Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1067/21.3T8TMR.E1
Relator: PAULA DO PAÇO
Descritores: RESPONSABILIDADE DO TRABALHADOR POR DANOS
RECONVENÇÃO
PODER DISCRICIONÁRIO DO TRIBUNAL
IRRECORRIBILIDADE
Data do Acordão: 03/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - Revelando a matéria de facto algumas deficiências suscetíveis de serem supridas pelo Tribunal da Relação, deve este tribunal proceder ao suprimento das mesmas, nos termos previstos pelo artigo 662.º do Código de Processo Civil
II - À escritura pública de compra e venda de um imóvel é conferida força probatória plena, somente em relação aos atos atestados pelo documentador, com base nas suas próprias perceções – artigo 371.º do Código Civil.
III - Por outras palavras, o documento faz prova plena quanto à expressão das declarações que foram prestadas perante o documentador, mas não já não garante a veracidade das declarações que os outorgantes fizeram ao documentador.
IV - Tendo resultado provado que o Autor recebeu, na qualidade de “gestor comercial” da empresa de mediação imobiliária - sua empregadora e Ré - uma determinada quantia para reserva de um imóvel que se encontrava à venda, e que se destinava a ser confiada à guarda da empresa, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 18.º da Lei n.º 15/2003, de 8 de fevereiro, que aquele nunca entregou à empresa, deve proceder o pedido reconvencional de condenação do Autor a pagar à Ré a importância recebida.
V - A decisão do tribunal a quo de mandar extrair certidões para serem remetidas ao Ministério Público e ao Instituto de Mercados Públicos do Imobiliário e da Construção, por os factos provados revelarem a possibilidade da prática de crime e de atos ilegais, é uma decisão proferida no âmbito do poder discricionário ou de livre resolução do tribunal, que não é recorrível, nos termos previstos pelo artigo 630.º do Código de Processo Civil.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1]

I. Relatório
Na presente ação declarativa emergente de contrato individual de trabalho, com processo comum, que AA move contra MEDIFENOMENO - MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA , LDA., ambos com os demais sinais identificadores nos autos, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
«4.1. Pelo exposto, decido julgar a presente ação parcialmente procedente, reconhecer a justa causa para a resolução do contrato de trabalho e condenar a ré MEDIFENOMENO - MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA , LDA., a pagar ao autor AA a quantia total de € 12.536,84;
4.2. Absolvo a ré de tudo o mais que foi peticionado pelo autor;
4.3. Mais decido julgar a presente reconvenção parcialmente procedente, e condenar o autor AA a pagar à ré MEDIFENOMENO - MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA , LDA., a quantia total de € 3.000;
4.4. Absolvo o autor de tudo o mais que foi peticionado pela ré;
4.5. Operada a compensação dos créditos supra reconhecidos, condeno a ré MEDIFENOMENO - MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA , LDA., a pagar ao autor AA a quantia total de € 9.536,84, acrescida dos juros vencidos e vincendos desde a data do seu vencimento e até integral pagamento à taxa de juro que vigorar.
4.6. Condeno o A. e a R. a pagarem as custas da ação e da reconvenção na proporção do respetivo decaimento.
4.5. Notifique.
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Evidenciando-se abundantemente dos autos que o autor protagonizou a mediação mobiliária do imóvel referido na escritura de 29/9/2020, emitindo anteriormente declaração de recebimento de dinheiro do cliente com expressa referência a tal intervenção e subsequente declaração na escritura em como o negócio não foi objeto de intervenção de mediador imobiliário, apesar da expressa advertência de incorrer em crime pela Sra. Notária, extraía certidões de todo o processado e remete-as:
a) Ao Ministério Público; e,
b) Ao Instituto de Mercados Públicos do Imobiliário e da Construção (sendo que o autor é igualmente referenciado como exercendo funções na nova firma Desafios e Consequências – Mediação Imobiliário, Lda.), a quem compete fiscalizar as empresas e empresários do setor do imobiliário, maxime quanto à sua idoneidade, regime de acesso e licenciamento de entidades que tem ao seu serviço pessoas que emitem falsas declarações;
Para os Desafios e Consequências tidos por convenientes.»
-
O Autor veio interpor recurso da sentença, finalizando as suas alegações com as conclusões que, seguidamente, se transcrevem:
«A- Restringe-se o recurso, às decisões, que constam da douta sentença a quo, que se seguem, e que são decorrentes umas das outras:
A que consta do ponto 4.3. da douta sentença, e transcrevendo: “… decido julgar a presente reconvenção parcialmente procedente, e condenar o autor AA a pagar à ré MEDIFENOMENO – MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA , LDA., a quantia total de € 3.000”, e a consequente decisão de compensação dos créditos, decidida no ponto 4.5. da douta sentença, e
A que consta da parte final da douta sentença, e transcrevendo: “Evidenciando-se abundantemente dos autos que o autor protagonizou a mediação mobiliária do imóvel referido na escritura de 29/9/2020, emitindo anteriormente declaração de recebimento de dinheiro do cliente com expressa referência a tal intervenção e subsequente declaração na escritura em como o negócio não foi objeto de intervenção de mediador imobiliário”
B- Impugna-se a decisão sobre a matéria de facto, requerendo a reapreciação da prova documental consubstanciada no documento a fls 54 do processo físico,
C-O Tribunal a quo, fez uma errada análise e julgamento da matéria de facto submetida a juízo, e, com a reapreciação que se pede, a decisão da matéria de facto deve ser modificada, nos seguintes termos:
Quanto à Fundamentação de Facto, vertida no ponto 2.1. da douta decisão:
Os factos provados em A), B), C), D), E), e G) devem ser mantidos
O provado constante em F) deverá ser alterado, de modo a conter como factos provados os que se retiram da declaração–recibo, que é o documento a fls 54 do processo físico, apenas os que se seguem, excluindo-se o facto de BB ser cliente da Ré e o facto de sugerir que esta tivesse mediado a venda do imóvel em causa: “O autor, na qualidade de gestor comercial da ré, recebeu de BB, a importância de € 3.000, para reserva de um imóvel que se encontrava à venda”.
D-O facto constante em F) está incorretamente julgado, porquanto da motivação do Mmo. Juiz a quo, alicerçada na prova documental (fls 54 do processo físico), e transcrevendo do ponto 2.6. “O recibo de emitido a BB é expressivo do recebimento da quantia de € 3.000 e da qualidade em que autor agiu”, não é referido que BB era cliente da Ré e nem que o imóvel em causa se encontrava à venda pela Ré, como a redação do facto dado como provado e que se impugna, parece sugerir, ao qualificar o vendedor como cliente da Ré.
E- E do recibo – a declaração que consta do documento a fls 54 do processo físico, também não consta que BB era cliente da Ré e nem que o imóvel em causa se encontrava à venda pela Ré,
F- Pelo que, e na ausência de acordo quanto à matéria, e de acordo com a desvalorização que o Tribunal a quo fez da prova testemunhal e de parte, não pode ser julgado como provado que BB era cliente da Ré e que o imóvel estaria à venda, através desta.
G- Na dúvida sobre se BB fosse cliente da Ré, o douto Tribunal a quo deveria ter considerado a factualidade dúbia como não provada.
H-O douto Tribunal a quo deveria em conta as normas jurídicas aplicáveis à mediação imobiliária, para fazer uma diferente apreciação e decisão diversa, da matéria de facto, isto porque:
II- Impõem os artºs 3º nº1 e 16º da Lei 15/2013 de 8 de Fevereiro que a atividade de mediação imobiliária, só pode ser exercida mediante contrato, escrito, nos termos e modelo aprovados pela Portaria 228/2018 de 13 de Agosto (artº 2º), e a Ré não celebrou com BB qualquer contrato de mediação imobiliária.
J- BB não foi cliente da Ré, pois essa qualidade só lhe advém da celebração do contrato, como manda o disposto no artº 2º nº6 da Lei 15/2013 de 8 de Fevereiro.
L-E só se considerariam depositadas à guarda da empresa de mediação, nos termos do disposto no artº 18º nº1 da Lei 15/2013 de 8 de Fevereiro, as quantias recebidas dos destinatários de negócio por si mediado.
Quanto à impugnação de facto e de direito:
M- Com reapreciação que se pede da prova documental consubstanciada no documento a fls 54 do processo físico, e com a modificação da decisão quanto ao facto provado em F) do ponto 2.1 da douta sentença, não ficou provado que BB fosse cliente da Ré,
N-Não resulta da douta decisão que a quantia de 3.000€ que o Autor recebeu de BB tivesse sido confiada à empresa da Ré, antes, resulta provado que o depositário dela foi o A., que declarou tê-la recebido de BB.
O-Também não resulta dos factos provados, que o Autor tenha exercido, ou protagonizado, quaisquer atos de mediador imobiliário, e, de acordo com o disposto no artº 2º da Lei 15/2013 de 8 de Fevereiro, o recebimento, pelo Autor, da quantia de 3000€, de BB não é uma ato de mediação imobiliária.
P-Não consta provado que funções, afinal, cabiam na designação de gestor comercial, e não ficou provado que fossem as de técnico de mediação imobiliária, cabendo-se, então, as provadas, de angariador de mediação imobiliária, ou seja, tendo como fim a mediação, e a preparação do respetivo contrato, que, no caso, não aconteceu, e que nos termos do disposto no artº 24º da Lei 15/2013 de 8 de Fevereiro, as funções de coadjuvação dos técnicos de mediação imobiliária, e estes é que são colaboradores das empresas de mediação imobiliária e estes é que desempenham, em nome destas, as funções de mediação imobiliária.
Q- A Ré não celebrou com BB qualquer contrato, escrito, de mediação imobiliária, nos termos do disposto no artº 3º, nº1 e 16º da Lei 15/2013 de 8 de Fevereiro e nos termos e modelo aprovados pela Portaria 228/2018 de 13 de Agosto.
R-Por causa da inexistência de qualquer contrato de mediação imobiliária, BB não é cliente da Ré, pois essa qualidade só lhe advém da celebração do contrato, como manda o disposto no artº 2º nº6 da Lei 15/2013 de 8 de Fevereiro.
S- Não consta da atividade de mediação imobiliária, nos termos do disposto no artº 2º da lei 15/2013 de 8 de Fevereiro, o recebimento de quantias para depósito;
T-Só se considerariam depositadas à guarda da empresa de mediação, nos termos do disposto no artº 18º nº1 da Lei 15/2013 de 8 de Fevereiro, as quantias recebidas dos destinatários de negócio por si mediado, e , no caso, não existiu qualquer mediação do negócio, pela Ré, em que BB fosse destinatário.
U-E não tendo sido julgada provada a existência da relação de mediação imobiliária entre o BB e a Ré, e que a quantia de 3000 € tenha sido confiada à guarda da Ré, a Ré não pode ter direito a ela, sob pena de enriquecimento sem causa,
V-Como bem dita a douta sentença -no ponto 3.5 quanto à motivação, e relativamente ao pedido reconvencional- a quantia de 3.000€ não pertence à Ré, e se não é crédito da Ré, não pode o Autor ser condenado no respetivo pagamento, à Ré.
X- Quem recebeu a quantia de 3.000€ foi o Autor, é este o depositário e não a R., e não se tendo verificado qualquer autorização, por parte de BB, para que o depositário entregasse essa quantia a terceiros, e inexistindo contrato de mediação imobiliária, não pode tal valor ser entregue à Ré, em estrita observância do disposto nos artºs 1185º e 1189º do Ccivil.
AA-Não é à Ré que o Autor tem que restituir o valor, mas sim ao BB que foi quem lho entregou, nos termos do disposto no artº 1187º c) do Ccivil.
BB- Não ficou provada a atividade de mediação por parte do Autor, e é inexistente, ou insuficiente, a motivação a esse propósito, e por isso não se evidencia abundantemente dos autos, que o Autor exerceu, ou protagonizou, mediação imobiliária pelo que não pode, a douta decisão, julgar o Autor como tendo protagonizado atos de mediação imobiliária.
CC-A escritura de compra e venda de 29/9/2022 não refere que BB tenha utilizado os € 3.000 recebidos pelo Autor, para pagamento do imóvel, pelo que não se poderá julgar que o Autor, nessa mesma escritura, agiu como mediador imobiliário, que não agiu, agiu, como da própria escritura ressalta, como procurador do comprador BB e de sua mulher.
DD- Ademais, quando a escritura foi celebrada, a 29 de Setembro de 2020, nem, sequer, o A. Era trabalhador da R., pois o seu contrato cessara a 5 de Agosto de 2020.
EE- O Tribunal a quo valorou, erradamente, os factos constantes da prova documental existente nos autos, no caso, o teor e as datas que constam da declaração constante de fls. 54, o teor da escritura de compra e venda de 29 de Setembro de 2020, e o teor da declaração de resolução, com justa causa, do contrato de trabalho, recebida pela Ré a 5 de Agosto de 2020.
FF-Havendo uma distorção da realidade factual e na aplicação do direito, porque o decidido não corresponda à realidade ontológica, desviando-se da realidade factual e não corresponde à realidade normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a Lei.
GG- A douta sentença recorrida faz um incorreto enquadramento jurídico aplicável à questão sub judice, erro na interpretação e aplicação do Direito, não podendo conformar-se, pois, com a referida decisão.
HH- Ao decidir, de direito, como decidiu, o douto Tribunal a quo, decidiu sem correspondência à realidade normativa, pois violou, ou não interpretou corretamente, o disposto nas seguintes normas jurídicas:
● Os artºs 2º, 3º, 16º, 18º, 23º e 24º da Lei 15/2013 de 8 de Fevereiro;
● Os artºs 1º e 2º da Portaria 228/2018 de 13 de Agosto;
● Os artºs 1185º, 1187º c) e 1189º do Ccivil
II- Devendo as decisões impugnadas ser revogadas.»
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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A 1.ª instância admitiu o recurso com subida imediata, nos próprios autos, e com efeito meramente devolutivo.
Após a subida do processo à Relação, foi dado cumprimento ao disposto no n.º 3 do artigo 87.º do Código de Processo do Trabalho.
A Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, pugnando pela procedência do recurso.
Não foi oferecida resposta
O recurso foi mantido e foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.

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II. Objeto do Recurso
É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso (artigos 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil, aplicáveis por remissão do artigo 87.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho).
Em função destas premissas, as questões suscitadas no recurso são as seguintes:
1.ª Impugnação da decisão de facto.
2.ª Inexistência da obrigação do Apelante entregar à Apelada a quantia de € 3.000,00€ que recebeu de BB.
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III. Matéria de Facto
A 1.ª instância considerou provada a seguinte factualidade:
A) O A. foi contratado, pela R., a 1 de Setembro de 2011, mediante contrato de trabalho a termo certo, para exercer a função de Angariador Nível 1 de mediação imobiliária;
B) Ultimamente, o autor auferia mensalmente € 635;
C) No dia 4 de Agosto de 2020, o autor enviou à ré a carta cuja cópia consta como documento n.º 2 da petição inicial, a comunicar a resolução do contrato de trabalho, invocando justa causa, consubstanciada na falta de pagamento das retribuições dos meses de Maio, Junho e Julho desse ano;
D) A ré recebeu tal carta no dia 5 de Agosto de 2020;
E) O salário do autor foi penhorado à ordem do Tribunal da Comarca de Santarém, no âmbito do processo nº 747/12.9TBENT (PE-828/2012), cujos termos correm no Juízo de Execução do Entroncamento – J3;
F) O autor, agindo como gestor comercial da ré, recebeu de um cliente desta, BB, € 3.000, para reserva de um imóvel que se encontrava à venda; (a redação desta alínea foi alterada, pelos motivos que se indicam infra)
G) No dia 10 de Setembro de 2020, a ré remeteu ao autor uma Nota de Culpa;
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E deu como não provados os seguintes factos:
A) À retribuição certa auferida pelo A., acresce, já depois do momento da contratação, retribuição variável, em função da angariação de negócio que o A. conseguisse, para a R., e que lhe era paga, por esta, em valores variáveis, como prémio, contra recibos verdes.
B) O autor apropriou-se das quantias de 800,00€, 150, 00€ e 400,00€;
C) O autor apropriou-se de uma viatura automóvel, propriedade da sócia da empresa, de marca Volvo, matrícula ..-RP-.., levando-a para qualquer local à revelia desta;
D) As apropriações sucessivas, causaram grave prejuízo à ré, que se viu impossibilitada de cumprir os seus pagamentos pontualmente,
E) A ré prestou ao autor formação profissional no IMOPI.
F) A ré pagou ou entregou alguma das reclamadas retribuições.
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IV. Impugnação da decisão de facto
No recurso apresentado, o Apelante impugna a decisão de facto relativamente ao conteúdo da alínea F) dos factos provados.
Tendo sido observado o ónus de impugnação previsto no artigo 640.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável ao processo laboral, nada obsta a que se aprecie este fundamento do recurso.
A alínea F) dos factos provados tem o seguinte teor:
- O autor, agindo como gestor comercial da ré, recebeu de um cliente desta, BB, € 3.000, para reserva de um imóvel que se encontrava à venda.
O Apelante pugna para que se altere a factualidade inserta na alínea, porquanto o documento junto a fls. 54 dos autos não permite concluir que BB era cliente da Apelada e que existiu qualquer contrato de mediação imobiliária entre aquele e esta, sendo certo que a materialidade em causa também não pode considerar-se assente por acordo das partes.
Pugna para que a referida alínea passe a ter a seguinte redação:
«O autor, na qualidade de gestor comercial da ré, recebeu de BB, a importância de € 3.000, para reserva de um imóvel que se encontrava à venda.»
Apreciemos.
A materialidade relacionada com o facto impugnado foi alegada no âmbito do pedido reconvencional deduzido na contestação.
Aí se articulou:
«59º
No mês de Julho de 2020, a ré reconvinte tinha em promoção e publicitação, na sua carteira de venda de imoveis, uma fração autónoma correspondente ao rés-do-chão direito do prédio em propriedade horizontal, sito na Rua ..., Entroncamento, pelo valor de 50.000,00€.
60º
Em 20.07.2020, o aqui autor entabulou com o interessado na aquisição da dita fração, BB, conversações para aquisição da fração, sem dar conhecimento á gerência da ré.
61º
Recebeu desse interessado a importância de 3.000,00€ para reserva do imóvel,
Quantia que veio a transferir, pelas 12h17 do dia 20.07.2020, para a sua conta pessoal do banco CTT, com o IBAN PT50. ..., conforme se verifica de fls. 17 do processo disciplinar (doc. nº1 supra junto).
63º
A referida importância proveio da conta do referido cliente da ré, da conta Millenium BCP, através de operação doméstica (também conferir fls. 17 do processo disciplinar),
64º
Como emitiu a declaração de fls. 16 do P. Disciplinar, dando quitação do recebimento da aludida quantia, apondo na mesma a designação de gestor comercial, cargo que jamais exerceu.
65º
O autor não só não entregou esta importância à ré, como ocultou a sua entrada.»
Para prova do alegado foi apresentado, entre outros, o documento que faz fls. 54 dos autos, com o seguinte conteúdo:
(…)7

Na resposta à reconvenção, o Apelante referiu:
«17º
O valor de 3.000,00€ que a R. refere nos artºs 55º, 14º, 40º, 61º e 105º da sua contestação, como tendo sido apropriado pelo A., como se pertencesse à R., corresponde a sinal e princípio de pagamento que BB lhe entregou, para compra de um apartamento propriedade de um seu amigo CC, que o havia mandatado, com procuração para vender, valor que o A. lhe entregou, em numerário, e conforme escritura de compra e venda, de 29 de Setembro de 2020, que se junta. (DOC 1)
18º
Ou seja, nem o valor de 3.000,00€ seria da R., pois não corresponde a qualquer comissão ou reserva a seu favor, até porque o vendedor CC nem conhece, sequer, a R., ou alguma vez a contactou para mediar tal negócio.
Juntou a escritura pública da compra e venda do imóvel situado na Rua ..., Entroncamento, na qual, BB e esposa, constam como compradores, ainda que representados pelo Apelante, na qualidade de seu procurador.
Com relevo, consta, ainda, do aludido documento oficial que o imóvel foi vendido, em 29/09/2020, pelo preço de 50.000,00 €, e que os outorgantes da escritura declararam que o preço foi liquidado «pela entrega da quantia de dois mil novecentos e noventa e nove euros e noventa e nove cêntimos, em numerário, em euros e entregue no dia 20 de julho de 2020; e dois cheques bancários do Banco BPI S.A. número ...63, no montante de dois mil euros e um cêntimo e número ...62, no montante de quarenta e cinco mil euros, datados de hoje e entregues neste ato».
No requerimento apresentado pela Apelada em 02/11/2021 (ref.ª 40327985), veio esta alegar que a venda do imóvel identificado foi por si promovida, cabendo-lhe a respetiva comissão pela angariação e concretização da venda. Juntou a seguinte prova documental:
- Documentos relacionados com o pedido e emissão do “Certificado Energético” do dito imóvel, datados do final (novembro e dezembro) de 2019
- Anúncio da venda do imóvel publicado pela Apelada, com o histórico de anotações relevantes, do qual resulta identificado como “Angariador” a Apelada.
Todavia, esta resposta não foi admitida por despacho prolatado em 11/11/2021, pelo que, consequentemente, também não foi admitida a prova documental apresentada com a aludida resposta.[2]
Ora, da posição assumida pelas partes, em sede de articulados[3], resulta manifesto que a factualidade impugnada não foi objeto de acordo.
Todavia, o Apelante não impugnou a prova documental junta a fls. 54 dos autos.
Além disso, na resposta à reconvenção, não deixou de reconhecer que recebeu de BB a quantia de 3.000,00€ e que não a entregou à Apelada.
Ora, no documento que faz fls. 54 dos autos, que se mostra assinado pelo Apelante, consta expressamente que este se apresenta como «gestor comercial da empresa, Medifenomeno» e que, nesta qualidade, se compromete «a conservar, como fiel depositário, a importância de 3 000€ (…)para reserva do imóvel apartamento T2, sito em Rua ... drtº, no Entroncamento, cujo valor da venda é de 50.000€».
Mais declarou o Apelante que «[a] quantia em apreço foi confiada à guarda da empresa, nos termos e para os efeitos legais previstos no artigo 18.º da Lei n.º 15/2013, de 8 de fevereiro».
Ora, tal documento (não impugnado pelo Apelante) é um documento particular que tem a força probatória que se mostra prevista no artigo 376.º do Código Civil, ou seja, sendo reconhecida a autoria do documento, como sucedeu, o documento faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor.
Ademais, os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários ao interesse do declarante.
Ora, o que se extrai do teor do documento é que na relação estabelecida com BB, no que se reporta ao recebimento do valor de 3.000,00€, o Apelante atuou, declaradamente, não em seu nome pessoal, mas em nome da empresa Apelada, assumindo que o mencionado valor pecuniário ficaria confiado «à guarda da empresa» (e não à sua guarda pessoal).
Destinando-se tal quantia à reserva de um imóvel que se encontrava para venda, e sendo a Apelada mediadora imobiliária, e constando do documento que o dinheiro « foi confiada à guarda da empresa, nos termos e para os efeitos legais previstos no artigo 18.º da Lei n.º 15/2013, de 8 de fevereiro»[4], as regras da experiência comum e da normalidade da vida levam-nos a crer que BB surge na relação que se mostra documentada pelo documento que se analisa como alguém que declara estar interessado na aquisição do imóvel que se encontrava para venda, com a mediação da Apelante, e que reservou este imóvel mediante o depósito de uma determinada quantia que ficou confiada à guarda da empresa.
BB surge, pois, no concreto negócio que se aprecia, como um “destinatário do serviço da atividade imobiliária” que estava a ser promovida – Artigos 2.º n.ºs 5 e 6; 17.º, n.º 1, alíneas c) e d) e 18.º da Lei n.º 15/2003, de 8 de setembro.
O “cliente” da Apelada seria a pessoa ou entidade que havia celebrado com a empresa o negócio jurídico de mediação imobiliária para a venda do apartamento T2, sito em Rua ... da mencionada lei.
Atente-se que nesta ação não está em causa a apreciação da legalidade da relação de mediação imobiliária estabelecida.
Deste modo, com fundamento no documento de fls. 54 dos autos, justifica-se a alteração da factualidade inserta na alínea F) dos factos provados, eliminando-se da mesma a referência de que BB era “um cliente” da Apelada.
Pelo exposto, procede a impugnação fáctica deduzida.
Acresce que se nos afigura que o acervo dos factos provados contém algumas deficiências, suscetíveis de serem supridas pela Relação, ao abrigo do artigo 662.º do Código de Processo Civil.
Desde logo, da decisão recorrida não consta um facto importante[5], que resultou provado por acordo das partes:
- O Apelante nunca entregou à Apelada a quantia de 3.000,00€ que recebeu de BB.
Também se nos afigura importante, porque resulta do documento de fls. 54, referir a data em que o aludido valor foi entregue e, ainda, que a referida importância foi confiada à guarda da empresa nos termos e para os efeitos previstos no artigo 18.º da Lei n.º 15/2013, de 8 de fevereiro.
Assim, ao abrigo do artigo 662.º do Código de Processo Civil, altera-se a alínea F) dos Factos Provados, que passará a ter a seguinte redação:
- Em 20 de julho de 2020, o Autor, agindo como gestor comercial da Ré, recebeu de BB, 3.000,00€, para reserva de um imóvel que se encontrava à venda, valor esse que nunca entregou à Ré, apesar de o mesmo ter sido confiado à guarda da empresa, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 18.º da Lei n.º 15/2013, de 8 de fevereiro.
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V. Impugnação de direito
O Apelante não se conforma com a decisão que julgou procedente o pedido reconvencional e que, consequentemente, o condenou a pagar à Apelada a quantia de 3.000,00€, tendo, depois, procedido à operação de compensação dos créditos das partes.
Vejamos, então, como a questão em debate foi apreciada pelo tribunal a quo:
«3.5. Relativamente ao pedido reconvencional, entende-se que a ré tem o direito de exigir a entrega da quantia de € 3.000 do autor, pois provou-se que: “O autor, agindo como gestor comercial da ré, recebeu de um cliente desta, BB, € 3.000, para reserva de um imóvel que se encontrava à venda”. Ao contrário do que a reconvenção insinua, este dinheiro não pertence à ré, mas sim ao cliente, nos termos que constam da declaração de fls. 54 que foi apresentada com a contestação. É uma quantia confiada à empresa e que deve ficar na sua posse até que lhe seja exigida a restituição, por quem de direito.
Também ao contrário do que o autor defende, a escritura de compra e venda de 29/9/2022 não refere que este tenha utilizado esses € 3.000 para pagamento do imóvel. E tal escritura também não dá qualquer quitação à ré. Aliás, novamente valorizando a total falta de idoneidade e seriedade do autor (neste item as partes equivalem-se), este até declarou na escritura que “o contrato aqui titulado não foi objeto de intervenção de mediador imobiliário…”.
Isto é, o mesmo AA declara:
1) A fls. 54 que recebe, na qualidade de gestor comercial da empresa Medifenómeno, de BB a quantia € 3.000 para reserva de um imóvel, nos termos e para os efeitos do artigo 18.º da Lei n.º 15/2013, de 8/2; e,
2) Na escritura cuja copia se encontra a fls. 142, que o contrato aqui titulado não foi objeto de intervenção de mediador imobiliário….
Logo, na posse do referido documento, o BB poderá exigir da ré a restituição da referida quantia. E não será a escritura invocada pelo autor na resposta, nem as declarações deste que irão eximir a ré dessa restituição.
Assim, tendo o autor declarado que recebeu, na qualidade de gestor comercial da empresa Medifenómeno, de BB a quantia € 3.000 para reserva de um imóvel, nos termos e para os efeitos do artigo 18.º da Lei n.º 15/2013, de 8/2, o mesmo está obrigado a entregar tal quantia à empresa – cfr. art.º 1187.º, alínea c), do Código Civil.
No mais, a ré não demonstrou qualquer fundamento de suporte para o pedido reconvencional, mormente para o despedimento do autor que tentou empreender, debalde após a resolução do contrato de trabalho.
Assim, operando a parcial compensação de créditos, o autor tem direito a receber a quantia total de € 9.536,84, assim calculada:
Maio 635,00
Junho 635,00
Julho 635,00
Agosto 106,00
Sub. Férias 635,00
Férias Não Gozadas 571,50
Proporc. Sub. Férias 377,50
Proporc. Férias 377,50
Proporc. Sub. Natal 377,50
Formação 274,76
Remuneração Variável 2250,00
Indemnização 5662,08
Subtotal 12536,84
Reconvenção 3000,00
Total 9536,84».
Ora, com arrimo nos factos provados, não poderemos deixar de confirmar a decisão posta em crise.
Extrai-se da factualidade assente que BB entregou ao Apelante, a quantia de 3.000,00€, para ficar depositada à guarda da Apelada.
Porém, apesar de ter recebido essa quantia, com a consciência que a mesma era para ser entregue à empresa, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 18.º da Lei n.º 15/2013, de 8 de fevereiro, o Apelante jamais procedeu à sua entrega à empresa.
Acresce que o Apelante não logrou demonstrar que o aludido montante foi utilizado para pagamento do preço de aquisição do imóvel.
Repare-se que apesar de a escritura pública apresentada constituir um documento autêntico, com a força probatória consagrada no artigo 371.º do Código Civil, a prova plena que lhe é reconhecida restringe-se aos atos atestados pelo documentador, com base nas suas próprias perceções.
Ou seja, o documento faz prova plena quanto à expressão das declarações que foram prestadas perante o documentador, mas não já não garante a veracidade das declarações que os outorgantes fizeram ao documentador.[6]
Por conseguinte, apesar de constar da escritura pública que foi apresentada que os outorgantes da mesma declararam que o preço do imóvel foi pago «pela entrega da quantia de dois mil novecentos e noventa e nove euros e noventa e nove cêntimos, em numerário, em euros e entregue no dia 20 de julho de 2020; e dois cheques bancários do Banco BPI S.A. número ...63, no montante de dois mil euros e um cêntimo e número ...62, no montante de quarenta e cinco mil euros, datados de hoje e entregues neste ato», a veracidade do declarado não está abrangida pela força probatória plena do documento autêntico, pelo que incumbia ao Apelante ter demonstrado, com outro meio probatório, que entregou para pagar o preço do imóvel, atuando como procurador dos compradores BB e mulher, a quantia recebida em 20/07/2020, prova essa que não realizou.
Consequentemente, o que resulta dos factos provados, é que a aludida importância monetária permanece consigo, sem causa justificativa, quando a mesma ao lhe ser entregue tinha por destino ficar à guarda e confiança da Apelada.
Bem andou, pois, o tribunal a quo em condená-lo, em sede de pedido reconvencional, a pagar à Apelada a aludida quantia, tendo, depois, procedido à requerida compensação de créditos.
Sendo assim, os pontos 4.3 e 4.5 do dispositivo da sentença recorrida não merecem censura.
Quanto ao declarado na parte final da sentença e que fundamentou a extração de certidões para serem remetidas ao Ministério Público e o Instituto de Mercados Públicos do Imobiliário e da Construção, está em causa um poder discricionário ou de livre resolução do tribunal, que pode ou não ser exercido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal e que não é recorrível, nos termos previstos pelo artigo 630.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável.
Concluindo, a decisão recorrida merece a nossa confirmação, pelo que o recurso interposto terá de ser julgado improcedente.
*
VI. Decisão
Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do Apelante.
Notifique.

Évora, 30 de março de 2023
Paula do Paço (Relatora)
Emília Ramos Costa (1.ª Adjunta)
Mário Branco Coelho (2.º Adjunto)

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[1] Relatora: Paula do Paço; 1.ª Adjunta: Emília Ramos Costa; 2.º Adjunto: Mário Branco Coelho
[2] Fazemos esta referência porque no Parecer do Ministério Público mostra-se referido que «do anúncio de venda do mencionado imóvel constante dos autos resulta evidente que a sua venda estava a ser mediada pela Recorrida».
[3] Petição inicial, contestação-reconvenção e resposta à reconvenção.
[4] O artigo 18.º da Lei n.º 15/2003, de 8 de fevereiro estipula o seguinte:
«Quantias prestadas pelos destinatários
1 - Consideram-se depositadas à guarda da empresa de mediação quaisquer quantias recebidas dos destinatários de negócio por si mediado, mesmo que a título de preço, que lhe sejam confiadas antes da celebração do mesmo ou do respetivo contrato-promessa, devendo restituí-las imediatamente a quem as prestou, logo que para tal solicitada.
2 - É expressamente vedado às empresas de mediação utilizar em proveito próprio as quantias referidas nos números anteriores.
3 - O depósito efetuado nos termos do n.º 1 é gratuito, aplicando-se, com as necessárias adaptações, as disposições previstas no Código Civil para o contrato de depósito.
4 - O disposto nos números anteriores aplica-se apenas a contratos sujeitos à lei portuguesa.»
[5] E que foi considerado na fundamentação de direito da decisão recorrida.
[6] Neste sentido, v.g. Acórdão da Relação de Coimbra de 09/01/2018, Proc. n.º 8470/15.6T8CBR.C1 e Acórdão da Relação do Porto de 22/10/2019, Proc. n.º 2619/18.4T8OAZ-A.P1, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.