Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
465/05.4TBENT-A.E1
Relator: ANTÓNIO MANUEL RIBEIRO CARDOSO
Descritores: INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
GERENTE
PROCURAÇÃO
Data do Acordão: 06/16/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: COMARCA DO ENTROCAMENTO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Sumário:
1 - A outorga de procuração concedendo poderes de gerência, faz impender sobre a mandatária a obrigação de não praticar quaisquer actos que possam pôr em causa a solvência da sociedade, independentemente de exercer ou não de forma contínua ou esporádica a gerência ou de praticar ou não actos de gerência.
2 – Deve ser afectado pela qualificação da insolvência a mandatária referida que pouco tempo antes da apresentação à insolvência “compra” diversos bens à insolvente, sem que pague o respectivo preço, para mais sendo essa mandatária casada com o gerente da insolvente.
Decisão Texto Integral:
O Administrador da insolvente C…, LDA. deduziu incidente de qualificação de insolvência, concluindo pela sua qualificação como culposa, nos termos do disposto nas alíneas b), h) e i) do nº 2 do art. 186º do Cód. Insolvência e Recuperação de Empresas.
Fundamentou a sua conclusão:
- na venda de bens à requerida C…, procuradora do gerente da "C…, Lda.", não tendo a mesma procedido ao pagamento do respectivo preço.
- no incumprimento da obrigação da existência de contabilidade organizada, mantendo, ao invés, uma contabilidade fictícia ou dupla contabilidade, praticando os requeridos irregularidades com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira da insolvente, omitindo diversas operações na contabilidade.
- no incumprimento de forma reiterada dos deveres de colaboração.

O Digno Magistrado do Ministério Público emitiu parecer concordante com a qualificação como culposa da insolvência, bem como com as pessoas que deveriam ser por ela afectadas.

Os requeridos C… e M… deduziram oposição, embora admitindo a venda de bens à requerida C… e o seu não pagamento, as irregularidades na contabilidade e a recusa de entrega de bens.
Invocaram, porém, que a insolvente não pagou ao pai da requerida C…, entretanto falecido, diversos bens que este lhe vendeu, para além de que nunca pagou a renda do local onde funcionou a sua sede.

O Administrador da insolvente respondeu afirmando existir grande confusão entre o património da insolvente e o dos requeridos.

Notificada, a Comissão de credores pronunciou-se concordando com o parecer do Sr. Administrador.

Realizou-se a tentativa de conciliação prevista nos arts. 136° e 188° n.º 7, do CIRE, ouvindo-se os interessados relativamente à indicação de curador e vogais do conselho de família para a eventual qualificação da insolvência como culposa e decretamento da inabilitação dos requeridos.

Tendo-se entendido que os autos forneciam todos os elementos de facto necessários à decisão, foi proferida sentença decidindo qualificar «como culposa a insolvência da devedora "C…, Lda.", e consequentemente,
a) Determinar afectados com a presente qualificação os requeridos C… e M…;
b) Decretar a inabilitação dos requeridos pelo período de três anos;
c) Declarar os requeridos inibidos para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa pelo período de três anos;
d) [Decretar] a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelos requeridos e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos, aqui se incluindo os bens discriminados nas facturas 47 e 48, constantes respectivamente de fls. 14 e 15 dos autos».

Inconformada com esta decisão, interpôs a requerida C… o presente recurso, embora indicando-o como agravo, impetrando a revogação «do despacho… que condenou a recorrente como inabilitada, substituindo­-o por outro que ordene o prosseguimento do processo, com necessidade das partes produzirem prova».

O MP contra-alegou, pugnando pela manutenção do julgado.

O recurso foi admitido como agravo, com subida diferida e efeito devolutivo, decisão relativamente à qual a recorrente não reagiu.

Decorridos mais de 4 anos foi oficiosamente proferido novo despacho alterando o anterior, considerando que o recurso próprio é a apelação, com subida imediata e efeito devolutivo.
Porque o efeito fixado foi o devolutivo e havia já decorrido o período de três anos de inibição e inabilitação fixados na sentença, por se poder configurar uma situação de inutilidade superveniente da lide, foi a recorrente por despacho do relator, notificada para esclarecer se mantinha o interesse no recurso e, em caso afirmativo, em que consistia tal interesse, tendo a mesma respondido que mantinha o interesse no recurso “por mera questão de princípio e de justiça”.
Perante esta resposta, embora pouco esclarecedora, entendeu-se que o recurso deveria prosseguir e por isso foi recebido.

Atenta a simplicidade da questão, com a anuência dos Mmºs Juízes Adjuntos, foram os vistos dispensados, nos termos do art. 707º, nº 4 do CPC.

Formulou a apelante, nas alegações de recurso, as seguintes conclusões, as quais, como se sabe, delimitam o seu objecto [1] e, consequentemente, o âmbito do conhecimento deste tribunal:
“A) Os termos do processo devem prosseguir uma vez que o estado do mesmo não permite de imediato conhecer de imediato do mérito da causa;
B) Torna-se necessário produzir prova;
C) É necessário produzir-se prova para saber se a recorrente foi gerente;
D) Ou se praticou actos de gestão, não obstante o seu marido M… lhe ter outorgado procuração com poderes de gerência, sendo imperioso conhecer em que circunstâncias e por que motivos essa procuração lhe foi outorgada:
E) O facto da requerida ser casada com o requerido M…, de terem sido ambos sócios da sociedade, residirem na sede da insolvente e a outorga por M… à recorrente com a atribuição de poderes de gerência da insolvente não bastam para determinar a recorrente como inabilitada;
F) A citação da R. foi feita nos termos da lei.
G) O Meritíssimo Juiz "a quo" ao decidir sem a produção desta prova violou, entre outros, o art. 510 n.º 1, al. b) do C.P.C.”

ÂMBITO DO RECURSO – DELIMITAÇÃO
Face às conclusões formuladas, a questão submetida à nossa apreciação consiste, tão só, em saber se os autos fornecem todos os elementos necessários à decisão ou se deve ordenar-se o seu prosseguimento para produção de prova.

FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
O tribunal “a quo” julgou provados os seguintes factos [2]:
“A) No dia 12.08.2002 foi inscrito na Conservatória do Registo Comercial de Vila Nova da Barquinha o contrato de sociedade de "C…, Lda.", constituindo os seus sócios C… e M…, sendo a gerência atribuída a este último.
B) C… eram casados entre si aquando da constituição da sociedade "C…, Lda."
C) No dia 25.11.2002 foi inscrita na Conservatória do Registo Comercial de Vila Nova da Barquinha a cessão de quotas de M… a M…, mantendo aquele a gerência da sociedade.
D) No dia 20.12.2002 foi inscrita na Conservatória do Registo Comercial de Vila Nova da Barquinha a cessão de quotas de C… a M…, mantendo M… a gerência da sociedade.
E) No dia 20.12.2002 foi inscrita na Conservatória do Registo Comercial de Vila Nova da Barquinha a alteração do pacto social, passando a sociedade a designar-se "C…, Lda.", constituída pela única sócia M…, mantendo M… a gerência da sociedade.
F) No dia 31.01.2003 M… outorga procuração onde atribui poderes de gerência da sociedade a C…
G) No dia 02.04.2005, a sociedade forneceu a C… ao preço de € 4.248,00, IVA incluído, conforme factura n.º 47 e constante de fls. 14:
- uma viatura ligeira de mercadorias com a matrícula AX…,
- uma viatura ligeira de mercadorias com a matrícula …JB.
H) No dia 02.04.2005, a sociedade forneceu a C… ao preço de € 1.701,70, IVA incluído, conforme factura n.º 48 e constante de fls. 15:
- setecentos prumos metálicos.
- um compressor de marca "King" com o n.º de série 002445.
- um aspirador de tipo industrial de marca Wurth Master",
- um berbequim h 24,
- uma betoneira de 20 litros,
- uma rebarbadora eléctrica.
I) Os valores referidos em H) e I) não foram pagos à sociedade.
J) No dia 20.06.2005 o requerido M… apresentou a "C…l, Lda.” à insolvência.
L) Por sentença transitada em julgado, nos presentes autos n.º 465/05.4TBENT foi decretada no dia 26.07.2005, às 14.00 horas, a insolvência de "C…, Lda.", tendo sido publicado o correspondente anúncio no Diário da República n.º 170, III Série, p.19259, no dia 05.09.2005.
M) Por carta datada de 23.11.2005, dirigida a C… e por esta recebida no dia 29.11.2005, o Ex.mo Administrador da insolvente declarou "optar pela resolução dos actos consubstanciados nas facturas n.º 47 e 48 datadas de 2 de Abril de 2005", informando que aquela deveria proceder à entrega dos objectos referidos em H) e I).
N) Por carta datada de 30.11.2005, C… respondeu à carta referida em L), recusando a entrega dos objectos.
O) No dia 16.12.2005 o Ex.mo Administrador dirigiu-se à sede da sociedade "C…, Lda.", local onde vivem C… e M…, tendo ambos recusado a entrega dos objectos.
P) Da contabilidade da "C…, Lda." apenas consta como cliente devedor S….
Q) Na relação de devedores que a "C…, Lda." entregou juntamente com o pedido de apresentação à insolvência constam:
- Sérgio…,
- Isabel…,
- Anastácio….
R) Na relação de credores que a "C…, Lda." entregou juntamente com o pedido de apresentação à insolvência constam:
- P…, Lda.,
- C…, S.A.,
- S…, Lda.,
- W… Lda.,
- P…, Lda.
S) Na notificação judicial avulsa n." 219/0S.8TBENT, que correu os seus termos neste Tribunal Judicial do Entroncamento e que "C…, Lda." intentou contra Isabel…, a insolvente afirmou que aquela entregou a quantia de € 47.138,38. montante que não consta da contabilidade.”

O DIREITO
A recorrente assenta a sua discordância na tese de que, embora detentora de procuração que lhe foi outorgada pelo gerente da insolvente, outorgando-lhe poderes de gerência, nunca a exerceu ou praticou actos de gerência, o que pretende provar, requerendo, por isso, que os autos prossigam os seus termos.
Estabelece o art. 186º, nº 1 do CIRE que “a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto…”.
Ora, a recorrente estava munida de procuração concedendo-lhe poderes de gerência, pelo que sobre ela impendia a obrigação de não praticar quaisquer actos que pudessem por em causa a solvência da sociedade, independentemente de exercer ou não de forma contínua ou esporádica a gerência ou de praticar ou não actos de gerência.
Está provado que, apesar de detentora de procuração com poderes de gerência que lhe fora outorgada pelo gerente, seu marido e consigo residente, não se inibiu de “no dia 02.04.2005, ou seja, 2 meses e 18 dias antes do gerente, seu marido, ter apresentado a sociedade à insolvência, ter “comprado” à sociedade pelo preço de € 4.248,00, IVA incluído… uma viatura ligeira de mercadorias com a matrícula AX… e uma viatura ligeira de mercadorias com a matrícula …JB; e pelo preço de € 1.701,70, IVA incluído,… setecentos prumos metálicos, um compressor de marca "King" com o n.º de série 002445, um aspirador de tipo industrial de marca Wurth Master", um berbequim h 24, uma betoneira de 20 litros e uma rebarbadora eléctrica, montantes esses que nunca pagou à sociedade da qual tinha poderes de gerência.
Não há dúvida que aqueles valores contribuíram para a situação de insolvência da sociedade, cabendo tal actuação na al. d), do nº 2 do art. 186º do CIRE, sendo certo que, mesmo depois do negócio ter sido resolvido pelo Administrador da insolvência e de tal lhe ter sido comunicado e intimada a entregar aqueles bens, recusou-se expressamente a fazê-lo, sabendo, como não podia deixar de saber (art. 349º do CC), que com essa decisão prejudicava os credores da insolvente.
Entendemos, assim, ser perfeitamente irrelevante, saber se a recorrente praticou alguma vez actos de gerência ou se foi apenas o seu marido a fazê-lo. É que, tendo poderes de gerência, era gerente de direito e ao locupletar-se com os bens da sociedade, agravou a sua situação de insolvência, como referimos.
Como se referiu na douta decisão recorrida e que merece a nossa concordância, “considerando a união pelo casamento de ambos os requeridos e gerentes, o facto de ambos terem sido sócios da sociedade, residirem na sede da insolvente, a outorga por M… de procuração a C… com a atribuição de poderes de gerência da insolvente e o benefício comum que adveio da aquisição dos bens em apreço sem o pagamento do respectivo preço, conclui-se que os negócios em causa devem ser atribuídos a ambos os requeridos”.
Por outro lado, e como também se concluiu na douta decisão recorrida, “a recusa reiterada da recorrente na entrega dos bens não pode… deixar de se considerar como incumprimento reiterado dos deveres de colaboração com o Ex.mo Administrador”, deveres esses que sobre si impendiam na qualidade de gerente (por via da procuração que lhe fora outorgada).
A conduta da recorrente preenche, inquestionavelmente, os requisitos consignados no art. 186º, nº 2 als. d) e i) do CIRE, pelo que deveria ser declarada afectada pela qualificação da insolvência, nos termos em que o foi, sendo absolutamente irrelevante a prova dos factos pretendida.
Fornecendo, pelo referido, os autos os elementos necessários à decisão e sendo irrelevante a prova que pretende produzir, não há fundamento para se determinar o prosseguimento dos autos, como requerido.

Não merecendo censura a douta decisão recorrida, resta a esta Relação confirmá-la.

DECISÃO
Termos em que se acorda, em conferência, nesta Relação:
1. Em negar provimento ao recurso;
2. Em confirmar a douta decisão recorrida;
3. Em determinar que as custas fiquem a cargo da massa insolvente (arts. 303º e 304º do CIRE).
Évora, 16.06.2011
(António Manuel Ribeiro Cardoso)
(Acácio Luís Jesus Neves)
(José Manuel Bernardo Domingos) __________________________________________________
[1] Cfr. arts. 684º, n.º 3 e 690º, n.º 1 do Código de Processo Civil, os Acs. STJ de 5/4/89, in BMJ 386/446, de 23/3/90, in AJ, 7º/90, pág. 20, de 12/12/95, in CJ, 1995, III/156, de 18/6/96, CJ, 1996, II/143, de 31/1/91, in BMJ 403º/382, o ac RE de 7/3/85, in BMJ, 347º/477, Rodrigues Bastos, in “NOTAS AO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL”, vol. III, pág. 247 e Aníbal de Castro, in “IMPUGNAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS”, 2ª ed., pág. 111.
[2] Decisão que não vem impugnada.