Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
9/17.5GBABF.E1
Relator: MARIA ISABEL DUARTE
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
RELAÇÃO DE NAMORO
Data do Acordão: 07/26/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I – A alínea b) do n.º 1 do artigo 152.º do Código Penal inclui na previsão legal do crime de violência doméstica as relações de namoro;
II – Estas terão que ser relações sentimentais, afetivas, íntimas e tendencialmente estáveis ou duradouras, que ultrapassam a mera amizade ou relações fortuitas, não se exigindo, todavia, um projeto futuro de vida em comum, na medida em que as relações de namoro não têm, em princípio, a pretensão de preencher todas as características associadas à conjugalidade, como seja o futuro de vida em comum;
III – A existência de duas pessoas numa relação de namoro exige a dualidade, por parte dos seus dois membros, da aceitação e vontade real de participação e permanência nesse vínculo sentimental e afectivo, não bastando que só um dos intervenientes o pretenda e aceite.
Decisão Texto Integral: Proc. N.º 9/17.5GBABF.E1
Reg. N.º 1026

Acordam, em conferência, na 1ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

I - Relatório
1.1 - No âmbito do Proc. Comum com intervenção do Tribunal Singular N.º 9/17.5GBABF, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro Juízo Local Criminal de Albufeira - Juiz 2, foram julgados, os arguidos:

BB, (…) e
CC (…)

tendo sido proferida sentença, com o teor seguinte:
A) “Absolver a arguida CC da prática do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo disposto no art. 1520 na 1 b) do Código Penal, de que vinha acusada;
B) Absolver o arguido BB da prática do crime de dano, previsto e punido pelo art. 2120 na 1 do Código Penal, de que vinha acusado;
C) Condenar o arguido BB:
1. pela prática do crime de ofensa à integridade física dos factos 18 a 22, previsto e punido pelo art. 143º n.º 1 do Código Penal, na pena PARCELAR de 70 (setenta) dias de muita;
2. pela prática do crime de ofensa à integridade física dos factos 23 e 24, previsto e punido pela mesma norma, na pena PARCELAR de 90 (noventa) dias de muita;
3. pela prática do crime de ofensa à integridade física do facto 29, previsto e punido pela mesma norma, na pena PARCELAR de 180 (cento e oitenta) dias de muita;
4. E, em cúmulo jurídico das três penas parcelares supra referidas, condenar o arguido na PENA ÚNICA de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, fixando-se o quantitativo diário da muita em € 6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos).
(…).”

1.1.1 - O Ministério Público, junto do tribunal “a quo”, inconformado, interpôs recurso. As conclusões da sua motivação são:
“1. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida nos autos à margem identificados, no que tange à absolvição do arguido BB da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.°, n.º 1, al. b) do Código Penal, condenando-o antes pela prática de 3 crimes de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art. 143.°, n." 1 do Cód. Penal, na pena única de 250 dias à taxa diária de € 6,50;
2. O tribunal a quo deveria ter dado como provado o facto a) da matéria de facto não provada, por via dos depoimentos prestados e do que consta da própria motivação da fundamentação da decisão, que impunham decisão diversa, devendo considerar-se que os arguidos mantiveram uma relação de namoro;
3. O relacionamento entre os arguidos não se resumiu à natureza de cariz sexual;
4. Houve um relacionamento afectivo entre ambos, bem demonstrando o facto do arguido sempre ter negado a existência de outro relacionamento para evitar "perder" a arguida e magoá-la;
5. O relacionamento manteve-.se ao longo de meses, ainda que à distância mas com contactos diários;
6. A existência de outros relacionamentos não invalida o preenchimento do conceito de namoro, face à vida hodierna;
7. Não se exige um projecto de vida em comum, para considerar a existência de um vínculo afectivo, mais ou menos estável e a publicidade na área de residência do arguido, o contacto deste com os familiares daquela e permanência de alguns dias por mais de uma vez na sua habitação também o representam;
8. Assim, deverá este relacionamento ser considerado namoro e ser o arguido condenado pelo crime de violência doméstica de que vinha acusado, p. e p. pelo art. 152.°, n.º 1, al. b) e 2 do Cód. Penal, que o Mmo. Juiz violou com a sua interpretação.
Assim decidindo, farão V. Exts a costumada Justiça! ”.

1.2 - O arguido apresentou resposta ao recurso concluindo:
“Invoca o Ministério Público que o tribunal a quo deveria ter dado como provado o facto a) da matéria de facto não provada.
Salvo o devido respeito não assiste razão ao recorrente, pelas razões que se passam a
expor:
Consta do facto dado como não provado sob a alínea a) o seguinte:
"Os arguidos mantiveram uma relação de namoro que se iniciou no Verão de 2016 e terminou no dia 1 de Janeiro de 2017."
O vocábulo "namoro" pode ser, simultaneamente, um conceito de direito ou um mero facto, dependendo da contextualização em que se insere.
No caso vertente é notório e evidente que o conceito assume uma relevante carga conceituai jurídica, porquanto é a factualidade subjacente à relação em apreço nos autos que permitirá ao julgador considerar preenchido ou não o referido conceito para efeitos do disposto no artigo 152.°, n.º 1, al. b), do Código Penal.
Ficou demonstrado de forma evidente nos autos que os arguidos mantiveram um relacionamento pessoal entre o Verão de 2016 e o final desse mesmo ano. Contudo, a qualificação que é feita desse relacionamento para efeitos de enquadramento jurídico terá que se basear em factos concretos e não no uso de um termo que tem um significado diferente, consoante seja usado na terminologia corrente ou o seja para efeitos jurídicos, mormente para preenchimento do tipo legal do crime de violência doméstica.
A pretensão do Ministério Público não tem cabimento legal, pois pretende que no elenco dos factos provados sejam incluídos conceitos jurídicos, cujo preenchimento depende da prova ou de factos concretos que nos permitam chegar ou não a essa conclusão.
Invoca o recorrente que o Tribunal a quo deu erroneamente como não provados determinados factos, e não acrescentou factos que se impunha dar como provados. Ora,
Salvo o devido respeito, não se percebe que vício imputa o recorrente à sentença: Erro notório na apreciação da prova, consagrado no artigo 410.°, n.º 2, al. c), do CPP; ou Erro de julgamento da matéria de facto?
Salvo o devido respeito por opinião contrária, entendemos que a sentença não padece de qualquer erro, e muito menos notório e evidente.
Razão pela qual, entendemos que a decisão em apreço não merece qualquer censura, devendo, em consequência, ser negado provimento ao recurso, mantendo-se na íntegra o decidido na douta sentença recorrida
Invoca o Ministério Público que o tribunal a quo errou ao condenar o recorrido pela prática de três crimes de ofensas à integridade física, p. e p. pelo artigo 143.°, nº 1, do Código Penal, quando devia ter considerado preenchidos os elementos objectivos do tipo de crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.°, n." 1, ai, b), do Código Penal, e, em consequência, condenar o ora recorrido pela prática deste último crime.
Mais uma vez entendemos que não assiste razão ao recorrente.
Não basta a existência de um relacionamento entre duas pessoas, para que se possa considerar que existe uma relação de namoro para efeitos do disposto no artigo 152.°, n.º 1, al. b), do Código Penal.
Os factos que resultaram provados no caso em apreço não nos permitem concluir que a relação existente entre os arguidos tinha um carácter mais ou menos estável de relacionamento amoroso, aproximado ao da relação conjugal de cama e habitação. Nada nos autos nos permite concluir que existiam laços afectivos, emocionais, de cooperação mútua, com publicidade, entre os arguidos!
Face ao supra exposto, entendemos que a sentença recorrida encontra-se devidamente fundamentada, quer de facto, quer de direito, não merecendo qualquer censura, razão pela qual deverá ser negado provimento ao recurso, por infundado.
Termos em que, sem formular conclusões, por não serem obrigatórias (artigo 412.°, n.º 1, a contrario, do CPP), deverá o presente recurso ser julgado improcedente e, em consequência, confirmada a decisão recorrida, assim se fazendo inteira e esperada JUSTIÇA!”.

1.3 - Neste Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, concluindo:
“1. - O Recurso foi tempestivamente interposto e motivado por quem tem legitimidade e interesse em agir, sendo de manter o regime de subida e o efeito ao Recurso atribuído no despacho de admissão.
2. - Nada obsta ao conhecimento do Recurso em conferência, atento o disposto no art. 411 ° n° 5 do Cód. Proe. Penal, que deve ser julgado procedente.”.

1.4 - Foi dado cumprimento ao disposto no art. 417º, n.º 2, do C.P.P.

1.5 - Foram colhidos os vistos legais.

1.6 - Cumpre apreciar e decidir.


II - Fundamentação.
2.1 - O teor da decisão recorrida, na parte que importa, é a seguinte:
Factos
Factos provados
Com interesse para a decisão da causa resultaram provados os seguintes factos:
1. Os arguidos BB e CC conheceram-se pessoalmente no Verão de 2016 durante um período de cerca de 10 dias em que o arguido BB passava férias em Albufeira com vários amigos.
2. Nessa ocasião os arguidos iniciaram um relacionamento pessoal, tendo a arguida CC ficado na casa onde o arguido e os amigos passavam férias durante o período em que o arguido lá ficou também.
3. Findo o mencionado período de férias o arguido retomou a casa, sita em …, Moita.
4. Em data não concretamente apurada, mas antes do final de 2016, o arguido voltou a Albufeira, tendo ficado a pernoitar, na companhia da arguida, na casa onde esta reside com a mãe, durante pelo menos três dias, após o que regressou a casa.
5. Após, em dia não concretamente apurado mas também antes do final de 2016, a arguida deslocou-se até à zona de Lisboa, onde passou a tarde na companhia do arguido.
6. Depois dessa ocasião, também em data não concretamente apuradas, mas também antes do final de 2016, o arguido voltou a ficar em Albufeira, pernoitando pelo menos um fim-de-semana na companhia da arguida na casa onde esta reside com a mãe, após o que voltou para casa.
7. Após as ocasiões supra mencionadas, o arguido veio para Albufeira com amigos festejar a passagem de ano de 2016 para 2017, tendo ficado em casa arrendada para o efeito, não tendo a arguida pernoitado nessa casa.
8. Nesta última ocasião os arguidos encontraram -se na rua fortuitamente, e desde a mencionada passagem de ano que não tiveram contactos presenciais ou telefónicos.
9. Nas ocasiões supra mencionadas em que o arguido ficou em Albufeira na casa onde a arguida reside com a mãe esta última não estava na casa, e os arguidos ficavam aí sozinhos durante esses períodos.
10. O relacionamento dos arguidos pautou-se, entre o mais, pela prática de relações sexuais, que mantiveram em momentos não concretamente apurados, mas pelo menos no Verão em que se conheceram e na primeira ocasião em que o arguido ficou na casa onde reside a arguida.
11. Os arguidos, desde o envolvimento que teve lugar no Verão de 2016 e até pelo menos à última ocasião em que o arguido ficou em casa da arguida, falaram por telefone regularmente, com frequência diária ou muito aproximada disso, e, por vezes, através de videochamadas.
12. Pelo menos vários meses antes da ocasião em que os arguidos se relacionaram pela primeira vez, o arguido, na zona onde reside, iniciou uma relação de namoro com uma mulher de nome DD.
13. Ainda hoje o arguido namora com DD.
14. Desde momento não concretamente apurado mas desde a primeira ou segunda ocasião em que estiveram juntos, a arguida suspeitou que o arguido tinha um relacionamento pessoal com outra pessoa, tendo-o confrontado com isso em diversas ocasiões.
15. Quando confrontado, o arguido dizia à arguida que não tinha outro relacionamento, por pretender evitar que a arguida ficasse melindrada com isso e não o quisesse ver mais.
16. Nas duas ocasiões supra mencionada em que o arguido ficou em Albufeira na casa onde reside a arguida, os arguidos entraram em conflito por causa do relacionamento suspeitado pela arguida.
17. Pelo menos numa das ocasiões em que o arguido ficou em Albufeira na companhia da arguida foram ambos a casa do companheiro da mãe desta, onde estavam a mãe da arguida, o respectivo companheiro, e uma amiga da arguida.
18. Numa das ocasiões supra mencionadas em que o arguido visitou Albufeira, o arguido estava desfalecido, embriagado, no sofá na casa do namorado da mãe da arguida.
19. Por causa disso a arguida deu-lhe algumas pancadas na face para o fazer reagir.
20. Em sequência o arguido reagiu, tendo-se colocado de imediato na retaguarda da arguida e colocado um braço em volta do pescoço da arguida, apertando esse braço com o seu outro braço, efectuando uma manobra conhecida como "mata-leão".
21. Como consequência do sucedido a arguida sentiu falta de ar.
22. De imediato EE, amiga arguida que também ali se encontrava, protestou contra o arguido e após tal intervenção, decorridos cerca de 10 segundos desde que a havia agarrado, o arguido largou a arguida.
23. Numa das ocasiões supra mencionadas em que o arguido ficou em Albufeira, na residência da arguida, durante a noite, na sequência de uma discussão, o arguido agarrou a arguida pelas golas da roupa e atirou-a várias vezes para cima da cama.
24. A actuação do arguido causou dores na arguida.
25. Na madrugada do dia 1 de Janeiro de 2017, a hora não apurada, na zona da …, em Albufeira, os arguidos encontraram-se fortuitamente, em mais do que uma ocasião.
26. Na sequência de um desses encontros, a arguida deu propositadamente uma pancada na mão do arguido, que mexia na altura num telemóvel de um amigo, e o aparelho caiu ao chão.
27. Em sequência os arguidos entraram em discussão.
28. Nestas circunstâncias, em momento não concretamente apurado, o arguido dirigiu à arguida, entre o mais, a expressão "és uma filha da puta", e a arguida dirigiu ao arguido entre o mais, a expressão "és um cabrão".
29. A certa altura o arguido, com o punho cerrado, desferiu uma pancada nos lábios de CC.
30. Em momento e de forma não concretamente apurados o telemóvel da arguida ficou partido.
31. O arguido BB sabia que as agressões que perpetrou na ofendida lhe ofendiam o corpo e provocavam-lhe dores, tendo agido voluntariamente.
32. Os arguidos sabiam que as expressões que dirigiam um contra o outro, eram idóneas a ofender as respectivas honras e consideração, e a humilharem-se mutuamente.
33. Os arguidos agiram sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
34. A arguida CC é solteira e não tem filhos.
35. A arguida trabalha como empregada de mesa, auferindo cerca de € 660 por mês.
36. A arguida reside com a mãe em casa arrendada, sendo a renda da habitação suportada por esta.
37. A arguida ajuda a suportar as despesas da casa com uma contribuição mensal de cerca de € 100.
38. O arguido BB é solteiro e não tem filhos.
39. O arguido é operário na …, auferindo cerca de € 680 por mês.
40. O arguido aufere ainda prémios de jogo em jogos de futebol, de valor e periodicidade incertos mas rondando os € 100 mensais.
41. O arguido reside com a mãe.
42. O arguido ajuda a suportar as despesas da casa com montantes não concretamente apurados.
43. A arguida CC não regista antecedentes criminais.
44. O arguido BB não regista antecedentes criminais.
Factos não provados
Ficaram por provar todos os demais factos relevantes constantes da acusação, designadamente:
a) Os arguidos mantiveram uma relação de namoro que se iniciou no Verão de 2016 e terminou no dia 1 de Janeiro de 2017.
b) Em data não concretamente apurada do mês de Outubro de 2016, no interior da residência da arguida em Albufeira, na sequência de uma discussão a propósito de o arguido ter outra namorada, a arguida agarrou numa faca de cozinha, apontou-a ao arguido e disse que o matava se não ficasse com ela e admitisse que tinha outra namorada.
c) As datas concretas em que os factos 18 a 24 tiveram lugar.
d) Na ocasião descrita no facto 18 e seguintes o arguido encontrava-se a "passar uns dias" em casa do namorado da mãe da arguida.
e) Na ocasião mencionada nos factos 23 e 24 o arguido disse continuamente à arguida que a matava.
1) Na ocasião dos factos 25 e seguintes o arguido agarrou a arguida por um braço e obrigou-a a acompanhá-lo, dizendo que queria falar com ela.
g) Na ocasião dos factos 25 e seguintes o arguido pegou no telemóvel da arguida e atirou-o ao chão, partindo-o.
h) Na ocasião dos factos 25 e seguintes a arguida disse ao arguido "eu vou-te matar", "és um filho da puta".
i) Os arguidos sabiam que as expressões que dirigiam um contra o outro, eram idóneas a atemorizar o destinatário, o que quiseram, e conseguiram.
j) O arguido sabia que o telemóvel que atirou ao chão pertencia à ofendida e que esta não lhe havia dado permissão para o partir tendo apesar disso agido da forma supra descrita.
Fundamentos da decisão quanto aos factos
Para a formação da convicção quanto aos factos provados, o Tribunal baseou-se na apreciação crítica da prova produzida, criticamente apreciada à luz das regras da experiência comum.
Os meios de prova pesados foram os seguintes:
Declarações dos arguidos;
Depoimentos de …, …, …,
Documentos de fls. 26, 169, 189, e 202.
Antes do que se segue, uma nota.
No caso vertente foi imputada a ambos os arguidos a prática de um crime de violência doméstica. O crime em questão supõe, na sua tipificação plasmada no art. 152º do Código Penal (CP), uma ligação pessoal entre agente e vítima: o casamento, actual ou pretérito (art. 1520 na 1 al. a) do CP), uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges (al. b) do mesmo artigo), serem progenitores de filho comum (al. c), ou partilha de residência comum (aI. d). No perímetro fáctico da acusação pública dos presentes autos respiga-se que a ligação pessoal que ali se afirma ter existido entre os agentes dos crimes foi uma relação de namoro (art. 152º n.º 1 al. b) do CP); Lê-se a acusação que "Os arguidos mantiveram uma relação de namoro que se iniciou no Verão de 2016 e terminou no dia 1 de Janeiro de 2017". Sucede que as ligações pessoais (condição absoluta da prática do crime em causa) da al. b) do art. 152º n.º 1 do CP caracterizam-se por uma elevada dose de "subjectividade", decorrente da sua própria natureza de relacionamento interpessoal emocional. Em particular, a relação de namoro é um elemento objectivo do tipo de crime ­que tem de inferir-se a partir de factos objectivos- que é por vezes particularmente difícil de caracterizar. Casos há (até nos parece que constituirão a larga maioria) em que a conclusão sobre se existe ou não uma relação de namoro entre duas pessoas não oferece qualquer dificuldade; Por exemplo, num caso em que um casal que publicamente se apresenta como um casal de namorados, e que tem uma relação sólida e continuada, com evidente expectativa e aparência pública de ser uma relação emocional exclusiva dos seus intervenientes para quem seja seu conhecido, a conclusão sobre a existência da relação de namoro acaba por ser uma "trivialidade". Casos há todavia em que não é assim; Por causa da elevada dose de "subjectividade" que o conceito de namoro tem (E não é apenas a falta de tipificação legal dessa relação que faz surgir a questão, a dúvida sobre tal estado ocorre muitas vezes mesmo tomando o namoro no seu sentido corrente e até entre os próprios membros da relação emocional. Uma vez que inexiste uma única forma (ou um conjunto de formas pré-estabelecidas exclusivas) para se iniciar ou vivenciar um namoro será frequente a inexistência de consenso sobre a existência do namoro mesmo entre as próprias pessoas que vivem a relação. Ou seja, a dúvida sobre a qualificação da relação não se suscita somente ao intérprete do art. 152º n° 1 al. b) do CP, essa dúvida ocorre frequentemente mesmo "na vida comum", e é uma característica quase indissociável do próprio conceito, amplo, do que normalmente se apelida de namoro: perante um mesmo quadro de factos objectivos, e porventura com a mesma razão, algumas pessoas dirão que estão perante um casal de namorados e outras dirão que se trata de uma relação de outra natureza (uma "aventura", um relacionamento esporádico, um "namorico", ou uma fase vestibular de um eventual namoro futuro, por exemplo) a conclusão sobre a existência ou inexistência de tal relação oferecerá, quando a questão não seja tão clara, dificuldades assinaláveis. Todavia estamos convencidos que num e noutro caso a existência da relação de namoro é sempre, em rigor, uma conclusão, um juízo, e não propriamente um facto. Ainda que nas decisões judiciais deva sempre procurar-se lançar mão da mais elevada dose de rigor possível, não choca que quando seja inquestionável (e incontroversa) a existência de tal relação se leve a mesma à matéria fáctica provada e não provada: a questão é, em tais casos, pouco relevante relativamente ao verdadeiro objecto (instrutório e de direito) da causa, e por isso tal metodologia em nada contende com os princípios que norteiam a metodologia do direito penal substantivo e processual. Porque, naqueles casos concretos a questão, à partida, não se assume como potencial influência na decisão final da causa, não existe verdadeiramente um problema a resolver sobre a existência ou não do namoro; Saber se o namoro é um facto ou se é uma conclusão é, em tais casos, absolutamente secundária. Não é assim in casu. Com efeito, a prova produzida demonstrou -à saciedade- que para os membros da relação de namoro afirmada na acusação a questão não é líquida: a arguida CC afirmou que efectivamente ela e o co-arguido BB namoravam outrora, e o arguido, por seu lado, negou tal relação; E mesmo as testemunhas ouvidas não foram unânimes sobre a questão. Uma vez que no caso vertente a questão acaba por assumir relevância decisiva no resultado da causa, entendemos de levar à matéria fáctica provada somente os factos objectivos -aqueles que são susceptíveis de prova, contraprova e prova em contrário- aptos a servir de critério para aferir se existiu ou não entre CC e BB uma relação de namoro (factos 1 a 17); Com base naqueles factos objectivos cumprirá concluir se a matéria está ou não no perímetro previsto pela norma incriminadora. E optámos, em contraponto, por excluir da matéria provada o artigo do libelo acusatório que, por causa dos contornos concretos revelados pelo caso sub iudice, acaba por não ter, em si mesmo, substrato fáctico próprio e por isso é, tão-somente, uma conclusão de direito.
Assinale-se, todavia, o seguinte: o que acaba de dizer-se não fere, em nosso entender, a acusação de qualquer vício (designadamente o de omitir os factos necessários para se concluir pela prática do crime ali imputado), uma vez que, como dissemos, na maioria dos casos a questão que ora se trata (se o namoro é um facto ou se é uma conclusão) acaba por não assumir qualquer relevância assinalável na decisão da causa.
Posto o que precede, passamos a motivar a decisão sobre os factos.
As provas produzidas relativamente a praticamente todos os pontos relevantes do libelo acusatório atinentes aos crimes imputados foram discordantes. Com efeito, salvo o que se dirá infra relativamente à situação dos factos 18 a 22, não houve unanimidade quanto a nenhuma das agressões, ameaças e injúrias descritas na acusação; E não houve sequer unanimidade quanto aos contornos concretos (ou "qualificação") da relação que ligou os arguidos.
Em síntese, a arguida CC negou ter praticado qualquer dos factos ilícitos que lhe eram imputados (no essencial, duas ameaças de morte, uma delas feita com uma faca, e injúrias dirigidas ao co-arguido) e confirmou a verdade de quase tudo o que era atribuído ao arguido. Este último, por seu lado, apresentou uma versão oposta, tendo negado a prática de qualquer agressão mas confirmado uma das ameaças (a mais gravosa) e as injúrias atribuídas na acusação à co-arguida. Quanto à situação dos factos 18 a 22 o arguido afirmou que naquele momento estava extremamente embriagado, e que não se recordava senão do "antes" e do "depois"; Porém, repudiou a prática do que lhe foi imputado na acusação porque tal lhe parece incompatível com a sua personalidade (ou seja, das suas próprias palavras resultou que não podia negar frontalmente a ocorrência de tais factos porque não podia, nas circunstâncias que descreveu, tomar conhecimento da sua verdade ou inverdade, mas somente que suspeitava fortemente que os mesmos não seriam verdadeiros).
Quanto à ligação pessoal entre ambos, a arguida CC afirmou peremptoriamente que ela e BB foram efectivamente namorados (inclusivamente discutiram a questão expressamente entre os dois), e o arguido negou que tenham tido uma relação dessa natureza (nunca "pediu em namoro" a co-arguida, nem existiu nada de semelhante ou confundível com isso), afirmando que o seu relacionamento não passou de uma "aventura" .
Os testemunhos ouvidos foram, também, em sentidos opostos: … e … (respectivamente, uma amiga da arguida e o namorado da sua mãe) confirmaram o essencial da situação dos factos 18 a 22, que presenciaram directamente (embora os seus relatos não tenham sido particularmente coerentes num ponto dos acontecimentos, sobre quem interveio após os actos do arguido); e relataram terem visto marcas físicas no corpo da arguida, coerentes com parte do que esta descreveu. … (amigo do arguido, que o acompanhou durante parte da noite de passagem de ano dos factos 25 e seguintes), por seu lado, confirmou o essencial do que o arguido relatou sobre tais eventos (embora também aqui se tenha detectado uma incoerência entre os relatos relativamente a um ponto do que descreveram, a forma como o telemóvel da testemunha foi levado ao chão).
Também quanto à ligação entre os co-arguidos as testemunhas não foram unânimes: … e … apelidaram-nos de "namorados", mas de forma pouco incisiva quanto a factos objectivos concretos susceptíveis de levar a tal conclusão (a primeira afirmou igualmente que se tratava de uma relação instável, marcada por permanentes discussões; O segundo não se alongou sobre os contornos da relação); … sublinhou que tanto quanto sabia os arguidos nunca namoraram: o arguido teve uma namorada na zona onde residia e a relação com a arguida era, tão-somente, uma "amizade colorida", que o arguido mantinha à margem daquela outra relação mais estável.
Os documentos constantes dos autos com relevância maior para o objecto instrutório principal são o relatório de fls. 26, elaborado pelo INML, e as fotos de fls. 202 e seguintes, nas quais é visível o teor de mensagens escritas trocadas num telemóvel do arguido.
Quanto ao primeiro documento, prova pericial e por isso dotada de especial força de convencimento, não se suscitou qualquer dúvida sobre a sua genuinidade ou quanto à boa fé com que foi incorporada a informação nele plasmada.
Quanto ao segundo, ficámos convencidos que efectivamente se trata de mensagens trocadas entre a arguida e o arguido. As datas que constam de algumas mensagens não parecem estar correctas (isso mesmo denuncia o teor de algumas mensagens, que parecem não corresponder aos intervalos temporais dos eventos que ali são mencionados), o que o arguido logo assinalou quando apresentou o documento (porventura por aquele já não ser o telemóvel que usa, e que, assim o verificámos, apresentava data e hora "actuais" erradas). O documento não é, pois, fiável quanto às datas, e igualmente não é possível afirmar que se trate de uma transcrição integral das mensagens trocadas no período temporal em que ocorreram, uma vez que é possível, por exemplo, que tenham sido entretanto apagadas algumas mensagens da "conversa". Todavia, não há dúvida que o número de telefone remetente de tais SMS era usado pela arguida (cfr. fls. 42) pelo que ficámos convencidos da genuinidade do teor das mensagens, ou seja, que se trata de mensagens SMS efectivamente remetidas pela arguida ao arguido.
Face ao que antecede, pese-se a prova.
Cumpre desde já dizer que as declarações de ambos os arguidos pareceram apenas relativamente credíveis; Parte do que disseram não foi colocado em causa senão pelas palavras do outro, mas noutras partes contenderam com prova que se nos afigura dotada de muito maior solidez e credibilidade. As declarações prestadas pelo arguido, na parte em que negou os confrontos físicos por exemplo, aparentam colidir frontalmente com a perícia de fls. 26: a 2 de Janeiro de 2017 a arguida efectivamente apresentava sequelas física muitíssimo compatíveis com o teor das agressões que relatou (note-se que o documento corrobora até que as lesões foram produzidas em períodos temporais distintos, de harmonia com as declarações da arguida), e que o arguido negou. Por seu lado, as declarações da arguida na parte respeitante à destruição do seu telemóvel por exemplo (facto 30) parecem ser contraditadas pela mensagem de fls. 202. Com efeito a expressão "parti o meu tele à tua pala" parece muitíssimo mais compatível com a destruição acidental descrita pelo arguido do que com a atitude propositada e reiterada (primeiro levando o telemóvel a cair no chão, depois separando manualmente as suas partes) contada pela arguida.
As declarações dos arguidos foram ainda parcialmente incompatíveis com parte da prova testemunhal produzida. Os testemunhos de … e…confirmaram a existência das agressões físicas relatadas pela arguida (directamente a dos factos 18 a 22, e indirectamente as outras, por as testemunhas terem visto as respectivas lesões físicas subsequentes); O testemunho de … confirmou a troca mútua de insultos na noite da passagem de ano, que a arguida (de forma que nos pareceu até contrária ao normal acontecer) havia negado.
Tudo pesado, não ficámos convencidos que as descrições dos eventos (tanto no que reportaram sobre os confrontos mútuos como o que disseram sobre os contornos e desenvolvimentos da sua relação pessoal) relatadas pelos arguidos fossem, só por si, meios de prova suficientemente sólidos para firmar convicção para lá de dúvidas razoáveis.
O resultado do labor instrutório da causa decorre pois da ponderação conjugada de toda a prova produzida: ficámos convencidos da verdade dos relatos de um e outro somente nas partes que em que foram suportadas por prova independente dotada de solidez bastante; No mais apelou-se ao princípio in dubio pro reo.
Concretizando.
Ficámos convencidos da verdade das declarações da arguida quanto ao essencial do que descreveu sobre as agressões de que foi vítima com base na sua total concordância com a perícia de fls. 26. A verdade de tais factos foi ainda denunciada, tanto directa (factos 18 a 22) como indirectamente (facto 23) pelos testemunhos de … (Uma nota: não impressionou o facto de …ter dito não se ter apercebido de qualquer lesão no lábio da arguida na noite da passagem de ano: de acordo com as demais circunstâncias descritas pela testemunha sobre a sequência de eventos ocorrida nessa noite (disse que a arguida, depois do momento em que ocorreu a agressão, apareceu num estado manifestamente "desarranjado", sem sapatos e com a cara "borrada") não nos parece anormal que não tenha visto tal lesão) e …. Pesada esta prova em conjunto, ficámos plenamente convencidos que a versão adiantada pela arguida quanto àquelas agressões corresponde ao realmente sucedido, uma vez que as marcas físicas resultantes das agressões que descreveu tiveram pleno sustento em diversas provas independentes.
Sobre a troca de insultos do facto 28, ficámos convencidos a partir das declarações do arguido e testemunho de …, cuja conjugação nos pareceu coerente entre si e com o que, no contexto conflitual de cuja existência a prova não permite duvidar, são as regras da experiência comum.
As ameaças dos factos não provados b) e e) (cada uma delas descrita pela suposta vítima e negada pelo alegado autor) não tiveram confirmação independente em qualquer elemento instrutório. Como se disse antes, uma vez que não considerámos as declarações de um e outro arguido suficientes para por si só sustentarem os factos ilícitos mencionados na acusação, quedaram-se não provadas aquelas ameaças.
Os factos atinentes à relação vivenciada entre os arguidos decorrem da articulação das declarações de ambos; A matéria sobre que houve consenso levou-se aos factos provados; No que houve dissenso, apelou-se ao princípio in dubio pro reo.
Os factos provados respeitantes ao tipo subjectivo dos ilícitos (ou seja, ao que os arguidos sabiam na altura dos factos e a vontade com que actuaram) assentam na prova da factualidade objectiva. Os arguidos sabiam o que faziam e agiram de acordo com o que era a sua vontade porque assim seria para qualquer pessoa normal colocada naquelas condições. Pelo que ficámos convencidos que assim ocorreu também quanto aos arguidos. Faça-se porém a nota: o facto de BB saber o que fazia na situação dos factos 18 a 22, apesar da embriaguez que apresentava, é amplamente denunciado pela sua reacção (de libertar a arguida) quando "chamado à razão"; Se se tratasse de um acto que não espelhasse a sua personalidade, aniquilada por uma absoluta influência do álcool, igualmente não responderia ao estímulo de que foi alvo com a intervenção de ….
Os factos atinentes às condições familiares e financeiras dos arguidos assentam nas suas próprias declarações, nada havendo nos autos que as coloque em causa nesta parte.
A ausência de antecedentes criminais assenta nos certificados do registo criminal de fls. 169 e 189.”

2.2 - O registo magnetofónico da prova, permite, ao tribunal de recurso, sindicar a matéria de facto (desde que o recorrente dê cumprimento ao disposto no art. 412º ns. 3 e 4, do C.P.P., o que não ocorre, no caso “sub judice), apreciar as questões de direito avançadas pelo recorrente (Cfr. art. 428º, do mencionado compêndio adjectivo) e fazer a apreciação de eventuais vícios do art. 410°, n.º 2 CPP ou de nulidades que não devam considerar-se sanadas.
Portanto, dentro dos parâmetros retro aludido, são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso (art. 412°, n.º 1 CPP), uma vez que as questões submetidas à apreciação da instância de recurso são as definidas pelo recorrente.
São as conclusões que irão habilitar o tribunal superior a conhecer dos motivos que levam o recorrente a discordar da decisão recorrida, quer no campo dos factos quer no plano do direito.
Como se viu, a lei exige conclusões em que o recorrente sintetize os fundamentos e diga o que pretenda que o juiz decida, certamente porque são elas que delimitam o objecto do recurso.
Não pode o tribunal seleccionar as questões segundo o seu livre arbítrio nem procurar encontrar no meio das alegações, por vezes extensas e pouco inteligíveis, o que lhe pareça ser uma conclusão.
As conclusões constituem, por natureza e definição, a forma de indicação explícita e clara da fundamentação das questões equacionadas pelo recorrente e destinam-se, à luz da cooperação devida pelas partes, a clarificar o debate quer para exercício do contraditório, quer para enquadramento da decisão.

2.3 - Analisadas as conclusões de recurso, dir-se-á que, no caso dos autos, as questões que o recorrente coloca são:
1. - O tribunal a quo deveria ter dado como provado o facto a) da matéria de facto não provada, devendo considerar-se que os arguidos mantiveram uma relação de namoro;
2. - Deveria o Arguido ser condenado pela prática do crime de violência doméstica, pp pelo art" 152º n° 1, al. b) e 2 do Cód. Penal, de que vinha acusado
3. - Por erro de interpretação foi violado o art.º 152º n° 1, al. b) e 2 do Cód. Penal;

2.4 - Análise das questões do recurso
2.4.1 - Conceitos jurídicos do tipo legal de crime
A análise do objecto do presente recurso, impõe, desde logo, a análise do conceito de namoro, expresso na previsão legal do crime imputado ao arguido - crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152° nos 1, al. b), do Código Penal -.
Este preceito, sobre a epígrafe “Violência doméstica”, prescreve:
1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”
Da análise desse preceito ressalta para alguma doutrina, nomeadamente, para Taipa de Carvalho, in Código Penal Conimbricense, Coimbra, Tomo I, pág. 332, que a ratio deste tipo legal de crime não está na protecção da comunidade familiar, conjugal, ou das relações de namoro (...), mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana.
Todavia, para nós, é inquestionável que, este tipo legal de crime, na redacção actual do normativo legal aludido, não exige a prática reiterada de mau-trato, consuma-se com verificação de um único acto, desde que o mesmo, por si só, afecte o bem jurídico protegido.
A perpetração de qualquer acto de violência que afecte, de modo, a saúde física, psíquica e emocional do cônjuge vítima, diminuindo ou afectando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida numa realidade conjugal, ou de namoro, igualitária.
As condutas previstas e punidas por aquele preceito legal abrangem diversos géneros: ofensas corporais simples, maus tratos psíquicos englobando humilhações, provocações, molestações, intimações e tratamentos desumanos.
No que concerne ao elemento subjectivo, para que este se verifique exige a lei o dolo, embora já não o específico traduzido na actuação por malvadez ou egoísmo.
Portanto, o ponto fundamental do crime de violência doméstica é a dignidade da pessoa em relação livremente contraída.
Porém, no caso “sub judice”, a questão fulcral respeita a considerar, ou não, de namoro, a relação estabelecida entre os arguidos, para efeitos de alcance da inserção na alínea b), do nº 1, daquele preceito legal, operada pela Lei n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro.
Esse conceito, sua abrangência, no tipo legal de crime de violência doméstica, foram analisados e investigados, com pormenor e detalhe, na dissertação apresentada à Universidade Católica Portuguesa para obtenção do grau de Mestre em Direito Criminal, elaborada por Dora Faria Calejo Machado Pires, sob orientação da Professora Doutora Maria Elisabete Ferreira, com o título, “O sentido e o alcance da inserção das relações de namoro e equiparadas no crime de violência doméstica – Reflexões críticas acerca do alargamento do tipo”, Porto, Novembro de 2014. Nesse estudo, é referido “A presente dissertação de Mestrado em Direito Criminal tem como objetivo a análise do crime de Violência Doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, do Código Penal. Em particular, pretende-se com este trabalho uma reflexão crítica acerca do sentido e alcance da inserção das relações de namoro na alínea b), do nº 1, daquele artigo, operada pela Lei n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro.
(…)
Previamente à entrada em vigor da Lei n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro, altura em que o legislador optou por acrescentar expressamente à al. b) as relações de namoro, pairava sobre a jurisprudência e a doutrina a questão de saber se as relações de namoro poderiam estar já integradas nas “relações análogas aos cônjuges, ainda que sem coabitação”. Considerava a jurisprudência que a letra do art. 152º não afastava a possibilidade de integração das relações de namoro no tipo objetivo, mas na ausência de coabitação exige-se algum detalhe fáctico que possa comprovar a existência de uma relação afetiva, estável, análoga à dos cônjuges.
(…)
Não obstante o crime ter deixado de impor a coabitação e, portanto, a comunhão de cama, mesa e de habitação, que caracteriza a conjugalidade, a jurisprudência tendia a considerar que não podia deixar de se exigir, no tipo objetivo, um caráter mais ou menos estável de relacionamento amoroso, aproximado ao da relação conjugal de cama e habitação (Ac. TRC de 24-04-2012, proc. n.º 632/10.9PBAVR.C1). Tomando, assim, uma posição bastante cautelosa na inclusão das relações de namoro, exigindo a existência de uma relação especial que envolvesse o sentimento, ainda que com menor intensidade, de deveres de respeito, fidelidade, cooperação e assistência, característicos das relações conjugais, uma vez que não faz sentido (face ao princípio da subsidiariedade e última ratio), que seja o direito penal a proteger especificamente uma relação de namoro, quando o direito civil não o faz a não ser numa fase adiantada desse relacionamento e apenas em vista da proteção da promessa de casamento (arts. 1591.º a 1595.ºCC) - Ac. TRP de 15-01-2014, proc. n.º 364/12.3GDSTS.P1 - . Posto que a tutela penal reforçada se justificará aqui pela relação próxima ou análoga à dos cônjuges, onde existem sentimentos de afetividade, de convivência, de confiança, conhecimento mútuo, e ocorram atos de intimidade e de partilha de vida comum, numa relação de vida e cooperação mútua. Muito embora seja percetível esta comparação do Tribunal, importa não esquecer que mesmo a promessa de casamento não exige uma prévia ou contemporânea relação de namoro, podendo mesmo existir aquela sem esta (pense-se nos casos, outrora mais comuns, de promessa de casamento em consequência de gravidez involuntária, ou mesmo nos casos em que se tinha em vista a junção de dois patrimónios numa mesma família) - Ac. TRP de 15-01-2014, proc. n.º 364/12.3GDSTS.P1 -.
(…)
Em abstrato, o namoro é uma fase do relacionamento amoroso para conhecer o outro, e não um fim em si, de comunhão de vida, que é própria do casamento ou da união de facto. É uma fase transitória que, com frequência acaba no rompimento amoroso, por as expectativas de um ou ambos os namorados não serem aquelas que esperavam (Ac. TRC de 24-04-2012, proc. n.º 632/10.9PBAVR.C1). O leque de definições possíveis para a relação de namoro será tão vasto e abrangente, quanto a época e cultura social em que o mesmo se insere.
(…)
Em termos gerais, o namoro será, hoje, um relacionamento entre duas pessoas que se atraem física e psicologicamente e que, mesmo duradouro, é desprovido de vínculo de natureza familiar, embora possa se encaminhar para tanto. Ao contrário do que acontecia tradicionalmente, nos dias de hoje a sociedade considera ser perfeitamente aceitável que os casais desde cedo partilhem a cama de forma regular, que viajem juntos, que desenvolvam atividades diárias em conjunto, de forma pública, o que permite um conhecimento muito mais profundo do casal
(…).
Tratar-se-á, portanto, de um compromisso entre duas pessoas que se relacionam por tempo indeterminado, partilhando e comungando afetos e interesses pessoais comuns. Regra geral, já não existe aquele pedido tradicional, sem prejuízo de se nos afigurar que a prova ou demonstração dessa ligação entre as duas partes se mostra relevante.
Para uma melhor compreensão desta questão, desdobraremos as relações de namoro em dois níveis, dependendo do diferente grau de intensidade das mesmas: o namoro simples e o namoro qualificado. O primeiro será aquele namoro revestido por um compromisso entre duas pessoas que estão ligadas por um vínculo afetivo que vai para além da mera amizade e das relações fortuitas; o segundo compreenderá já as características da relação “análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação”, e portanto que se trata de uma relação de namoro em que está subjacente um compromisso pessoal sólido, baseado na confiança, honestidade e solidariedade mútua, cujo envolvimento de vidas ou projeto de vida em comum já existe ou já é conjeturado. Assim, ainda que se entendesse que este namoro “qualificado” não se integrava nas “relações análogas às dos cônjuges, ainda que sem coabitação”, não restarão agora dúvidas de que estas estão abrangidas por força, pelo menos, da inclusão das relações de namoro. Questão mais complexa será a relativa às relações de namoro “simples”
(…)
Em princípio, uma relação terá o seu início com a atração física e/ou intelectual, numa tentativa de conhecimento mútuo e de encontro de interesses. A intimidade pode ser caracterizada pela proximidade, pelo compromisso e exposição pessoal, traduzida como uma partilha entre o casal, de relações íntimas. Parece-nos, ainda, que a relação de namoro não será descaracterizada pela inexistência de atos sexuais entre o casal (v.g. por opção pessoal, por motivos religiosos, por doença), uma vez que a intimidade não depende deles.
A doutrina tem entendido que este dever se manifesta numa dupla dimensão: no dever de fidelidade física, que se entende como a proibição de atos sexuais com terceiro; e de fidelidade moral, no sentido de ligação amorosa com terceiro. Todavia, e embora não seja rigorosamente essa a dimensão que se transporta para as relações de namoro, também não deixará de ter relevância, sobretudo dentro do conjunto de indícios de que ora curamos. Mais adequado às relações de namoro parece ser a defendida por alguma doutrina estrangeira que entende o dever de fidelidade num sentido mais vago e menos sexual, como um dever de devoção, dedicação, lealdade e boa fé.
(…)
Relativamente à publicidade ou notoriedade do namoro, em princípio esta relação, ainda que não seja conhecida pelo círculo familiar, há de ser pelo menos conhecida por parte do círculo de amizade do casal. Não obstante, também aqui não nos parece que, se por hipótese, a relação não seja tornada pública (v.g. em virtude de um relacionamento já findo em que o ex-namorado continua a adotar comportamentos retaliatórios), que não deva esta atual relação não ser enquadrável no crime de violência doméstica, posto que também aqui configuraria uma desproteção da vítima. Aliás, situação por ventura paradigmática deste tipo de relações pouco conhecidas serão as relações de namoro entre duas pessoas do mesmo sexo. Relativamente à circunstância de o agressor admitir a existência de relação de namoro à data do crime, já será um indício forte da existência dessa relação. Porém, o contrário não deverá ser totalmente verdadeiro, no sentido em que a circunstância de o agressor não admitir a existência daquela relação como se de namoro se tratasse, não obsta a que da análise dos circunstancialismos próprios do caso seja possível comprovar que existia a relação de namoro exigida no art. 152º. Assim, o facto de os “namorados” não considerarem que há um “namoro” no sentido tradicional do pedido, parece-nos que não deve obstar a que seja considerada como “namoro” para efeitos de violência doméstica, conquanto se encontrem preenchidos alguns dos restantes critérios (com maior ou menor força). Do exposto resulta que só através da análise global da factualidade, tendo por base alguns critérios como os supra referidos, é que se poderá, primeiro, chegar à conclusão de que a relação sentimental e a grande proximidade se traduzem numa relação de namoro...
Assim, caberá ao juiz o papel mais relevante face aos contornos do caso concreto em litígio, através daqueles elementos probatórios dos circunstancialismos específicos reveladores de cada relação, concluir ou não pela existência da relação de namoro para estes efeitos.
(…)
Relativamente ao namoro, havia já alguma doutrina e jurisprudência que, face à anterior redação, abrangia a relação de namoro no tipo objetivo da violência doméstica, se e na medida em que esta relação preenchesse os pressupostos da relação conjugal (embora em menor grau), no sentido de exigir uma relação estável, duradoura e com um projeto de vida em comum. Cremos, contudo, que esta visão deixará de fazer sentido com a recente alteração. Com efeito, a referida inserção estará relacionada com a atual consciência da sociedade que reclama uma maior intervenção nas questões relacionadas com a violência de género e com a violência doméstica em particular. Pelo que, julgamos que a nossa perspetiva do sentido e do alcance da inserção das relações de namoro no crime de violência doméstica vai no mesmo sentido do acabado de referir: pretendeu o legislador incluir as relações de namoro, mesmo aquelas que designámos por “simples”, com o fito de prevenir e sancionar as condutas violentas exercidas pelo parceiro íntimo por causa dessa relação. Tratar-se-ão, pois, de relações sentimentais, afetivas, íntimas e tendencialmente estáveis ou duradouras, que ultrapassam a mera amizade ou relações fortuitas; mas já não será de exigir o projeto futuro de vida em comum, posto que as relações de namoro não preenchem nem têm, em princípio, a pretensão de preencher todas as características associadas à conjugalidade, como seja este futuro de vida em comum (que pode vir a ocorrer, mas que ainda não é conjeturado no início ou meio da relação). Assim, existindo uma relação de namoro com estas características, será ainda fundamental para o preenchimento do ilícito que seja exercido pelo agente um comportamento violento sobre a vítima, assente em relações de dominação e de força, que deixe a vítima numa situação de fragilidade e dependência, de tal forma que a sua capacidade de resistência fica diminuída.”.
Neste mesmo sentido, entre outros, o Ac. TRP, de 30-09-2015, proferido no Proc.n.º 3299/14.1TAMTS.P1, com o sumário seguinte: Sendo elemento do crime de violência doméstica o namoro tal como a relação análoga à dos cônjuges deve ser caracterizada por sólidos e indesmentíveis elementos fácticos que a comprovem.
Após estas explanações, diremos que, no caso “sub judice”, não se provaram esses sólidos e indesmentíveis elementos fácticos que comprovassem uma relação de namoro, entre os arguidos, como de seguida, melhor se explicará.

2.4.2 - Nos termos do disposto no artigo 428º, do C.P.P., o Tribunal da Relação, em fase de recurso, pode apreciar da matéria de facto e de direito, nos termos retro apontados.
No que respeita ao objecto de recurso sobre a questão de facto, a apreciação da prova, baseada nas regras da experiência comum e na livre convicção feita pelo tribunal de 1ª instância poderia ser censurada por este tribunal, pois existe documentação das declarações prestadas no decurso da audiência de discussão e julgamento.
O recorrente questiona a matéria de facto, entendendo que o tribunal “a quo” deveria ter dado como provado o facto a) da matéria de facto não provada, por via dos depoimentos prestados e do que consta da própria motivação da fundamentação da decisão, que impunham decisão diversa, devendo considerar-se que os arguidos mantiveram uma relação de namoro.
Desde logo, é necessário verificar o cumprimento do disposto no art. 412º ns. 3 e 4, do C.P.P.
O n.º 3, deste preceito legal - 412º, do C.P.P. estabelece que, quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto - no caso em análise não o fez - deve especificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e bem assim as provas que impõe decisão diversa da recorrida e as que devem ser renovadas.
O n.º 4, refere que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas als. b) e c), do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2, do art.º 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação.”.
A lei é exigente relativamente a essa impugnação.
O julgamento efectivo foi realizado no Tribunal da 1ª instância.
Neste Tribunal de recurso o que releva é a apreciação da regularidade do julgamento e não a realização de um efectivo e verdadeiro segundo julgamento. Tanto assim é que a própria lei, no art. 430º, do C.P.P., só permite a renovação da prova quando se verifiquem os vícios do art. 410º n.º 2, do referido compêndio adjectivo, portanto, quando do teor do texto da decisão judicial decorra a verificação de qualquer dos vícios aí apontados, v.g., insuficiência, contradição ou erro.
O que a lei exige é que se indiquem provas que imponham decisão diversa e não que permitam outra decisão.
E tal exigência é dada pelas seguintes imposições:
Especificação, e não mera referência, dos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados, sendo necessário precisar com clareza o ponto que se tem por erroneamente apurado;
especificação das provas, não sendo suficiente a menção genérica de toda a prova e dos depoimentos das testemunhas, etc.;
indicação concreta das provas que impõem decisão diversa;
especificação dos suportes técnicos, da prova documentada, com vista a facilitar a sua localização.
Desde logo, é óbvio que o recorrente não dá cumprimentos aos aludidos nºs. 3 e 4, do art. 412º, do CPP.
Porém, é certo que o conceito de namoro, tal como se mostra analisado e desenvolvido no ponto anterior, é complexo, abrange a percepção da simbiose de elementos, fácticos e circunstanciais, os quais vão permitir a conclusão de direito que é, na sua essência, a concepção de namoro, para efeitos da previsão legal do nº 1, al. b), do art. 152º, do CP.. Esta inferir-se-á partir de factos objectivos.
Portanto, é fundamental apreciar a convicção do tribunal “a quo”, relativamente à prova produzida sobre os dados objectivos e circunstanciais que serviram de fundamento ao afastamento da existência de namoro entre os aludidos arguidos, para se aquilatar da sua justificação, fundamentada, ou não.
O recorrente pretende contestar a apreciação e valoração que o Tribunal a quo fez da prova, designadamente por ter não ter dado prevalência, integral, à tese da arguida, CC.
Acresce que, tecer críticas e discordar da matéria de facto apontada, não é impugná-la, verdadeiramente, pois nem sequer transcreve o conteúdo, ou a parte que lhe interessa, dos depoimentos e declarações, e nem alude, todavia, às provas concretas que impõem decisão diversa, tecendo, apenas, comentários sobre a valoração da prova feita pelo Tribunal, argumentando com considerações todas elas, apenas e exclusivamente, relativas a uma apreensão diversa da prova, valorando-a, de modo diverso, sem contudo, conseguir fundamentar e concretizar as provas que impõem decisão diversa. Como já referido, o que a lei pretende ao vincular o recorrente á indicação das provas que impõem decisão diversa, não é, certamente, formular uma outra versão da prova produzida.
Tal poderia ser suficiente para se considerar, manifestamente, improcedente o recurso, no que concerne à impugnação da matéria de facto, designadamente, a constante da al. a), da matéria de facto não provada.
Todavia, dir-se-á que a apreciação da prova constante do acórdão ou sentença, por imposição do art. 374º n.º 2, do C.P.P., não basta ser dúbia ou duvidosa, é necessário que seja, de modo óbvio, errónea impondo-se a qualquer homem ou cidadão mediano e fundamenta a existência do vícios a que alude o art. 410º n.º 2, al. c), do aludido compêndio adjectivo, ou não. Neste caso, deve cumprir-se as regras de impugnação supra mencionadas.
No nosso sistema processual penal vigora o princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127° do CPP, que estatui" salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada seguindo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.". A este propósito salienta o Sr. Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, v. I, Coimbra Editora, Lda., 1981, pág. 202: " Uma coisa é desde logo certa: o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável - e portanto arbitrária - da prova produzida. Se a apreciação da prova é, na verdade discricionária, tem evidentemente esta discricionariedade (...) os seus limites que não podem ser licitamente ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a chamada" verdade material" - de tal sorte que a apreciação há-de se, em concreto, recondutível a critérios objectivos e portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo..."
O recorrente, como já referido, não impugnou, na verdadeira asserção da palavra a matéria de facto, limitando-se a criticar a forma como foi valorada a prova e a percepcioná-la de forma diversa.
O que a lei exige é que se indiquem provas que imponham decisão diversa e não que permitam outra decisão.
Sobre esta questão, o Prof. Marques da Silva, In “ Curso de Direito Processual Penal, vol. II, pág. 126 e 127 refere:" O juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis. Num primeiro aspecto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente de imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente aplicáveis (v.g. a credibilidade eu se concede a um certo meio de prova). Num segundo nível referente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as interferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correcção do raciocínio, que há-de basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência.".
Maia Gonçalves, in "Código de Processo Penal, anotado", 9.ª ed., pág.322, refere "... livre apreciação da prova não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e de lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica... ".
Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal", II, pág. 126 e segs... a livre apreciação da prova tem de se traduzir numa valoração "racional e critica, de acordo com as regras, comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão...; com a exigência de objectivação da livre convicção poderia pensar-se nada restar já à liberdade do julgador, mas não é assim.
Como já referido, a convicção do julgado há-de ser sempre uma convicção pessoal, mas há-de ser sempre "uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros".
O juízo sobre a valoração da prova tem diferentes planos.
Em primeiro lugar trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente explicáveis (v.g., a credibilidade que se concede a um certo meio de prova).
Seguidamente, na valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência.
Ora, reafirmamos que aos julgadores, no tribunal de recurso, está vedada a imediação e a oralidade em toda a sua extensão, contrariamente ao que ocorre no tribunal da 1ª instância que contacta com uma multiplicidade de factores, relativos a percepção da espontaneidade dos depoimentos da verosimilhança, da seriedade, das hesitações, da linguagem, do tom de voz, do comportamento, das reacções, dos trejeitos, das expressões e, até, dos olhares.
Assim, condicionados pela impossibilidade da captação desses elementos directos, resultantes da imediação da prova, perante duas ou mais versões dos factos, só podem afastar-se do juízo feito pelo julgador da primeira instância, naquilo que não tiver origem nestes dois princípios (oralidade e imediação), ou seja, naqueles casos em que a formulação da convicção não se tiver operado em consonância com as regras da lógica e da experiência comum, reconduzindo-se assim o problema, na maior parte dos casos, ao da fundamentação de que trata o art.º 374º n.º 2, do aludido compêndio adjectivo.
Acresce que, só a especificação de todos os elementos probatórios, os indicados pelo tribunal e os que se entende não foram tidos em conta, pode impor decisão diversa.
Mas revertendo para o caso concreto, dir-se-á que a questão básica da crítica à matéria facto, vertida na al. a), dos factos não provados, resulta, na óptica do recorrente, da não inclusão nos factos provados, da relação de namoro existente entre a arguida, CC e o arguido, BB.
Vejamos!
No seguimento da análise e desenvolvimento do conceito de namoro, constantes do ponto 2.4.1, e após auscultadas as declarações do arguido e as da arguida e a prova testemunhal gravadas e produzidas no decurso da audiência, faz todo o sentido afirmar, tal como consta da sentença, que, a convicção do tribunal, relativamente ao afastamento, por dúvidas fundamentadas, da existência da invocada relação de namoro, derivou do seguinte:
“ … Em particular, a relação de namoro é um elemento objectivo do tipo de crime ¬que tem de inferir-se a partir de factos objectivos- que é por vezes particularmente difícil de caracterizar. Casos há (até nos parece que constituirão a larga maioria) em que a conclusão sobre se existe ou não uma relação de namoro entre duas pessoas não oferece qualquer dificuldade; Por exemplo, num caso em que um casal que publicamente se apresenta como um casal de namorados, e que tem uma relação sólida e continuada, com evidente expectativa e aparência pública de ser uma relação emocional exclusiva dos seus intervenientes para quem seja seu conhecido, a conclusão sobre a existência da relação de namoro acaba por ser uma "trivialidade". Casos há todavia em que não é assim; Por causa da elevada dose de "subjectividade" que o conceito de namoro tem a conclusão sobre a existência ou inexistência de tal relação oferecerá, quando a questão não seja tão clara, dificuldades assinaláveis. Todavia estamos convencidos que num e noutro caso a existência da relação de namoro é sempre, em rigor, uma conclusão, um juízo, e não propriamente um facto. Ainda que nas decisões judiciais deva sempre procurar-se lançar mão da mais elevada dose de rigor possível, não choca que quando seja inquestionável (e incontroversa) a existência de tal relação se leve a mesma à matéria fáctica provada e não provada: a questão é, em tais casos, pouco relevante relativamente ao verdadeiro objecto (instrutório e de direito) da causa, e por isso tal metodologia em nada contende com os princípios que norteiam a metodologia do direito penal substantivo e processual. Porque, naqueles casos concretos a questão, à partida, não se assume como potencial influência na decisão final da causa, não existe verdadeiramente um problema a resolver sobre a existência ou não do namoro; Saber se o namoro é um facto ou se é uma conclusão é, em tais casos, absolutamente secundária. Não é assim in casu. Com efeito, a prova produzida demonstrou -à saciedade- que para os membros da relação de namoro afirmada na acusação a questão não é líquida: a arguida CC afirmou que efectivamente ela e o co-arguido BB namoravam outrora, e o arguido, por seu lado, negou tal relação; E mesmo as testemunhas ouvidas não foram unânimes sobre a questão. Uma vez que no caso vertente a questão acaba por assumir relevância decisiva no resultado da causa, entendemos de levar à matéria fáctica provada somente os factos objectivos -aqueles que são susceptíveis de prova, contraprova e prova em contrário- aptos a servir de critério para aferir se existiu ou não entre CC e BB uma relação de namoro (factos 1 a 17); Com base naqueles factos objectivos cumprirá concluir se a matéria está ou não no perímetro previsto pela norma incriminadora. E optámos, em contraponto, por excluir da matéria provada o artigo do libelo acusatório que, por causa dos contornos concretos revelados pelo caso sub iudice, acaba por não ter, em si mesmo, substrato fáctico próprio e por isso é, tão-somente, uma conclusão de direito.
(…)
Quanto à ligação pessoal entre ambos, a arguida CC afirmou peremptoriamente que ela e BB foram efectivamente namorados (inclusivamente discutiram a questão expressamente entre os dois), e o arguido negou que tenham tido uma relação dessa natureza (nunca "pediu em namoro" a co-arguida, nem existiu nada de semelhante ou confundível com isso), afirmando que o seu relacionamento não passou de uma "aventura" .
Também quanto à ligação entre os co-arguidos as testemunhas não foram unânimes: … e apelidaram-nos de "namorados", mas de forma pouco incisiva quanto a factos objectivos concretos susceptíveis de levar a tal conclusão (a primeira afirmou igualmente que se tratava de uma relação instável, marcada por permanentes discussões; O segundo não se alongou sobre os contornos da relação); … sublinhou que tanto quanto sabia os arguidos nunca namoraram: o arguido teve uma namorada na zona onde residia e a relação com a arguida era, tão-somente, uma "amizade colorida", que o arguido mantinha à margem daquela outra relação mais estável.”.
Tudo pesado, não ficámos convencidos que as descrições dos eventos (tanto no que reportaram sobre os confrontos mútuos como o que disseram sobre os contornos e desenvolvimentos da sua relação pessoal) relatadas pelos arguidos fossem, só por si, meios de prova suficientemente sólidos para firmar convicção para lá de dúvidas razoáveis.
O resultado do labor instrutório da causa decorre pois da ponderação conjugada de toda a prova produzida: ficámos convencidos da verdade dos relatos de um e outro somente nas partes que em que foram suportadas por prova independente dotada de solidez bastante; No mais apelou-se ao princípio in dubio pro reo.
(…)
Os factos atinentes à relação vivenciada entre os arguidos decorrem da articulação das declarações de ambos; A matéria sobre que houve consenso levou-se aos factos provados; No que houve dissenso, apelou-se ao princípio in dubio pro reo.”
Da análise probatória global, efectuada pelo tribunal ad quo não pode de todo concluir-se por uma errada apreciação da prova em termos de julgamento pelo tribunal e da errónea, conclusão vertida na al. a), da matéria de facto não provada.
Pelo contrário, esta al. a), dos factos não provados, consignada e questionada, contém uma conclusão pertinente, por advier da conjugação de toda a prova, resultando a sua verificação de factos e circunstancias concretas, ligados ao princípio da normalidade ou da regra geral de experiência.
O Recorrente quer impor ao Tribunal a sua própria convicção, a ideia com que o mesmo ficou da prova, aquilo de que o próprio quis convencer o Tribunal.
Pois que, no caso “sub judice”, tal como se mostra mencionado, resulta da fundamentação da matéria de facto que, o tribunal “a quo” na análise e fixação da matéria de facto, baseou-se na observação de conjunto de provas legalmente válidas e interpretou-as, de forma livre, mas não arbitrária.
Resta apenas referir que de todo se constata qualquer evidência que permita concluir a violação do princípio da livre apreciação da prova.
O princípio da livre apreciação da prova, como princípio estruturante do direito processual do continente europeu e, especificamente do direito processual penal português, assume, na dinâmica do processo de fundamentação da sentença penal simultaneamente, uma dupla função de ordenação e de limite.
Vinculado ao princípio da descoberta da verdade material, contrariamente ao sistema probatório fundado nas provas tabelares ou tarifárias que estabelece um valor racionalizado a cada prova, possibilita-se ao juiz um âmbito de discricionariedade na apreciação de cada uma das provas atendíveis que suportam a decisão.
Ora conforme foi referido o Tribunal no caso concreto, para chegar à sua decisão, valorou um conjunto diverso de provas utilizando exactamente as regras da razão, fundadas na lógica e na experiência. Daí que não se vislumbra qualquer vício no seu modo de decidir e valorar essas provas que ponha em causa o principio da livre apreciação da prova.” (vide, Ac. R C, de 25/11/2009, proferido no Proc. N.º 219/05.8GBPCV.C1).
A conjugação desses elementos probatórios serviu para a convicção do tribunal “a quo” na forma vertida na sentença recorrida.
Todos estes elementos de prova infirmam as afirmações do recorrente vertidas em alguns dos diversos pontos da sua conclusão da motivação de recurso e confirmam a matéria apurada e não provada consignadas.
Da análise de toda a prova supra referida, junta aos autos, emerge a convicção de que toda a prova produzida foi, em termos genéricos, correctamente valorada pelo Tribunal “a quo" não merecendo, reparo a matéria de facto fixada na sentença recorrida.
Assim, não se modifica tal matéria de facto, nos termos preceituados no art. 431º n.º 1 al. b), do C.P.P.
A matéria fáctica apurada e não provada é a que se mostra descrita, na sentença recorrida.

2.4.3 - O art. 410º n.º 2 al. c) do CPP permite que o recurso tenha por fundamento o erro notório na apreciação da prova, desde que o vício resulte da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Germano Marques da Silva - Curso de Processo Penal III/341 - defende que erro na apreciação da prova é o erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta.
Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques - Recursos em Processo Penal/ 4ª edição/74, defendem que o erro na apreciação da prova consiste na falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se deu como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável. Dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.
Os mesmos autores agora no seu Código de Processo Penal anotado/ II/740, defendem que quando a versão dada pelos factos provados é perfeitamente admissível, não se pode afirmar a verificação do referido erro.
É também esta a posição do STJ que no Acórdão de 9/12/98 / BMJ 482/68, defende que não padece desse vício a decisão que, examinada na sua globalidade, assenta em premissas que se harmonizam entre si, segundo um raciocínio lógico e coerente e de acordo com as regras da experiência comum.
O Supremo Tribunal de Justiça também perfilha a tese de que o erro notório tem lugar quando os julgadores deram como verificado algo que é patente não poder ser e cujo erro é logo detectável e percepcionável por um observador comum (Ac. STJ, de 27/4/94, CJ 1994/II/199).
Simas Santos e Leal-Henriques referem, na primeira obra citada, que jamais poderá incluir-se no erro notório na apreciação da prova a sindicância que os recorrentes possam pretender efectuar à forma como o Tribunal recorrido valorou a matéria de facto produzida perante si em audiência, valoração que aquele tribunal é livre de fazer, de harmonia com o preceituado no art. 127°, do C.P.P.
Não se está perante um erro notório na apreciação da prova quando a discordância advém da forma como o Tribunal avaliou a prova produzida.
Revertendo para o caso concreto, o Tribunal valorou a prova e retirou a conclusão vertida na al. a), da matéria de facto não provada, de acordo com as regras da experiencia.
Face ao que acima foi dito - pontos anteriores, para os quais remetemos - facilmente se concluiu que o alegado pelo recorrente não integra o referido vício pois a sentença recorrida não padece de falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si.
Muito pelo contrário, nela é feita uma criteriosa e minuciosa análise da matéria de facto dada como apurada e não provada, demonstrativa da actuação do arguido, da factualidade não apurada, bem como, da sua subsunção aos normativos de natureza penal, tudo devidamente enquadrado e adequado.
Portanto, é perfeitamente acertado o raciocínio desenvolvido, baseado nas regras da experiência comum e da lógica, os diversos elementos probatórios carreados e produzidos nos autos. E, reafirmamos, no caso em análise a formulação da convicção esteve em consonância com as regras da lógica e da experiência comum e baseou-se em juízos lógicos e objectivos, respeitadores das regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.
Concluindo, do texto da sentença recorrida não se verifica a existência do vício indicado no artigo 410.°, n.º 2, al. c), do CPP, nem os demais previstos na als. a) e b), do mesmo preceito legal.

2.4.4 - Acresce que subsunção dos factos ao direito, no que a este tipo legal de crime respeita, apesar questionada pelo recorrente, foi acertada, porquanto não se mostram-preenchidos, desde logo, os elementos objectivos do tipo legal do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, pelo afastamento da existência da relação de namoro, entre os arguidos, o que inviabiliza a subsunção da factualidade provada a esta previsão legal.
Pois que, como já afirmado, “o alcance da inserção das relações de namoro no crime de violência doméstica vai no mesmo sentido do acabado de referir: pretendeu o legislador incluir as relações de namoro, mesmo aquelas que designámos por “simples”, com o fito de prevenir e sancionar as condutas violentas exercidas pelo parceiro íntimo por causa dessa relação. Tratar-se-ão, pois, de relações sentimentais, afetivas, íntimas e tendencialmente estáveis ou duradouras, que ultrapassam a mera amizade ou relações fortuitas; mas já não será de exigir o projeto futuro de vida em comum, posto que as relações de namoro não preenchem nem têm, em princípio, a pretensão de preencher todas as características associadas à conjugalidade, como seja este futuro de vida em comum (que pode vir a ocorrer, mas que ainda não é conjeturado no início ou meio da relação).”
No caso “sub judice” não ficou provado que as condutas violentas exercidas pelo arguido sobre a arguida, ocorressem no âmbito de uma relação sentimental, afetiva, e tendencialmente estáveis ou duradouras, que ultrapassam a mera amizade, as práticas sexuais, ou relações fortuitas.
Não podemos esquecer que a existência de duas pessoas numa relação de namoro exige a dualidade, por parte dos seus dois membros, da aceitação e vontade real de participação e permanência nesse vínculo sentimental e afectivo, não bastando que só um dos intervenientes o pretenda e aceite, como ocorre no caso em análise. Pois tem de haver um consenso, sobre a existência da relação de namoro entre os membros que vivem a relação, o que não ocorre, na presente situação.
Pelos motivos expostos, não se vislumbra que o Mmo. Juiz do tribunal “a quo” tenha violado, com a sua interpretação, a previsão do art. 152.°, n.º 1, al. b) e 2 do Cód. Penal.


III - Decisão
Em face do exposto, acordam em declarar improcedente o recurso interposto, mantendo o decidido na sentença recorrida.
Sem Custas.
(Processado e revisto pela relatora que assina e rubrica as restantes folhas - art. 94º n.º 2 do CPP).

Évora, 26/07/2018
Maria Isabel Duarte (relatora)
Carlos Berguete Coelho