Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3995/18.4T8FAR.E1
Relator: JOSÉ ANTÓNIO MOITA
Descritores: INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
TEORIA DE IMPRESSÃO DO DESTINATÁRIO
Data do Acordão: 04/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: As regras interpretativas dos negócios jurídicos, mormente as que derivam dos artigos 236º, nº 1 e 238º, ambos do Código Civil, entendidas no âmbito da chamada teoria da impressão do destinatário, devem respeitar ainda o principio da interpretação contextual e sistemática, que pressupõe a consideração das expressões utilizadas na declaração negocial não só de per si, mas igualmente numa perspectiva mais abrangente, ou seja do negócio visto no seu todo, atendendo-se, como tal, também, às circunstâncias que rodearam a sua celebração.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Apelação nº 3995/18.4T8FAR.E1
Comarca de Faro – Juízo Central Cível de Faro – Juíz 1

Apelante: (…) International, Lda.
Apelada: Monte da … (Propriedades), S.A.

Sumário do Acórdão
(da exclusiva responsabilidade do relator – artigo 663º, nº 7, do C.P.C.)
(…)
***
I – RELATÓRIO

“(…) International, Lda.” instaurou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra “Monte da … (Propriedades), S.A.” pedindo que esta seja condenada a condenada a ré a pagar-lhe a quantia de € 3.746.477,10 (três milhões, setecentos e quarenta e seis mil, quatrocentos e setenta e sete euros e dez cêntimos), acrescida dos juros de mora, à taxa legal de 7%, que se vencerem desde a citação até ao efetivo e integral pagamento.
Citada, a Ré contestou a acção, através de defesa por impugnação, pugnando, a final, pela sua absolvição do pedido.
Agendou-se e realizou-se audiência prévia, foi proferido despacho saneador, bem como despachos que identificaram o objecto do litigio e os temas de prova.
Após, agendou-se e realizou-se a audiência final, tendo subsequentemente sido proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“Nesta conformidade decido julgar a ação totalmente improcedente, por não provada e, por conseguinte, absolvo a ré do pedido que contra si foi dirigido.
Custas da ação pela autora, por ter dado causa à ação e nela ter ficado vencida (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Registe e notifique”.

Inconformada com a decisão, a Autora apresentou requerimento de recurso alinhando as seguintes Conclusões:
“Da prova produzida, nomeadamente a prova testemunhal analisada acima, deverá considerar-se
como provado que:
a) o contrato de gestão comportar duas modalidades: a venda das fracções ou a gestão do Hotel;
b) a (…) apenas assinou o contrato de gestão em apreço por ter, mais que a firme convicção, a certeza de que … (o que é dizer a …) iria proceder ao pagamento do empréstimo, dado que este lhe facultou prova da existência de fundos mais que suficientes para o efeito;
c) foi por isso que não foi prevista especificamente na cláusula 6.3.1 a venda judicial das fracções;
d) a percentagem de 10% constante da dita cláusula resultava da soma de duas parcelas, de 5% cada, uma referente à comissão pela venda de cada uma das fracções que compunham o Hotel, outra destinava a indemnizar a (…) pela impossibilidade de gerir o Hotel se as fracções fossem vendidas antes de atingido o termo (de dez anos) do contrato de gestão;
e) logo ao assinar o contrato de gestão, a apelante gerou a convicção de que, na venda das fracções, se veria privada da exploração do Hotel.
2º A interpretação dos contratos deverá ser feita de acordo com o princípio da boa-fé na negociação dos contratos, não considerando apenas a interpretação literal, mas também a sistemática e a circunstancial, das suas cláusulas.
3º A circunstância de um mutuário não proceder ao pagamento de um empréstimo porque não pode, ou porque não quer, deverá ser valorada de forma diferente, nomeadamente quando a intenção do mutuário de omitir tal pagamento se destina a provocar uma venda judicial dos bens dados como garantia desse empréstimo.
4º O contrato de gestão trazido a juízo é sinalagmático.
5º A atitude da apelada (…) em omitir voluntariamente o pagamento do empréstimo ao BCP, provocando assim a venda judicial das fracções em causa, constitui-a em responsabilidade pelo pagamento da comissão de 5% contratualmente devida à apelante (…).
6º A antecipação do termo inicial, de dez anos, do contrato de gestão, em cerca de cinco anos, deveu-se a atitude omissiva da (…), a que a (…) é alheia e para a qual em nada contribuiu.
7º A antecipação do termo inicial, de dez anos, do contrato de gestão, em cerca de cinco anos, impediu a (…) de obter os proventos da exploração do Hotel durante os cerca de cinco anos remanescentes do prazo inicialmente contratado.
8º A antecipação do termo do prazo deve-se, exclusivamente, à atitude omissiva da (…), a que a (…) é alheia e para a qual em nada contribuiu, e constitui a (…) em responsabilidade perante a (…), relativamente ao pagamento da percentagem de 5% do valor da venda, a título de indemnização pela antecipação do termo do prazo contratualmente fixada, em cerca de cinco anos.
9º A douta sentença apelada não fez – salvo o devido respeito – a melhor aplicação, entre outros, do artigo 227.º, n.º 1, do Código Civil.
10º Deverá, por isso, ser revogada, e substituída por decisão que, em juízo de procedência da acção, condene a apelada (…) a pagar à apelante (…) a peticionada quantia de € 3.746.477,10, acrescida dos juros de mora, à taxa legal de 7%, que se vencerem desde a citação até ao efectivo e integral pagamento, com o mais da lei”.
*
A Apelada apresentou resposta à motivação recursiva alinhando as seguintes conclusões:
“1. A Sentença deu como não provados três factos que a A. entende deverem ser alterados para provados, a saber:
a) Que, de acordo com a vontade das partes, a aplicação da remuneração prevista na cláusula 6.3.1. do acordo referido nos factos provados, não se excluía, em caso de venda judicial;
b) Que a autora criou a expectativa de receber a remuneração ali prevista através da venda judicial;
c) Que, na eventualidade da venda das frações que compõem o Hotel, a autora poderia ver-se privada de prosseguir a sua exploração.
2. A A., não se conformando com esta decisão, pretende que tais factos sejam considerados como provados, acrescidos ainda de alguns factos instrumentais, tais como:
a) Que o contrato de gestão comportava duas modalidades, a saber, a venda e a gestão do Hotel;
b) Que a A. apenas assinou o contrato de gestão em apreço por ter, mais que a convicção, a certeza de que … (o que é dizer a …) iria proceder ao pagamento do empréstimo, dado que este lhe facultou prova da existência de fundos mais que suficientes para o efeito.
c) Que foi por isso que não foi prevista especificamente na cláusula 6.3.1, a venda judicial das frações.
d) Que a percentagem de 10% constante da dita cláusula resultava da soma de duas parcelas, de 5% cada, uma referente à venda de cada uma das frações que compunham o Hotel, outra destinada a indemnizar a A. pela impossibilidade de gerir o Hotel se as frações fossem vendidas antes de atingido o termo (de dez anos) do contrato de gestão.
3. Sucede que, desde logo, nenhum destes factos foi, sequer, alegado na P.I. pelo que nem sequer podia a R. contar com eles quando se defendeu na contestação, razão pela qual nem poderiam tais factos ter sido atendidos na decisão.
4. Porém, ainda que tais factos tivessem sido provados em audiência – o que não ocorreu – ainda assim, a A. não teria direito a receber da R. fosse o que fosse a título de compensação pela cessação antecipada do contrato, porque a mesma não era uma consequência da venda das frações e villas, mesmo se estas fossem todas vendidas.
5. Por outro lado, o próprio representante legal da A. confirmou durante as declarações de parte, que a venda judicial não se encontrava prevista no articulado do contrato, o que tentou justificar com a sua convicção pessoal em que o empréstimo iria ser pago pelo representante legal da R., embora não se tenha junto qualquer documento nesse sentido.
6. Fosse por que razão fosse, o certo é que a venda judicial não se encontrava prevista no contrato de gestão celebrado entre a A. e a R. em 29.04.2014, pelo que o facto não provado a) foi corretamente apreciado pela Mma. Juiz a quo, e tanto basta para fazer soçobrar a ação com as legais consequências;
7. Também o facto b) foi corretamente julgado como não provado, atento o sentido expectável da Cláusula 6.3.1. para um declaratário normal, conforme se explica no Parecer de Direito junto pela R. com a contestação, como Doc. n.º 11.
8. Porém, a título de argumentação complementar, refira-se ainda que o facto de o gerente da R. (…), ter demonstrado capacidade financeira para a compra da R., a sociedade (…), S.A., não significa que o mesmo tivesse assumido a obrigação de liquidar o empréstimo que onerava o ativo (todas as 136 frações);
9. Neste tipo de operações, é usual que os agentes procurem rentabilizar os ativos, proceder a investimentos, gerar lucros ou alienar algum património com mais valias, gerando cash-flow para liquidar as responsabilidades de longo prazo.
10. A A. sabia perfeitamente que era esta a estratégia desde o início da operação, tanto mais que fora o seu gerente a chamar a atenção do gerente da R. para a possibilidade de concretizar este negócio, sendo sua missão investir na requalificação do Hotel e nas vendas de frações a terceiros, ficando a A. a gerir as mesmas enquanto Administradora do Condomínio, após as referidas vendas.
11. Sendo assim, a A. não podia ter criado a expectativa de que o empréstimo fosse liquidado logo nos primeiros dias depois de assinado o contrato e, se a criou, sibi imputet! Uma empresa com a experiência da A. não se pode permitir deixar ambíguo um aspeto que ela própria refere ter considerado tão decisivo.
12. Tal expectativa é, aliás, manifestamente contrária à própria letra e espírito da Cl.ª 6.3.1. que apenas prevê que possa haver lugar a 10% de comissão “depois de saldados todos os custos, dívidas e juros ao Banco Português”, ou seja, após o reembolso desse empréstimo, o que quer dizer que as Partes nunca partiram do pressuposto do pagamento do empréstimo!
13. Também o facto não provado b) deverá, pois, continuar a dar-se por não provado.
14. Se a venda judicial não está prevista na Cláusula 6.3.1., nem em qualquer outra cláusula contratual, fosse por que razão fosse, é óbvio que a A. não tem qualquer direito a receber o que quer que seja.
15. As demais testemunhas arroladas pela A. confirmaram o entendimento de que a venda judicial não estava prevista, alegadamente, porque os gerentes da A. estavam convencidos de que o gerente da R. tinha meios financeiros suficientes para proceder ao reembolso do empréstimo.
16. Pois bem: mesmo que os tivesse, sempre teria a R, de querer usá-lo dessa forma.
17. O reembolso do empréstimo ao BCP não foi ponderado como condição prévia à aquisição dos ativos e sujeição a validação prévia à aceitação da proposta da R.
18. A Cl.ª 6.3.1. não faz qualquer alusão ao termo antecipado do contrato, mesmo que, no limite, fossem vendidas todas as frações de utilidade turística (apartamentos e villas), porque se manteria a propriedade das 4 frações comuns.
19. Não procede a “tese” da A. segundo a qual a percentagem de 10% constante da dita cláusula resultava da soma de duas parcelas iguais, uma referente à comissão pela venda de cada uma das frações que compunham o Hotel, outra destinava (sic) a indemnizar a (…) pela impossibilidade de gerir o Hotel se as frações fossem vendidas antes de atingido o termo (de dez anos) do contrato de gestão.
20. Também o facto não provado c) deve continuar a figurar como não provado, porquanto não se demonstrou que a venda das frações que compõem o Hotel determinaria a cessação da respetiva exploração por parte da A., como se alegou.
21. Na verdade, nessa eventualidade, a A. continuaria a gerir o Hotel como Condomínio, até porque já desde 2015 que está juridicamente assim qualificado.
22. Aliás, a ser como pretende a A., esta teria de reduzir o pedido para metade, o que não faz, evidenciando a sua própria falta de convicção da sua parte relativamente a esta pretensa “divisão”.
23. De resto, a Cl.ª 6.3.1. do contrato de gestão hoteleira celebrado entre as Partes a 29.04.2014 nunca poderia ser qualificada como cláusula de saída (“exit clause”) uma cláusula da qual não faz parte, sequer, a palavra “indemnização” (“indemnity”).
24. Não há sequer qualquer menção ao termo antecipado do contrato, ou a qualquer compensação pelo tempo que ficaria a faltar para o termo normal do mesmo, após a venda da totalidade das frações de utilidade turística.
25. Seria, aliás, impossível sequer, prever quanto tempo ficaria a faltar para o termo do contrato, após a venda de todas as unidades, à data de assinatura do contrato de gestão.
26. Por último, a A. já recebeu efetivamente, uma compensação pela cessação do contrato com a venda judicial, nos termos previstos na Cláusula 11 do acordo de transição celebrado com a nova proprietária do Hotel, a (…), Lda., pelo que nada tem a reclamar da R.
27. Bem andou a Mm.ª Juíza ao decidir como decidiu na douta Sentença proferida nos autos.
28. Devendo manter-se a douta Sentença recorrida nos seus precisos termos, a qual fez uma correcta interpretação e aplicação do contrato e da Lei”.
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Foi proferido despacho que admitiu o recurso e ordenou a subida do mesmo a este Tribunal Superior para apreciação.
O recurso é o próprio e foi admitido adequadamente quanto ao modo de subida e efeito.
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Correram Vistos.
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II – QUESTÕES OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do disposto no artigo 635º, nº 4, conjugado com o artigo 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil (doravante apenas CPC), o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso, salvo no que concerne à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas pertinentes ao caso concreto e quando se trate de matérias de conhecimento oficioso que, no âmbito de recurso interposto pela parte vencida, possam ser decididas com base em elementos constantes do processo, pelo que são as seguintes as questões que conformam o objecto deste recurso:
a) Impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
b) Reapreciação de mérito centrada na interpretação da cláusula 6.3.1 do contrato celebrado entre Apelante e Apelada no sentido de determinar se assiste direito à Apelante de ser ressarcida pela Apelada do pagamento de comissão de 5% sobre o valor de venda de cada uma das frações e/ou de ser indemnizada pela antecipação do termo do contrato em quantia correspondente a pelo menos 5% do valor daquela venda.
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III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Consta da sentença recorrida a seguinte matéria de facto:
“A. Factos provados
1. A autora é uma sociedade comercial por quotas de responsabilidade limitada, que tem por objeto a exploração de estabelecimentos hoteleiros com e sem restaurante, exploração de residências para férias e outros alojamentos de curta duração, exploração de restaurantes e similares, compra e venda de bens imóveis, arrendamento, administração de imóveis por conta de outrem, administração de condomínios, e atividades de consultadoria para negócios e gestão.
2. A ré é, por sua vez, uma sociedade anónima que tem por objeto a compra e venda de prédios e revenda dos adquiridos para esse fim.

3. A totalidade das ações da ré é detida pela sociedade (…), Lda., anteriormente denominada “(…) – Atividades Imobiliárias, Unipessoal, Lda.”

4. Em 19 de abril de 2013, e conforme resulta da p. 4, rubrica 0501-A “Identificação da Identidade”, do Relatório e Contas de Exercício da sociedade “Monte da … (Propriedades), SA” reportado ao exercício de 2013, a … (então …) adquiriu a totalidade do capital social desta referida sociedade, ora ré.

5. O capital social da (…) é detido, na sua totalidade, por (…).

6. E o mesmo (…) é o Presidente do Conselho de administração da ré.

7. Para aquisição da ré, a (…) apresentou uma proposta vinculativa donde resultava a intenção de liquidar a dívida ao Banco Comercial Português e uma certificação de fundos, delas dando conhecimento ao legal representante da autora.

8. A ré foi proprietária de 136 frações autónomas, que na sua totalidade compõem um prédio urbano a que está imposto o regime da propriedade horizontal situado na Av. (…), Quinta do (…), denominado “Lote HO 5”, inscrito na matriz sob o artigo (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o nº (…) da freguesia de Almancil.
9. As supramencionadas frações encontram-se discriminadas no título constitutivo do empreendimento turístico sob a epígrafe “Descrição Geral do Empreendimento” da seguinte forma: as frações com os números 1 a 132 constituem unidades de alojamento autónomas afetas à exploração turística do empreendimento turístico; a fração 133 e 134 destinam-se a serviços e correspondem a restaurante, bar e snack-bar; a fração 135 destina-se a sala de jogos; e, a fração 136 destina-se a salão multiusos.

10. A intenção que presidiu à constituição do dito prédio no Regime da Propriedade Horizontal foi a de prosseguir a venda autónoma de algumas dessas frações a diferentes proprietários.

11. Das 136 frações Imobiliárias, 132 são Unidades de Alojamento Turístico, do tipo apartamentos, das quais 80 são de tipologia T1; 48 apartamentos, do tipo T2 e 4 apartamentos de tipologia T3.

12. Foram estas frações que receberam o Alvará de Utilização para fins turísticos como unidades de alojamento.

13. As quatro frações restantes não se destinavam (nunca se destinaram) à venda autónoma a diferentes proprietários, pois constituem a base da oferta de serviços como Empreendimento Turístico Hoteleiro, como decorre da análise do respetivo Título Constitutivo.

14. Em 29 de abril de 2014, autora e ré assinaram um acordo escrito referente à gestão do Hotel instalado no edifício referido no artigo antecedente que designaram por Hotel Managment Agreement – Monte da … Resort, através do qual a autora teria a responsabilidade e dever de supervisionar, gerir e exercer a gestão do hotel da autora, mediante remuneração, pelo período de 10 anos.

15. Da cláusula 6.3.1 do acordo referido, inserida no ponto 6.3., cuja epígrafe consta “Remuneração Financeira Para (…)” pode ler-se:
“1. Venda de apartamentos e villas. (…) pode oportunamente decidir vender algumas ou todas as 132 suites do Hotel, e/ou algumas ou todas as villas de que é proprietária à data do presente contrato. Adicionalmente, (…) pode decidir comprar outras villas ou condomínios que serão incluídas no inventário e gerias como acima referido. No caso de assim proceder, a (…) entregará à (…) 10% da receita bruta da venda, mas pagáveis apenas quando a receita líquida da venda seja recebida por (…), depois de saldados todos os custos, dívidas e juros ao Banco Português. Quando permitido pelo Banco Português credor de (…), 5% dos 10% serão pagos à (…) com recibo referente às receitas brutas da venda e antes das receitas líquidas.
2 - (…)”

16. A autora quando celebrou com a ré o referido acordo tinha conhecimento, na pessoa do seu administrador, (…), da existência da dívida da ré ao Banco Millennium BCP.

17. À data da negociação e celebração do acordo referido supra, as partes andavam também a procurar compradores para as Unidades de Alojamento Turístico, nomeadamente, ao abrigo do Programa de “vistos Gold”.

18. A 1 de dezembro de 2014 chegou a ser celebrado um Contrato de Agenciamento Imobiliário especialmente dirigido ao Mercado da China, muito embora não se tivesse conseguido vender nenhuma unidade por razões conjunturais de mercado.

19. O referido contrato de angariação era do perfeito conhecimento da autora.

20. No requerimento executivo instaurado pelo Banco Comercial Português, S.A. contra a ré e que deu origem à execução que correu termos sob o n.º 1700/15.6T8LLE – Juízo de Execução 2, do Tribunal de Loulé pode ler-se:
1. Em 28 de junho de 2006, o Exequente celebrou com a Executada o Contrato de Abertura de Crédito (doravante "Contrato"), que se junta e se dá por integralmente reproduzido como documento n.º 1, no montante de € 35.000.000,00 (trinta e cinco milhões de euros), com as finalidades identificadas na sua Cláusula 1.
2. Em cumprimento das obrigações assumidas no Contrato, o Exequente disponibilizou à Executada o montante mutuado, nos termos e condições indicados na subsequente Cláusula 2.
3. Convencionou-se no Contrato que o mesmo seria válido por 3 (três) anos, vencendo-se em 28 de junho de 2009, data em que o capital mutuado deveria estar integralmente liquidado, tendo-se ainda a Executada obrigado a afetar ao reembolso do capital em dívida e demais créditos do Exequente emergentes do mesmo contrato, o produto da venda das frações que viriam a integrar o imóvel que, como veremos adiante, foi dado de hipoteca ao Exequente,
4. tudo, sem prejuízo da possibilidade de, em caso de mora ou incumprimento de qualquer prestação contratual de reembolso de capital e/ou liquidação de juros, o Exequente o mesmo poder resolver, declarando antecipadamente vencidas e exigíveis todas as prestações contratuais.
5. Com efeito, convencionaram ainda as partes que, não obstante o reembolso do capital pudesse ocorrer apenas na data de vencimento, os juros remuneratórios, à taxa prevista no mesmo documento para o qual se remete, seriam liquidados semestralmente na conta de depósitos à ordem titulada pela Executada com o n.º (…), verificando-se o primeiro vencimento em 28 de dezembro de 2006.
6. Para garantia das obrigações emergentes do Contrato, a Executada entregou ao Exequente uma livrança por si subscrita em branco, autorizando o Exequente a proceder ao seu pagamento nos termos previstos na Cláusula 9., tendo igualmente constituído a favor do Exequente uma hipoteca sobre o prédio descrito na mesma cláusula, conforme a escritura que se juntará adiante.
7. O Contrato veio a ser objeto de vários aditamentos. O primeiro em 28 de junho de 2006, no sentido de aditar ao contrato a Cláusula Décima Segunda prevendo o pagamento da Comissão de Organização (documento n.º 2);
8. O segundo, celebrado em 28 de junho de 2009, e determinado pela impossibilidade de, como inicialmente previsto, a Executada liquidar integralmente o capital mutuado. Com efeito, como se afere pelo aludido aditamento que se junta e se dá por integralmente reproduzido como documento n.º 3, o capital em dívida ascendia a € 20.000.000,00 (vinte milhões de euros). No mesmo aditamento, prorrogou-se, assim, pelo prazo de 9 (nove) meses a obrigação de reembolso do capital em dívida, relegando-se também para 28 de março de 2010 o pagamento dos juros remuneratórios;
9. Não tendo o reembolso da dívida sido promovido pela Executada na prevista data, em 24 de junho de 2010, veio a ser celebrado o terceiro aditamento ao Contrato, que se junta e se dá por integralmente reproduzido como documento n.º 4.
Nos termos desse aditamento, o Exequente, a solicitação da Executada, reforçou o montante mutuado pelo valor de € 1.000.000,00 (um milhão de euros), passando o montante em dívida a cifrar-se no valor de € 21.000.000,00 (vinte e um milhões de euros), que, prorrogado o prazo de reembolso, deveria ser liquidado em 28 de março de 2011, data em que seriam igualmente liquidados os juros remuneratórios que se vencessem a partir da mesma data.
10. Não tendo a Executada liquidado ao Exequente o capital em dívida na acima referida data, o Contrato veio a ser objeto do seu quarto aditamento, que se junta e se dá por integralmente reproduzido como documento n.º 5.
Nesse aditamento, o capital em dívida manteve-se no montante de € 21.000.000,00 (vinte e um milhões de euros), prorrogando-se para 28 de março de 2012, a obrigação do seu reembolso e, bem assim, dos correspondentes juros remuneratórios.
11. Por último e exatamente pelas mesmas circunstâncias, em 20 de setembro de 2012, veio a ser celebrado o quinto aditamento ao Contrato, que se junta e se dá por integralmente reproduzido como documento n.º 6, prorrogando para o dia 28 de março de 2013, a obrigação de reembolso do capital mutuado, que se manteve pelo mesmo valor, e dos correspondentes juros remuneratórios.
12. Sucede, porém, que, mais uma vez, a Executada não cumpriu com as obrigações a que se vinculou e, não admitindo protelar por mais tempo tal situação, o Exequente veio promover a sua interpelação para o pagamento da dívida, o que fez por carta registada de 14 de junho de 2013, recebida pela Executada em 4 de julho seguinte (cfr. documento n.º 7), o que, lamentavelmente, não surtiu o pretendido efeito.
13. Foi, pois, nessas circunstâncias, por carta registada com aviso de recepção de 20 de março de 2015, recebida pela Executada no dia 27 do mesmo mês e que se junta e se dá por integralmente reproduzida como documento n.º 8, o Exequente veio comunicar-lhe a resolução do Contrato, mais informando que havia procedido ao preenchimento da livrança que, como garantia das obrigações assumidas, lhe havia sido entregue.
14. O Exequente é, assim, dono e legítimo portador de 1 (uma) livrança subscrita pela Executada, emitida em 26 de junho de 2006, com vencimento em 31 de março de 2015, no montante de € 30.236.560,25 (trinta milhões duzentos e trinta e seis mil quinhentos e sessenta euros e vinte cinco cêntimos), a qual se junta e se dá por integralmente reproduzida como documento n.º 9.
15. Apresentada pelo Exequente a pagamento na data do seu vencimento, o montante titulado pela referida livrança não foi pago ao Exequente pela Executada, facto que até hoje se mantém.
16. Assim sendo, deve a Executada ao Exequente, a este título e na presente data, 23 de abril de 2015, o montante de € 30.316.922,31 (trinta milhões trezentos e dezasseis mil novecentos e vinte e dois euros e trinta e um cêntimo), correspondendo:
a) € 30.236.560,25 (trinta milhões duzentos e trinta e seis mil quinhentos e sessenta euros e vinte cinco cêntimos), ao montante titulado pela livrança junta como documento n.º 9;
b) € 77.271,21 (setenta e sete mil duzentos e setenta e um euros e vinte e um cêntimo), aos juros de mora, contados à taxa supletiva legal de 4% ao ano, desde a data de vencimentos da referida livrança, até 23 de abril de 2015, sobre o montante pela mesma titulado;
c) € 3.090,85 (três mil e noventa euros e oitenta e cinco cêntimos), ao Imposto de Selo incidente sobre os juros referidos na alínea b) supra.
17. Como já acima se referiu, na mesma data de celebração do Contrato, a Executada celebrou com o Exequente a escritura de constituição de hipoteca, que se junta e se dá por integralmente reproduzida como documento n.º 10, nos termos da qual constituiu a favor do Exequente hipoteca sobre prédio então descrito como lote de terreno para construção denominado por lote "H-O5", com a área de 30.000 m2, sito na Quinta do (…), freguesia de Almancil, concelho de Loulé, descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé, sob a ficha n.º (…), da referida freguesia, inscrito na matriz sob o artigo (…), abrangendo tal hipoteca todas as construções, benfeitorias e acessões edificadas e a edificar.
18. A referida hipoteca veio a ser registada na aludida Conservatória pela Inscrição (…), Ap. …/220999, convertida através da Ap. …/091299, como resulta da certidão do registo predial que se junta e se dá por integralmente reproduzida como documento n.º 11.
19. Por ocasião do reforço do montante mutuado que, como acima referido, ocorreu com o aditamento ao Contrato celebrado em 24 de junho de 2010 (cfr. documento n.º 4), a Executada constituiu a favor do Exequente uma segunda hipoteca sobre o mesmo prédio já então descrito como prédio urbano composto de Edifício com quatro pisos, com cento e trinta e dois apartamentos turísticos, com a área coberta de 9.986 metros2 e área descoberta de 20.014 m2, sito na Quinta do (…), "Lote H O5", que confronta a norte com Lote AL nove, a Sul com arruamento, a nascente com Lote AL 10 e a poente com a Rua A um, freguesia de Almancil, concelho de Loulé, descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé, sob o número (…), da referida freguesia, inscrito na matriz sob o artigo (…), conforme a escritura que se junta e se dá por integralmente reproduzida como documento n.º 12.
20. A referida hipoteca veio a ser registada na aludida Conservatória pela Ap. … de 2010/06/24 (…)”
21. As preditas 136 frações autónomas foram penhoradas nuns autos de execução que o Millennium BCP moveu à ré, nos autos de execução pendentes no Juízo de Execução de Loulé (Tribunal Judicial da Comarca de Faro) sob o nº 1700/15.6T8LLE.

22. E, no passado dia 6 do corrente mês de dezembro de 2018, a preditas frações autónomas foram vendidas (em venda judicial) pelo montante de € 37.464.771,00 (trinta e sete milhões e quatrocentos e sessenta e quatro mil, setecentos e setenta e um euros), por escritura outorgada no Cartório Notarial da Notária Patrícia Fernandes e exarada de fls. 118 a fls. 123 vº do Livro de notas para escritura diversas nº (…) do referido Cartório.

23. A autora recebeu, na pessoa do seu mandatário e com data de 7 de dezembro de 2018, uma notificação provinda do Senhor Agente de Execução Dr. (…), que nessa qualidade intervém na dita execução nº 1700/15.6T8LLE, de onde resulta, para além do mais, que, satisfeito o crédito do Banco ali exequente, remanesce o montante de € 3.901.836,00, a restituir à executada, a aqui ré.

24. A propriedade, no seu todo, se encontra avaliada em € 44.838.068,00 (quarenta e quatro milhões, oitocentos e trinta e oito mil e sessenta e oito euros), incluindo a própria exploração, valorizada em € 6.044.000,00 (seis milhões e quarenta e quatro mil euros), “(…) por se tratar de um Apart-hotel, em propriedade horizontal, a alienação das unidades turísticas é não só uma possibilidade, assim como uma realidade cada vez mais presente no mercado turístico nacional e internacional. A procura, por parte de investidores privados ou pequenos Family offices, de apartamentos turísticos que permitam combinar um retorno potencial do investimento e uma potencial ocupação/utilização das unidades, tem crescido de forma sustentada e assumindo uma importante alternativa ao investimento imobiliário direto.”
25. Na execução em que as frações foram vendidas a ré opôs-se a que as mesmas fossem vendidas por valor inferior a 85% daquele valor de avaliação”.
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B. Factos não provados:
Não se logrou provar:
a. Que, de acordo com a vontade das partes, a aplicação da remuneração prevista na clausula 6.3.1. do acordo referido nos factos provados não se excluía, em caso de venda judicial;

b. Que a autora criou a expetativa de receber a remuneração ali prevista através da venda judicial;

c. Que, na eventualidade de venda das frações que compõem o Hotel, a autora poderia ver-se privada de prosseguir a sua exploração;
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Consigna-se que à restante matéria constante dos articulados não se respondeu na medida em que contêm matéria conclusiva, de direito ou constitui repetição de factos já considerados".
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IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Comecemos, então, por abordar a primeira questão (a), objecto do recurso atinente à impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
Sobre a reapreciação da matéria de facto e sua eventual modificabilidade estatuem os artigos 640º e 662º, ambos do CPC.
Dispõe o artigo 662º, nº 1, do CPC, que “A relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Sobre este normativo refere o Conselheiro António Abrantes Geraldes (“Recursos no novo Código de Processo Civil”, 5ª edição, Almedina, páginas 287), o seguinte:
“O actual artigo 662º representa uma clara evolução no sentido que já antes se anunciava … através dos nºs 1 e 2, alíneas a) e b), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do principio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia”.
Já o artigo 640º, que se debruça sobre o ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, prevê que:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b), do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
[…]”
A este propósito sustenta o Conselheiro António Abrantes Geraldes (obra acima citada, a págs. 168-169), que a rejeição total ou parcial respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve ser feita nas seguintes situações:
“a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (artigos 635.º, n.º 4 e 641.º, n.º 2, alínea b));
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (artigo 640.º, n.º 1, alínea a));
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação “, esclarecendo, ainda, que a apreciação do cumprimento de qualquer uma das exigências legais quanto ao ónus de prova prevenidas no mencionado nº 1 e 2, a), do artigo 640º do CPC, deve ser feita “à luz de um critério de rigor”.
No caso concreto, verifica-se que a Apelante apenas mencionou em sede de conclusões recursivas o que entende que deverá ser considerado como provado, que descriminou em cinco alíneas (a) a e)), não logrando especificar nesse segmento, como deveria, quais os concretos pontos de facto que considerou incorrectamente julgados na sentença recorrida pelo Tribunal a quo.
Note-se que mesmo no caso de pontos de facto considerados pelo julgador como não provados essa especificação tem de ser feita, pois a lei, mormente a alínea a), do nº 1, do artigo 640º do CPC, acima reproduzido, não faz distinção para este efeito entre factos provados e não provados, o mesmo resultando do entendimento doutrinário por nós acima extractado.
E ainda que, fazendo então apelo a um critério interpretativo notoriamente amplo, para nós de afastar por não resultar indiciado na letra do normativo a intenção de se acolher tal interpretação, se tendesse a ultrapassar essa falha de especificação defendendo que os factos indicados no segmento das conclusões pela Apelante correspondiam afinal à versão provada dos factos considerados como não provados na sentença recorrida, a verdade é que no caso concreto tal nem sequer ocorre sendo facilmente perceptível pelo cotejo dos factos dados como não provados na sentença recorrida em 3 alíneas ( a), b) e c) ), com os factos que a Apelante entende deverem ser considerados provados elencados em cinco alíneas (a) a e)), extravasarem estes últimos o campo material dos primeiros.
Sempre será, ainda, de acrescentar nesta sede que a redacção apresentada pela Apelante quanto ao conteúdo de algumas das alíneas que integram a matéria que entende que deveria ser considerada como provada traduz apenas juízos conclusivos e não propriamente factos naturalísticos, razão pela qual nunca poderia este Tribunal ad quem considerá-los na fundamentação de facto da sentença recorrida.
Referimo-nos concretamente à expressão na alínea b) “mais que a firme convicção”, bem como a todo o teor das alíneas c) e e).
Perante o supra exposto é de reter que a Apelante não integrou correctamente nas suas conclusões recursivas a pretensão de impugnar a decisão relativa à matéria de facto na medida em que limitou-se a aludir a matéria que entende deveria considerar-se como provada sem especificar devidamente o que terá sido incorrectamente julgado pelo Tribunal a quo, sendo certo que é esta última acção que ilustra o acto de impugnação.
Destarte, face ao disposto nos artigos 635º, nº 4 e 640º, nº 1, a), ambos do CPC, decide-se rejeitar a alegada reapreciação da decisão relativa à matéria de facto.
Entrando na segunda questão objecto do recurso impõe-se relembrar que a mesma se circunscreve a saber se nos termos do acordo escrito outorgado entre Apelante e Apelada em 29 de Abril de 2014, melhor referido no ponto 14. dos factos provados na sentença recorrida, assiste, ou não, à Apelante o direito a ser ressarcida pela Apelada do pagamento de comissão de 5% sobre o valor de venda de cada uma das frações identificadas designadamente nos pontos 8., 9. e 11. daqueles factos e/ou a ser indemnizada pela antecipação do termo inicial do contrato em quantia correspondente a pelo menos 5% do valor daquela venda.
Na medida em que a impugnação da decisão relativa à matéria de facto apresentada pela Apelante foi rejeitada na totalidade, não havendo lugar ao aditamento ao segmento dos factos considerados provados do que era pretendido por aquela, tal significa que a resposta à pretensão recursiva da Apelante decorrerá da interpretação do teor do contrato outorgado e muito particularmente da cláusula 6.3.1. do mesmo, devidamente cotejada com alguns outros factos relevantes considerados assentes na sentença recorrida.
Relembremos, pois, o teor da dita cláusula, inserida no ponto 6.3 do contrato, que tem como epígrafe ”Remuneração Financeira Para (…)”
“1. Venda de apartamentos e villas. (…) pode oportunamente decidir vender algumas ou todas as 132 suites do Hotel, e/ou algumas ou todas as villas de que é proprietária à data do presente contrato. Adicionalmente, (…) pode decidir comprar outras villas ou condomínios que serão incluídas no inventário e geridas como acima referido. No caso de assim proceder, a (…) entregará à (…) 10% da receita bruta da venda, mas pagáveis apenas quando a receita líquida da venda seja recebida por (…), depois de saldados todos os custos, dívidas e juros ao Banco Português. Quando permitido pelo Banco Português credor de (…), 5% dos 10% serão pagos à (…) com recibo referente às receitas brutas da venda e antes das receitas líquidas” (itálico nosso).
Na sentença recorrida concluiu a Mmª Juíza, com apelo às regras de interpretação do negócio jurídico, no sentido de não terem resultado provados factos que permitam considerar ter correspondido à vontade real das partes outorgantes (as ora Apelante e Apelada), no contrato referido no ponto 14. dos factos provados na sentença impugnada, incluir nele, mormente na aludida cláusula 6.3.1., a hipótese da venda judicial das fracções.
Fê-lo, a nosso ver, acertadamente.
Desde logo, porque segundo as regras interpretativas dos negócios jurídicos, mormente as que derivam dos artigos 236º, nº 1 e 238º, ambos do Código Civil (doravante apenas CC), entendidas no âmbito da chamada teoria da impressão do destinatário, bem como ao principio da interpretação contextual e sistemática, que pressupõe a consideração das expressões utilizadas na declaração negocial não só de per si, mas igualmente numa perspectiva abrangente, ou seja do negócio visto no seu todo, atendendo, como tal, às circunstâncias que rodearam a sua celebração, as quais, no caso vertente, decorrem, designadamente, dos factos considerados como provados na sentença recorrida sob os pontos 10º, 14º, 16º, 17., 18º, 19º e 20º e que refletem negociações previamente mantidas entre Apelante e Apelada, o respectivo comportamento posterior, os interesses a preservar com a negociação e os contornos concretos do acordo que concretizaram, é de concluir, sem margem para rebuços, que os contraentes e mormente a ora Apelada não pretenderam incluir na previsão da cláusula 6.3.1 do contrato em apreço nestes autos celebrado em 29/04/2014 qualquer remuneração à Apelante no caso de venda judicial das frações autónomas que compunham o empreendimento.
Sempre sublinharemos nesta sede, ainda, dois argumentos destacados na sentença recorrida (trazidos à colação pela Apelada logo na fase dos articulados), que contribuem para ilustrar a posição acabada de retratar, o primeiro respeitante ao facto de que a venda judicial abrangeu todas as 136 frações (cfr. pontos 21. e 22. dos factos provados na sentença recorrida), enquanto na cláusula contratual 6.3.1. se aludiu expressa e inequivocamente à possibilidade de venda de “algumas ou todas as 132 suites do Hotel”, designadamente as que se destinavam a venda autónoma a potenciais compradores, deixando de fora quatro frações, (precisamente as frações 133 a 136), que, aliás, de acordo com o facto considerado provado na sentença recorrida sob o ponto 13 não se destinavam e nunca se destinaram à venda autónoma a diferentes proprietários.
O segundo argumento prende-se com o facto de a redacção da cláusula 6.3.1. vincar que a ora Apelada “pode oportunamente decidir vender”, de que decorre que o acto previsto implicava uma tomada de decisão livre, autónoma e em momento considerado oportuno, elementos esses que não caracterizam a venda judicial.
Nas conclusões recursivas a Apelante, parecendo demarcar-se já um pouco da questão de saber se a venda judicial se inclui, ou não (e já concluimos que não), na previsão da cláusula contratual 6.3.1. argumenta que a Apelada terá optado por voluntariamente não pagar o empréstimo que lhe fora concedido pelo Banco Comercial Português em execução do contrato de abertura de crédito que a mesma outorgara com este último, provocando com esse comportamento omissivo a venda judicial das frações por forma a eximir-se do pagamento a si de qualquer “remuneração financeira”, o que constitui a Apelada em responsabilidade pelo pagamento da comissão de 5% que contratualmente lhe é devida a si Apelante e em responsabilidade pela antecipação em cinco anos do termo inicial do contrato, que foi celebrado por 10 anos, a título de indemnização, em quantia correspondente a 5% do valor da venda.
Não lhe assiste, todavia, razão.
Na verdade, como também decorre da sentença recorrida, não se prefiguram na factualidade provada na dita peça processual factos que permitam retirar, nem sequer por presunção, a ilação de que a Apelada tivesse capacidade económica e financeira para pagar a totalidade do montante mutuado pelo Banco Comercial Português e que tenha omitido esse pagamento apenas com intenção de provocar no âmbito da acção executiva que lhe fora movida a venda judicial das frações autónomas.
Com efeito, uma coisa é ter intenção de cumprir um contrato e apresentar garantias de pagamento, o que parece ter sucedido de acordo com o que resultou provado sob o ponto 7. dos factos assentes na sentença recorrida e outra diferente é durante o decurso do contrato ter capacidade para assegurar o pagamento pontual do que for devido sem ter que haver recurso ao acionamento de tais garantias.
Já quanto à questão trazida pela Apelante relativa ao direito a receber da Apelada o pagamento da comissão contratualizada de 5% sobre o valor da venda das frações e, a título de indemnização pela antecipação em cinco anos do termo inicial do contrato, a quantia correspondente a 5% do valor da dita venda, carece de fundamento a sua apreciação por este Tribunal Superior na medida em que se trata de uma questão que lhe é colocada “ex novo”.
Com efeito, na petição inicial a ora Apelante não assentou o seu petitório em tal fundamento, mas sim no direito a receber a percentagem de 10% calculada sobre a “receita bruta de venda” das frações a título de “remuneração financeira” decorrente do contrato de gestão outorgado com a Apelada.
Ora o Tribunal da Relação, enquanto Tribunal de recurso, com excepção de questões que sejam de conhecimento oficioso e para as quais o processo reúna os elementos indispensáveis à tomada de decisão, detêm competência para reapreciar questões que tenham sido decididas pela primeira instância.
O fundamento acabado de identificar, ora trazido à colação nas conclusões recursivas, não é de conhecimento oficioso, sendo indiscutivelmente uma questão nova colocada ao Tribunal Superior alinhada como alicerce ou base do pedido que se pretendia ver satisfeito.
Improcedem, pois, na totalidade, as conclusões do recurso interposto pela Apelante, sendo de confirmar a douta sentença recorrida que nenhuma censura merece.
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V – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal em negar provimento ao recurso interposto pela Apelante (…) Internacional, Lda. e em consequência decidem:
a) Confirmar a sentença recorrida;
b) Fixar custas a cargo da Apelante, nos termos do disposto no artigo 527º, nº 1 e 2, do CPC.
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Évora, 23/04/2020
José António Moita
Silva Rato
Mata Ribeiro