Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1257/19.9T8OLH.E1
Relator: SEQUINHO DOS SANTOS
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PLANO DE RECUPERAÇÃO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
VOTAÇÃO
Data do Acordão: 03/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – Em processo especial de revitalização, o plano de recuperação que estabeleça que os créditos de que são titulares a Autoridade Tributária e Aduaneira e o Instituto da Segurança Social, IP serão pagos em 150 prestações mensais opera uma modificação desses créditos. Consequentemente, não é aplicável o disposto no artigo 212.º, n.º 2, alínea a), do CIRE, tendo aquelas entidades direito de voto.
2 – Não viola o princípio da igualdade dos credores, consagrado no artigo 194.º do CIRE, aplicável ao processo especial de revitalização por via da remissão operada pelo artigo 17.º-F, n.º 7, do mesmo Código, o plano de recuperação que estabeleça que os créditos comuns de que são titulares a Autoridade Tributária e Aduaneira e o Instituto da Segurança Social, IP serão pagos integralmente, embora em 150 prestações mensais, e os restantes créditos comuns serão pagos apenas em 50%, com perdão total de juros de mora vencidos e vincendos, em 150 prestações mensais e com uma moratória de 2 anos.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1257/19.9T8OLH.E1

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Neste processo especial de revitalização, foi proferida sentença homologatória do plano de recuperação de Sporting Clube (…) Futebol, SAD.

O credor (…) interpôs recurso de apelação da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

a) O recurso ora interposto pelo recorrente versa sobre a sentença datada de 3 de Agosto 2020, na medida em que aprova homologa o plano de recuperação da sociedade Sporting Clube (…) Futebol, SAD.

b) A homologação do plano viola o disposto na lei, nomeadamente os artigos 212.º, n.º 2, alínea a) – aplicável ex vi do artigo 17.º-F, n.º 7 –, artigo 17.º-F, n.º 5 e 194.º, n.º 1, do CIRE.

c) Num primeiro momento viola o principio de igualdade dos credores – artigo 194.º, n.º 1, do CIRE.

d) Uma vez que os créditos comuns reclamados pela Autoridade Tributária e Aduaneira e Instituto de Gestão Financeira e Segurança Social serão pagos na totalidade, com os devidos juros e sem qualquer período de carência, nos termos do previsto no plano.

e) Enquanto os restantes créditos comuns são reduzidos a 50% e são pagos em 150 prestações, com um período de carência de 2 (dois) anos.

f) Não há dúvida que ambos os créditos têm natureza comum, nada os distingue uns dos outros a não ser os seus titulares.

g) Verifica-se aqui um tratamento desigual entre créditos que são qualificados da mesma forma.

h) A violação prevista no plano, sem que haja o consentimento expresso ou tácito por parte dos credores lesados, é considerado um facto determinante para a recusa da homologação do plano por parte do tribunal a quo.

i) Nesse sentido, tal ofensa, pelo plano, do princípio da igualdade dos credores constitui violação não negligenciável e, consequentemente, causa fundada de recusa da sua homologação.

j) Analisado o plano colocado à votação, facilmente se conclui que a revitalização não prevê qualquer modificação de créditos reconhecidos à Autoridade Tributária e ao Instituto da Segurança Social.

k) Pelo que, num segundo momento, viola o artigo 212.º, n.º 2, al. a), do CIRE (aplicável ex vi artigo 17.º-F, n.º 7, também do CIRE), na medida em que aqueles créditos, porque não modificados pela parte dispositiva do plano de revitalização, não conferem direito de voto.

l) Retirando-se os créditos reclamados pela Autoridade Tributária e pelo Instituto de Segurança Social, constata-se que os créditos que votaram favoravelmente ascendem ao montante de 999.512,00 Euros.

m) Desses créditos, 780.000,00 Euros são créditos subordinados.

n) Nos termos do artigo 17.º-F, n.º 5, do CIRE, o plano considera-se aprovado desde que mais de metade dos votos emitidos não correspondam a créditos não subordinados.

o) O valor dos créditos que votaram favoravelmente e que não são subordinados corresponde a 21,96%.

p) Pelo que o tribunal a quo não poderia homologar o plano apresentado.

Também a credora (…) Sport – Sociedade Unipessoal, Lda., interpôs recurso de apelação da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

1. A devedora veio instaurar o presente processo especial de revitalização.

2. Sucede que do plano apresentado não consta o crédito no valor de € 11.818,69 devidos à ora recorrente.

3. Nessa senda, a credora, ora recorrente, apresentou por apenso aos presentes autos de processo especial de revitalização acção de verificação ulterior de créditos, pese embora no processo especial de revitalização (processo n.º 38/16.6T8OLH), que correu termos no Juízo de Comércio de Olhão – Juiz 2, tenha sido indicada como credora e o seu crédito reconhecido aquando da apresentação dos presentes autos de revitalização, não foi o mesmo indicado na lista de credores, sendo certo que nunca foi convocada para participar nas negociações.

4. Por sentença datada de 15.05.2020, o tribunal indeferiu liminarmente a presente acção, por inadmissibilidade legal, e condenou a autora nas custas, tendo a sido apresentado recurso de apelação, o qual se encontra pendente.

5. Contudo a ora recorrente sempre manifestou a sua adesão aos requerimentos apresentados pelos restantes credores devido ao tratamento desigual que estava a ser dado, nomeadamente aos diversos créditos comuns, pugnando pela não aprovação e homologação do plano de recuperação da devedora.

6. Por sentença datada de 03.08.2020, o tribunal a quo decidiu homologar o plano de recuperação da Sporting Clube (…) Futebol, SAD nos seus precisos termos.

7. A credora ora recorrente não se conforma com a sentença recorrida desde logo porquanto a mesma viola o princípio da igualdade de tratamento dos credores, previsto no artigo 194.º, n.º 1, do CIRE.

8. Desde logo porquanto os credores Autoridade Tributária e Aduaneira e Instituto de Gestão Financeira e Segurança Social serão pagos na totalidade enquanto os restantes créditos comuns serão pagos a 50% e são pagos em 150 prestações, com um período de carência de dois anos.

9. O que consubstancia um tratamento desigual entre créditos que são qualificados da mesma forma.

10. Ao que acresce que os créditos, porque não modificados pela parte dispositiva do plano de revitalização não conferem direito de voto.

11. Estabelece o artigo 17.º-F, n.º 5, do CIRE, que o plano se considera aprovado desde que mais de metade dos votos emitidos não correspondam a créditos não subordinados.

12. Sendo certo que os credores que votaram favoravelmente e que não são subordinados corresponde a 21,96%.

13. Andou mal o tribunal “a quo” ao homologar o plano de recuperação apresentado.

14. A sentença recorrida viola os artigos 212.º, nº 2, alínea a) (aplicável ex vi artigo 17.º- F, n.º 7), artigo 17.º- F, n.º 5, e 194.º, n.º 1, do CIRE.

15. Termos em que, e face ao supra exposto, deverá a sentença recorrida que homologou o plano de recuperação da Sporting Clube (…), Futebol SAD nos seus precisos termos ser revogada.

O devedor, Sporting Clube (…), Futebol, SAD, contra-alegou, pugnando pela improcedência dos recursos.

Os recursos foram admitidos, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.


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As questões a resolver são as seguintes:

1 – Se os credores Autoridade Tributária e Aduaneira e Instituto da Segurança Social, IP tinham direito de voto;

2 – Se o plano de recuperação viola o principio de igualdade dos credores.


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Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1 – O plano de recuperação apresentado, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido (ref. Citius 8033939), prevê um total de créditos com direito de voto no valor de € 2.964.985,26.

2 – Participaram na votação credores titulares de créditos com o valor total de € 2.641.503,18, correspondente a 89,09% da totalidade dos créditos.

3 – Votaram em favor da aprovação do plano credores titulares de créditos com o valor total de € 2.248.527,03, correspondente a 85,12% da totalidade dos votos emitidos.

4 – Votaram em favor da aprovação do plano credores titulares de créditos não subordinados com o valor total de € 1.468.527,03, correspondente a 55,59% da totalidade dos votos emitidos.

5 – Votaram contra a aprovação do plano credores titulares de créditos com o valor total de € 392.976,15, correspondente a 14,88% da totalidade dos votos emitidos.


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1 – Se os credores Autoridade Tributária e Aduaneira e Instituto da Segurança Social, IP tinham direito de voto:

Os recorrentes sustentam, sucintamente, que o plano de revitalização não opera qualquer modificação dos créditos de que são titulares a Autoridade Tributária e Aduaneira (ATA) e o Instituto da Segurança Social (ISS), pelo que, atento o disposto no artigo 212.º, n.º 2, alínea a), do CIRE, aplicável ex vi artigo 17.º-F, n.º 7, do mesmo código (ao qual pertencem todas as normas doravante referenciadas sem menção da sua origem), aquelas entidades não tinham direito de voto. Ao admitir a ATA e o ISS a votarem e ao contabilizar os seus votos, o administrador judicial provisório violou aquela norma legal. Sem a contabilização dos votos emitidos pela ATA e pelo ISS, o plano de recuperação não teria sido aprovado. Perante tal circunstância, o tribunal a quo não podia ter procedido à homologação deste último.

Entendeu-se, na sentença recorrida, também em síntese, que, mesmo considerando que se encontra abrangido pela remissão operada pelo artigo 17.º-F, n.º 7, o artigo 212.º, n.º 2, alínea a), não tem aplicação no caso dos autos, porquanto os créditos de que são titulares a ATA e o ISS, ao serem fraccionados em 150 prestações mensais, foram modificados pela parte dispositiva do plano de recuperação.

O plano de recuperação estabelece que os créditos de que são titulares a (...) e o ISS serão pagos em 150 prestações mensais. Portanto, é fora de dúvida que os referidos créditos foram modificados. Os seus montantes mantiveram-se, mas o prazo do seu pagamento sofreu uma alteração muito significativa. De créditos vencidos, passaram a créditos vincendos, pagáveis em prestações mensais ao longo de 12 anos e 6 meses.

Em abono da sua tese, os recorrentes sustentam que a descrita modificação dos créditos de que são titulares a (…) e o ISS resulta, não da parte dispositiva do plano de recuperação, mas sim do regime jurídico do pagamento em prestações das dívidas fiscais e à segurança social, constante dos artigos 196.º, n.º 6, do Código de Procedimento e Processo Tributário e 190.º, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social.

Os recorrentes não têm razão. As normas legais por eles invocadas limitam-se a estabelecer os pressupostos da autorização, pelo órgão competente da entidade credora, do pagamento dos créditos a que se referem em regime prestacional. Por si sós, tais normas não produzem qualquer efeito sobre os mesmos créditos. Mais, nem sequer a concreta autorização administrativa de pagamento de determinado(s) crédito(s) em regime prestacional no âmbito de um processo especial de revitalização altera os mesmos créditos, antes constituindo mero pressuposto da legalidade do estabelecimento daquele regime prestacional no plano de recuperação. É este último que altera os créditos cujo pagamento em regime prestacional é autorizado pelo credor público.

Decorre do exposto que o plano de recuperação modificou os créditos de que são titulares a (…) e o ISS, pelo que, não se aplicando o disposto no artigo 212.º, n.º 2, al. a), estas entidades tinham direito de voto. Uma vez que os votos da (…) e do (…) foram favoráveis o plano de recuperação foi aprovado pelos titulares de créditos cujos montantes eram, para o efeito, suficientes.

2 – Se o plano de recuperação viola o princípio de igualdade dos credores:

O plano de recuperação estabelece já que os créditos comuns de que são titulares a (…) e o ISS serão pagos integralmente, em 150 prestações mensais, ao passo que os restantes créditos comuns serão pagos apenas em 50%, com perdão total de juros de mora vencidos e vincendos em 150 prestações mensais e com uma moratória de 2 anos. Verifica-se, pois, uma evidente diferença de tratamento entre os créditos comuns de que são titulares a (…) e o ISS, por um lado, e os restantes créditos comuns, por outro.

Entendeu-se, na sentença recorrida, que tal diferença de tratamento não viola o princípio da igualdade dos credores, consagrado no art.º 194.º, aplicável ao processo especial de revitalização por via da remissão operada pelo artigo 17.º-F, n.º 7. Segundo a sentença recorrida, a diversidade da origem e da finalidade dos dois referidos grupos de créditos justifica aquele tratamento diferenciado. Os créditos da (…) e ISS têm origem legal e visam a satisfação do interesse colectivo, o que sustenta a sua indisponibilidade, estabelecida pelo n.º 2 do artigo 30.º da Lei Geral Tributária. Já os restantes créditos têm origem contratual e visam assegurar interesses privados.

A esta argumentação, os recorrentes contrapõem que nem o CIRE, nem qualquer outra legislação, diferenciam os créditos comuns em função da sua natureza ou finalidade. A classificação legal é feita entre créditos comuns, privilegiados e garantidos, independentemente da sua finalidade, pelo que a diferenciação feita pelo plano de recuperação e acolhida pela sentença recorrida não encontra fundamento na letra ou no espírito da lei e redunda na criação, dentro da classificação legal dos créditos, de novas sub-classificações.

O artigo 194.º, aplicável ao processo especial de revitalização ex vi artigo 17.º-F, n.º 7, estabelece, no seu n.º 1, que o plano de insolvência (no caso, plano de recuperação) obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas. Saliente-se a amplitude da formulação desta ressalva. A única exigência que é feita para a admissibilidade de diferenciações de tratamento entre credores é que as mesmas encontrem justificação em razões objectivas, sem outra restrição. Logo, ao contrário da tese sustentada pelos recorrentes, não é apenas a classificação dos créditos em garantidos, privilegiados, subordinados e comuns (cfr. artigo 47.º, n.º 4) que pode justificar uma diferença de tratamento entre credores no plano de recuperação.

Em abono deste entendimento, citamos LUÍS CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA[1]:

“A razão objectiva porventura mais clara que fundamenta a diferença de tratamento dos credores assenta na distinta classificação dos créditos, nos termos em que agora está assumida no artigo 47.º do Código.

Para além disso, dentro da mesma categoria há motivos para destrinçar, conforme o grau hierárquico que couber aos vários créditos.

Mas, a ponderação das circunstâncias de cada situação pode justificar outros alinhamentos, nomeadamente tendo em conta as fontes do crédito.

O que está vedado é, na falta de acordo dos lesados, sujeitar a regimes diferentes credores em circunstâncias idênticas.”

As razões com base nas quais a sentença recorrida considerou admissível a diversidade de tratamento entre os créditos comuns de que são titulares a (…) e o ISS, por um lado, e aqueles de que são titulares os restantes credores, por outro, foram, como referimos, a origem legal e a finalidade de prossecução do interesse colectivo dos primeiros, por contraponto à origem contratual dos segundos e à natureza particular dos interesses a cuja satisfação os mesmos se encontram adstritos. Ora, a própria lei demonstra que tais razões justificam, para o efeito previsto no n.º 1 do artigo 194.º, a diversidade de tratamento dos referidos créditos nos termos constantes do plano de recuperação. Com efeito, a lei estabelece um regime especial para os créditos tributários, muito diferente do regime geral dos direitos de crédito, tendo precisamente em consideração a essencial diferença de natureza e função de uns e outros. Entre essas diferenças, avulta o princípio da indisponibilidade dos créditos tributários, decorrente do artigo 30.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária e aplicável aos processos de insolvência e de revitalização por via do disposto no n.º 3 do mesmo artigo. Estabelece o referido n.º 2 que o crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária.

Portanto, a sentença recorrida não deu cobertura a uma diferenciação arbitrária entre os créditos comuns da (…) e do ISS, por um lado, e os dos restantes credores, nomeadamente dos recorrentes, por outro. Tal diferenciação de tratamento encontra plena justificação em razões objectivas juridicamente atendíveis. Daí não ter sido violado o princípio da igualdade entre os credores.

Concluindo, os recursos deverão ser julgados improcedentes, mantendo-se a sentença recorrida.


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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar os recursos improcedentes, confirmando-se a sentença recorrida.

Cada recorrente suportará as custas do recurso por si interposto.

Notifique.


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Sumário:

(…)


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Évora, 11 de Março de 2021

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

Mário Rodrigues da Silva

José Manuel Barata



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[1] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, volume II, p. 45, anotação 4 ao artigo 194.º.