Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1722/06-3
Relator: MARIA ALEXANDRA MOURA SANTOS
Descritores: FUNDO DE GARANTIA DE ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
MAIORIDADE
Data do Acordão: 10/12/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO CÍVEL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
O FGADM não está obrigado a alimentos após aquele a quem os prestava ter atingido a maioridade.
Decisão Texto Integral:
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PROCESSO Nº 1722/06

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
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No processo tutelar cível nº 2003-C/1991 foi proferida decisão em 17/04/2002 fixando em 2 UCs a prestação mensal de alimentos a pagar pelo Estado, através do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores a favor de “A”, nascido a 22 de Dezembro de 1987.
A pedido da mãe deste foi sucessivamente mantido o pagamento da mencionada prestação de alimentos.
Tendo mais uma vez renovado tal pedido de pagamento da referida prestação, juntando, para o efeito, cópia da declaração de rendimentos e do certificado de matrícula, foi o mesmo deferido nos termos do despacho certificado a fls. 33/34.
Inconformado, agravou o F.G.A.D.A. alegando e formulando as seguintes conclusões:
1 - O douto despacho do Mmº Juiz a quo ao decidir que “(...) pese embora o Ricardo tenha atingido a maioridade em 22 de Dezembro de 2005, como se deu conta no despacho de fls. 150/151, a obrigação de pagamento das prestações só cessava a partir dessa data se o menor tivesse completado a sua formação profissional (artºs 1877º e 1880º do C. Civil). Assim sendo, considerando os rendimentos do agregado familiar e verificando que o “A” continua a estudar, deve ser mantido o pagamento da referida prestação”, condena o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P. - F.G.A.D.M. a manter o pagamento da prestação de alimentos para além da menoridade do alimentado.
2 - Salvo o devido respeito, não pode o ora recorrente concordar com tal entendimento, já que não restam dúvidas de que os diplomas especiais no âmbito do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores - Lei 75/98 de 19/11 e D.L. 164/99 de 13/05, que a regulamenta - se destinam única e exclusivamente à protecção de menores.
3 - Da conjugação da Lei 75/98 de 19/11 e do D.L. 164/99, resulta claramente que o fim visado pelo legislador foi de colmatar a necessidade de alimentos que sejam credores os menores e não o de abranger também as pessoas maiores credoras de alimentos nos termos do artº 1880 do C.C..
4 - A Lei 75/98 de 19/11 e o D.L. 164/99 de 13/05, constituem lei especial face ao artº 1880 do C.C. que constitui lei geral, sendo diversa a natureza de ambas as prestações alimentares.
5 - “O direito a alimentos resultante da condição jurídica de menor, extingue-se com o advento da maioridade” e esta atinge-se aos 18 anos nos termos do artº 130º do C.C..
6 - O elemento literal não permite qualquer dúvida, sendo traço comum acentuar a vertente da menoridade. A aplicação do regime do FGADM apenas a menores é referida de forma expressa, quer na epígrafe da Lei 75/98 e no preâmbulo do D.L. 164/99, quer na designação do Fundo e no articulado de ambos os diplomas.
7 - O que foi dito supra decorre do previsto no artº 9º do CC, nos termos do qual “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.
8 - O entendimento defendido é também sufragado por grande parte da jurisprudência.
9 - Aquando da decisão ora recorrida, “A” já tinha atingido a maioridade, pelo que cessou o dever de o Estado - FGADM assegurar a prestação alimentícia.
10 - A decisão violou, assim, o disposto na Lei 75/98 de 19/11 e no D.L. 164/99 de 13/05.

O Magistrado do Ministério Público contra-alegou nos termos de fls. 17 e segs. concluindo pela confirmação da decisão recorrida.
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Atenta a simplicidade do recurso foram dispensados os vistos legais.
Sendo as conclusões da alegação do recorrente que delimitam o âmbito do recurso, abrangendo apenas as questões aí contidas (artºs 684 nº 3 e 690 nº 1 do CPC), verifica-se que a única questão a decidir é saber se atingida a maioridade do menor beneficiário do pagamento de prestações de alimentos pelo FGADM, se mantém aquela prestação desde que ocorram as circunstâncias previstas no artº 1880 do C.C..
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Os factos a considerar são os que resultam do relatório supra.
Entendeu a decisão recorrida, louvando-se nos artºs 9º nº 4 do D.L. 164/99 de 13/05 e 1877 e 1880 do C. Civil, que “pese embora o “A” tenha atingido a maioridade a 22 de Dezembro de 2005 (...) a obrigação de pagamento das prestações só cessava a partir dessa data se o menor tivesse completado a sua formação profissional” pelo que determinou que o FGADM continuasse a suportar a prestação de alimentos devidos ao “A”, anteriormente fixados, no montante de 2 UCs.
Esta posição é também defendida pelo M.ºP.º ao alegar na sua resposta que face ao disposto no artº 9 nº 1 do DL 164/99 de 13/05 a expressão “menor” utilizada nos diplomas em apreço deverá ser interpretada no sentido de só a menores poderem ser originariamente atribuídas as prestações pelo Fundo, continuando este adstrito ao pagamento das prestações nos termos em que o estariam os pais, mesmo após a maioridade do filho, nos termos do artº 1880 do C.C..
Afigura-se-nos, contudo, que não colhe o entendimento perfilhado na decisão recorrida, secundada pelo Mº Pº.
Vejamos.
Dispõe o artº 1º da Lei 75/98 de 19/11 que “quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos a menor residente no território nacional não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artº 189 do D.L. 314/78 de 27/10, e o alimentando não tenha rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, o Estado assegura as prestações previstas na presente lei até ao início do efectivo cumprimento da obrigação”.
E nos termos do nº 4 do seu artº 3º “o montante fixado pelo tribunal perdura enquanto se verificarem as circunstâncias subjacentes à sua concessão e até que cesse a obrigação a que o devedor está obrigado”.
Por sua vez, dispõe o nº 1 do artº 9 do D.L. 164/99 de 13/05, (diploma que instituiu o FGADM e veio regular a garantia de alimentos devidos a menores prevista naquela Lei) que “o montante fixado pelo tribunal mantém-se enquanto se verificarem as circunstâncias subjacentes à sua concessão e até que cesse a obrigação a que o devedor está obrigado”.
Ora, a obrigação de alimentar decorrente do conteúdo do poder paternal cessa com o advento da maioridade ou emancipação (artºs 1874, 1877, 1878 e 2013 do C.C.).
Dispõe, porém, o artº 1880 do C.C. que “se no momento em que atingir a maioridade ou for emancipado o filho não houver completado a sua formação profissional, manter-se-á a obrigação a que se refere o artigo anterior na medida em que seja razoável exigir aos pais o seu cumprimento e pelo tempo normalmente requerido para que aquela formação se complete”.
Não colhe, porém, a nosso ver, o entendimento de que o legislador ao dizer que o montante fixado pelo tribunal perdura até que cesse a obrigação a que o devedor está obrigado, quisesse abarcar o caso previsto naquele artº 1880 do C.C..
Não é esse o sentido que resulta da interpretação dos diplomas em apreço nem deste normativo (artº 9 do C.C.)
Com efeito, desde logo em relação ao artº 1880 do C.C., não se estabelece ali que os alimentos que foram fixados no decurso da menoridade se mantêm mas sim que a obrigação de prestar alimentos ao filho naquelas circunstâncias, se mantém, o que não é a mesma coisa.
O filho continua a ter direito a alimentos mas não aos que foram fixados tendo por causa de pedir a menoridade, situação em que a obrigação de alimentos é inerente ao poder paternal que pertence aos progenitores.
Cessando o poder paternal com o advento da maioridade cessa a obrigação de alimentos dos progenitores, a qual apenas se manterá se o filho provar que se encontra deles carecido por se encontrar na situação do artº 1880 do C.C.. Tal obrigação não é automática, nem é o progenitor alimentante que tem de provar que o filho não se encontra carecido de alimentos (por não se encontrar na situação do artº 1880 do C.C.)
Ora, no caso da obrigação do FGADM ela deriva das obrigações decorrentes do poder paternal e da obrigação incumprida fixada a um dos progenitores no seu âmbito.
E afigura-se-nos claro, desde logo do elemento literal, tanto na Lei 75/98 como no D.L. 164/99, que o fim visado pelo legislador foi de acudir aos alimentos de que fossem credores menores e não também pessoas maiores credoras de alimentos nos termos do artº 1880 do C.C.
Com efeito, os citados diplomas não só ao longo das disposições que implementam falam sempre em “menores” e “crianças” como o entendimento perfilhado encontra também suporte nas respectivas notas preambulares.
Neste aspecto, atente-se no que refere o preâmbulo do D.L. 164/99: “A Constituição da República Portuguesa consagra expressamente o direito das crianças à protecção, como função da sociedade e do Estado, tendo em vista o seu desenvolvimento integral (artº 69º). Ainda que assumindo uma dimensão programática este direito impõe ao Estado os deveres de assegurar a garantia da dignidade da criança como pessoa em formação a quem deve ser concedida a necessária protecção. (...)
A protecção à criança em particular no que toca ao direito a alimentos, tem merecido também especial atenção no âmbito das organizações internacionais especializadas nesta matéria e de normas vinculativas de direito internacional elaboradas no seio daquelas. Destacam-se, nomeadamente, as Recomendações do Conselho da Europa R(82)2, de 4/02/1982, relativa à antecipação pelo Estado de prestações de alimentos devidos a menores e R(89)1 de 18/01/1989 relativa às obrigações do Estado, designadamente em matéria de prestações de alimentos a menores em caso de divórcio dos pais, bem como o estabelecido na Convenção sobre os Direitos da Criança adoptada pela ONU em 1989, assinada em 26/01/1990 em que se atribui especial relevância à consecução da prestação de alimentos a crianças e jovens até aos 18 anos de idade”.
E mais adiante “Ao regulamentar a Lei 75/98 de 19/11 que consagrou a garantia de alimentos devidos a menores, cria-se uma nova prestação social que traduz um avanço qualitativo inovador na política social desenvolvida pelo Estado, ao mesmo tempo que se dá cumprimento ao objectivo de reforço da protecção social devida a menores”.
Afigura-se-nos, pois, claro que o regime instituído pelos diplomas em apreço visou a defesa dos interesses das crianças e menores, criando-se os necessários mecanismos legais para que lhes fosse assegurado o pagamento das prestações alimentares atribuídas e não pagas pelos respectivos obrigados.
Nada na letra ou no espírito da lei permite concluir que essa obrigação se prolonga para além da menoridade designadamente por se verificarem as circunstâncias previstas no artº 1880 do C.C.
Como bem se refere no Ac. da R. P. de 26/11/2001 relatado pelo Des. António Gonçalves “o princípio a observar em matéria de alimentos é o de que a obrigação de alimentos devidos a menores se fina com a chegada da maioridade e que o estatuído no artº 1880 do C.C., visando dar apoio ao filho que atinge a maioridade sem ter completado a sua formação profissional, consubstancia uma mediada que acautela os filhos maiores de forma a manter o direito a alimentos a cargo dos seus pais, desde que se verifiquem os requisitos aí enunciados. Porém, com a redacção dada ao artº 1º da Lei 75/98 de 19/11 e publicação do D.L. 164/99 de 13/05, que a veio regulamentar, não foi objectivo do legislador estender o apoio do Estado a esta eventualidade posta na vida da pessoa que atinge a maioridade sem para ela estar preparada, a qual, embora excepcionalmente digna de protecção, só aos pais se poderá exigir e apenas na medida em que seja razoável exigir deles o seu cumprimento.” (acessível em www.dgsi.pt onde se podem consultar ainda no mesmo sentido Acs. da R.P. de 13/03/2001, proc. 0120175; de 7/01/2003, proc. 0120725 e de 20/11/2001, proc. 0120781)
No sentido de que “o Fundo só garante os alimentos devidos a menores e não os alimentos educacionais previstos no artº 1880 do CC” ver ainda apontamento de J. P. Remédio Marques, “Algumas notas sobre alimentos (devidos a menores) “versus” o dever de assistência dos pais para com os filhos (em especial os filhos menores)”, Coimbra Editora, pág.229.

Por todo o exposto, a decisão recorrida que decidiu manter a obrigação do agravante, anteriormente fixada, de pagamento da prestação de alimentos devidos a “A” no montante de 2 UCs, após atingir a maioridade, não pode subsistir.
Procedem, pois, as conclusões da alegação do agravante, impondo-se a revogação da decisão recorrida.

DECISÃO
Nesta conformidade, acordam os Juízes desta Relação em conceder provimento ao agravo e, em consequência, revogar a decisão recorrida.
Sem custas.

Évora, 12/10/2006