Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
25/21.2PEEVR.E1
Relator: MOREIRA DAS NEVES
Descritores: SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
TRÁFICO DE SUBSTÂNCIAS ESTUPEFACIENTES
EXIGÊNCIAS MÍNIMAS DE PREVENÇÃO GERAL
Data do Acordão: 11/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I. A suspensão da execução da pena de prisão constitui, matricialmente, uma solene advertência ao condenado, que agrega à condenação e ao cumprimento dos deveres a ela ligados a ameaça da prisão efetiva (como a espada de Dâmocles pendendo sobre a sua cabeça), preconizando um efeito sobre o seu comportamento futuro, em benefício da reintegração social do agente.

II. A sua aplicação assenta num risco prudencial sobre a personalidade do arguido, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior à prática do crime e as circunstâncias deste.

III. Fatores essenciais são: a capacidade da pena concreta apontar ao arguido o rumo certo no domínio dos valores prevalecentes na sociedade,impondo-lhe num sentido pedagógico e autorresponsabilizante o seu comportamento futuro; e a capacidade dele para sentir e compreender a ameaça da prisão, de molde a que ela exerça sobre si efeito contentor.

IV. A lei não arreda os casos de tráfico de substâncias estupefacientes desta pena de substituição, não se podendo, designadamente por razões de ordem moral ou fundadas em preconceito, excluir-se a sua aplicação.

V. Sem que isso signifique que não haja casos em que as circunstâncias objetivas ou subjetivas revelem necessidades mínimas de reprovação e prevenção do crime que sejam incompatíveis com tal resposta punitiva.

Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO
a. No 2.º Juízo (1) Central Cível e Criminal de … do Tribunal Judicial da comarca de …, procedeu-se a julgamento em processo comum perante Tribunal coletivo de AA, nascido a .. de … de 1974, com os demais sinais dos autos, a quem foi imputada a autoria de um crime de tráfico de substâncias estupefacientes, previsto no artigo 21.º, § 1.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro.

O arguido não apresentou contestação nem arrolou prova.

Procedeu-se a julgamento e a final o Tribunal proferiu acórdão, condenando o arguido pela prática, como autor, de um crime de tráfico de substâncias estupefacientes, previsto no artigo 21.º, § 1.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, cuja execução ficará suspensa por igual período, com regime de prova.

b. Inconformado, veio o Ministério Público interpor recurso, rematando as pertinentes motivações com as seguintes conclusões (transcrição):

«1. O arguido AA foi condenado pela prática, em autoria material, sob a forma consumada, de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelos artºs. 21º, nº 1, do Dec. Lei nº 1/93, de 22.01, na pena de prisão de 4 [quatro] anos e 6 [seis] meses de prisão, suspensa a sua execução por igual período de tempo e sujeita a regime de prova.

2. O Ministério Público aceita a medida da pena concreta aplicada ao arguido nos presentes autos, mas entende que essa pena deve ser efetiva. Com efeito,

3. Os crimes de tráfico de estupefacientes geram grande alarme e repulsa na comunidade, que reprova veementemente este tipo de comportamentos, geradores de lesões graves e permanentes nos consumidores dessas substâncias e, em simultâneo, geradores de generosos proventos económicos para os agentes desses ilícitos, pelo que são elevadas as necessidades de prevenção geral;

4. O arguido só cessou a prática dessa sua atividade devido à pronta intervenção das entidades policiais que o detiveram, em flagrante delito, logo no dia 02.07.2021, em poder de estupefacientes de diversa natureza e em quantidades já relevantes.

5. O arguido tem um antecedente criminal registado, pela prática de um crime de violência doméstica, numa pena de prisão suspensa na sua execução, por sentença proferida no dia 11.03.2021, data em que foi colocado em liberdade e, poucos dias depois, já estava a iniciar a prática dos factos que determinaram a sua condenação no presente processo.

6. Deste modo, entende-se que encetando o arguido o cometimento dos factos que determinaram a sua condenação em primeira instância neste processo, poucos dias após a sua condenação no Proc. nº 497/20.2PCSNT e a cessação da medida de coação de OPVH a que estava sujeito nesses autos, revelou que a sua condenação nesse processo, numa pena de prisão suspensa na sua execução, não foi suficiente para o afastar da prática de ilícitos penais graves, pelo que tendo voltado a delinquir logo de seguida, verifica-se que não é possível fundar o juízo de exigido na parte final do nº 1, do artº 50º do Cód. Penal.

7. As finalidades de prevenção geral e especial são elevadas e a sucessão de atos praticados pelo arguido após ter-lhe sido colocado em liberdade e condenado numa pena de prisão suspensa na sua execução evidencia que a simples censura do facto e a ameaça da pena de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades de prevenção, ao contrário do juízo formulado pelo Tribunal Coletivo, que se mostra contrário ao disposto no artº 50º, nº 1, do Cód. Penal.

Por tudo o exposto, concedendo provimento ao recurso e julgando como aqui preconizado, V. Exªs. afirmarão a JUSTIÇA!»

c. Recebidos o recurso o arguido respondeu, aduzindo, no essencial, o seguinte: «- Dos critérios decorrentes dos artº 70º e 71º do Código Penal, a pena também tem uma finalidade preventiva e não apenas repressiva e da primeira vez que o arguido se vê confrontado com a Justiça não nos parece legítimo concluir que a recuperação e ressocialização do Arguido seja possível com uma pena efetiva de prisão;

- E nos termos do artº. 50º, nº. 1 do C. P., o Tribunal deve suspender a pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada as finalidades da punição;

- A jurisprudência tem assim vindo a acentuar, que a suspensão da pena é uma medida penal de conteúdo pedagógico e reeducativo que pressupõe uma relação de confiança entre o tribunal e o arguido, estando na sua base um juízo de prognose social favorável ao condenado. - Ac. do STJ de 2002/jan/09- Recurso nº 3026/01-3ª.

- Tal juízo deverá assentar num risco de prudência entre a reinserção e a proteção dos bens jurídicos violados, refletindo-se sobre a personalidade do agente, as suas condições de vida, a sua conduta ante et post crimen e sobre todo o circunstancialismo envolvente da infração;

- A simples censura do facto e a ameaça da prisão são suficientes para realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição;

- O arguido tem um antecedente criminal de natureza diferente;

- Tem família de apoio, percurso empresarial e laboral e que é uma prova inequívoca da integração do arguido;

- O prognóstico favorável à suspensão da execução da pena está subjacente o vaticínio que não se repetirá, porque se tratou um episódio isolado no seu percurso de vida;

- Assumiu por inteiro os factos e teve oportunidade de esclarecer e confessar outros factos que não constavam do libelo acusatório;

– O douto acórdão não merce qualquer reparo.»

d. Neste Tribunal Superior o Ministério Público emitiu parecer, pronunciando-se doutamente sobre as circunstâncias do caso, observando que o Tribunal recorrido fez uma adequada interpretação dos critérios normativos contidos nas disposições conjugadas dos artigos 40.º, § 1.º, 50.º e 70.º e 71.º, § 1.º e 2.º CP. E que a pena aplicada teve em conta os antecedentes criminais, mas limitada pela culpa, como tem que ser. Atendeu à necessidade da reintegração do arguido, considerando que essa reintegração ainda é possível fora do ambiente prisional, o que se lhe afigura suficiente para acautelar a tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto, pelo que entende deverá confirmar-se o acórdão recorrido.

e. No exercício do contraditório previsto no § 2.º do artigo 417.º CPP nada se acrescentou.

Os autos foram aos vistos e à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1.Delimitação do objeto do recurso. O objeto do recurso penal é delimitado pelas conclusões da respetiva motivação – artigos 403.º, § 1.º, e 412.º, § 1.º CPP. Nessa sequência, a única questão suscitada pelo recorrente respeita à suspensão da pena de prisão aplicada.

2. No acórdão recorrido deram-se como provados os seguintes factos:

«1) Em dia não apurado, mas situado entre 11 de março de 2021 e 2 de julho de 2021, o arguido deslocou-se à cidade de … e entregou heroína e cocaína a BB em quantidade não apurada, pela qual recebeu pelo menos 400€.

2) Em dia não apurado, mas situado entre 11 de março de 2021 e 2 de julho de 2021, o arguido deslocou-se à cidade de … e entregou heroína e cocaína a BB.

3) No dia 2 de Julho de 2021, pelas 12H00, na Avenida …, em …, o arguido detinha: no interior de um saco de plástico: duas placas de canábis (resina), com o peso de 186,365 gramas, com um grau de pureza de 25,5 %, equivalente a 950 doses individuais; num embrulho de plástico colocado junto da zona genital: 18,523 gramas de cocaína com um grau de pureza de 54,3 %, equivalente a 50 doses individuais; e 28,242 gramas de heroína, com um grau de pureza de 13,5 %, equivalente a 38 doses individuais.

4) Além do produto estupefaciente mencionado, o arguido tinha na sua posse três notas de 20€ e uma nota de 5€ perfazendo a quantia total de 65€ em notas do Banco Central Europeu, um telemóvel … de cor preta com o respetivo cartão SIM e IMEIs n.º … e … e um telemóvel … de cor branca com o respetivo cartão SIM e IMEI n.º ….

5) Ao atuar da forma descrita, com conhecimento das características e natureza dos produtos estupefacientes – cocaína, heroína e haxixe - que detinha, cedeu e vendeu a terceiro, o arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente e com esse propósito concretizado.

6) O arguido bem sabia que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida.

Mais se provou no tocante às condições económicas e pessoais do arguido:

7) O arguido é natural de …, o seu processo de desenvolvimento decorreu no seio do agregado de origem, no qual beneficiou de em enquadramento familiar descrito como harmonioso, destacando-se a existência de laços de afetividade e solidariedade intergeracional.

8) Integrou uma fratria de seis elementos, os quais se dispersaram pela Europa. Tem duas irmãs na …, um irmão na … e outra em …. Um dos irmãos faleceu há 15 anos, em …, onde se encontrava emigrado.

9) AA frequentou o ensino até ao 6.º ano de escolaridade. Apoiou a família na atividade que esta desenvolvia, criação de gado, cultivo de terras e comercialização de produtos hortícolas, de carne e pão, dedicando-se ao início da idade adulta ao comércio, inicialmente de vestuário e posteriormente de peças para automóveis.

10) Veio para Portugal pela primeira vez aos 23 anos, aqui adquiria a mercadoria que transacionava. Foi mantendo o negócio entre … e …, deslocando-se com frequência entre os dois países.

11) A permanência em … foi condicionada por dois fatores: o apoio aos progenitores, por se constituir o único descendente em …; e o acompanhamento das filhas, as quais se mantinham a residir no respetivo país. Após o falecimento dos pais e a vinda das filhas para Portugal, onde se integraram no ensino, AA decidiu fixar-se em Portugal, em 2017, mantendo-se desde então integrado no agregado de uma tia, CC.

12) Duas das descendentes frequentam o ensino superior, uma está emigrada em … e duas encontram-se a trabalhar em ….

13) No país, o arguido trabalhou na construção civil, ainda que sem contrato legal. Apenas em 2020 começou a reunir condições para regularizar a respetiva permanência em solo português, situação que foi revertida pelo advento da pandemia e subsequente períodos de confinamento.

14) Na altura, a união afetiva que mantinha não resistiu à vivência comum em confinamento, no espaço habitacional arrendado no início de abril/2020, altura em que as divergências do casal potenciadas pela ingestão alcoólica, contribuíram para a eclosão de violência na relação, que desencadeou o processo crime n.º processo n.º 497/20.2PCSNT no âmbito do qual AA sofreu condenação. No decurso da medida de coação que lhe foi aplicada, de OPHVE, entre maio de 2020 e março de 2021 não existiram incumprimentos dos seus termos.

15) A atual posição processual do arguido, a pedido deste, não é do conhecimento de todos os familiares, nomeadamente de quatro das suas filhas, uma vez que a situação que vivencia o constrange e envergonha.

16) O arguido apresenta um comportamento institucional adaptado, revelando-se cumpridor das normas e regras inerentes à vivência penitenciária.

17) Completou um Curso de Informática e frequenta Curso de Artes.

18) Beneficia de apoio familiar e visitas regulares da respetiva companheira, DD e de contactos regulares com a tia junto de quem tem residido.

19) À data da prisão, e, ainda que mantivesse como residência oficial e de contacto, a morada de sua tia em …, …, AA encontrava-se a residir com a companheira, na habitação desta, em …, dando continuidade ao relacionamento afetivo que iniciaram durante o período em que permaneceu sujeito à medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, no âmbito do processo n.º 497/20.2PCSNT – maio de 2020 a março de 2021.

20) Este relacionamento afetivo é descrito pelo casal como afetivamente compensador.

21) AA encontrava-se a recomeçar a vida laboral, na área da construção civil e a retomar a atividade de comércio de peças auto, que adquiria em … e fazia venda em …, onde detém, segundo nos referiu, armazém para o efeito.

22) O relatório conclui: em avaliação geral consideramos que a arguido dispõe de competências para se submeter a regras e normas, demonstrando-se capacitado para compreender as decisões judiciais, nomeadamente as advenientes do presente processo.

23) O arguido já foi condenado: Por sentença proferida em 11.03.2021, transitada em julgado a 12.04.2021, no processo n.º 497/20.2PCSNT, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de …J… pela prática, em 28.04.2020, de um crime de violência doméstica , previsto e punido pelos artigo 152.º, n.º1, alínea b) e n.º2, do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por 4 anos, sujeita ao regime de prova, e na pena acessória de proibição de contactos com a vítima.»

3. Apreciando.

3.1 Da suspensão da execução da pena de prisão

Insurge-se o recorrente contra a suspensão da execução da pena de 4 anos e 6 meses de prisão, aplicada ao arguido pela prática de um crime de tráfico de substâncias estupefacientes, previsto no artigo 21.º, § 1.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro (e não de tráfico de menor gravidade, conforme por lapso de escrita se refere no recurso).

Considera serem de tal modo elevadas as necessidades [«finalidades»] de prevenção geral e especial, em razão de o ato ilícito praticado (tráfico de substâncias estupefacientes) o ter sido logo após o arguido ter sido colocado em liberdade, no âmbito de outro julgamento com condenação em pena de prisão suspensa na sua execução (por violência doméstica). Daí derivando que a simples censura do facto e a ameaça da pena de prisão, contrariamente ao preconizado no artigo 50.º, § 1.º CP, não realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Sobre este fundamento ponderou-se no acórdão recorrido o seguinte:

«Considerando que o arguido tem antecedentes criminais mas por crime de diversa natureza, em pena de prisão suspensa na sua execução, que o período da sua atuação foi circunscrito a um curto período de tempo [menos de 4 meses], que não detinha uma qualquer estrutura organizada para a atividade do tráfico, mantém ligação estreita aos filhos e está inserido no agregado familiar da tia, entendemos que, in casu, é ainda possível formular um juízo de prognose favorável e que a ameaça de prisão se afigura suficiente e adequada à obtenção dos efeitos pretendidos pela punição, desde que sujeita a regime de prova.

Pelo exposto determina-se, por igual período de tempo, a suspensão da pena de quatro anos e seis meses de prisão aplicada ao arguido, a qual, porém, deverá sujeitar-se a regime de prova.»

Deverá recordar-se que também em matéria de escolha e medida da pena (incluindo naturalmente a ponderação relativa à mobilização de pena de substituição), o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico. Isto é, o recurso é um meio gizado para corrigir erros de procedimento ou de julgamento, que assinalados pelos recorrentes, importe reparar. No respeitante à sindicabilidade da pena aplicada, a legitimidade do Tribunal ad quem para alterar o decidido, cinge-se, pois, ao patamar da deteção de um desrespeito pelos princípios ou pelas regras norteadoras das operações de escolha e determinação impostas pela lei, sem que isso implique a compressão da margem de apreciação livre reconhecida ao Tribunal a quo enquanto componente própria do ato de julgar. (2)

Os argumentos que o recorrente sumariou nas conclusões da motivação do recurso em nada abalam os fundamentos em que assentou o decidido, por estes estarem bem arrimados na base normativa em que tal juízo assentou.

Vejamos porquê.

Dispõe o artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal que: «o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.»

No ordenamento jurídico português a suspensão da execução da pena de prisão é uma verdadeira pena (e não uma simples modalidade da execução da pena de prisão). Tendo por isso um conteúdo autónomo de censura, medido à luz de critérios gerais de determinação da pena concreta (artigo 71.º), assente em pressupostos específicos, sendo na sua categorização dogmática uma pena de substituição, isto é, uma pena que se aplica na sentença condenatória em vez da execução de uma pena principal concretamente determinada.(3) Assenta em dois pressupostos básicos, sendo um de natureza formal (a medida concreta da pena imposta ao agente não pode ser superior a cinco anos de prisão); e outro de cariz material, constituído por um juízo de prognose favorável acerca da ressocialização do arguido em liberdade (de desnecessidade de cumprir efetivamente a pena de prisão), a realizar no momento da condenação, quando se tem de escolher e fixar a medida da pena.

Constitui, matricialmente, uma solene advertência ao condenado, que agrega à condenação e ao cumprimento dos deveres a ela ligados a ameaça da prisão efetiva (como a espada de Dâmocles pendendo sobre a sua cabeça), preconizando um efeito sobre o seu comportamento futuro, em benefício da reintegração social do agente. A sua aplicação assenta, pois, num risco prudencial (4) sobre a personalidade do arguido, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior à prática do crime e as circunstâncias deste, concluindo-se que a simples censura do facto e a ameaça da execução da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. E constitui um poder-dever, i. e. um poder vinculado do julgador, o qual deverá decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade e com os matizes que se afigurarem mais convenientes para a realização daquelas finalidades, sempre que se verifiquem os respetivos pressupostos, impregnando esta pena um conteúdo reeducativo e pedagógico. Ao Tribunal de julgamento exige-se, pois, a ponderação de todos os elementos disponíveis que possam sustentar a conclusão de que o facto ilícito praticado terá sido como que um acidente de percurso e de que a solene advertência, que constitui a condenação e a ameaça da prisão, terá inevitável reflexo sobre o comportamento futuro do agente, em benefício da sua reintegração social.

Fatores essenciais são: a capacidade da pena concreta apontar ao arguido o rumo certo no domínio dos valores prevalecentes na sociedade, impondo-lhe num sentido pedagógico e autorresponsabilizante o seu comportamento futuro; e a capacidade dele para sentir e compreender a ameaça da prisão, de molde a que ela exerça sobre si efeito contentor. O seu ponto fulcral é o prognóstico favorável de que o condenado encetará um modo de vida afastado da prática de crimes, assentando este num juízo de probabilidade fundada; em cujo contraponto surge o prognóstico desfavorável, o qual emergirá quando num juízo quase seguro puder predizer-se a reincidência. (5)

Ensina Jorge de Figueiredo Dias (6) que «o que está em causa não é qualquer certeza, mas a esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser lograda, o tribunal deve encontrar-se disposto a correr um certo risco - digamos: fundado e calculado - sobre a manutenção do agente em liberdade. Havendo, porém, razões sérias para duvidar da capacidade do agente de não repetir crimes, se for deixado em liberdade, o juízo de prognose deve ser desfavorável e a suspensão negada.»

De acordo com o princípio vertido no artigo 40.º, § 1.º do CP, o juízo final exige que se acautelem as razões de prevenção geral positiva, isto é, que a suspensão da pena não comprometa a manutenção da confiança da comunidade na ordem jurídica e na norma penal que foi violada.

Ora, nesta cogitação só cabem questões de legalidade, sendo de arredar quaisquer asserções morais ou de puro preconceito. E, com ressalva do devido respeito, a base argumentativa do recurso parece estribar-se nisso mesmo, conforme revela a seguinte afirmação contida na motivação recursiva: «os crimes de tráfico de estupefacientes geram grande alarme e repulsa na comunidade, que reprova veementemente este tipo de comportamentos, potenciadores da produção de lesões graves e permanentes nos consumidores dessas substâncias e, em simultâneo, geradores de generosos proventos económicos para os agentes desses ilícitos.»

Daqui parece concluir o recorrente (implicitamente) que nesta área da criminalidade não deve ser mobilizada aquela pena de substituição!

Sucede, porém, que a lei não faz essa distinção. Sendo que só as valorações integradas no referente normativo importam neste contexto.

Não se olvida o alerta de Jorge de Figueiredo Dias (7) de que em certos casos a suspensão da execução da prisão não dever ser decretada, se a ela se opuserem necessidades mínimas de reprovação e prevenção do crime. Isto é, se se interpuserem «exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico.

Só por estas exigências se limita – mas por elas se limita sempre - o valor as socialização em liberdade, que ilumina o instituto em análise».

Sucede que as circunstâncias que rodearam a prática do ilícito e sobretudo o modo como o arguido assumiu a sua responsabilidade (8), com isso evidenciando o seu arrependimento sincero, não parece ser este um desses casos. Em jeito de remate consigna-se o que se nos afigura essencial: o recorrente não indica nenhuma razão concreta que contrarie o bem fundado juízo (extratado supra) da decisão tomada pelo Tribunal coletivo, tanto mais que, prudentemente, em vista dos objetivos gizados pela suspensão decretada, esta se fez acompanhar de um regime de prova (artigo 50.º, § 2.º, 53.º e 54.º CP).

Daí que consideremos que o recurso não é merecedor de provimento.

III – DISPOSITIVO

Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

a) Negar provimento ao recurso e, em consequência, manter integralmente o doutro acórdão recorrido.

b) Sem custas.

Évora, 8 de novembro de 2022

J. F. Moreira das Neves (relator)

Maria Clara Figueiredo

Fernanda Palma

---------------------------------------------------------------------------------------

1 A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen juris do Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, sendo por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ).

2 Cf. neste sentido cf. Ac. TRÉvora, de 22/4/2014, proc. n.º 291/13.7GEPTM.E1, Des. Ana Barata Brito; Decisão Sumária de 20fev2019, TRÉvora, proc. 1862/17.8PAPTM.E1, Des. Ana Brito; e Ac. TRÉvora, de 26abr2022, proc. 10/19.4GAGDL.E1, Des. Gomes de Sousa. Neste sentido também Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral II – As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas – Editorial Notícias, pp. 197.

3 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas – Editorial Notícias, 1993, pp. 90-91; e Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, Almedina, 2020 [reimpressão da edição de 2017], pp. 30.

4 Hans-Heirich Jescheck y Thomas Weigend, Tratado de Derecho Penal – Parte General, Comares editorial, 5.ª edición (corregida y ampliada), 2002, pp. 902

5 Neste exato sentido Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas – Editorial Notícias, 1993, pp. 343-344; e Hans-Heirich Jescheck y Thomas Weigend, Tratado de Derecho Penal – Parte General, Comares editorial, 5.ª edición (corregida y ampliada), 2002, pp. 902.

6 Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas/Editorial Notícias, pp. 344.

7 Jorge de Figueiredo Dias, Ob. cit, pp. 344.

8 Se bem estes factos constem apenas da motivação do decidido! Ora, sendo eles, como são, factos relevantes para a escolha e medida da pena deveriam integrar o acervo factológico provado (artigo 71.º, § 2.º, al. e) CP).