Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1358/06.3TDLSB.E1
Relator: FERNANDO RIBEIRO CARDOSO
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
PRESTAÇÃO TRIBUTÁRIA DEDUZIDA
IVA
RECEBIMENTO
ABSOLVIÇÃO
COMPARTICIPANTE
Data do Acordão: 12/03/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
1 - O crime de abuso de confiança fiscal constitui crime de dano, pelo que se tutela o arrecadamento das receitas fiscais do Estado, diminuídas pela não entrega atempada de prestações tributárias deduzidas nos termos da Lei, ou que foram recebidas pelo agente que tinha a obrigação legal de as liquidar.

II - Para que o cometimento desse crime, quando se trate de prestações tributárias referentes a IVA, é necessário que fique demonstrado o efectivo recebimento do correspondente montante pelo sujeito passivo obrigado à sua entrega ao Estado.

Acordam, precedendo conferência, na 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório

No presente processo comum com intervenção de Tribunal Singular procedente do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Abrantes, os arguidos F., P. e “Sociedade de Construções…Lda., com os sinais dos autos, por sentença proferida em 19 de Junho de 2009, foram condenados nos seguintes termos:

“a) o arguido F. pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punível pelo artigo 105º, nº 1 da Lei nº 15/2001, de 5 de Junho, na pena de noventa dias de multa, à taxa diária de três euros , o que perfaz a quantia de duzentos e setenta euros.

b) a arguida P., pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punível pelo artigo 105º, nº 1 da Lei nº 15/2001, de 5 de Junho, na pena de noventa dias de multa, à taxa diária de três euros, o que perfaz a quantia de duzentos e setenta euros.

c) a arguida “Sociedade de Construções….. Lda.”, nos termos dos art. 7.º n.º1 e 12º nº1 e 3 da Lei 15/2001, de 5 de Junho, na pena de trezentos dias de multa, à taxa diária de três euros, o que perfaz a quantia de novecentos euros.

d) Condenados, solidariamente, os arguidos F. e P. no pagamento ao Estado Português da quantia global de quarenta e seis mil, oitenta e oito euros e quarenta e oito cêntimos, acrescida de juros de mora, desde a data do vencimentos desta quantia, até integral pagamento, à taxa legal, ficando esta obrigação de pagamento condicionada ao facto de não vir a ser instaurado processo de execução fiscal contra os arguidos, pessoas singulares, nem a administração fiscal conseguir cobrar, coercivamente, esta quantia, através do processo que corre contra a arguida sociedade.”

Inconformada, recorreu a arguida P., pedindo a sua absolvição, tendo formulado as seguintes conclusões (transcrição):

“1. A douta sentença recorrida, na modesta óptica da Recorrente, manifesta confusão entre as palavras deduzida e devida;

2. Refere a norma punitiva constante no número l do artigo 105. ° do Regime Geral das Infracções Tributárias, que a não entrega das quantias deduzidas é devidamente sancionada, pois estamos na presença de um crime de abuso de confiança fiscal;

3. No entanto, no caso em apreço, conforme oferece a douta sentença recorrida, não foi provado que a sociedade, também condenada, tivesse recebido as quantias referentes a Imposto sobre o Valor Acrescentado liquidado, o que corresponde inteiramente à verdade;

4. Alude a douta sentença, e muito bem, que na situação em apreço, os adquirentes dos serviços, deduziram o Imposto sobre o Valor Acrescentado liquidado em prejuízo para a Administração Fiscal, uma vez que este imposto não foi pago pela Recorrente;

5. Efectivamente, assim sucedeu, contudo este facto deve-se, quanto a nós, a um erro do legislador, pois bastava para que a situação não ocorresse, em nítido prejuízo do Estado, que o direito à dedução do imposto liquidado, de acordo com o constante na alínea a) do número l do artigo 19. ° do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, apenas pudesse ser deduzido após o seu pagamento à entidade que o liquidou;

6. Assim sendo, o Estado nunca ficaria lesado se a entidade que foi alvo da respectiva liquidação e posterior dedução, apenas pudesse efectuar esta, após o respectivo pagamento;

7. No entanto, na modesta óptica da Recorrente, o cerne da questão, deve-se ao facto da douta sentença, assim como o douto acórdão em que se estribou, confundir imposto devido com imposto deduzido;

8. No caso em apreço, ao contrário do que alude a douta sentença, a sociedade de que a Recorrente é sócia não deduziu qualquer imposto;

9. Aliás, apenas existe dedução nos impostos sobre o rendimento, nunca nos que incidem sobre a despesa, como é o caso do Imposto sobre o Valor Acrescentado;

10. Também se suporta a douta sentença na doutrina, socorrendo-se do Regime Geral das Infracções Tributárias, edição de 2008, da Áreas Editora, a página 741, dos Juízes Conselheiros Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, referindo, mais uma vez, prestação devida, quando naquela obra, é referido prestação deduzida;

11. Ou seja, a não ter existido a confusão de "devida" com "deduzida", com toda a certeza, não teria havido nenhuma condenação, uma vez que a Recorrente, assim como qualquer dos outros Arguidos, não receberam a quantia liquidada;

12. Ora, não recebendo a quantia liquidada, nunca poderiam inverter o título de posse;

13. Não invertendo o título de posse, nunca poderia a Recorrente, apoderar-se de nenhuma quantia pertença da Administração fiscal, não praticando, por isso, o crime de foi condenada.”

A Exma. Senhora Procuradora Adjunta respondeu ao recurso, nos termos que constam de fls.578 a 586, tendo concluído nos seguintes termos:

1ª - Resulta quer da motivação do recurso apresentado pela arguida, quer das respectivas conclusões, que a sua discordância é para com a lei e legislador e não para com o Mm° Juiz a quo, o qual se limitou a aplicar a lei com cuja redacção aquela discorda, estando em causa considerações meramente semânticas.

2ª - Tanto assim é que não invoca a recorrente qualquer dos vícios a que alude o art°410° do CPP, nem invoca que tenha sido violada alguma norma jurídica.

3ª - Ora, conforme resulta do n° 3, do art° 9° do Código Civil " Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados" e foi neste pressuposto que a lei foi aplicada, não podendo de resto o julgador abster-se de o fazer ainda que entendesse, o que não resulta em momento algum da douta sentença recorrida ter sido o caso, encerrar o preceito normativo invocado (art° 105° do RGIT) alguma obscuridade ou ambiguidade.

4ª - O que importa é que, à semelhança do que parece ser o entendimento dominante, não é necessário que se apure em que momentos o arguido foi recebedor das quantias referentes às operações que deram origem à liquidação do IVA, ou sequer se as recebeu, nem consequentemente, sendo tal omissão inconsequente, na medida em que no caso do IVA o arguido actua como substituto do devedor originário que é o adquirente dos bens ou serviços.

5ª - O arguido é, assim, "o sujeito a quem a lei comina o dever de praticar, em nome do Estado ou outro ente público, actos tributários em nome do credor estatal" - cfr. Alcindo Ferreira dos Reis - O Crime de Abuso de Confiança Fiscal - ou a razão de Estado contra a vontade da verdade?, pág. 83.

6ª - E mais adiante, na mesma página, refere o indicado Autor: "Nas situações de IVA, quem deve originariamente o imposto é o adquirente de um bem ou serviço. Porém, a lei vincula o transmitente desse bem ou serviço aos obrigados a liquidar (calcular) o montante que o adquirente (devedor original, porque, sobre ele, recai o sacrifício patrimonial) deve pagar de imposto, de cobrar deste último essa quantia e de a entregar ao Estado. Em princípio, para o Estado é indiferente que ele cobre ou não esse montante.

O Estado obriga-o sim a liquidar e a entregar essa quantia. Porque, a partir do momento da liquidação, o transmitente é que passar a ser, por substituição, o sujeito passivo – o obrigado a pagar o IVA ao Estado. "

7ª - Provado ficou que os arguidos estavam enquadrados no regime normal de periodicidade trimestral (art° 2° dos factos provados).

Assim sendo, por referência a cada trimestre estavam obrigados não só a enviar a declaração a que alude o art° 28°, n° l, al. c), do CIVA, mas igualmente os montantes do imposto, conforme liquidação por si feita, em obediência ao disposto no art° 26, n° l, do CIVA.

8ª - Ou seja, o montante relativo ao IVA é devido ao Estado a partir do momento em que é emitida a factura relativa à operação que a ele está sujeita e liquidado o respectivo quantitativo, independentemente de o contribuinte ser ou não recebedor da retribuição respeitante a essa operação (com ou sem o montante respeitante ao IVA).

9ª - O facto tributário é aqui instantâneo: logo que se verifica o elemento material, a transmissão do bem, a prestação do serviço, etc., surge o imposto, a obrigação de imposto, certa e exigível, não sendo então, conforme supra referido necessário que se apure em que momentos a arguida recebeu as quantias referentes às operações que deram origem à liquidação do IVA, ou sequer se as recebeu.

10ª - Se o devedor substituto não recebe do devedor originário as quantias que deve receber, deve accionar os mecanismos adequados para o reconhecimento desse não recebimento, para oportunamente "acertas as contas" com o credor Estado. O certo é que, anteriormente, está obrigado a entregar-lhe (ao Estado) as quantias que liquidou.

11ª - Tudo isto resulta dos termos da lei que veio a ser aplicada pelo Mm° Juiz, o qual, face à prova produzida, formulou a convicção que lhe permitiu, e bem, dar como provados os factos constantes da douta sentença e, bem assim, subsumi-los correctamente ao direito.

12ª - A douta sentença recorrida não violou, pois, qualquer disposição legal e deve ser mantida.”

O recurso veio a ser admitido por despacho proferido em 2.10.2009.

Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmo. Senhor Procurador da República emitiu parecer concordante com a posição assumida pelo Ministério Público na 1.ª instância, referindo ainda o seguinte:

A recorrente, como se alcança das conclusões da motivação do recurso (as quais definem e delimitam o respectivo objecto), não questiona a matéria de facto e no texto da decisão sindicada não se descortina qualquer contradição entre os factos provados entre si, entre estes e os não provados e entre uns e outros e a respectiva fundamentação; de igual modo não se vislumbra qualquer erro patente nem insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, pelo que os factos se consideram provados, nos exactos termos em que o tribunal de primeira instância assim os considerou.

Entende a recorrente que a sentença sindicada interpretou e aplicou erradamente o disposto no artigo 105°, n.º1, do RGIT. Sem razão, cremos.

Sumariamente, dir-se-á (convocando os termos da já aludida resposta do Ministério Público, oferecida na primeira instância) que da economia do normativo incriminador resulta, para que alguém incorra na prática do crime de abuso de confiança fiscal, não ser necessário que o montante deduzido a título de IVA tenha sido efectivamente recebido ou que lhe tenha sido dado um qualquer outro destino que não o legal: o recebimento/não recebimento e a apreensão, não fazem parte do tipo legal, visto tratar-se de um tipo especial relativamente ao do Código Penal.

E quanto à questão de a recorrente não poder ser condenada no pedido de indemnização civil, como foi, por contra ela correr processo de execução fiscal (facto que, provado ou não provado, não consta do elenco dos assim fixados na decisão aprecianda), a verdade é que, entre os factos que fundamentam o pedido de indemnização civil deduzido nestes autos e os que, hipoteticamente, serão causa de pedir no pretenso processo que corre termos pelas execuções fiscais, não existe o requisito de identidade de causa de pedir, já que o pedido aqui enxertado funda-se na prática de um tipo legal de crime e aqueloutro residirá no não pagamento pontual das obrigações fiscais (v.d., a propósito, o acórdão desta Relação de 11.2.2005, proc.2894/03-1, in http://www.dgsi.pt/jtre).

Deve, assim, ao recurso ser negado provimento, confirmando-se a sentença que dele é objecto.”

Foi cumprido o disposto no art. 417 n.º2 do CPP, não tendo a recorrente usado do direito de resposta.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.

II. Fundamentação:

Delimitação do âmbito do recurso.

Conforme Jurisprudência constante e pacífica, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso (cf. Ac. do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro).

No caso sub-judice, as questões que importa dirimir são apenas de direito e consistem em saber se:

a) Se a sentença recorrida incorreu em erro de interpretação e aplicação do n.º1 do art.105.º do RGIT, porquanto, não tendo resultado provado que tivessem sido recebidas as quantias referentes a IVA liquidado e não havendo inversão do título de posse, não cometeu o crime em causa;

b) Se a arguida não podia ser condenada a pagar qualquer importância à administração fiscal, por contra ela correr processo executivo pela importância liquidada e em dívida, no serviço de finanças competente.

O Tribunal recorrido deu como provados e como não provados os seguintes factos:

Factos provados.

Os arguidos F. e P., são os únicos sócios da «Sociedade de Construções…, Lda.», também arguida, desde a sua fundação, em 17/10/2001, até à presente data.

Nesta conformidade, sempre exerceram, em conjunto, de facto e de direito, a gerência da mesma, a qual tem por objecto social a construção de edifícios.

No exercício desta actividade, os arguidos estavam obrigados a remeter, à administração fiscal, as declarações trimestrais de I.V.A., com base no volume de vendas efectuado pela sociedade.

Porém, apesar da actividade da sociedade se ter processado, sem qualquer interrupção, os arguidos não entregaram, à administração fiscal, os seguintes montantes em Imposto sobre o Valor Acrescentado, bem sabendo que agiam contra a vontade do Estado Português, o seu verdadeiro dono, causando, assim, a tal entidade, a seguinte lesão patrimonial, na medida em que, até hoje, se tem visto privado deles:

- Terceiro trimestre do ano de 2004: do montante de € 7.774,40, correspondente à aplicação da taxa legal em vigor nesse período, sobre o volume de facturação emitida, cujo termo de pagamento ocorreu em 15/11/2004, correspondente a declaração periódica por eles enviada em 28/9/2006, os arguidos nada entregaram ao Estado Português;

- Quarto trimestre de 2005: do montante de € 18.841,69, correspondente à aplicação da taxa legal em vigor nesse período, sobre o volume de facturação emitida, cujo prazo de pagamento voluntário terminou em 15/2/2006, correspondente a declaração periódica por eles enviada a 11/2/2006, os arguidos nada entregaram ao Estado Português;

- Primeiro trimestre de 2006: do montante de € 12.349,43, correspondente à aplicação da taxa legal em vigor nesse período, sobre o volume de facturação emitida, cujo prazo de pagamento voluntário terminou em 15/5/2006, correspondente a declaração periódica por eles enviada a 11/5/2006, os arguidos nada entregaram ao Estado Português;

- Segundo trimestre de 2006: do montante de € 7.018,92, correspondente à aplicação da taxa legal em vigor nesse período, sobre o volume de facturação emitida, cujo prazo de pagamento voluntário terminou em 15/8/2006, correspondente a declaração periódica por eles enviada a 11/8/2006, os arguidos nada entregaram ao Estado Português;

- Terceiro trimestre de 2006: do montante de € 8.778,54, correspondente à aplicação da taxa legal em vigor nesse período, sobre o volume de facturação emitida, cujo prazo de pagamento voluntário terminou em 15/11/2006, correspondente a declaração periódica por eles enviada a 13/11/2006, os arguidos nada entregaram ao Estado Português.

Com as descritas condutas, os arguidos causaram um prejuízo, ao Estado Português, no montante global de € 54.762,98.

Porém, ao abrigo da L 53-A/2006, que deu nova redacção ao art° 105° n° 4 da Lei 5/2001, de 5/6, os arguidos procederam à entrega, no prazo previsto naquela lei, nos cofres do Estado, da quantia de € 8.674,50.

Em consequência, o prejuízo global causado, à referida entidade, através das relatadas condutas dos arguidos, ascendeu ao montante de € 46.088,48.

Este montante não foi entregue nos cofres do Estado, nos prazos legais, nem posteriormente, até à presente data.

Ao agirem como fica descrito, os arguidos e a sociedade por si representada, fizeram-no de modo deliberado, livre e consciente, bem sabendo que tais condutas lhes estavam vedadas pela lei.

O arguido F. tem 38 anos de idade. A arguida P. tem 36 anos de idade.

São casados entre si.

A empresa «Sociedade de Construções… Lda.», da qual os arguidos retiravam os seus rendimentos, começou a atravessar, desde há alguns anos, dificuldades económicas, o que lhes causou grande instabilidade económica e, também física e psíquica, sobretudo à arguida P., agravada pela penhora da casa de habitação onde residem, à Direcção de Finanças.

Criaram uma nova sociedade, designada de «S.R.», a qual ainda não lhes forneceu os rendimentos esperados.

Ambos os arguidos estão integrados socialmente na localidade onde residem, sendo pessoas bem conceituadas.

Nunca tiveram condenações anteriores.

Consta da sentença recorrida, como não provados, os seguintes factos:

- que os arguidos tivessem, efectivamente, cobrado dos seus clientes o I.V.A. identificado na acusação;

- que os arguidos tivessem feito seus tais montantes, na importância global de € 54.762,98, integrando-a nos seus patrimónios, bem sabendo que não lhe pertencia.

O tribunal recorrido fundamentou o julgado em matéria de facto nos seguintes termos:

“No que respeita à existência das dívidas fiscais e seus montantes, as declarações prestadas pela testemunha PD, Inspector Tributário, a desempenhar funções na Direcção de Finanças de Santarém, o qual referiu ter acompanhado o processo dos arguidos, mencionando os montantes que estão em dívida, a título de I.V.A. e períodos de tempo a que respeitam;

No que concerne aos factos provados sobre a gestão conjunta da empresa, as declarações prestadas pela testemunha PD, o qual referiu que, do estudo que efectuou do processo, apurou que a gerência era efectuada pelos dois sócios, sendo que o arguido marido actuava mais sobre as obras que se estavam a desenvolver no terreno, enquanto que a arguida mulher tratava da parte burocrática, da qual fazia parte a entrega de declarações e documentos ao contabilista e guias de pagamento de I.V.A., o que, neste particular, confirma as declarações prestadas pela testemunha AP que referiu trabalhar para a empresa que tratava da contabilidade da arguida sociedade, mencionando que era a arguida mulher quem ia entregar as documentos necessários à elaboração da contabilidade da empresa;

No que concerne às condições pessoais dos arguidos, as declarações prestada pela testemunha MR, que abonou a favor dos mesmos mencionando que teriam pago o I.V.A., se tivessem dinheiro para o fazer, bem como o teor dos relatórios sociais de fls. 501 a 510 e, ainda, os certificados do registo criminal de fls. 523 e 524.

Não se provaram, em sede de audiência de julgamento, os factos dados como não provados.”

Consta da sentença, em sede de enquadramento jurídico-penal, o seguinte:

“Cada um dos arguidos F. e P., foram acusados pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punível pelo art° 105° n° l da L 15/2001 de 5/6, enquanto a arguida «Sociedade de Construções ---, Lda.», foi acusada nos termos do art° 7° n° l do mesmo diploma legal.

Dispõe o art° 105° n° l da L 15/2001 de 5/6, que: «Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias».

A redacção do n° l deste preceito, manteve-se inalterada com a L 53-A/2006 de 29/12, sendo, assim, idênticos, à data da prática dos factos, como actualmente, os elementos constitutivos do crime de abuso de confiança fiscal.

Conforme o recente Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 4/2/2009 - C. J. XXXIV, I, 159, para o preenchimento do crime de abuso de confiança fiscal não é necessário que se apure em que momento o arguido foi recebedor das quantias referentes às operações que deram origem à liquidação do I.V.A., ou sequer se as recebeu. Com efeito, a falta de entrega à administração tributária da prestação devida constitui apropriação da mesma, independentemente do destino que lhe seja dado (neste sentido, cfr., também, Lopes de Sousa e Simas Santos, Regime Geral das Infracções Tributárias anotado, 2008, p. 741).

Não é, pois necessário, que o agente retire um proveito directo das quantias retidas (AC S.T.J. de 12/10/2000 - C.J. S.TJ. VIII, III, 194).

Assim sendo, face à factualidade provada, entendo que se encontram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos constitutivos do crime de que os arguidos foram acusados.

Apesar de não se ter provado se os arguidos receberam, ou não, as quantias referentes às operações que deram origem à liquidação do I.V.A. descrito nos autos, certo é que não entregaram todas as prestações tributárias deduzidas nos termos da lei e que estavam legalmente obrigados a entregar, conforme o demonstra os factos provados, o que fizeram de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei pelo que serão condenados em conformidade.

(…) Pedido de indemnização civil:

Os factos que são objecto de processo criminal podem, igualmente, ser fundamento de responsabilidade civil, enquanto lesem interesses susceptíveis de reparação patrimonial, nos termos da lei civil.

Dúvidas não há, face à factualidade provada, que os arguidos F. e P. se assumem como responsáveis solidários, nos termos do art° 497° n° l do C.C., perante o Estado Português, pelo pagamento das prestações tributárias em falta, porquanto foram eles os responsáveis pela não satisfação, por parte da arguida sociedade, das sua obrigações fiscais.

Deste modo, cometeram ambos um acto ilícito e culposo, que provocou um dano de natureza patrimonial ao Estado, verificando-se os pressupostos da responsabilidade civil extra-contratual, previstos no art° 483° n° l do C.C.

Deverão, assim, indemnizar o Estado, nos termos do art° 562° do C.C., pagando a quantia ainda em dívida, no montante de € 46.088,48, acrescida dos juros de mora, desde a data do vencimento, até integral pagamento.

Note-se que, apesar de existir processo de execução fiscal contra a arguida Sociedade, tal não obsta a que os arguidos, enquanto pessoas individuais, devam ser responsabilizados pelo pagamento dessas quantias em dívida.

Não existe litispendência entre os presentes autos e os referidos processos de execução fiscal, porque estes últimos foram instaurados apenas contra a arguida sociedade, enquanto que o M.P. em representação do Estado Português, deduziu pedido de indemnização civil, apenas contra os arguidos F. e P., os quais, em face do acto ilícito e culposo, que causou danos ao Estado, assumem a já aludida obrigação de indemnização.

Aliás, demonstrando-se que a administração fiscal venha a instaurar processo de execução fiscal contra os arguidos pessoas singulares, ou que, através do processo contra a arguida sociedade consiga cobrar coercivamente a quantia em dívida, então sim, mas só nessas condições, os mesmos deixarão de ser responsáveis civilmente, no âmbito do presente processo crime (AC RC de 2/11/2005, proc. n° 2296/05).

Apreciando:

A matéria de facto não vem questionada pela recorrente, e não se vê do texto da sentença qualquer contradição entre os factos provados entre si, entre estes e os não provados, e entre uns e outros e a respectiva fundamentação, e entre esta e a decisão recorrida, qualquer erro notório ou insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, pelo que se consideram fixados os factos, nos termos em que o tribunal recorrido assim os considerou.

Dispõe o n.º1 do art. 105.º do RGIT, na redacção em vigor ao tempo dos factos, que “Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.”

Insurgiu-se a recorrente com a subsunção da sua descrita conduta a este tipo legal.

Na descrição do art. 105.º, n.º 1, do RGIT, a construção do tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal define uma conduta que consiste na simples não entrega à administração fiscal de uma prestação tributária que o agente deduziu nos termos da lei como substituto tributário, e que estava, também nos termos da lei, obrigado a entregar em determinado prazo – o prazo de entrega que a lei fixa para cada tipo e espécie de prestação deduzida.

A consumação do crime verifica-se pois com o termo do prazo estabelecido para a entrega da prestação tributária em falta. Conforme o tipo está estruturado denota-se que o bem jurídico que se pretenderá tutelar é as receitas fiscais do estado. Entendeu o legislador que património do estado sai lesado pela não entrega atempada das prestações deduzidas. O crime de abuso de confiança fiscal é pois um crime de dano.

As prestações tributárias, cuja omissão de entrega faz incidir sobre o agente responsabilidade penal, são três:

1) prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar;

2) prestação tributária que foi deduzida por conta daquela (por exemplo, retenção na fonte em sede de IRS) bem como a que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de liquidar (por exemplo, IVA) e

3) prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.

A conduta prevista no tipo traduz-se, pois, em uma omissão pura, na não entrega nos termos e nos prazos estabelecidos, isto é, esgota-se no não cumprimento de um dever, previsto na lei, de entrega das prestações deduzidas. Sendo uma infracção omissiva pura, consuma-se com a não entrega, dolosa, nos termos e no prazo da entrega fixado para cada prestação – art. 5.°, n.º 2, do RGIT.

As quantias aqui em causa respeitam ao Imposto Sobre o Valor Acrescentado (IVA), o qual é configurado como imposto de antelançamento e de auto-liquidação, reconduzindo-se à noção deprestação tributária” fornecida pelo mencionado art. 11.º, al. a), do Regime Geral das Infracções Tributárias, no âmbito do qual a fixação prévia dos elementos pertinentes à tributação compete, em primeira linha, ao sujeito tributário passivo, encarregue da sua cobrança, estando adstrito à sua entrega à administração fiscal.

O mesmo é devido e torna-se exigível nas transmissões de bens a título oneroso no momento em que esses bens são postos à disposição do adquirente, sendo a sua liquidação feita ope legis,de modo instantâneo, de sorte que é logo cobrado ao adquirente, conjuntamente com o preço do bem ou serviço.

Recebido o preço e o correspondente montante de IVA, o sujeito tributário passivo constitui-se ipso facto devedor ao Estado na exacta medida do imposto recolhido, ficando investido na posição de fiel depositário dele.

Qualquer comportamento que defraude a entrada nos cofres fiscais destes valores atinge o património do Estado, erigido em bem jurídico último, penalmente tutelado.

E, assim definido, é possível extrair os dois vectores que o caracterizam: por um lado, o princípio da confiança patente entre o sujeito passivo e o credor tributário e, por outro lado, o dever de colaboração do primeiro perante o segundo e que se relaciona com a veracidade, completude e fidedignidade das operações - e de todas as operações - de lançamento, liquidação e cobrança por aquele realizadas (cf. Acórdãos do STJ de 20-05-99, Proc. n.º 276/99 e de 21-05-03, Proc. n.º 132/01, ambos da 3.ª Secção; de 12-10-00, Proc. n.º 1906/00 e de 08-11-01, Proc. n.º 2988/01, ambos da 5.ª Secção).

A ideia fulcral do crime de abuso de confiança, seja ele fiscal ou não, radica em dar-se a valores licitamente recebidos um destino diferente daquele a que se está vinculado, bastando para a perfeição do crime a simples não entrega do imposto retido (Simas Santos/Lopes de Sousa in, Regime Geral das Infracções Tributárias Anotado, 2001, p. 587 ss. e Acórdãos de 23-04-03 in, CJ Ano XXVIII, I, p. 234 e de 19-10-05, Proc. n.º 2321/05, da 3.ª Secção), pois esta espelha a inversão do título de posse, acarretando consequencial mente o empobrecimento patrimonial deste (Já Alfredo de Sousa in, Infracções Fiscais Não Aduaneiras, 2.ª Edição, Coimbra, 1995, p. 103, advogava:

Esta apropriação pode traduzir-se na simples fruição ou na disposição pelo devedor de cada uma das prestações tributárias deduzidas ou retidas (IRS ou IRC) ou liquidadas com a obrigação de as entregar ao credor tributário (IVA).”

Posto isto, vejamos se à recorrente assiste ou não razão.

Como refere o Prof. Taipa de Carvalho, in Sucessão de Leis Penais, 2ª Edição Revista, Coimbra Editora, 1997, pág. 27 e 28, «Não pode haver uma jurisprudência penal justa e eficaz, se esta – a jurisprudência – não for precedida de uma legisprudência. Legisprudência pressupõe e significa bom senso, racionalidade jurídica, coerência normativa, domínio da dogmática e da técnica legislativa em geral e do ramo do direito em que o legislador intervém em especial, rigor e precisão linguística – o que exige domínio da estrutura e da semântica da língua.

Digamos que, tal como a jurisprudência – aplicação da lei -, também a legisprudência – criação da lei - pressupõe a virtude prática da “prudência”, isto é, uma “arte” e uma “sabedoria”, ou, se preferirmos, uma técnica legislativa (-) e um saber jurídico. Ora, legisprudência é o que, efectivamente, não tem acontecido entre nós”.

Afigura-se-nos que a expressão “prestação tributária deduzida nos termos da lei” está usado com o seu significado próprio.

Com a utilização da expressão “prestação tributária deduzida” pretendeu-se aludir a todas as situações em que é apurada uma prestação tributária (isto é, no caso, uma quantia de imposto, nos termos do art. 11.º do RGIT) pelo sujeito passivo através de uma subtracção de uma quantia global e essa quantia deduzida tem de ser entregue à administração tributária. É o que sucede, por exemplo, nas situações de retenção na fonte previstas no artigo 71.º do CIRS, de rendimentos sujeitos a taxas liberatórias, em que a retenção do imposto na fonte é efectuada pelo sujeito passivo a título definitivo, que são enquadráveis no n.º 1 do artigo 105.º.

Há ainda dedução por conta de prestação tributária (por conta do imposto), enquadrável na primeira parte do n.º 2 do artigo 105.º, nos casos em que a retenção na fonte não é feita a título definitivo, mas sim por conta do imposto devido a final, como sucede, por exemplo, nas situações previstas no art. 98.º do CIRS.

No âmbito do IVA fala-se de dedução de imposto relativamente ao imposto que o sujeito passivo tem a receber, nos termos dos artigos 19.º a 26.º do CIVA, não se referindo qualquer situação em que o sujeito passivo tenha de entregar imposto que tenha deduzido.

De facto, no âmbito do referido direito à dedução, os sujeitos passivos não têm de entregar à administração tributária a prestação tributária que deduziram [o imposto que deduziram, à face da definição dada na alínea a) do artigo 11.º do RGIT], mas, antes pelo contrário, apenas têm de fazer entrega do imposto na medida em que excede o IVA a cuja dedução têm direito, isto é, do imposto que não deduziram. [1]

O que há, na verdade, é a obrigação de os sujeitos passivos procederem à sua liquidação (cálculo) e adicionarem o valor do imposto liquidado ao valor das mercadorias ou prestações de serviços, incluindo-o na factura ou documento equivalente, para efeitos da sua exigência aos adquirentes das mercadorias ou utilizadores dos serviços (artigos 35.º e 36.º, n.º 1 do CIVA).

Nas situações em que não se está perante um acto isolado (como sucede no caso em apreço) o art. 27.º, n.º 1, do CIVA impõe a de entrega do montante do imposto apurado (o «imposto exigível») no momento da apresentação das declarações a que se refere o art. 41.º do mesmo Código independentemente de ter sido efectuado pelos adquirentes de bens ou utilizadores de serviços o pagamento da quantia facturada.

O regime do artigo 78.º, n.ºs 7 e 8 (anterior art. 71.º), relativamente à possibilidade de dedução de imposto respeitante a créditos incobráveis ou de pagamento retardado confirma que a obrigação de pagamento do imposto pelo sujeito passivo não depende de ter sido paga a quantia liquidada pelo adquirente de bens ou utilizador de serviços.

Nestas situações, o imposto que deve ser entregue não é o imposto que foi liquidado, mas sim o eventual saldo positivo a favor da administração tributária que se registe após confrontação do volume global do imposto liquidado (recebido ou não) e do imposto que foi pago pelo sujeito passivo aos seus fornecedores ou prestadores de serviços (artigos 19.º a 25.º do CIVA).

Na verdade, o IVA opera pelo método de crédito de imposto. Ou seja, o sujeito passivo assume a qualidade de devedor do Estado pelo valor do imposto de factura aos seus clientes nas transmissões de bens e prestações de serviços efectuados em determinado período (Conta POC 2433 – IVA Liquidado ou a favor do Estado). Por contrapartida, o mesmo sujeito passivo é credor do Estado pelo imposto suportado no mesmo período (conta POC 2432 – IVA Dedutível ou a favor do sujeito passivo). Logo, o imposto a entregar ao Erário Público será a diferença entre aquele débito e este crédito.

É certo que pode haver situações em que o sujeito passivo recebeu de terceiros IVA que liquidou e não procedeu à sua entrega à administração tributária, havendo obrigação dessa entrega por se comprovar que há um saldo positivo a favor desta no confronto da globalidade do imposto liquidado com o imposto pago pelo sujeito passivo em determinado período. Só que tais situações não se enquadram directamente no número 1 do art. 105.º do RGIT mas sim, por aplicação da parte final do seu n.º 2 que considera prestação tributária para efeitos do disposto no n.º1 “aquela que tendo sido recebida, haja obrigação legal de liquidar, nos casos em que a lei o preveja”. E, como aí resulta claramente do texto da lei, da conjugação do n.º1 e 2, só é punível o comportamento de quem tem obrigação de liquidar na sequência de recebimento da quantia do imposto e não a entrega total ou parcialmente à administração tributária, sendo certo que, com a nova redacção do n.º1 do art. 105.º do RGIT introduzida pela Lei n.º 64-A/08, de 31 de Dezembro, que aprovou o OGE para 2009, a prestação tributária de valor inferior a € 7.500 deixou de ser criminalmente punível, passando a constituir contra-ordenação, a sancionar no âmbito do art. 114.º do citado RGIT.

E bem se compreende que assim seja, pois se o sujeito passivo não recebeu as quantias referentes à prestação de IVA que lhe incumbe entregar à administração fiscal, não se pode, sem mais, afirmar que a falta de entrega procede de culpa sua. Não se pode ignorar que o incumprimento contratual de terceiros das suas obrigações comerciais é, muitas vezes, a génese da não entrega atempada do IVA devido ao Estado pelo sujeito passivo a tal vinculado. É infelizmente prática corrente nas empresas pagar-se a mais de 90 dias sobre a data do vencimento da obrigação, com todas as graves consequências que isso implica para as economias das empresas, sobretudo das pequenas e médias empresas.

É necessário, portanto, como passo prévio da apropriação do imposto, o recebimento do correspondente montante pelo sujeito passivo obrigado à sua entrega ao Estado. Assim, a prova deste recebimento é indispensável, pelo menos de forma parcial, mas representativa, para daí se poder concluir que à não entrega do imposto corresponde a apropriação do mesmo. [2]

Não se questiona a obrigação legal dos arguidos procederem ao pagamento das quantias apuradas nas declarações trimestrais que enviaram à administração fiscal, referentes à diferença entre o IVA Liquidado e o IVA Deduzido. Com efeito, há que ter em conta o comando legal, segundo o qual, com a emissão da factura existe a obrigatoriedade de liquidação e, se for caso disso, entrega do valor do IVA ao Estado, independentemente do seu efectivo recebimento por parte do sujeito passivo (cf. art.7.º e 36.º do CIVA).

Se assim poderá continuar a ser, pelo menos em sede de direito constituído, no âmbito da legislação puramente fiscal, o mesmo não se pode passar em sede de direito relativo às infracções tributárias, cuja natureza implica o respeito por princípios que são, nitidamente, mais exigentes no que se refere aos pressupostos que determinam a aplicação de natureza essencialmente punitiva a determinadas condutas.

A conduta de quem não entrega IVA liquidado nas facturas, mas não recebido dos adquirentes das mercadorias ou utilizadores de serviços, estava expressamente punida no art. 95.º do CIVA, em que se previa como transgressãoa falta de entrega ou a entrega fora dos prazos estabelecidos de todo ou parte do imposto devido”.

Porém, este art. 95.º, inserido no Capítulo VIII do CIVA, foi expressamente revogado pela alínea c) do art. 2.º da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho.

Por outro lado, as referências à “prestação tributária deduzida nos termos da lei”, que se utilizam nos art. 105.º, n.º1 e 114.º n.º1 do RGIT, têm um evidente alcance restritivo em relação à expressão “imposto devido”, que era utilizada no referido art. 95.º do CIVA, pois as primeiras apenas abrangem situações em que o sujeito passivo procede à dedução do imposto, subtraindo-a de uma quantia global.

É certo que o legislador veio, com a Lei do Orçamento de Estado para 2009, alterar o art. 114.º n.º5 do RGIT, passando a punir como contra-ordenação a falta de entrega da prestação tributária, passando a considerar como tal, entre outras situações, a falta de entrega, total ou parcial, ao credor tributário do imposto devido que tenha sido liquidado ou que devesse ter sido liquidado em factura ou documento equivalente, ou a sua menção, dedução ou rectificação sem observância dos termos legais. Com esta alteração basta que o IVA seja liquidado em factura ou documento equivalente e mesmo que não tenha sido recebido pelo sujeito passivo, deve ser entregue nos cofres do Estado, caso contrário, estamos perante um facto ilícito contra-ordenacional.

Mas essa alteração é inaplicável aos factos ocorridos até 31 de Dezembro de 2008.

No caso dos autos, o tribunal recorrido deu como não provado que “os arguidos tivessem, efectivamente, cobrado dos seus clientes o I.V.A. identificado na acusação”, sendo que a arguida, ora recorrente, alega que ela, assim como qualquer dos outros Arguidos, não receberam a quantia liquidada.
E, assim sendo, não tendo o tribunal recorrido dado como provado que os arguidos hajam recebido efectivamente dos seus clientes o IVA que liquidaram pela prestação dos seus serviços e que serviu de base aos valores do imposto apurados nas declarações periódicas enviadas aos Serviços do IVA, nos montantes dados como assentes, está afastada a possibilidade de punição daqueles pelo crime de abuso de confiança fiscal, por não verificação de todos os pressupostos legais previstos nos nºs 1 e 2 do artigo 105.º do RGIT, pois falta, desde logo, um dos elementos objectivos – ou seja, o recebimento ou cobrança pelo sujeito passivo do IVA liquidado respeitante às declarações periódicas apresentadas e que aqui estão em causa.

Em conclusão, dir-se-á que o art. 105.º n.º1 do RGIT, que pune como crime a falta de entrega de prestação tributária, não abrange, na sua previsão legal, situações em que o imposto que deva ser entregue com a apresentação da declaração periódica e não esteja em poder do sujeito passivo, por este não o ter recebido ou retido.

É a não “entrega” que é punida pela lei penal e não propriamente o não “pagamento” do tributo. Para que a não entrega configure o tipo legal de crime é exigível o recebimento prévio da prestação tributária.

Discordamos, por isso, com o devido respeito, da posição sustentada na sentença recorrida e que o Ministério Público também secunda e que colhe apoio no acórdão da Relação de Lisboa de 4.2.2009, publicado na CJ, ano XXXIV, tomo 1, pag.159, no qual se defende que para o preenchimento do crime de abuso de confiança fiscal não é necessário que se apure se o arguido foi recebedor das quantias referentes às operações que deram origem à liquidação do IVA.

Perante o exposto, impõe-se a absolvição da recorrente P. do crime por que foi condenada.

E o recurso não pode deixar de aproveitar aos demais arguidos, comparticipantes no mesmo crime, nos termos do disposto no art.402.º n.º2, alin. a) do CPP.

Naufragada a acção penal, outra sorte não poderá ter o pedido de indemnização civil cuja causa de pedir se funda na prática de um crime (cf. art.º 71.º do CPP).

Com efeito, não se tendo provado a existência de ilícito criminal não se poderia fundamentar o pedido de indemnização civil conexo com a prática desse ilícito.

Acresce que depois de algumas divergências sobre o alcance do art. 377.º, n.º 1 do CPP, o Supremo Tribunal de Justiça, pelo Assento n.º 7/99, de 17 de Junho [Publicado no Diário da República I-A Série, de 03-08-1999], fixou jurisprudência no sentido de que «se em processo penal for deduzido pedido de indemnização cível tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377.º, n.º 1 do CPP, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização cível se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual.»

Ficou, pois, assente que o pedido de indemnização em processo penal só pode fundar-se em responsabilidade civil extracontratual (art. 483.º do C.Civil, aplicável por força do art. 129.º do Código Penal), não podendo fundar-se em facto, que gerando danos, viola exclusivamente um crédito ou uma obrigação em sentido técnico.

O pedido cível é fundado quando é formulado de acordo com o art. 71.º do CPP e os factos nele alegados ficam provados em julgamento, ainda que não venham a dar lugar à condenação penal, porque, por exemplo, foram descriminalizados, objecto de amnistia ou ocorreu a prescrição do procedimento.

No caso, o pedido foi correctamente deduzido neste processo penal, pois se fundava na prática de um crime. Mas, em nosso entender, não se revelou fundado, visto não se ter provado um dos elementos desse crime – o recebimento pelos sujeitos passivos das prestações de IVA que foram objecto de liquidação.

Por isso que, a falta de entrega à Administração Fiscal das prestações tributárias liquidadas pelos demandados não vai para além do mero incumprimento de uma obrigação legal, que não pode ser confundida com a responsabilidade fundada na obrigação de indemnizar os danos causados pela prática do crime de abuso de confiança fiscal. Trata-se de realidades diferentes na medida em que os factos geradores da obrigação de indemnizar e da obrigação contributiva não são necessária e integralmente coincidentes, obedecendo a fins e regimes próprios. As causas de pedir em que se sustentam são distintas – a responsabilidade civil que pode ser feita valer no processo penal não emerge do incumprimento das obrigações contributivas, mas apenas do facto de a falta de entrega das prestações tributárias recebidas constituir um facto ilícito -, podendo ou não haver coincidência, parcial ou total, entre os montantes envolvidos.

Efectivamente, qualquer comportamento violador de normas tributárias corresponderá a um ilícito. O ilícito fiscal não se confunde pois com a infracção fiscal.

A ilicitude fiscal tem naturezas diferenciadas e é sancionada mediante sanções fiscais de variada natureza.

Tais violações, dependendo da sua natureza, irão desencadear reacções diversas.

Assim, a violação de normas tributárias poderá desencadear reacções reconstitutivas (por exemplo, a execução fiscal) reacções preventivas (por exemplo, medidas de segurança fiscal) reacções compensatórias (juros fiscais compensatórios) reacções compulsórias (juros fiscais de mora compensatórios e compulsórios) e por últimos reacções punitivas. (multa, prisão, etc)

A dívida tributária existe e mantém-se independentemente da prática do crime tributário. Mas só se houver crime e se este causar danos é que os seus agentes são responsáveis pela indemnização dos danos dele emergentes nos termos gerais.

Procede, pois, o recurso.

III – Decisão.

Posto o que precede, concede-se provimento ao recurso interposto pela arguida P. e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida e absolvem-se todos os arguidos do crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art. 105.º n.º1 do RGIT, que lhes foi imputado e absolvem-se ainda os demandados do pedido de indemnização cível contra eles formulado com fundamento na prática desse crime.

Não são devidas custas.

(Processado por computador e revisto pelo relator).

Évora, 2009.12.03

Fernando Ribeiro Cardoso

Gilberto Cunha (adjunto)

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[1] - Neste sentido, entre outros, o acórdão do STA de 15.10.2008, relatado pelo Conselheiro Brandão de Pinho, acessível in www.dgsi.pt/jsta

[2] - Neste sentido, Paulo Marques, Infracções Tributárias, Vol. I, Investigação Criminal, Edição do Ministério das Finanças e da Administração Pública, a fls.136, que refere a propósito “Em face desta realidade, resulta clara a necessidade de recolha de prova atinente ao recebimento das importâncias liquidadas aos clientes (contabilidade dos clientes e do arguido, depoimento das testemunhas, saldos bancários, etc.). A posição firmada funda-se na própria configuração jurídica do depósito. O depositário terá que receber previamente uma coisa alheia, para se poder entender que inobservou o dever de restituição ao legítimo proprietário, passando a ser infiel depositário («inversão do título de posse»). Se não a tiver recebido previamente, como poderemos falar em incumprimento ilícito e doloso do dever de restituição ou entrega? Aquele precede necessariamente este último. Este entendimento alicerça-se igualmente na própria noção de abuso (Lat. Abusu), isto é, além do uso ou uso excessivo, essencial para a boa compreensão da epígrafe do crime “nomen juris” tipificado no art. 105.º do RGIT (Abuso de confiança). Ora, só se pode abusar daquilo que em primeiro lugar se pode usar. Apenas se pode recusar a entrega de algo que se recebeu previamente, que se teve em mãos. Doutro modo, como exigir outro comportamento do agente? Como justificar a sua punição com pena de prisão ou de multa?
Decisão Texto Integral: