Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
15/13.9GASLV.E1
Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA
Descritores: TESTEMUNHAS
CONTRADITÓRIO
PERÍCIA
Data do Acordão: 06/16/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - Se a arguida, em contra-inquirição, foi impedida de exercer o contraditório quanto a uma ou mais testemunhas isso, sendo matéria de regras de produção probatória, impunha-lhe uma reacção imediata a requerer a sua concretização ou a remoção dos obstáculos a tal através de requerimento ou protesto e, não atendidos, a interpor recurso interlocutório sobre tal matéria. Tratando-se – a existir - de uma irregularidade processual, fica a mesma sanada pelo decurso do prazo de três dias previsto no artigo 123º, n. 1 do Código de Processo Penal.
2 - Uma perícia deve sujeitar-se aos princípios da igualdade de armas e do contraditório e isso implica, no mínimo, a possibilidade de tomar conhecimento das observações ou elementos de prova produzidos pela outra parte, bem como a possibilidade de as discutir (T.E.D.H. acórdão Brandstetter v. Austria, par. 67). Em princípio em audiência de julgamento, também através dos esclarecimentos dos peritos o que será suficiente para o cumprimento de tais princípios.
3 - Mas é certo que um qualquer caso concreto – essencialmente em perícias médicas - pode complicar esta base de trabalho e determinar que a simples possibilidade de discutir o relatório da perícia em audiência de julgamento não seja suficiente para que se considere que à “contraparte” tenha sido assegurada a possibilidade de submeter eficazmente os seus “comentários” no momento da realização da perícia.
4 - Apesar de ser acertado qualificar a cannabis como planta dióica, também é certo que a planta masculina morrendo em regra ou sendo extraída após a polinização da planta feminina, apresenta as mesmas quantidades de canabinóides e a perícia não a incluiria na Tabela I-C se não fosse caso disso.
Decisão Texto Integral:
Processo 15/13.9GASLV.E1

Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:

No Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Portimão, 2ª Secção Criminal - correu termos o processo comum colectivo supra numerado no qual são arguidos:

AGS, solteiro, empresário, natural e nacional da Holanda, nascido a 30/10/1956, residente na “CC”, Sítio do SC, P, em L; e

TBF, solteira, comerciante, natural da República Democrática da Alemanha, com nacionalidade Alemã, nascida a 04/12/1963, residente (…), em L,

a quem foram imputados a prática, em autoria material:

- à arguida TBF, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art° 21°, n° 1 do D.L. n. 15/93, de 22/1; e

- ao arguido AGS, de um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo art° 86°, n° 1, al. c), da Lei n. 5/2006, na versão dada pela Lei n° 12/2011.


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O tribunal recorrido veio, por acórdão de 22 de Abril de 2014 a:

- condenar o arguido AGS, pela prática, de um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo art° 86°, n° 1, al. c) da Lei n. 5/2006, na pena de 300 (trezentos) dias de multa, à razão diária de € 7,00 (sete euros), o que perfaz a quantia total de € 2.100,00 (dois mil e cem euros) e, subsidiariamente, caso não pague a multa, em 200 (duzentos) dias de prisão;

- condenar a arguida TBF, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art° 21°, n. 1 do D.L. 15/93, na pena de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de prisão;

- no mais legal.


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Inconformada, interpôs recurso a arguida, com as seguintes conclusões (transcritas), após convite à correcção:

1- Da leitura do acórdão resulta que o Tribunal "a quo" fundou a sua convicção, quanto aos factos que resultaram provados constantes da acusação, no que respeita à arguida aqui recorrente, nos depoimentos dos arguidos e das testemunhas (…), prestados em sede de julgamento, nos autos de apreensão de fls. 23 a 26, planta (a fls. 27) e reportagem fotográfica (fls. 29 a 33) anexas a tal auto, nas reportagens fotográficas e fotografias de fls. 8 a 11, 114 e 115, nos relatórios periciais de fls. 142 e de fls. 114 e 115, na informação sobre registo de armas de fls. 108 e na informação da Segurança Social de fls. 91, bem como na conjugação entre si de todos os referidos elementos de prova e na sua conjugação com as regras da experiência comum e análise à luz destas.
2- No que respeita aos meios de prova supra referidos e como resulta da prova gravada o mandatário da arguida tentou em vão exercer o contraditório procurando, na sua instância, inquirir as testemunhas (…), militares da GNR, que efectuaram a busca à residência dos arguidos, procederam à respectiva detenção, elaboraram o expediente e tiraram as fotografias. Foi assim vedado à arguida o direito a um dos princípios basilares do direito penal, o princípio do contraditório.
3- O princípio do contraditório tem consagração constitucional (art. 32° n. 5 da Constituição da República Portuguesa) e significa que nenhuma prova deve ser aceite em audiência, nem nenhuma decisão (mesmo interlocutória) deve ser tomada pelo juiz, sem que previamente tenha sido dada ampla e efectiva possibilidade ao sujeito processual contra o qual é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar. No que respeita especificamente à produção de provas, o princípio exige que toda a prova deva ser, por regra, produzida em audiência pública e segundo um procedimento adversarial.
4- A valoração dessa prova encontra-se legalmente vedada, encontrando-se consequentemente proibida a sua apreciação; por ter sido valorada tal prova, enferma o douto acórdão do vício de nulidade, como bem se encontra expresso no n. 9 do artigo 356° do CPP.
5- No que concerne aos relatórios periciais, apesar destes fazerem parte do processo, não é remetida ao arguido, em nenhuma das fases processuais, qualquer cópia deste, para este se poder pronunciar quanto a eles. Daí que tal pronúncia só possa ser feita em audiência,
6- Altura em que o arguido e o perito, podem ser colocados cara a cara, e o perito possa ser confrontado com a perícia, pois em nenhum outro momento é dada a possibilidade ao arguido de confrontar os autores dos documentos com o seu conteúdo, não pode como bem sabemos ir ter com eles para os confrontar sob pena de ser acusado de um outro qualquer crime.
7- Violou assim, o douto acórdão recorrido quer por erro de interpretação quer de aplicação o estabelecido pelos arts. 355º e 356° ambos do CPP.
8- Face ao supra exposto e salvo melhor opinião encontra-se o douto acórdão ferido de nulidade, pelo que deverá ser declarado nulo, devendo consequentemente ser anulado o julgamento e determinado o reenvio do processo nos termos do n. 1 do art° 426 do CPP.
9- O tribunal é livre de apreciar a prova, mas no caso sub júdice, alguns factos dados como provados e não provados, estão, salvo mais douta opinião, em clara contradição uns com os outros e com a prova que se encontra gravada.
10- Não se compreende como é que o Tribunal "a quo" deu como provado o facto n. 4, uma vez que não foi feita qualquer prova quanto a isso, nem testemunhal nem documental, antes pelo contrário, a testemunha NA, que foi um dos agentes da GNR que interveio nas diligências efectuadas no âmbito do inquérito e cfr. resulta da audição do ficheiro de áudio número 20140410121822_303646_64959, quando o Mmo Dr. Juiz Presidente lhe perguntou se ele tinha assistido a alguma venda por parte da arguida, este respondeu perentoriamente que não.
11- Afirma o Tribunal "a quo" que a arguida destinava parte do estupefaciente apreendido ao seu consumo e que outra parte se destinava a vender. Primeiro o conceito "parte" é bastante vago não sendo um conceito jurídico e segundo mais uma vez quanto a isto não se fez qualquer prova.
12- Também não se provou que a arguida tivesse obtido alguns ganhos monetários com a venda de estupefacientes.
13- Este facto está em clara e nítida contradição com outro facto provado, o qual consta do ponto 35, onde é dito relativamente à aqui recorrente que:
"Não tem rendimentos próprios, debatendo-se com algumas dificuldades, e avaliando globalmente a situação como de pouco desafogo, mas sem carências de maior."
14- Factos que são manifestamente contraditórios entre si.
15- Até porque, recorrendo às regras da experiência comum, tendo por base o homem médio, o que se concluí é que quem se dedica à venda de estupefacientes goza de uma situação económica e financeira de desafogo com demonstração de sinais exteriores de riqueza, o que comprovadamente não é o caso dos presentes autos.
16- Tal facto não deveria ter sido dado como provado, havendo contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, nos termos do artigo 410° n. 2 alínea b) do C.P.P..
17- Da conjugação entre a factualidade provada e as regras da experiência comum, deveria ter sido dada credibilidade ao depoimento prestado pela arguida.
18- Considerando que ela confessou todos os factos que vinha acusada embora tivesse negado que destinasse o produto estupefaciente a outra finalidade que não fosse o seu consumo.
19- Que consumia grandes quantidades de produto estupefaciente como chá e fumado, o que foi confirmado pelas testemunhas, conforme resulta dos depoimentos que se encontram gravados.
20- No ponto 31 dos factos provados está escrito e descrito o que levou a arguida a intensificar hábitos de consumo, sendo de crer que a arguida disse a verdade, que toda a plantação se destinava ao seu consumo, pois ia colhendo e secando aos poucos.
21- No tocante ao terceiro ponto não compreende a arguida em que se baseou o Tribunal "a quo" para concluir, como fez, que a arguida não estava arrependida da prática dos factos de que vinha acusada, quando se lhe impunha concluir precisamente o oposto.
22- Ao decidir como fez o Tribunal "a quo" violou o princípio da boa apreciação da prova e ignorou o princípio basilar do direito penal do "in dubio pro reo".
23- Na opinião da recorrente existe contradição entre o supra enunciado facto dado como não provado e o que consta de parte do facto número 33 dos factos provados, pois deveria o Tribunal "a quo" ter considerado que a arguida tinha compreendido o desvalor da sua conduta e que estava arrependida, o que deveria ter valorado a favor desta na escolha da medida da pena.
24- Até porque a arguida confessou todos os factos de que vinha acusada à exceção de destinar o estupefaciente ao consumo de terceiros, mas tal não inviabiliza o seu arrependimento pelo facto de haver plantado as plantas para o seu consumo.
25- Só não tendo confessado a cedência a terceiros e por isso o Tribunal "a quo" decidiu penalizar a arguida, usando um tal argumento em seu desfavor, quando nenhuma prova se fez quanto à intenção de venda de tais produtos por parte da arguida, tendo o princípio do "in dubio pro reo" sido utilizado no sentido de favorecer à acusação. Invertendo o princípio penal consagrado de que a dúvida só ao réu pode favorecer.
26- A qualificação jurídica dada pelo Tribunal "a quo" relativamente aos factos praticados pela arguida, ao condená-la por um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art° 21°, n. 1 do D.L. 15/93, na pena de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de prisão, não foi correta, porquanto,
27- No entendimento da aqui recorrente, mais uma vez o Tribunal "a quo" fez uma errada avaliação dos factos porquanto dos elementos constitutivos deste tipo de crime não se provou o colocar à venda, vender, a distribuição, a cedência, o proporcionar a outrem.
28- O acórdão recorrido vai contra o que tem sido jurisprudência comum entre os tribunais superiores, sendo que no caso em apreço, deveria ter sido condenada ou por um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. no art. 25.° do DL 15/93 ou pelo crime previsto no art. 26. do DL 15/93, porquanto o cultivo das plantas se dedicava a satisfazer as necessidades de consumo da arguida, o que dada a situação económica da arguida que tem vindo a decair e o intensificar do consumo nos últimos tempos, se mostra de certo modo compreensível.
29- O Tribunal "a quo" fundamenta a sua decisão no facto de à arguida ter sido apreendida uma grande quantidade de produto estupefaciente, a saber, plantas de cannabis.
30- No que respeita à dimensão da plantação apreendida, é de realçar dois aspetos, primeiro o que foi dito pela testemunha NA, que foi um dos agentes que realizou uma busca domiciliária na casa da arguida e que verificou que existia uma pequena plantação de plantas de canábis.
31- Não se provou de que forma é que se chegou às quantidades de produto estupefaciente que aparecem mencionadas no acórdão? Como é que foi feita a pesagem? Que parte das plantas é que foi pesada?
32- Também não foi levado em consideração que estamos perante um produto que estava ainda, na sua maioria, no seu estado natural, não preparado para consumir, pois nem sequer estava seco e triturado, o que quando acontecesse se traduziria em muito menor peso.
33- Não se sabe se as plantas eram machos ou fêmeas, o que faz toda a diferença, pois só as fémeas são passíveis de consumo.
34- A questão que se coloca agora é saber, de entre os pés de plantas que foram apreendidos quantas e quais eram machos e quantas e quais eram as fêmeas?
35- E quanto a isso como supra se referiu foi vedado à aqui arguida pelo Mm. Dr. Juiz "a quo" o contraditório.
36- Só assim é que se poderia aferir a verdadeira quantidade de estupefaciente que a arguida detinha. E apenas tal quantidade poderia ser valorada em desfavor da aqui arguida.
37- Embora o Tribunal "a quo" tenha referido ser entendimento pacífico quer da doutrina quer da jurisprudência que só se está perante uma situação de ilicitude consideravelmente diminuída, em atenção à quantidade da substância, quando se trata de diminuta quantidade de estupefaciente, tal não está correcto.
38- Para o caso sub judice era fundamental saber se a quantidade consumível não era diminuta. Dúvida que está patente e subsiste, não se encontrando arredada pelo douto Acórdão recorrido.
39- De salientar ainda, que hoje em dia jurisprudencialmente o acento tónico para distinguir entre a prática do crime pelo art. 21° ou pelo art. 25° do supra citado DL, é colocado mais do que na quantidade, exigindo-se uma avaliação global dos factos; fazendo essa avaliação crítica dos factos provados, verificamos que o tráfico em questão nestes autos era muito rudimentar.
40- Fazendo uma avaliação global dos factos, entende a arguida que no pior dos cenários, os factos que lhe são imputados teriam que ter sido qualificados como de tráfico de menor gravidade, p. e p. no art. 25.°, al. a), com referência à tabela I-C, do Dec.-Lei n.o 15/93, de 22 de Janeiro.
41- Tem sido este o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça que tem entendido que a tipificação do art. 25.°, do DL 15/93, parece significar o objectivo de permitir ao julgador que, sem prejuízo do natural rigor na concretização da intervenção penal relativamente a crimes desta natureza, encontre a medida justa da punição em casos que, embora porventura de gravidade ainda significativa, ficam aquém da gravidade do ilícito justificativo da tipificação do art. 21.° e têm resposta adequada dentro da moldura penal prevista na norma indicada em primeiro lugar, entre muitos, veja-se o Ac. STJ de 15/12/99, proc. 912/99 e o Ac. do STJ de 02/03/2011, 58/09.7GBBGC.S1.
42- Ao decidir como fez violou o Tribunal "a quo" quer por erro de interpretação, quer por erro de aplicação o constante no art° 21°, n. 1 do D.L. 15/93 e bem assim os artvs 25 e 26 do D.L. 15/93.
43- Entende a aqui recorrente que considerando a prova que efectivamente foi produzida em sede de audiência de julgamento, a qual, como supra se deixou exposto, não encontra correlação directa com os factos dados como provados pelo Tribunal "a quo", sendo que diversas circunstâncias em vez de terem sido usadas como atenuantes o foram como agravantes, nomeadamente o arrependimento sincero demonstrado e a consciencialização da ilicitude da sua conduta, pelo que entende a aqui recorrente que lhe foi aplicada uma pena demasiado gravosa, tendo-a penalizado duramente.
44- Tendo o douto acórdão violado por erro de aplicação e de interpretação, o art. 71 n. 2 do C.P., onde se encontram plasmados os requisitos para determinação da medida da pena, mormente aqueles que a arguida entende que não foram levados em consideração pelo Tribunal "a quo".
45- A finalidade primordial da aplicação da pena reside na prevenção geral, o que significa que a pena deve ser medida basicamente de acordo com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto alcançando-se mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada.
46- Ora, não nos podemos nem esquecer nem alhear que o consumo foi há muito despenalizado, o que não se entende de todo, pois quem consome tem obrigatoriamente que traficar, pois a amplitude da norma juridica tráfico vai ao ponto de tipificar como crime quem comprar, deter ou plantar. Pelo que sempre teremos que questionar como pode alguém consumir sem" traficar".
47- Tal facto leva a arguida a pensar que o único propósito do Tribunal "a quo" era a sua condenação e para atingir esse objectivo, como já supra se deixou explanado, tudo foi feito por parte do Tribunal "a quo".
48- Entendemos que dada a factualidade provada, parece-nos resultar que a arguida é uma pessoa que padece de "uma depressão" e não é enviando a arguida para a cadeia que se está a reabilitar, ressocializar ou a reintegrar a arguida na sociedade, talvez o mais acertado fosse o tratamento médico ou institucional da arguida.
49- Tem o apoio do seu núcleo de amigos, conforme consta e bem dos factos provados, no número 17 e principalmente do seu companheiro sendo mantido entre ambos um apoio mútuo, conforme consta do número 19 dos factos provados.
50- Não tem antecedentes criminais, facto provado número 37.
51- A arguida demonstrou não só arrependimento, mas um "arrepio de caminho" na actividade criminosa, mesmo sem lhe ter sido ainda aplicada qualquer pena, só pelo facto de se ter visto a braços com um processo-crime, pelo que ultrapassa a compreensão da arguida como pôde o tribunal "a quo" ter concluído como o fez que:
"Por outro lado, em termos de condições de vida da arguida, a sua evolução recente demonstra que vai no sentido da sua progressiva dessocialização, e nem sequer assumiu na sua plenitude os factos por si praticados, pelo que, não podemos concluir que está arrependida, e muito menos que, com a simples censura do facto e ameaça da pena se afastará deste tipo de criminalidade".
52- Pelo que deveria ter sido aplicada à arguida uma pena próxima dos limites mínimos e necessariamente suspensa na sua execução, nos termos do art. 50.0 do C.P., considerando que no seu caso as necessidades de prevenção especial são diminutas sendo possível fazer-se um juízo de prognose favorável, de que a arguida, se estiver em liberdade, se afastará da criminalidade, situação que ocorreu como resulta dos factos, a mesma deixou de consumir, unicamente pela mera censura do facto de que a mesma se consciencializou só com a instauração do inquérito, o que se dirá com a ameaça da execução da pena de prisão. Pelo que se impõe uma reponderação da conduta da arguida e consequente reapreciação do tipo de crime praticado e da moldura penal atinente ao mesmo.
53- Considera assim a recorrente que a douta sentença violou por erro de interpretação e aplicação o estatuído no art. 710 C.P., impondo-se a este tribunal de recurso atender ao ai estatuído.
Nestes termos e nos mais de direito, que Vossas Exas. Doutamente suprirão, deverá o presente recurso merecer provimento e em consequência deverá: - o douto acórdão recorrido ser declarado nulo e determinado o seu reenvio, nos termos do n. 1 do Art.O 426.0-A do C.P.P.,

Caso Vossas Exas. assim não o entenderem: - deve em todo o caso ser revogado o Acórdão recorrido e ser substituído por outro com a alteração da matéria de facto atenta a prova gravada produzida, e a alteração jurídica aduzida, com consequente alteração da moldura penal e com a aplicação de uma pena próxima dos limites mínimos e suspensa na sua execução à aqui arguida, uma vez que o tipo de ilícito não se coaduna com uma dispensa da pena.


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Respondeu o Digno Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal da Comarca concluindo que deve ser negado provimento ao recurso e manter-se na íntegra a sentença recorrida.

A Exmª. Procuradora-geral Adjunta neste Tribunal da Relação emitiu douto parecer defendendo a manutenção do decidido.

Foi cumprido o disposto no artigo 417º n.º 2 do Código de Processo Penal.


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B - Fundamentação:

B.1.1 - O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:

1. No dia 18 de Julho de 2013, pelas 14h30, a arguida TBF guardava (detinha), na sua residência, “CC”, sita no Sítio do SC, P, em L, o seguinte:

a) No jardim da residência:

_ cinquenta e duas plantas de canabis (FLS/SUMID.) com o peso líquido total de 4937,100 g (divisível em 7899 doses), com várias medidas entre os 20 cm e os 2,50 metros, sendo que, uma destas foi já cortada e colocada em fase de secagem;

- um saco castanho contendo no interior seis frascos de fertilizantes utilizados as plantas de cannabis;

b) No estúdio de pintura utilizado pela arguida TF:

- várias folhas de cannabis (FLS/SUMID.) que se encontravam acondicionadas em sacos plásticos, os quais, por seu turno, se encontravam no interior de uma saco de desporto, de cor azul, ostentando a marca "Adidas";

- um moinho, para moer folhas de cannabis, em alumínio de cor cromado;

- uma caixa preta contendo no interior sementes de cannabis, um livro com instruções sobre a planta de cannabis e vários sacos em plástico vulgarmente utilizados com vista à embalagem de cannabis para venda em doses individuais;

c) No corredor:

- Uma planta de cannabis, pendurada numa corda, em fase de secagem repartida em duas partes.

2. Nos compartimentos da habitação em 1., alíneas b) e c), o cannabis que aí se encontrava (detido pela arguida TF) tinha o peso líquido de 956,600 g (divisível em 2372 doses).

3. Na residência referida em 1. habita também o companheiro da arguida TF, o arguido AGS, o qual aí detinha, nesse imóvel, no escritório, mais concretamente no interior de uma caixa que se encontrava numa estante ali existente uma pistola semiautomática, marca "FN Browning", modelo "Hl'", calibre 9mm, a qual se encontrava em bom estado de conservação e funcionamento.

4. A arguida TF destinava parte do produto estupefaciente ao seu consumo, sendo que, outra se destinava a vender, obtendo desta forma ganhos monetários.

5. A arguida TF conhecia as características estupefacientes. do sobredito produto e, bem assim que, o seu cultivo, compra, consumo, detenção, uso, oferta e venda são proibidos.

6. O arguido AS não é possuidor de qualquer licença de uso e porte de arma, bem sabendo que não lhe era lícito deter a arma identificada em 3., porquanto não ignorava que esta se encontrava fora das condições legais, e em contrário com as prescrições das autoridades competentes, e bem assim que a sua conduta era proibida.

7. Ambos os arguidos agiram de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo serem proibidas as suas descritas, respetivas condutas.

8. De proveniência holandesa o arguido AGS, aos 57 anos, mantém interesse em permanecer em Portugal onde se situam as suas referências.

9. O arguido, após concluir o curso de mecânico de automóveis, autonomizou-se da família de origem.

10. Esteve uns meses a trabalhar como taxista, formou-se como piloto de aviação nos Estados Unidos da América, passou um período a conhecer Africa e em seguida veio trabalhar em Portugal, onde se encontra desde 2002 e aqui conduz, atualmente, (…).

11. Teve uma experiência laboral vasta como taxista, mecânico de automóveis, soldador, capitão de barco semi-rigido e desde 2003 empresário da "Algarve-Offroad ", empresa direcionada para passeios turísticos em motas de todo-o-terreno, no Algarve.

12. No período de Verão trabalha na empresa “S” onde conduz uma embarcação para passeios de observação de golfinhos, baleias e, parte do Inverno, trabalha na sua própria empresa, como guia nos passeios.

13. Vive em união de facto com a coarguida TBF, há mais de nove anos.

14. O casal centrava os projetos de vida conjuntos em assegurar a viabilidade da atividade que desenvolviam, e em preservar o gosto pelas motas.

15. Desde 2012 que a rentabilidade da empresa é menor, motivando a venda de viaturas e obrigando a reajuste nas condições de vida do casal, com mudança de residência para uma habitação mais económica, a arguida passou a ficar em casa, sendo o arguido quem assegura o trabalho fora de casa.

16. A arguida tem vivenciado com penosidade perdas (de autonomia económica, morte de familiares e amigos) levando-a a um estado emocional frágil.

17. Conta com o suporte de amigos e manteve hábitos de consumos de substâncias estupefacientes, com conhecimento do arguido.

18. O presente processo surge como uma ocorrência inédita no percurso vivencial do arguido, que apresenta capacidade de autocrítica e sentido de responsabilidade pelos seus atas, reconhecendo a ilicitude dos factos objeto do presente processo.

19. O arguido vê com preocupação a situação da companheira, sendo mantido entre ambos um apoio mutuo.

20. O arguido não tem antecedentes criminais.

21. Confessou integralmente e sem reservas os factos de que vinha acusado, mostrando-se arrependido.

22. A arguida TBF, cidadã alemã, veio para Portugal há 15 anos, junto ao então companheiro, juntando-se a familiares dele que já cá se encontravam.

23. No país de origem tinha um trabalho de tipo administrativo, que complementava com a atividade de vitralista.

24. O contexto relacional e interesses na idade adulta foram marcados pelas ligações ao universo e estilo de vida da música rock, integrando o seu primeiro companheiro, músico, uma banda de renome.

26. Adepta da velocidade e motos, sempre apreciou viajar e uma vida sem grandes compromissos.

27. Já depois da mudança para Portugal, regista a separação do primeiro companheiro, mas como tinha rede de amigos conterrâneos foi ficando.

28. Nesta fase, em 2004, conheceu o coarguido AGS, para quem começou a trabalhar na empresa “AO” - DA Unipessoal, Lda., sedeada na MG.

29. Mantém, até agora, a relação marital, assim como a colaboração na empresa do companheiro. Começou por ser guia nos grupos de atividades todo-o-terreno, depois passou para funções de motorista do autocarro de transfers.

30. Contudo, em Agosto de 2012, a arguida TF, apesar de inscrita na Segurança Social da base de dados de mesma, não constava, à data, qualquer registo contemporâneo de remuneração auferida por esta.

31. No final do verão de 2012, com a entrada em crise da empresa (obrigada a alienar algum património, incluindo o autocarro que era o posto de trabalho da arguida) e o falecimento de alguns amigos, intensificou hábitos de consumo de cannabis, caindo num ciclo depressivo.

32. Revela, ainda, preocupação com a progenitora, que também se mudou para Portugal há 5 anos e agora se encontra com sinais de demência, problema que a arguida manifesta dificuldade em gerir.

33. O confronto judicial é encarado pela arguida como mais uma ocorrência negativa, agravante da sua situação. Revela noção da dimensão criminal dos factos e sentido da responsabilidade na situação, ainda que considere a acusação pouco criteriosa nalguns aspetos.

34. Passou a permanecer mais tempo no espaço habitacional, onde além das lides domésticas, se dedica à pintura artística, como passatempo.

35. Não tem rendimentos próprios, debatendo-se com algumas dificuldades, e avaliando globalmente a situação como de pouco desafogo, mas sem carências de maior.

36. Os arguidos residem, agora, na zona de P, em meio relativamente isolado, em moradia cedida por amigos, a quem pagam uma renda mensal de €250.

37. A arguida não tem antecedentes criminais.


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B.1.2 - Factos não provados:

- A arguida destinava, ao seu consumo, a totalidade das substâncias estupefacientes referidas nos pontos 1. e 2. dos factos provados (provou-se que apenas parte se destinava ao seu consumo);

- A arguida, com os factos referidos nos pontos 1. e 2. dos factos provados, tinha por finalidade exclusiva conseguir plantas, substância ou preparações para uso pessoal;

- A arguida esteja arrependida da prática dos factos de que vinha acusada.


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B.1.3 - E apresentou as seguintes razões para fundamentar a matéria de facto:

«Dispõe o art° 374°, n. 2 do CPP, na parte em que estabelece os requisitos da fundamentação da decisão da matéria de facto, que "a fundamentação" deve conter "uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de factos ( ... ) que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal".

Deste modo, passamos a fazer uma exposição concisa, mas completa, dos motivos que levaram o Tribunal a dar como provados e como não provados os factos supra referidos, indicando os meios de prova que serviram para formar a convicção do Tribunal e fazendo o seu exame crítico, cabendo neste, a razão de ciência das testemunhas (em que o Tribunal se baseou), a forma como depuseram e a sua relação com o litígio, os tipos de documentos em que o Tribunal se baseou, seu valor e origem, bem como o valor, origem e credibilidade da demais prova que acudiu à formação da convicção do julgador, sem esquecer o recurso às regras da experiência comum.

Evitaremos reproduzir o teor da prova, uma vez que, tal não constitui requisito legal para a fundamentação da decisão da matéria de facto, sendo o seu conteúdo sindicável, não por via da motivação da decisão da matéria de facto, sim por através da leitura dos documentos e relatórios periciais e da audição das gravações dos depoimentos prestado.

a) Quanto aos factos provados:

O Tribunal fundou a sua convicção, quanto aos factos que resultaram provados constantes da acusação, nos depoimentos dos arguidos e das testemunhas (…), prestados em sede de julgamento, nos autos de apreensão de fls. 23 a 26, planta (a fls. 27) e reportagem fotográfica (fls. 29 a 33) anexas a tal auto, nas reportagens fotográficas e fotografias de fls. 8 a 11, 114 e 115, nos relatórios periciais de fls. 142 e de fls. 114 e 115, na informação sobre registo de armas de fls. 108 e na informação da Segurança Social de fls. 91, bem como na conjugação entre si de todos os referidos elementos de prova e na sua conjugação com as regras da experiência comum e análise à luz destas.

Desde logo, o arguido confessou integralmente e sem reservas a totalidade dos factos de que vinha acusado, fazendo-o de forma sincera, livre, esclarecida e sem reservas, numa postura demonstrativa de sincero arrependimento, que mereceu, portanto, a credibilidade do Tribunal. O seu depoimento foi ainda confirmado pelo teor do auto de busca e apreensão (do qual resulta ter a arma referida nos factos provados sido apreendida no local e na data constantes dos factos provados) e pelo exame pericial à arma apreendida (do qual resultam quais as caraterísticas da arma, nos precisos termos constantes dos factos provados).

A arguida confessou todos os factos de que vinha acusada (numa confissão livre, esclarecida e sincera), com exceção do facto de destinar parte das substâncias estupefacientes à venda, (facto este último) que negou, numa tentativa pouco consistente, mas compreensível, de aligeirar a sua responsabilidade penal.

O depoimento da arguida, na parte em que confessou os factos de que vinha acusada, é confirmado pelo teor do auto de busca e apreensão, pelas reportagens fotográficas e pelo relatório toxicológico, dos quais resultam os locais onde se encontravam e as características e quantidades das substâncias estupefacientes apreendidas.

No que concerne à finalidade do estupefaciente apreendido, ou seja, que parte se destinava à venda, resulta da conjugação de diversos factos entre si e com as regras da experiência comum.

Efetivamente, não só a enorme quantidade de substâncias estupefacientes apreendidas (só plantas eram 52), mas também a divisão em diversas doses, prontas a serem comercializadas e vendidas, estando aliás, já acondicionadas em (14) sacos (cfr. Fls. 142) e estes dentro de um saco de viagem para seguirem o seu destino, como resulta, nomeadamente das fotos ns. 13 e 14 (e também do auto de apreensão), sendo que, tais substâncias, mesmo só as prontas a consumir e acondicionadas em sacos, dariam para mais de duas mil doses, conforme concluiu o relatório pericial de fls. 142. Face à conjugação de todos estes fatores entre si e vistos e analisados à luz das regras da experiência comum, necessariamente que se impôs ao Tribunal a conclusão de que o cannabis, pelo menos em parte (e a sua maior parte) se destinada à venda, sendo de afastar, pelas razões expostas, a versão ensaiada pela arguida de que iria consumir toda a substância estupefaciente apreendida.

Aliás, as próprias testemunhas de defesa vierem infirmar a versão da arguida de que consumiu por razões terapêuticas, ao referiram que a arguida consumia regularmente e até o fazia em festas.

As testemunhas (…), militares da GNR, que procederam á busca à residência dos arguidos e procederam à respetiva detenção, relataram a factualidade plasmada nos autos de busca e apreensão, esclarecendo o Tribunal sobre tal matéria. Tais depoimentos, quer pela sua razão de ciência, quer pela isenção e ausência de interesse directo no desfecho da causa, já que se tratam de militares da GNR, no exercício de funções, mereceram a credibilidade do Tribunal.

Os referidos relatórios periciais, por proveniente de entidades isenta e de reconhecido valor científico, mereceram-nos igualmente credibilidade, bem como os autos de busca e apreensão acima citados e reportagem fotográfica, elaborados pelos militares da GNR que procederam à busca e apreensões, que pela isenção da entidade que os elaborou, nos mereceram igualmente credibilidade. Também nestes elementos de prova, e pelas mesmas razões, se baseou o Tribunal, como já referimos, quanto às características da arma apreendida ao arguido.

No que concerne à situação pessoal, familiar e económica dos arguidos, respetivo percurso de vida, personalidade e atitude perante os factos de que vinha acusado, baseou-se o Tribunal nos relatórios sociais dos arguidos, juntos aos autos, cuja finalidade é precisamente o apuramento da situação pessoal e social dos arguidos, são provenientes de entidade isenta, elaborados com recurso a conjunto de fontes e diligências aptas ao apuramento' dos factos referidos, e nenhum outro elemento de prova constante dos autos contraria ou infirma os factos que o Tribunal deu como provados com base rios referidos relatórios, pelo que os mesmos nos mereceram credibilidade. E ainda, na postura dos arguidos em julgamento

Quanto aos antecedentes criminais, o Tribunal baseou-se nos mais recentes certificados de registo criminal do arguido e da arguida, constantes dos autos.

b) Quanto aos factos não provados:

No que concerne aos factos não provados, assim se decidiu porquanto, nenhuma prova se produziu a respeito dos mesmos.»


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Cumpre conhecer.

B.2 – É sabido que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência, ou não, dos vícios indicados no art. 410°, n.° 2, do Código de Processo Penal de acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das secções do STJ de 19/10/95 in D.R., I-A de 28/12/95.

Assim, em concreto a arguida trata as seguintes questões:

a) – da existência de nulidade por violação do contraditório e de nulidade do acórdão por valoração dessa prova – conclusões 2ª a 8ª;
b) – da invocação de contradição e erro na apreciação da prova – conclusões 9ª a 25ª;
c) – da qualificação jurídica dos factos – conclusões 26ª a 42ª;
d) - da pena – conclusões 43ª a 53ª;

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B.3 – Na primeira questão a recorrente desdobra os fundamentos probatórios em dois, um por não ter conseguido contra inquirir testemunhas sobre o peso dos estupefacientes apreendidos, outro sobre as perícias.

Desde já convém chamar a atenção para a circunstância de o peso das substâncias apreendidas ser feito pelo LPC – como se constata realizado no relatório toxicológico de fls. 142 – e que será esse peso marcante na medida em que resultante de uma perícia.

Isto não obsta, como é claro, que a arguida pudesse contra inquirir as testemunhas sobre as plantas apreendidas, suas características e seu peso. Daí que a recorrente tenha invocado uma postura do tribunal que lhe inviabilizou o exercício do contraditório através do impedimento de formulação de questões sobre essa matéria.

Não negando que tal possa ter ocorrido e que, assim, existisse violação do contraditório, certo também é que se desconhece se efectivamente ocorreu e se não mostra existente a devida acção em momento próprio, seja por requerimento ou reclamação e, principalmente, por inexistência de recurso interlocutório que incidisse sobre essa sua pretensão probatória, após requerimento ou reclamação.

Que é como quem diz: se a arguida foi impedida de exercer o contraditório quanto a uma ou mais testemunhas isso, sendo matéria de regras de produção probatória, impunha-lhe uma reacção imediata a requerer a sua concretização ou a remoção dos obstáculos a tal e, não atendida, a interpor recurso sobre tal matéria.

Tratando-se – a existir – de uma irregularidade processual, fica a mesma sanada pelo decurso do prazo de três dias previsto no artigo 123º, n. 1 do Código de Processo Penal.

A segunda razão de inconformidade diz respeito às perícias, sua notificação e exercício do contraditório.

A tese da recorrente pode, até, colher alguma simpatia, mas colide com um princípio base, o de que um recurso é algo de concreto ocorrido num processo e não a definição de uma tese a propósito do exercício do contraditório quanto às perícias.

Esse é, de facto, um tema a desenvolver e a ponderar em termos legislativos e, até, de jurisprudência constitucional, mas a base factual falha na medida em que, junta a perícia aos autos, a reacção da arguida deveria, também, ser imediata invocando a não notificação da perícia e requerendo o contraditório no inquérito.

É claro que esta tese sempre se depararia com a natureza do sistema pericial e processual penal português com um inquérito inquisitório, que torna difícil a sua subsistência como tese, isto é, que permita o exercício do contraditório antes ou durante a realização da perícia em sede de inquérito, mas sendo tese difícil, sempre seria interessante ver defendida. [1]

É sabido que uma perícia deve sujeitar-se aos princípios da igualdade de armas e do contraditório e que isso implica, no mínimo, a possibilidade de tomar conhecimento das observações ou elementos de prova produzidos pela outra parte, bem como a possibilidade de as discutir (T.E.D.H. acórdão Brandstetter v. Austria, par. 67).

Mas, em princípio, a possibilidade de a contraditar em audiência de julgamento até através dos esclarecimentos aos peritos será suficiente para o cumprimento de tal princípio.

Se é certo que um qualquer caso concreto – essencialmente em perícias médicas - pode complicar esta base de trabalho e determinar que a simples possibilidade de discutir o relatório da perícia em audiência de julgamento não seja suficiente para que se considere que à “contraparte” tenha sido assegurada a possibilidade de submeter eficazmente os seus “comentários” no momento da realização da perícia (acórdãos Cottin v. Bélgica [2] e Mantovanelli v. França [3]), falando mesmo o T.E.D.H., no acórdão Cottin v. Bélgica (onde estava em causa uma perícia médica), em direito a participar na sessão de realização da perícia (par. 32), aqui trata-se de uma “perícia” onde o seu essencial é um “exame” à identificação, peso e características do produto que, tudo, não justifica a tese extrema da “presença na realização” da perícia de consultores técnicos.

Basta o controle da credibilidade da perícia, a possibilidade de contraditório em audiência e a possibilidade de solicitar – com base nas amostras recolhidas e guardadas – nova perícia, para que se entenda cumprido o contraditório.

Outra questão limita, no entanto, essa possibilidade de conhecimento da questão colocada pela recorrente: a inexistência de reacção da arguida no momento em que se deve considerar como notificada por ter conhecimento da perícia nos autos.

Esta consta de fls. 142 e foi junta aos autos em 15-10-2013 e logo de seguida foi deduzida a acusação, que a ela faz referência. A arguida deveria ter então reagido a uma suposta invalidade processual.

Não o tendo feito, essa invalidade encontra-se sanada nos termos do artigo 123º do C.P.P.

Ou seja, nenhuma das nulidades invocadas pela arguida se encontra “não sanada” para os efeitos do disposto no nº 3 do artigo 410º do Código de Processo Penal, pelo que o recurso é, nesta parte, manifestamente improcedente.


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B.4 – É por demais patente que a recorrente não cumpriu os ónus recursivos previstos no artigo 412º, ns. 3 e 4 do Código de Processo Penal.

Recentemente o STJ, por acórdão de fixação de jurisprudência nº 3/2012 consagrou, sobre o ónus de impugnação recursal:

«Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às provadas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».

Podemos concluir que as exigências se apresentam agora com uma configuração alternativa quanto a um dos requisitos e ao recorrente é exigível que cumpra os seguintes ónus processuais:

§ A indicação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (al. a) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal);

§ A indicação das provas que impõem decisão diversa da recorrida (al. b) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal);

§ Se a acta contiver essa referência, a indicação das passagens em que se funda a impugnação por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364 (nº 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal);

§ Ou, alternativamente, se a acta não contiver essa referência, a identificação e transcrição nas motivações de recurso das ditas “passagens” dos meios de prova oral (declarações, depoimentos e esclarecimentos gravados).

E, há que convir, o recorrente não cumpriu, de forma cabal, completa e explícita o seu ónus de impugnação factual, nem nas motivações nem nas conclusões.

Assim, teremos que limitar o nosso conhecimento aos vícios de conhecimento oficioso previstos no nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, desde que contidos no texto da decisão recorrida e desde que suscitados pelo recorrente nas motivações e conclusões.

Isto é, devemos conhecer da existência de erro notório na apreciação da prova e contradição insanável nos factos e apurar se do texto da decisão recorrida se deduz um mau uso do princípio da livre apreciação da prova.

A primeira questão suscitada pelo recorrente diz respeito ao peso do estupefaciente apreendido e à suposta qualidade das plantas como material estupefaciente.

Apesar de ser acertado qualificar a cannabis como planta dióica, também é certo que a planta masculina morrendo em regra ou sendo extraída após a polinização da planta feminina, apresenta as mesmas quantidades de canabinóides e a perícia não a incluiria na Tabela I-C se não fosse caso disso.

Aqui, como já afirmado, o especial valor probatório que deve ser atribuído a uma perícia – o relatório toxicológico de fls. 142 – fixa tais características, quer a qualidade estupefaciente das plantas (folhas e sumidades a integrar na Tabela I-C), quer a sua quantidade (ali também espelhada em 4 937,000 gr e 956,600 gr).

Por isso quer a alegação de ignorância do sexo das plantas quer a sugestão de se ignorar o seu peso não têm o gravame que o recorrente pretende.


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B.5 – É diverso o entendimento que se tem da alegação da inexistência de prova quanto à intenção da arguida vender o produto apreendido, tal como resultou provado em 4).

O próprio teor da decisão recorrida é claro na afirmação de que prova directa sobre esta matéria inexistiu nos autos e o facto dado como provado em 4) resulta da conjugação de vários factores, desde a quantidade de plantas e a divisão em doses “prontas para serem comercializadas e vendidas”, por referência expressa às fotos ns. 13 e 14 (fls. 31 dos autos).

Quer-nos parecer que tais elementos não permitem concluir que a arguida destinava tal produto à venda a terceiros. Permite apenas concluir que a arguida a não destinava exclusivamente ao seu consumo imediato.

De facto, nenhum elemento probatório recolhido permite sustentar a sugestão de existência de um circuito comercial e a simples referência ao frequente consumo de estupefaciente pela arguida em festas abre a porta à possibilidade séria de que o destino da droga, para além de parte não quantificável ao seu consumo, se destinava à eventual cedência a terceiros, pois que as quantidades já secas e em secagem demonstram serem excessivas para o exclusivo consumo individual imediato. Em que moldes? Isso não parece ser possível presumir, sequer por presunção simples.

Assim, haverá que retirar do facto provado em 4) a expressão “outra se destinava a vender, obtendo desta forma ganhos monetários” e substituí-la pela expressão outra se destinava à cedência a terceiros”.

Desta forma haverá que concluir ter a arguida razão neste ponto, assim como deixar de existir contradição entre este facto provado em 4) e o facto dado como provado em 35).


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B.6 – Ainda em sede de erro notório na apreciação da prova invoca a arguida contradição entre os factos provados em 33) e a circunstância de o tribunal recorrido ter dado como não provado o seu arrependimento.

Diz aquele artigo 33º dos factos provados: “33. O confronto judicial é encarado pela arguida como mais uma ocorrência negativa, agravante da sua situação. Revela noção da dimensão criminal dos factos e sentido da responsabilidade na situação, ainda que considere a acusação pouco criteriosa nalguns aspetos”.

Ora, isto não é arrependimento. Isto é, apenas, manter a noção da realidade e das consequências dos seus actos.

É, pois, improcedente esta razão de inconformidade da recorrente.


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B.7 – Já em sede jurídica, designadamente em sede de qualificação dos factos, de integração tipológica, argui a recorrente com a integração no artigo 25º ou no artigo 26º do Dec-Lei nº 15/93, de 22-01.

Pode afirmar-se que o tipo penal contido no art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22-01, que define o crime de tráfico e outras actividades ilícitas relacionadas com substâncias estupefacientes, se apresenta como um tipo “abrangente”, descrevendo os elementos objectivos do tipo de forma a quase não deixar fora da sua previsão qualquer ligação factual a um estupefaciente previsto nas tabelas do diploma.

De facto ali se dispõe que comete tal ilícito quem, sem a devida autorização legal, “cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver” comete o ilícito típico, naquilo que é a definição de um crime de perigo comum e abstracto.

E, no caso dos autos, a arguida cultivava, preparava, detinha (independentemente da intenção de ceder a terceiros, que sempre seria irrelevante para a integração tipológica), pelo que preencheu o tipo legal.

Assim, a circunstância de se ter dado como não provada a intenção de venda não teve reflexo directo na qualificação jurídica dos factos na medida em que a arguida detinha estupefaciente em grandes quantidades que afastam a integração da sua conduta nos tipos contidos nos artigos 26º e 40º do Dec-Lei n. 15/93 e o artigo 2º, da Lei n. 30/2000, de 29 de Novembro.

Questão está em saber se a sua conduta se pode reconduzir a um dos tipos penais privilegiados contidos nos artigos 25º (Tráfico de menor gravidade) e 26º (Traficante-consumidor) do diploma.

Que não pode relativamente a este último é um dado claro por duas razões.

Desde logo porquanto se não pode concluir que a arguida tinha por “finalidade exclusiva conseguir plantas, substâncias ou preparações para uso pessoal”. Não se põe em causa que também tivesse essa intenção, mas o também excluiu a exclusividade da finalidade.

Depois porque funciona a delimitação negativa do tipo contida no nº 3 do preceito na medida em que as quantidades detidas ultrapassam a “quantidade que exceda a necessária para o consumo médio individual durante o período de cinco dias”, como se constata pelos factos provados e na Tabela Anexa à Portaria nº 94/96, de 26 de Março, que define a dose média individual diária.

Assim, nos termos do artigo 26.º, nº 3 do Dec-Lei nº 15/93, não é “traficante-consumidor” o agente que “detiver plantas, substâncias ou preparações em quantidade que exceda a necessária para o consumo médio individual durante o período de cinco dias”.

Essencial será, então, apurar o que seja “consumo médio individual diário” já que a inserção naqueles preceitos disso está dependente.

Esta é uma definição elementar porque depende de dois simples factores: a natureza do produto e a quantidade definida como “limite quantitativo máximo” constantes das colunas do Mapa anexo à Portaria.

Esses serão, então, os factos: a natureza do produto, a sua quantidade e – para a cannabis - a definição das qualidades do produto das alíneas da nota 3 do Mapa anexo. No caso concreto, tratando-se de flores e sumidades esta quantidade, nos termos da Portaria n. 94/96 é de 12,5 gr. (Mapa Anexo – cannabis – folhas e sumidades – 2,5 gr x 5). Ou seja, a quantidade possuída pela arguida é bastamente superior ao dito limite para o consumo médio por cinco dias.

Quanto ao primeiro tipo supra referido, tem sido posição constante da jurisprudência portuguesa que nele - artigo 25º do Dec-Lei nº 15/93, de 22-01 - se prevê uma ilicitude do facto consideravelmente diminuída, por referência à constante do artigo 21º do diploma, através da indicação de elementos factuais inseríveis na ilicitude do facto como indicadores dessa menor ilicitude e que devem ser analisados de forma global.

Daí pretende-se que decorra, da menor gravidade do ilícito, um mais atenuado tratamento penal e um tratamento mais equitativo ou proporcional dos factos praticados, o que se concretiza no afastar da aplicabilidade do artigo 21º do diploma.

É disso exemplo o Ac. do STJ de 24-01-2007 (Proc. 06P3112 - Cons. Santos Monteiro):

I - O tipo legal de crime de tráfico de menor gravidade, construído sobre o tipo matriz, ou seja sobre o tipo-base previsto no art. 21.°, n.º 1, do DL 15/93, de 22/1, procura dar resposta, em nome da proibição de excesso, da equidade e da justiça, àquelas situações que, sem atingirem a gravidade pressuposta no tráfico simples, merecem reprovação, sendo injusto, sem se lançar mão de atenuação especial, não diversificar os campos de incidência, revelando-se, ainda, a perseguibilidade penal como um dos mais eficazes métodos para se atingir o tráfico no seu escalão médio e de maior dimensão.

II - A gravidade à escala assim delineada encontra tradução na conformação da acção típica, enquanto não prescinde de a ilicitude, ou seja o demérito da acção típica, na sua expressão de contrariedade à lei, ser consideravelmente reduzida, um acto de repercussão ética de menor gravidade, em função da consideração, além do mais, dos meios utilizados, da modalidade ou circunstância da acção, da qualidade ou quantidade das substâncias ou preparações – al. a) daquele art. 25.º.

III - Essa ponderação, tal como este STJ tem repetidamente afirmado, não prescinde, antes exige, uma valoração global do evento, sem fazer avultar um seu elemento em detrimento do outro.

Assim, a consideração da “diminuição considerável da ilicitude do facto”, apresenta índices de ponderação assentes na consideração dos meios utilizados, da modalidade ou das circunstâncias da acção, da quantidade ou qualidade do produto traficado ou a traficar. [4]

Os índices de ponderação são, pois, características relativas ao facto (ou factos, no caso) que determinarão a resposta à questão colocada.

Ora, que revelam os factos provados?

Que há que reconhecer que o produto apreendido revela menor ilicitude e que a sua quantidade, não sendo pequena, foi manifestamente exacerbada pelo tribunal recorrido que se impressionou com a quantidade de plantas existentes no local, em diferente condição, desde as plantadas às já secas e tratadas, a fazer pressupor uma acção de recolecção à medida que o crescimento, polinização e secagem das plantas se desenvolve no tempo e a permitir a sua “colheita”, consumo e cedência ao longo do tempo.

Quanto à modalidade e circunstâncias da acção é de notar que não há a mínima prova de qualquer acto já ocorrido ou a ocorrer que patenteie qualquer acto de venda ou simples cedência.

A possibilidade de esta “cedência” ocorrer está ligada à quantidade de estupefaciente apreendido e ao tipo de mentalidade e de vida evidenciado pela recorrente, bem demonstrado pelos factos provados em 24) e 26) - (por lapso inexiste o facto 25). [5]

Os factos constantes de 16) e 31), a maior fragilidade e o estado depressivo terão tendência para aumentar o consumo e agudizar a “ânsia” recolectora.

Tudo visto, um juízo global dos factos, apesar da quantidade, aponta para uma diminuição considerável da ilicitude.

Assim, entendemos que se pode falar em diminuição da ilicitude e que a conduta da arguida se pode subsumir ao tipo penal contido no artigo 25º do Dec-Lei nº 15/93, de 22-01.


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B.9 - Analisemos, então, a medida concreta da pena.

Definida a moldura penal abstracta, haverá que encontrar o quantum concreto da pena a aplicar à arguida. Na determinação desse quantum concreto haverá que fazer apelo às necessidades de prevenção e à culpa da arguida, na sequência do comando contido no artigo 71º, nº 2 do Código Penal.

É afirmação habitual da doutrina, com seguimento jurisprudencial, [6] que a prevenção geral positiva ou de integração, com o intuito de tutela dos bens jurídicos é a finalidade primeira da aplicação de uma pena, não fazendo esquecer a prevenção especial ou de socialização, a reintegração do agente na sociedade - art. 40.º, n.º 1, do CP.

Funcionando em “ambivalência” com as necessidades de prevenção, a culpa, a vertente pessoal do crime, o cunho da personalidade do agente tal como vertida no facto, funciona como um limite às exigências de prevenção geral.

Assim, o limite máximo da pena fixar-se-á, em função da dignidade humana do condenado, pela medida da culpa revelada, que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que social e normativamente se imponham, enquanto o seu limite mínimo é delimitado pelo quantum da pena que em concreto ainda realize eficazmente aquela protecção dos bens jurídicos.

Apuremos, então, quais os elementos de facto determinantes para a determinação da pena concreta, nos termos do artigo 71.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.

Haverá que relembrar que a arguida agiu com dolo directo, que é elevada a necessidade de prevenção de futuros crimes, a confissão parcial da arguida e a circunstância de a mesma ser primária entende-se adequada uma pena de três anos de prisão, que deve ser suspensa na sua execução por igual período de tempo.


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C - Dispositivo:

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal de Relação de Évora em conceder parcial provimento ao recurso interposto e condenam a arguida, pela prática de um crime de tráfico de droga de menor gravidade, contido no artigo 25º do Dec-Lei nº 15/93, de 22-01, na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período.

Notifique. Sem tributação.

(elaborado e revisto pelo relator antes de assinado).

Évora, 16 de Junho de 2015

João Gomes de Sousa

Felisberto Proença da Costa

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[1] - A propósito, o estudo do relator “A perícia” técnica ou científica revisitada numa visão prático-judicial”, in revista Julgar n.º 15 / Setembro-Dezembro / 2012, pags. 35 a 38 (26-52).

[2] - De 02-06-1995, par. 33.

[3] - De 17-02-1997, par. 36.

[4] - Da abundante jurisprudência sobre esta matéria apenas se refere, por todos, o acórdão do STJ de 21-09-2011, por ser dos mais recentes.

[5] - «24. O contexto relacional e interesses na idade adulta foram marcados pelas ligações ao universo e estilo de vida da música rock, integrando o seu primeiro companheiro, músico, uma banda de renome. 26. Adepta da velocidade e motos, sempre apreciou viajar e uma vida sem grandes compromissos».

[6] - V. g., dos mais recentes, os Acs. do STJ de 24-01-2007 (06P4345), de 25-10-2006 (06P2938) e de 21-03-2007 (07P790).