que têm a expectativa de não os manter na sua propriedade durante muito tempo.

Entendo o recorrente que esta factualidade deve ser julgada provada.

A decisão do Tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode, nomeadamente, ser alterada pela Relação se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 619.º-A, a decisão com base neles proferida.

O ponto 19 da fundamentação supra mencionado contém na verdade matéria de direito.

Afirmar-se que aquando da transferência da quantia mencionada em 8 para a conta bancária da Ré Auto (…) o Réu Banco (…) tinha conhecimento que aquela não era a dona do carro, implica uma tomada de posição acerca do regime da compra e venda, contrato em que a transferência de propriedade opera por mero efeito do contrato (art.º 874.º, 879.º CC)

O conteúdo útil da realidade que se afirma no mencionado ponto 19 é a de que aquando da transferência da quantia mencionada em 8 para a conta bancária da Ré Auto (…) o Réu Banco (…) tinha conhecimento que aquela não possuía os documentos necessários para proceder ao registo da propriedade em nome do A.

Esta factualidade resulta do depoimento da testemunha (…), antigo funcionário do R. Banco e que afirmou que ganha que foi a confiança na R. Auto (…), o Réu, quando os veículos vendidos pela Auto (…) ainda estavam registados em nome de terceiros, entregava directamente a esta última a quantia mutuada aos clientes, de modo a Auto (…) proceder ao pagamento da viatura ao titular originário e obter os documentos necessários para o registo de propriedade.

Mais esclareceu que esta conduta típica também foi a adoptado no caso dos autos.

Esta versão dos factos foi corroborada pelo legal representante da Auto (…).

Quanto à matéria de facto constante do ponto 20 da fundamentação da decisão recorrida (o Réu Banco assumiu o risco de transferir a quantia mencionada em 8 para a conta bancária da Auto …, para que esta, por sua vez, restituísse a quantia em falta a … e assim obter a documentação necessária para proceder ao registo do veículo mencionado em 3 em nome dos AA) afigura-se-nos estarmos perante matéria conclusiva.

Esta assunção do risco será porventura uma conclusão a retirar do quadro factual apurado, mas não pode, nesta sede, deixar de ser considerada matéria conclusiva pelo que se deverá ter por não escrita.

Entre ao AA e a R. Auto (…) foi celebrado um contrato de compra e venda tal como o define o art.º 874.º CC. Os seus elementos essenciais são dois: a determinação da coisa vendida e a estipulação do respectivo preço. A compra e venda é o contrato pelo qual, mediante um preço, se transmite a propriedade de uma coisa.

Uma vez celebrado o contrato de compra e venda, desencadeiam-se efeitos simultaneamente reais e obrigacionais. O efeito real consiste na transferência da propriedade da coisa, que se verifica no momento do contrato e por efeito deste, se ela aí estiver já identificada; os efeitos obrigacionais consistem o vendedor encontra-se obrigado, pelo contrato, a efectuar a entrega da coisa vendida e, por seu turno, o comprador está obrigado ao pagamento do preço.

No caso dos autos sobre a R Auto (…) impendia ainda a obrigação acessória de entrega dos documentos relativos à coisa vendida pois só assim e por imposição das normas contidas no art.º 5.º, n° 1, al. a) e b), n° 2 e n° 3, art.º 9° do Dec. Lei 54/75, de 12/02, art.º 7° do Código do Registo Predial, podiam os AA circular com o veículo que haviam adquirido o que equivale a dizer usar e fruir o seu direito (art.º 882.º, n.º 2, CC).

É ponto assente que a R Auto (…) não cumpriu a obrigação que sobre ela impendia e, como refere a decisão recorrida, mais que mora, ante o desinteresse inequívoco da Ré em proporcionar aos AA os documentos para legalizar o veículo, existiu definitivo incumprimento, não sendo razoável que os AA, impossibilitados de usar o veículo, por facto imputável à Ré Auto (…), a tivessem que interpelar admonitoriamente.

Assiste, pois, aos AA. o direito de resolução do contrato nos termos do art.º 801.º, n.º 2, CC.

A questão que então se coloca é a de saber qual a repercussão do incumprimento ou do cumprimento defeituoso por parte do fornecedor no contrato de crédito celebrado com o ora recorrente.

É pacífica a qualificação do contrato celebrado entre AA e R/recorrente como sendo um mútuo bancário.

Estamos no domínio do contrato de crédito ao consumo celebrado entre AA. e R/recorrente, contrato esse a que se aplica o regime previsto no DL 359/91, de 21 de Setembro.

A questão que nuclearmente se discute consiste em saber se o contrato de compra e venda e o contrato de mútuo, este celebrado entre o recorrente e os AA, estão ou não ligados por uma relação de interdependência sujeitos ao regime jurídico previsto no art.º 12.º, n.º 2, do Dec. Lei 359/91, de 21 de Setembro.

A subordinação do contrato de crédito em relação ao contrato de alienação no sentido de poder o credor ser demandado pelo consumidor em consequência de incumprimento contratual do fornecedor, está dependente da verificação cumulativa dos requisitos previstos no art.º 12.º, n.º 2 do citado DL 359/91.

De entre eles destaca-se o requisito previsto na alínea a) – o consumidor pode demandar o credor no caso de incumprimento ou de cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda por parte do vendedor desde que, não tendo obtido do vendedor a satisfação do seu direito exista (para além do mais que não importa agora considerar) entre o credor e o vendedor um acordo prévio por força do qual o crédito é concedido exclusivamente pelo mesmo credor aos clientes do vendedor para aquisição de bens fornecidos por este último.

O acordo deve, pois, ser prévio a qualquer dos Contratos, e ainda exclusivo.
Como refere Fernando de Gravato Morais, in contratos de Credito ao Consumo, pág. 255, este último elemento não só coloca entraves à aplicação do normativo, como suscita algumas questões relevantes. Quanto aos seus contornos, entendemos a exclusividade de modo alternativo, ou seja, é suficiente que uma das partes coopere unicamente com a outra. Reconhecemos, no entanto, que a hipótese mais comum é a de o vendedor manter relações estreitas com um só financiador e não a inversa.

Não raras vezes, porém, o fornecedor colabora com mais do que um credor e o consumidor não reconhece, nem sequer lhe é comunicado, o tipo de relação existente entre dador de crédito e vendedor, o que traz dificuldades acrescidas em sede probatória, já que lhe cabe demonstrar a exclusividade.

A norma, em razão desta inusitada imposição, tem uma menor aplicação pelos tribunais, não resolve os inúmeros problemas (historicamente documentados) dos consumidores a crédito e reflecte uma realidade que não se acolhe.

Que o contrato de compra e venda e o contrato de mútuo, este celebrado entre o recorrente e os recorridos, estão ligados por uma relação de interdependência sujeitos ao regime jurídico previsto no art.º 12.º, n.º.2, do Dec. Lei 359/91, de 21/9, é conclusão que se retira da matéria de facto apurada nos pontos 8, 15, 16, 18 e 26 supra.

A sujeição deste contrato à disciplina do mencionado diploma legal passa por analisar o requisito da exclusividade nos termos supra enunciados.

Embora se reconheça que o advérbio “exclusivamente”, constante na alínea “a)” da referida norma, numa interpretação literal, possa suscitar algumas reservas (embora se não compreenda bem a sua razão de ser...), entendemos que a “ratio” e os fins da norma – e do regime legal em que se insere (trata-se afinal, da defesa do consumidor…) – justificam plenamente, no caso em apreço, uma interpretação restritiva, valorando-se, assim, de forma especial, os elementos sistemático e teleológico.

Por outro lado, não podemos deixar de notar que, sendo o regime do DL Nº 359/91 um regime especial, que visa a especial protecção do consumidor, interpretado à letra, como se referiu, acabaria por ter um resultado menos favorável ao consumidor do que aquele que resultaria da aplicação das normas gerais.

E o que se pode concluir, face ao estatuído no n.º 1 do art.º 428.º do Código Civil, pois, na concreta situação dos autos, a mesma deve ser configurada como se um só contrato (trilateral) houvesse. Assim, neste complexo quadro jurídico, é inegável que o financiamento efectuado pelo banco apelado só se justifica e assume razão de ser na medida em que há efectiva aquisição do bem financiado. Não havendo entrega do bem, em desconformidade com uma das “componentes” contratuais, deixa de se justificar o conjunto de obrigações resultantes do contrato de mútuo, tomando-as absurdas, iníquas e injustificáveis face ao próprio senso comum.

Note-se que a entrega pelo banco do valor financiado foi feita directamente ao vendedor, no quadro das relações comerciais entre ambos, numa actuação comercial previamente concertada, pelo que se nos afigura razoável que o risco corra por conta do financiador e não pela parte mais desprotegida (e prejudicada!) no negócio.

Esta é a interpretação restritiva da norma sustentada no Ac. da R.L de 23-02-2006 (www.dgsi.pt), interpretação essa que sufragamos.

Concluímos, pois, que, in casu, a resolução da compra e venda permite fazer operar a resolução do crédito.

O recorrente invoca ainda o abuso de direito por parte dos AA porquanto tendo o contrato de crédito sido celebrado em 10 de Julho de 2008 só em Abril de 2011 é que estes lhe manifestaram desagrado e desconforto, sendo ainda certo que até à data os AA cumpriram 53 das 72 prestações acordadas criando no recorrente a convicção de que tudo estaria bem com o contrato e que nenhum vício havia a apontar.

A demanda do credor supõe a não satisfação do seu crédito junto do fornecedor.

Está em causa nos presentes autos o não cumprimento de deveres laterais ou acessórios por parte do vendedor (a não entrega dos documentos relativos ao veículo).

Está provado que o A. (…) contactou pessoalmente três ou quatro vezes a R Auto (…) a solicitar os documentos, exigindo que a propriedade do veículo fosse transferida para o seu nome, ou seja, em cumprimento de um dos pressupostos da aplicação do regime previsto no art.º 12.º, n.º 2, do Dec. Lei 359/91, de 21/9 o A. como atitude prévia, encetou as diligências com vista ao cumprimento do contrato junto do fornecedor. Só em momento posterior (e antes de intentar a presente acção) accionou o ora recorrente tendo tal acção terminado com uma decisão de forma.

A figura do abuso de direito está na lei para tornar mais ético o nosso ordenamento jurídico, com vista a impedir a conjugação de forças antijurídicas que, por vezes, a imposição fria e rígida da lei possa levar a cabo, em confronto com o ideal de justiça que sempre deve andar, indissoluvelmente ligado, à aplicação do direito e dentro da máxima “perde o direito quem dele abusa” e em oposição ao velho adágio romano “qui suo jure utitur neminem laedit”; por outras palavras, o instituto do abuso de direito, como princípio geral moderador dominante na globalidade do sistema jurídico, apresenta-se como verdadeira válvula de segurança vocacionada para impedir ou paralisar situações de grave injustiça que o próprio legislador preveniria se as tivesse previsto, de tal forma que se reveste, ele mesmo, de uma forma de antijuricidade cujas consequências devem ser as mesmas de qualquer acto ilícito (Ac. STJ, de 16 de Dezembro de 2010, in www.dgsi.pt).

Existe abuso do direito “(…) quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos, apoditicamente, ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente com intenção de prejudicar ou comprometer o gozo do direito de outrem ou de criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências a suportar por aquele contra o qual é invocado.

‘Como figura integradora de comportamento típico de abuso do direito poderá mencionar-se a do “venire contra factum proprium”; na sua estrutura, o venire pressupõe duas condutas da mesma pessoa, ambas lícitas, mas assumidas em momentos distintos e distanciados no tempo, em que a primeira (o “factum proprium”) é contraditada pela segunda (o “venire”) – Ac, STJ, de 15 de Setembro de 2011, in www.dgsi.pt.

Num quadro factual como o apurado nos autos em que o incumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação que impendia sobre o fornecedor do bem se traduziu na omissão de entrega dos documentos indispensáveis para a circulação da viatura adquirida, bem se compreende que o comprador tenha encetado várias diligências junto da R. Auto (…), antes de judicializar o conflito, até porque, numa primeira fase, o desapossamento dos documentos da viatura não impede a sua normal circulação com o recurso a documento emitido pelo vendedor, facto que se apurou ter acontecido.

Não se nos afigura, pois, que, in casu, a primeira conduta dos AA tenha sido contraditada pela segunda de modo a integrar a figura do abuso de direito, assim improcedendo, também quanto a este segmento do recurso, as conclusões do recorrente.

Por todo o exposto, acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.

Custas a cargo do recorrente.

Évora, 12/03/2015

Jaime Pestana

Paulo Amaral

Rosa Barroso