Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1243/17.3T8STB.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
ACTO MÉDICO
HOSPITAL
SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE
Data do Acordão: 11/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:
I - A questão da competência material deve ser resolvida tendo em conta a relação jurídica a discu­tir na ação, mas à luz do “retrato”, da estrutura­ção concreta apresentada pelo autor, e, logicamente, dando especial aten­ção à natureza intrínseca e aos fundamentos da pretensão deduzida, embora, sem avaliar o seu mérito, isto é, sem logo apre­ciar se o lesado tem ou não razão face ao direito substantivo.
II - Decorre do artigo 1.º, n.º 5, da lei 67/2007, de 31 de dezembro, que «as disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas coletivas de direito público, (...), por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas coletivas de direito privado e respetivos trabalhadores, (...), por ações ou omissões que adotem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam regulados por disposições ou princípios de direito administrativo».
III - As normas que constituem o capítulo I do Regime Jurídico da Gestão Hospitalar (RJGH), aplicáveis aos estabelecimentos privados são integradas por princípios gerais a observar na prestação dos cuidados de saúde (art.º 4º), princípios específicos da gestão hospitalar (art.º 5º) e pelo conjunto de normas que definem os poderes do Estado, exercidos pelo Ministério da Saúde, em relação aos hospitais integrados na rede de prestação de cuidados de saúde (art.º 6º a 8º)».
IV - São da competência dos tribunais administrativos os litígios sobre a responsabilidade civil extracontratual dos hospitais privados que prestem cuidados de saúde no âmbito do Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia (SIGIC), em virtude da Convenção celebrada com a Administração Regional de Saúde para a prestação desses cuidados.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
BB instaurou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra CC e Hospital DD, pedindo que os réus sejam solidariamente condenados a pagar-lhe a quantia de € 40.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal, desde a citação até efetivo pagamento.
Alegou a autora, em síntese, no que à economia do recurso interessa, que padecia de um problema no joelho, tendo sido operada no Hospital DD pelo réu CC (1º réu), utilizando para esse fim um vale cirúrgico que lhe fora atribuído por parte do Ministério da Saúde.
Contestou o 1º réu, que desde logo invocou a exceção de incompetência material do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, alegando, em resumo, que ele próprio e o Hospital onde os serviços foram prestados não foram contratados privadamente pela autora, tendo a sua intervenção ocorrido a pedido da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, IP, pelo que, a responsabilidade ora sindicada, reger-se-á pelo regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado.
Mais alegou, que foi escolhido o Hospital DD para a realização da cirurgia da autora, porquanto existe um sistema para a gestão de inscritos para a realização de cirurgias, o qual permite a quem nele se inscrever receber cuidados de saúde, porém junto de prestadores privados, tendo sido o que ocorreu com a autora, a qual recebeu um vale cirúrgico e foi operada junto de um serviço privado, ao abrigo de uma convenção celebrada com uma pessoa coletiva pública, a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo.
Concluiu desse modo serem competentes para julgar a presente ação os tribunais administrativos.
A interveniente EE – Companhia de Seguros, S.A., admitida a intervir nos autos[1], subscreveu a matéria de exceção alegada pelo 1º réu na contestação.
Em resposta à exceção, contrapôs a autora que foi intervencionada junto de um serviço privado, pelo que a presente ação apenas compete aos tribunais judiciais e não à jurisdição administrativa, concluindo assim que deve ser julgada improcedente a exceção invocada.
No despacho saneador foi proferida decisão que julgou improcedente a exceção dilatória de incompetência material invocada pelos réus, considerando-se o Juízo Local Cível de Setúbal competente para a presente ação judicial.
Inconformado, o 1º réu apelou do assim decidido, tendo finalizado a respetiva alegação com as seguintes conclusões:
«1. A FF e o HOSPITAL DD integram o SNS, quando prestam cuidados de saúde a pacientes através do SIGIC, como é o caso da Autora.
2. A prestação de um serviço no âmbito do SNS é sempre um acto de gestão pública.
3. O facto do HOSPITAL DD e CC terem prestado cuidados de saúde à Autora, através do SIGIC no âmbito do SNS, determina que a relação jurídica criada entre Réus e Autora é uma relação jurídica administrativa.
4. Pelo que os Tribunais Administrativos e fiscais são competentes para apreciar o presente processo e o Juízo Local Cível de Setúbal do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal é incompetente absolutamente.
5. Ao decidir diferentemente, o Tribunal a quo violou o artigo 211.º, n.º 1 e 212.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, os artigos 64.º, 96.º e 577.º, al. a) do Código de Processo Civil (“CPC”), o artigo 80.º, n.º 1 da Lei de Organização do Sistema Judiciário (“LOSJ”), o artigo 4.º, n.º 1, al) i), g) e h) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (“ETAF”)».

Não se mostra que tenham sido apresentadas contra-alegações.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

II - ÂMBITO DO RECURSO
O objeto do recurso, delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigos 608°, n° 2, 635°, nº 4 e 639°, n° 1, do CPC), coloca como única questão a decidir, saber qual o tribunal materialmente competente (tribunal comum ou tribunal administrativo) para apreciar a responsabilidade civil decorrente de ato médico realizado no hospital réu (Hospital DD), ao abrigo da Convenção celebrada entre a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo e a interveniente FF, S.A. (proprietária do hospital), a qual tem como finalidade a adesão da interveniente ao Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para cirurgia (“SIGIC”).

III - FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Os factos e a dinâmica processual a considerar para a decisão do recurso são os que constam do relatório.

O DIREITO
É sabido que o poder jurisdicional se encontra repartido por diversas categorias de tribunais, segundo a natureza das matérias das causas que perante eles se suscitam [cfr. artigos 209º e seguintes da Constituição da República Portuguesa (CRP)].
Nos termos do disposto no artigo 211º, nº 1, da CRP, os Tribunais Judiciais são os tribunais comuns em matéria civil e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens jurídicas.
Estabelece o artigo 40º, nº 1, da Lei nº 62/2013, de 26/8 - Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) -, que «os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» (vd. também o artigo 64º do CPC).
Por sua vez, o artigo 212º, nº 3, da CRP dispõe que «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».
Também o artigo 1º, nº 1, do ETAF estatui que «os tribunais administrativos e fiscais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações administrativas e fiscais».
A existência de várias categorias de tribunais supõe, naturalmente, um critério de repartição de competência entre eles, necessariamente de natureza objetiva, de acordo com a natureza das questões em razão da matéria, podendo, como tal, dar origem a conflitos de jurisdição.
A exemplo do que acontece com o pressuposto da legitimidade processual, a competência em razão da matéria afere-se pela natureza da relação jurídica tal qual o autor a apresenta na petição inicial. É enten­di­mento há muito firmado no STJ, no STA e no Tribunal de Conflitos[2], que a questão da competência material deve ser resolvida tendo em conta a relação jurídica a discu­tir na ação, mas à luz do “retrato”, da estrutura­ção concreta apresentada pelo autor, e, logicamente, dando especial aten­ção à natureza intrínseca e aos fundamentos da pretensão deduzida, embora, sem avaliar o seu mérito, isto é, sem logo apre­ciar se o lesado tem ou não razão face ao direito substantivo.
Não existem dúvidas que a presente ação se destina a exigir a responsabilidade civil extracontratual dos réus/intervenientes, emergente de ato médico realizado pelo 1º réu (CC) no Hospital DD (2º réu), propriedade da interveniente FF, por alegadamente o 1º réu, médico ortopedista, não ter atuado de acordo com as leges artis na cirurgia que realizou à autora, sendo que a autora recebeu do Ministério da Saúde um vale cirúrgico para realização da mencionada cirurgia, bem como dos hospitais que para o efeito poderia escolher, tendo a mesma optado pelo Hospital DD, no qual trabalhava o 1º réu.
Ora, «[p]or relação jurídico-administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjetivas. Pode tratar-se de uma relação jurídica intersubjetiva, como a que ocorre entre a Administração e os particulares, intra-administrativa, quando se estabelecem entre diferentes entes administrativos, no quadro de prossecução de interesses públicos próprios que lhes cabe defender, ou inter-orgânica, quando se interpõem entre órgãos administrativos da mesma pessoa coletiva pública, por efeito do exercício dos poderes funcionais que lhes correspondem. Por outro lado, as relações jurídicas podem ser simples ou bipolares, quando decorrem entre dois sujeitos, ou poligonais ou multipolares, quando surgem entre três ou mais sujeitos que apresentam interesses conflituantes relativamente à resolução da mesma situação jurídica (…). Por outro lado, não está excluída a ocorrência de litígios interprivados, não só por efeito do apontado alargamento da competência dos tribunais administrativos no âmbito da impugnação de actos pré-contratuais e da acção de contratos e da acção de responsabilidade civil extracontratual (artigo 4.º, n.º 1, alíneas g) e i), do ETAF)»[3].
A adoção, na reforma de 2002 do ETAF, deste critério de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais, como pedra de toque da determinação da competência material dos tribunais administrativos e fiscais, afastou o que até ali constava do anterior ETAF, aprovado pelo DL 129/84, de 27.04, designadamente da al. h) do seu art. 51º, que delimitava a competência material de tais tribunais em função da natureza pública ou privada do ato de gestão gerador do pedido.
Tal alteração de paradigma determinou um sensível alargamento das competências daqueles tribunais, como resulta da amplitude das várias alíneas do nº 1 do art. 4º do ETAF.
Escreveu-se no acórdão do STJ de 08.10.2015[4]:
«Com a lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, foi aprovado o “Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas”.
Estabelece o artigo 1.º, n.º 5, que «As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam regulados por disposições ou princípios de direito administrativo».
Resulta desta nova lei, que a jurisdição administrativa pode conhecer, em matéria de responsabilidade civil extracontratual, de litígios entre particulares. Necessário será que as ações ou omissões geradoras de responsabilidade sejam levadas a cabo «no exercício de prerrogativas de poder público», ou que sejam «reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo», isto é, desde que as pessoas coletivas de direito privado atuem em moldes de direito público deve aplicar-se às suas ações e omissões o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado.
Como diz Fernandes Cadilha, nestas situações, «a jurisdição administrativa intervém por via da extensão a pessoas colectivas de direito privado do regime substantivo de responsabilidade civil do direito público, o que sucede (...) quando actuem no exercício de prerrogativas de autoridade de poder público ou segundo um regime de direito administrativo. O que releva, nesse caso, é já a natureza jurídica pública da situação de responsabilidade e, por isso, a circunstância de as entidades em causa praticarem actos que possam integrar o conceito de gestão pública»[13]. No mesmo sentido se pronuncia Filipa Calvão, que considera estarem a coberto pelo regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado as pessoas coletivas de direito privado criadas por entidades públicas (sociedades anónimas de capitais públicos), bem como entidades privadas que exerçam poderes públicos (v.g., no âmbito de concessões de serviços públicos ou de parcerias público-privadas), assumindo estas responsabilidade direta pelos danos que causem no exercício da função administrativa.
O n.º 5 do artigo 1.º da Lei n.º 67/2007 dá sequência à reforma do ordenamento jurídico-administrativo iniciada em 1989 e, na prática, identifica-se com o princípio delineado no artigo 4.º, n.º 1, alínea i), do ETAF, que, recorde-se, atribuiu competência aos tribunais administrativos e fiscais para apreciar (e decidir) a responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público. Segundo Fernandes Cadilha, o dito n.º 5 do artigo 1.º da Lei n.º 67/2007 indica as situações em que as entidades privadas poderão ser submetidas a um regime de responsabilidade administrativa e, consequentemente, poderão ser demandadas perante os tribunais administrativos em acções de responsabilidade civil, nos termos do referido art. 4.º, n.º 1, al. i), do ETAF.
Efetivamente, nos termos do artigo 1.º, n.º 5, da Lei n.º 67/2007, são dois os fatores determinativos do conceito de atividade administrativa: 1 - o exercício de prerrogativas de poder público, o que equivale ao desempenho de tarefas públicas para cuja realização sejam outorgados poderes de autoridade; 2 - tratar-se de atividades reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.»
O Tribunal a quo entendeu que não existe qualquer relação jurídica administrativa, tendo fundado a sua decisão no entendimento de que a FF (proprietária do Hospital DD) não atuou munida de poderes públicos, não é um prestador de serviços públicos nem se integra no serviço nacional de saúde (SNS), tendo antes atuado no âmbito de poderes privados e, nessa medida, considerou que a FF responde civilmente por atos ilícitos praticados pelos funcionários que foram contratados por si, em regime privado e entendeu ainda que o 1º réu atuou enquanto funcionário daquela e não por via de qualquer relação com o Estado Português, ou seja, não é funcionário de um serviço público.
O recorrente, por sua vez, sustenta que a FF e o Hospital DD integram o SNS, quando prestam cuidados de saúde a pacientes através do Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia (SIGIC), como é o caso da autora, concluindo assim pela competência dos tribunais administrativos e fiscais para conhecer da presente ação.
Vejamos, pois, de que lado está a razão.
Resulta da “Convenção entre a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo e FF, S.A.”, cuja cópia foi junta como “Doc. 3” com a contestação, celebrada ao abrigo dos «poderes conferidos pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 79/2004, de 24 de Junho, para a prestação de cuidados de saúde no âmbito do Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia (SIGIC)», a qual se destinou «a regular as relações entre os outorgantes, tendo por base o estrito cumprimento do clausulado constante do Desp. n.º 24110/2004, de 29/10, publicado no Diário da República, II Série, de 23/11, assim como do Regulamento do SIGIC, aprovado pela Port. n.º 1450/2004, de 25/11» (cláusula 1ª, nº 1), que o Hospital DD, propriedade da FF, está integrado na rede nacional de prestação de cuidados de saúde, no que respeita ao atendimento de utentes do SNS relativamente às áreas de referenciação e acesso dos mesmos àquele Hospital.
Quer isto dizer que o utente do SNS não contrata com o Hospital DD, antes aí acede aos cuidados de saúde publicamente financiados porque aí foi referenciado no âmbito do sistema público, como acederia num qualquer outro hospital do SNS caso para aí alternativamente tivesse sido referenciado.
Ou dito de outro modo, quem recorre a um estabelecimento de saúde privado, que integra a rede nacional de prestação de cuidados de saúde, por via do SNS, tal como o fez a autora, fá-lo ao abrigo de uma relação jurídica administrativa de utente.
Sendo verdade que o SNS abrange todas as instituições e serviços oficiais prestadores de cuidados de saúde dependentes do Ministério da Saúde e dispõe de estatuto próprio, também não deixa de ser verdade que aquele Ministério e as administrações regionais de saúde podem contratar com entidades privadas a prestação de cuidados de saúde aos beneficiários do SNS sempre que tal se afigure vantajoso, nomeadamente face à consideração do binómio qualidade-custos e desde que esteja garantido o direito de acesso, pelo que a rede nacional de prestação de cuidados de saúde abrange os estabelecimentos do SNS e os estabelecimentos privados com que sejam celebrados contratos [cfr. arts. 1º e 2º da Lei nº 27/2002, de 08/11, a qual aprovou o novo regime de gestão hospitalar e procedeu à primeira alteração à Lei nº 48/90 de 24/08).
Dispõe o art. 1º da Lei 27/2002:
«1- A presente lei aplica-se aos hospitais integrados na rede de prestação de cuidados de saúde.
2 - A rede de prestação de cuidados de saúde abrange os estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde (SNS), os estabelecimentos privados que prestem cuidados aos utentes do SNS e outros serviços de saúde, nos termos de contratos celebrados ao abrigo do disposto no capítulo IV, e os profissionais em regime liberal com quem sejam celebradas convenções.
E o artigo 2º[5] estabelece:
1 - Os hospitais integrados na rede de prestação de cuidados de saúde podem revestir uma das seguintes figuras jurídicas:
a) Estabelecimentos públicos, dotados de personalidade jurídica, autonomia administrativa e financeira, com ou sem autonomia patrimonial;
b) Estabelecimentos públicos, dotados de personalidade jurídica, autonomia administrativa, financeira e patrimonial e natureza empresarial;
c) Sociedades anónimas de capitais exclusivamente públicos;
d) Estabelecimentos privados, com ou sem fins lucrativos, com quem sejam celebrados contratos, nos termos do n.º 2 do artigo anterior.
2 - O disposto no número anterior não prejudica a gestão de instituições e serviços do SNS por outras entidades, públicas ou privadas, mediante contrato de gestão ou em regime de convenção por grupos de médicos, nos termos do Estatuto do SNS, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 11/93, de 15 de Janeiro, podendo aderir à mesma outros profissionais de saúde, em termos a definir no despacho que autorize a convenção».
Por seu turno, no que respeita ao regime a que estão sujeitos os estabelecimentos privados, estabelece o art. 20º [capítulo IV do RJGH]:
«1º. Os hospitais previstos na al. d) do nº 1 do art.º 2º, regem-se:
a) No caso de revestirem a natureza de entidades privadas com fins lucrativos pelos respectivos estatutos e pelas disposições do Código das Sociedades Comerciais;
b) No caso de revestirem a natureza de entidades privadas sem fins lucrativos, pelo disposto nos respectivos diplomas orgânicos e subsidiariamente, pela lei geral aplicável;
2. O disposto no número anterior não prejudica o cumprimento das disposições gerais constantes do capítulo I».
Como se escreveu no acórdão do Tribunal de Conflitos 21.04.2016[6], «[t]emos assim que as normas que constituem o capítulo I do RJGH, aplicáveis aos estabelecimentos privados são integradas por princípios gerais a observar na prestação dos cuidados de saúde (artº 4º), princípios específicos da gestão hospitalar (artº 5º) e pelo conjunto de normas que definem os poderes do Estado, exercidos pelo Ministério da Saúde, em relação aos hospitais integrados na rede de prestação de cuidados de saúde (artº 6º a 8º)».
E da observação destas normas extrai-se que os hospitais que revistam a natureza de entidades privadas com fins lucrativos, que estejam integrados na rede de prestação de cuidados de saúde, por força de contratos celebrados ao abrigo do disposto no capítulo IV do Regime Jurídico da Gestão Hospitalar (RJGH), anexo à Lei nº 27/2002 de 02/11 têm a respetiva atividade disciplinada por um conjunto de regras que decorrem do facto da entidade privada ter sido chamada a desenvolver, em colaboração com o Estado, uma tarefa de interesse público[7].
Assim sendo e considerando os factos integradores da causa de pedir, afigura-se óbvia a conclusão que os mesmos foram praticados no âmbito de uma relação jurídica de prestação de cuidados de saúde em que o hospital privado - Hospital DD - em virtude da Convenção que a sua proprietária, FF, celebrou com a Administração Regional de Saúde, tem a sua atividade disciplinada por normas de direito administrativo.
Deste modo, e atento o disposto nos artºs 4º, nº 1, al. i), do ETAF e 1º, nº 5, da Lei nº 67/2007, a competência em razão da matéria para conhecer da presente ação pertence à jurisdição administrativa.
O recurso merece, pois, provimento, impondo-se a revogação da decisão recorrida.

Sumário:
I - A questão da competência material deve ser resolvida tendo em conta a relação jurídica a discu­tir na ação, mas à luz do “retrato”, da estrutura­ção concreta apresentada pelo autor, e, logicamente, dando especial aten­ção à natureza intrínseca e aos fundamentos da pretensão deduzida, embora, sem avaliar o seu mérito, isto é, sem logo apre­ciar se o lesado tem ou não razão face ao direito substantivo.
II - Decorre do artigo 1.º, n.º 5, da lei 67/2007, de 31 de dezembro, que «as disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas coletivas de direito público, (...), por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas coletivas de direito privado e respetivos trabalhadores, (...), por ações ou omissões que adotem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam regulados por disposições ou princípios de direito administrativo».
III - As normas que constituem o capítulo I do Regime Jurídico da Gestão Hospitalar (RJGH), aplicáveis aos estabelecimentos privados são integradas por princípios gerais a observar na prestação dos cuidados de saúde (art.º 4º), princípios específicos da gestão hospitalar (art.º 5º) e pelo conjunto de normas que definem os poderes do Estado, exercidos pelo Ministério da Saúde, em relação aos hospitais integrados na rede de prestação de cuidados de saúde (art.º 6º a 8º)».
IV - São da competência dos tribunais administrativos os litígios sobre a responsabilidade civil extracontratual dos hospitais privados que prestem cuidados de saúde no âmbito do Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia (SIGIC), em virtude da Convenção celebrada com a Administração Regional de Saúde para a prestação desses cuidados.

IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar a apelação procedente e, revogando a decisão recorrida, declaram o Juízo Local Cível de Setúbal incompetente, em razão da matéria, para conhecer da presente ação, com a consequente absolvição dos réus da instância.
Custas pela recorrida.
*
Évora, 22 de Novembro de 2018
Manuel Bargado
Albertina Pedroso
Tomé Ramião

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[1] Além desta seguradora, foi também admitida a intervir nos autos como parte principal, a FF, S.A., que é a proprietária do Hospital DD.
[2] Cfr., inter alia, o Acórdão do Tribunal de Conflitos de 23.09.2004, proc. 05/04, com largas referências doutrinais e jurisprudenciais sobre a matéria, o qual se encontra disponível, como os demais que venham a ser citados sem outra indicação, em www.dgsi.pt.
[3] Fernandes Cadilha, in Dicionário de Contencioso Administrativo, Almedina, 2006, pp. 117-118, citado no Acórdão do STJ de 14.01.2013, proc. 871/05.4TBMFRE.L1.S1.
[4] Proc.1085/14.8TBCTB-A.C1.S1.
[5] Este artigo foi revogado pelo art. 39º do Decreto-Lei nº 18/2017, de 10 de fevereiro, que produziu feitos a partir de 1 de janeiro de 2017 (art. 40.º), não sendo aqui aplicável a nova redação do preceito, a qual, em todo o caso, conduziria ao mesmo resultado.
[6] Proc. 06/15.
[7] Na decisão recorrida, embora se tenha citado o referido acórdão do Tribunal de Conflitos, entendeu-se que a solução do caso concreto, por estar em causa uma entidade hospitalar totalmente privada, teria de ter um tratamento diferente, pois no caso versado naquele aresto, o Hospital da Prelada para onde a paciente foi encaminhada no âmbito de uma Convenção semelhante à dos autos, pertencia «a uma IPSS com fins de saúde, administrada pela Santa Casa da Misericórdia». Mas sem razão, pois no que respeita ao regime de gestão a que estão sujeitos os hospitais privados, é indiferente que se trate de uma entidade privada com fins lucrativos ou sem fins lucrativos, uma vez isso não prejudica o cumprimento das disposições gerais constantes do capítulo I do RJGH (art. 20º, nº 2).