Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1387/19.7T8FAR.E1
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: DOAÇÃO ENTRE CÔNJUGES
REGIME IMPERATIVO DE BENS
NULIDADE
REVOGAÇÃO
CADUCIDADE
DIVÓRCIO
RESTITUIÇÃO
ABUSO DO DIREITO
Data do Acordão: 07/14/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - Tanto por aplicação directa do disposto no artigo 1762.º do CC que estabelece a nulidade da doação entre casados no regime imperativo da separação de bens, como por via do preceituado no artigo 1765.º que estabelece a livre revogabilidade das doações legalmente admitidas entre cônjuges, e finalmente do estatuído nos artigos 1761.º, n.º 1, alínea c) e 1791.º do CC, que determinam a caducidade ipso jure das doações e a perda das liberalidades, com o decretamento do divórcio, o direito do Autor à restituição da avultada quantia de 80.000,00€ tem ampla consagração legal, já que a mesma não se enquadra no elenco de “simples donativos conformes aos usos sociais” excluídos do conceito de doação no artigo 940.º, n.º 2, do CC, e enquadráveis na definição de “presente” em que a Apelante ancorou a sua pretensão.
II - Estando fora de dúvida a legitimidade do Autor para impetrar judicialmente a restituição daquele valor, por qualquer uma das referidas vias de análise do caso presente, e sendo ainda certo que perante a factualidade alegada e provada não é permitida a conclusão de que a sua pretensão seja abusiva, seja em que modalidade for do instituto do abuso do direito, e concretamente na invocada suppressio, conclui-se que o Autor não actuou com abuso do direito ao pedir a restituição à Ré da quantia de 80.000,00€, que na constância do casamento entre ambos lhe entregou, sem exigências ou condições, para que esta adquirisse uma fracção autónoma (sumário da relatora)
Decisão Texto Integral:
Tribunal Judicial da Comarca de Faro[1]
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Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:

I – RELATÓRIO
1. B… instaurou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra M…, H… e L…, pedindo que seja declarado que a fracção autónoma designada pela letra “J”, do prédio descrito sob o n.º …, da Conservatória do Registo Predial de Loulé foi comprada, em 17/7/2017, pelo autor e pela ré M…, em compropriedade, aos réus H… e L… e na proporção de 4/5 indivisos para o autor e de 1/5 indiviso para a ré M…. Subsidiariamente, e caso não tenha procedência o pedido anterior, pede que se declare nula a doação dos 80.000,00€ (oitenta mil euros) que efectuou a favor da ré M… para aquisição da referida fracção, condenando-se esta a restituir-lhe a referida quantia, acrescida de juros de mora vincendos, contados à taxa legal, a partir da data da prolação da sentença e até à data da sua efectiva restituição ao autor.
Em fundamento da sua pretensão invocou, muito em suma, ter casado com a Ré, no regime imperativo da separação de bens, e, residindo ambos numa casa do A., ter a Ré começado a insistir na aquisição, por ambos, de um apartamento, tendo a R. acabado por adquirir o mesmo, com o valor de 80.000,00€ pertencentes unicamente ao A., mas ficando a fracção apenas em nome da R., estando em curso processo de divórcio.

2. A Ré contestou, invocando, no que ainda importa para a compreensão dos termos do litígio, que a fracção em causa nos autos foi oferecida pelo A. à R. como presente, sem sujeição a qualquer condição e tendo o A. pleno conhecimento que o dito imóvel foi escriturado e registado apenas em nome da R., conforme vontade expressa e manifesta do A., mas como este dispunha apenas da quantia de 80.000,00€ e como o apartamento era para si, a R. avançou para um pedido de empréstimo ao Banco para cobrir o remanescente do preço. Pese embora corra termos processo de divórcio não se sabe qual o seu desfecho, pelo que, pretender agora, como pretende o A., retirar o que deu, livremente e em consciência à R., configura manifesto abuso de direito. Pediu ainda a condenação do A. como litigante de má-fé.

3. Realizada a audiência final foi proferida sentença, julgando improcedente o pedido principal e procedente o pedido subsidiário, e absolvendo o Autor do pedido de condenação por litigância de má-fé.

4. Inconformada, a Ré apelou, finalizando a respectiva minuta com as seguintes conclusões[3]:
«VII – In casu, o autor entregou à ré a quantia de € 80 000,00 com vista à aquisição, em nome dela, do apartamento em causa, ou seja, o autor, ora recorrido, não entregou à ré aquela quantia com vista à aquisição, por ambos, de um imóvel, mas sim à aquisição, pela ré apenas, e em seu nome, como resulta dos factos provados.
VIII – Pelo que a sentença recorrida ao julgar como julga, salvo melhor opinião, contradiz a prova produzida, pois que, na realidade, interessa apurar se o interesse particular da ré, ora recorrente e as expetativas – legítimas, assinale-se – por si criadas devem ser atendidos.
IX – Defendendo-se o primado da verdade material em relação à realidade meramente formal, não se retirando ao artigo 1762º do Código Civil, o caráter imperativo, mas apenas não aplicando tal norma quando não está em causa a razão que a justifica: a celebração de uniões entre pessoas de idade muito distanciada por mero interesse económico, o que não é manifestamente o caso dos autos, pois que à data do casamento recorrido tinha 66 anos e recorrente 60 anos de idade.
X – Mais, não obstante, declararem-se nulas as doações entre casados no regime imperativo da separação de bens, possibilita-se aos nubentes fazerem doações entre si, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 1720º do Código Civil.
XI – Dos factos provados resulta que o recorrido entregou à recorrente a quantia de € 80 000,00 com vista à aquisição, em nome dela, do apartamento em causa, mas não resulta, nem foi alegado, que o recorrente pretendesse a devolução do mencionado valor ou que tivesse imposto qualquer condição à recorrida, o que nos conduz no sentido da legitimidade e, sobretudo, razoabilidade, das expetativas criadas na recorrente.
XIII – Apenas, na sequência de uma ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, intentada pelo recorrido (cfr. factos provados) veio o mesmo a, como pedido subsidiário, exigir a devolução do montante em causa.
XIV – Ao desconsiderar a perfeita e razoabilidade das expetativas criadas pela recorrente e a sua repercussão no instituto do abuso de direito, veio a sentença de que se recorre incorrer em erro de julgamento.
XV – Isto porque face à matéria apurada, impunha-se considerar o instituto de abuso de direito, formulado no artigo 334º do Código Civil, integrando o comportamento do recorrido como “venire contra factum proprium”; assim, não entendendo, violou a sentença recorrida aquele dispositivo legal.
XVII – Pelo contrário, e salvo melhor opinião, deveria a sentença recorrida ter absolvido a ré, ora recorrente, não só dos restantes pedidos formulados pelo recorrente, como absolveu, mas também deste pedido em particular, quanto à nulidade da doação e consequente obrigação de restituição ao recorrido da quantia de € 80 000,00.
XVIII - Concluindo, atento o exposto, a sentença recorrida violou o disposto no artigo 334º do Código Civil».

5. O requerido não contra-alegou, tendo apresentado requerimento para junção aos autos de certidão da acta da audiência do processo de divórcio, cuja junção foi admitida pela ora Relatora no despacho liminar.

6. Observados os vistos, cumpre decidir.
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II. O objecto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[4], é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, evidentemente sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, no caso em apreço, a única questão que importa decidir é a de saber se o Autor actuou com abuso do direito ao pedir a restituição à Ré da quantia de 80.000,00€, que na constância do casamento entre ambos lhe entregou, sem exigências ou condições, para que esta adquirisse uma fracção autónoma.
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III – Fundamentos
III.1. – De facto
Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
«1. O autor e a ré M… contraíram casamento civil, sob o regime imperativo da separação de bens, em 12 de junho de 2013, na Conservatória do Registo Civil de Faro.
2. Após o casamento o autor e a ré viajaram para a Austrália, onde residiram entre meados de julho de 2013 e inícios de setembro de 2015.
3. Enquanto residiram na Austrália viveram numa casa pertencente ao autor, o qual foi emigrante na Austrália durante muitos anos – casa essa com o seguinte endereço: “… Austrália”.
4. E, em inícios de setembro de 2015, regressaram a Portugal e passaram a residir no referido Sítio da …, em Faro.
5. O autor disse à ré que tinha cerca de € 70.000,00 (setenta mil euros) ou € 80.000,00 (oitenta mil euros) disponíveis para que a ré adquirisse um apartamento.
6. A ré propôs-se pôr à venda um prédio rústico de sua propriedade, sito em Azinhal e Amendoeira, da União das Freguesia da Conceição e de Estoi do concelho de Faro, inscrito na matriz sob o artº. … Secção … e descrito na C.R.P. de Faro sob o nº …, em Estoi, e a fim de, com o preço dessa venda contribuir para o pagamento do preço do apartamento.
7. E começaram a ver apartamentos.
8. E, na sequência dessa busca, o autor e a ré, em meados de maio de 2017, decidiram visitar a fração autónoma identificada pela letra “J” correspondente a habitação no terceiro andar centro, com um lugar de estacionamento e uma arrecadação na cave, ambos com o nº …, do prédio urbano denominado “… na localidade e freguesia de Almancil, concelho de Loulé, descrito na Conservatória do Registo Predial daquele concelho sob o nº …, inscrito na matriz sob o artº. ….
9. Em 22/05/2018, o autor entregou ao réu H… a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros), através do cheque nº 6053329010 da conta nº 39723402771 do Banco Banif/Balcão de Santa Eulália, conta essa titulada pelo autor.
10. Em 07/07/2017, entregou ao dito H… a quantia de € 2.000,00 (dois mil euros) através do cheque nº 5153329011 da dita conta nº … do Banco Banif.
11. E, em 17/07/2017 realizou-se a respetiva escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca através da qual H… e mulher L… declararam vender à ré M… a fração autónoma identificada supra, pelo preço de € 97.000,00 (noventa e sete mil euros), o que esta disse aceitar, declarando ainda que, para a aquisição da fração em causa havia solicitado ao “Novo Banco, S.A.”, aí representado pelas suas procuradoras, um empréstimo no valor de € 17 000,00 (dezassete mil euros), nessa data recebido daquele banco, escritura que veio a ser assinada pelo autor.
12. Aquando da realização dessa escritura de compra e venda, em 17/07/2017, o autor pagou aos vendedores H… e L… mais € 73.000,00 (setenta e três mil euros) do preço da compra, pagamento esse efetuado através do cheque bancário nº 4600246137, conta … do Banco Santander Totta, S. A./Balcão de São Brás de Alportel e aprovisionado exclusivamente com dinheiro do autor.
13. E tendo ainda nesse dia – 17/07/2017 – a restante parte do preço da compra, € 17.000,00 (dezassete mil euros), sido paga pela ré aos vendedores H… e L…, valor que a ré havia solicitado ao “Novo Banco, S. A.”, a título de empréstimo, o qual foi concedido à ré e garantido com hipoteca.
14. O autor pagou também os montantes do IMT, do IS, e dos emolumentos notariais da escritura realizada em 17/07/2017.
15. Em 12/09/2017, a ré vendeu o seu prédio rústico sito em Azinhal e Amendoeira, da União de Freguesia de Conceição e Estoi, concelho de Faro, artº. …, secção …, descrição predial … da freguesia de Estoi, pelo preço de € 27.500,00 (vinte e sete mil e quinhentos euros) e, seguidamente, pagou ao “Novo Banco, S.A.” a quantia que lhe havia sido emprestada por este, procedendo ao distrate e cancelamento da respetiva hipoteca que incidia sobre a fração em causa.
16. As despesas de manutenção e conservação e condomínio do apartamento ficaram a cargo da ré.
17. Em 22 de abril de 2019, o autor instaurou contra a ré M… uma ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, a qual corre os seus termos sob o n.º 1371/19.0T8FAR, do Tribunal de Família e Menores de Faro – J3 – da Comarca de Faro».
E foram considerados não provados os seguintes factos:
«a) Que a ré insistiu junto do autor para a aquisição da fração em causa;
b) Que o autor comprou o apartamento em causa para o oferecer à ré, como presente;
c) Assegurando-lhe que, a qualquer momento e se alguma coisa corresse mal entre o casal, a ré M… dispunha de uma habitação condigna.»
De harmonia com o disposto nos artigos 607.º, n.ºs 4 e 5, e 611.º, n.º 2, aplicáveis ex vi 663.º, n.º 2, do CPC, em face da certidão referida em 5. do Relatório, correspondente à acta da audiência de julgamento realizada em 23.01.2020, importa ainda considerar que:
- A. e R. acordaram na conversão do processo de divórcio identificado no ponto 17. da matéria de facto provada, em Divórcio por Mútuo Consentimento, tendo seguidamente sido decretado o divórcio entre ambos, e declarado dissolvido o respectivo casamento.
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III.2. – O mérito do recurso
Em função da matéria de facto dada por provada, a sentença recorrida julgou improcedente o pedido principal para declaração da aquisição a favor do Autor, em regime de compropriedade, da fracção em causa, pois que não foi interveniente na escritura pública de compra e venda da mesma. Todavia, resultando apurado que o autor e a ré contraíram casamento sob o regime imperativo da separação de bens (facto provado n.º 1) e que, o autor entregou à ré a quantia total de 80.000,00€ (oitenta mil euros), com vista à aquisição, em nome dela, do apartamento em causa (factos provados nºs 9.º, 10.º e 12.º dos factos provados), a sentença recorrida declarou nula, com efeitos retroactivos, a doação efectuada pelo autor à ré, ora Recorrente, reconhecendo, consequentemente, nos termos do artigo 289.º[5], n.º 1, do Código Civil[6], que o autor tem direito à restituição de tudo quanto houver sido prestado – notando até que se apurou terem sido suportadas pelo autor as despesas com a realização da escritura de compra e venda em causa (facto provado n.º 14) cuja restituição, porém, não foi peticionada –, e condenando-a restituir-lhe a referida quantia acrescida de juros, à taxa legal, desde a prolação da sentença até à sua efectiva restituição.
Conforme a Apelante realça e sintetiza nas suas primeiras conclusões «o presente recurso é restrito a matéria de direito e assenta na violação, por parte do despacho recorrido, da norma jurídica que prevê o instituto do abuso de direito. (…)
Considerou a sentença recorrida, ilegítima, a invocação pela ré, ora recorrente, do instituto do abuso de direito, por entender que o interesse protegido pela norma que declara a nulidade das doações entre casados em regime imperativo de separação de bens prevalece sobre o interesse particular da ré, ora recorrida e das expetativas por si criadas».
Assim, como é bom de ver, a Apelante apenas se insurge contra a decisão recorrida, no segmento em que julgou improcedente a sua invocação do instituto do abuso do direito, para obstar à decretada restituição da referida quantia de 80.000,00€, em síntese, defendendo que não se retirando ao artigo 1762º do Código Civil, o caráter imperativo, mas apenas não aplicando tal norma quando não está em causa a razão que a justifica.
Analisemos, pois, se a Apelante tem ou não razão, começando primeiramente por verificar se o direito invocado existe ou não e, apenas no caso de se concluir pela sua existência, apreciar se o exercício desse direito é ou não abusivo[7].
Vejamos.
Atento o disposto no artigo 1761.º do CC, “as doações entre casados regem-se pelas disposições desta secção e, subsidiariamente, pelas regras dos artigos 940.º a 979.º”, estatuindo o artigo 1762.º que “é nula a doação entre casados, se vigorar imperativamente entre os cônjuges o regime da separação de bens”, como vimos ser o caso entre a Apelante e o Apelado, pelo que, na falta de regime especial, tal nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado, tendo a sua declaração efeito retroactivo e implicando a restituição de tudo o que houver sido prestado, de harmonia com o preceituado nos artigos 285.º, 286.º e 289.º, n.º 1, do CC.
Conforme refere DANIEL MORAIS em anotação ao artigo 1762.º do CC[8], «[e]sta disposição surge como uma consequência lógica da existência de situações em que o regime de separação de bens é imperativo (art. 1720º/1) “como precaução contra possíveis e até prováveis abusos de influência que as circunstâncias de certos casamentos fazem presumir ou pelo menos fazem recear; pense-se, por exemplo, nos casamentos urgentes, ou nos casamentos entre pessoas de idade avançada (…)” (PESSOA JORGE, 1963: 48). Se, neste caso, as doações entre casados fossem permitidas o objectivo visado com a imposição deste regime de bens seria frustrado».
Não deixando de atentar que estamos perante preceito imperativo, a Recorrente preconiza, porém, uma espécie de interpretação restritiva, para as situações em que não está em causa a celebração de uniões entre pessoas de idade muito distanciada por mero interesse económico, o que não é manifestamente o caso dos autos, pois que à data do casamento recorrido tinha 66 anos e recorrente 60 anos de idade.
Ora, o artigo 1720.º do CC, sobre a epígrafe “Regime imperativo da separação de bens”, por via do disposto na alínea b) do n.º 1, considera sempre contraído sobre o regime da separação de bens o casamento celebrado por quem tenha completado sessenta anos de idade.
Como refere J. P. REMÉDIO MARQUES[9] «esta alínea b) sujeita ao regime imperativo da separação de bens quem tenha completado sessenta anos de idade. O legislador, suspeita, por um lado, que o consentimento do nubente mais novo é determinado por motivações económicas e, por outro, que o cônjuge com mais de sessenta anos de idade apresenta maiores fragilidades do ponto de vista afectivo e emocional».
No caso em presença, considerando que ambos os nubentes aquando da celebração do casamento tinham já atingido esta idade, aceita-se que a aplicação daquele estatuto patrimonial em concreto a estes cônjuges, não visasse a protecção de um deles relativamente ao outro.
Acontece que o preceito, como é próprio das normas, é geral e abstracto, não regendo sobre esta situação em concreto, mas estabelecendo genericamente, sendo que, conforme adverte este Ilustre Autor[10] «as regras relativas à titularidade sobre os bens do casal (os que se levam para o casamento e os bens que se adquirem durante a vigência do casamento); regime de bens, este, que vigora e se lhes impõe precisamente mesmo contra a vontade deles; regime imperativo de bens, portanto.
A norma em anotação enquadra os casos em que, de uma forma taxativa (atenta a regra da liberdade de convenção consignada no art. 1698.º), o casamento se considera imperativamente celebrado no regime de separação de bens. A norma parte da suspeita de que algum dos nubentes tenha sido determinado a contrair casamento por interesse económico».
Todavia, na situação vertente, ainda que se concordasse com o citado Autor quando refere que «esta regra revela-se totalmente claudicante, anacrónica e inadequada à atual realidade sócio-cultural portuguesa», desde logo, no concernente ao aumento da esperança média de vida da população – defendendo que a manter-se o regime imperativo resultante do limite etário este deveria ser elevado para quem tenha completado os oitenta anos –, se acentuassem as contradições do legislador quanto à manutenção neste regime de bens da posição sucessória do cônjuge como herdeiro legitimário, e mesmo se suscitassem «ponderosas dúvidas quanto à inconstitucionalidade material do preceito da al. b) (…) por força da violação do direito ao livre desenvolvimento da personalidade (art. 26.º CRP) e da liberdade geral de agir dos cidadãos, bem como o princípio da igualdade (artigo 13.º CRP)», e considerasse não existirem «razões materiais para limitar, de uma forma tão rigorosa, os referidos direitos fundamentais no quadro do direito à celebração do casamento», mesmo assim, no caso que nos ocupa, a existência do direito do Autor à restituição da quantia entregue à Ré, não se alterava, daí que não releve aprofundarmos tais pertinentes dúvidas sobre o preceito em causa.
Na realidade, dando conta de que, entre nós, a regra da admissibilidade das doações entre casados decorre de uma longa tradição – já eram permitidas nas Ordenações Filipinas –, ao contrário do que acontece em outros ordenamentos jurídicos, nos quais as mesmas são vedadas, DANIEL MORAIS, em anotação ao artigo 1761.º do CC[11], lembra que «[a]s razões que subjazem à suspeita que recai sobre as doações entre casados são as mesmas que estão subjacentes ao princípio da imutabilidade das convenções antenupciais (art. 1714º), ou seja, o receio de que “um dos cônjuges exerça influência sobre o outro” (PESSOA JORGE, 1963: 47), pois a pressão para a realização destas doações é “grandemente facilitada através da comunhão diária de vida existente entre os pactuantes” (PIRES DE LIMA / ANTUNES VARELA, 1992: 485). (…) De qualquer forma, nenhuma das razões invocadas foi considerada suficiente para “cortando-se a tradição, proibir simplesmente as doações entre casados; tal solução contraria, sem motivos que o justifiquem, o princípio da autonomia provada e viria tornar impossível a obtenção de certos resultados justos, que em determinadas circunstâncias concretas se impões e que só o recurso às doações pode satisfatoriamente atingir” (PESSOA JORGE, 1963: 10)».
Significará, então, esta afirmação que a expectativa invocada pela Apelante de que não teria que restituir a quantia que lhe foi entregue pelo então marido, beneficiaria de tutela legal, caso o regime de bens entre os cônjuges não fosse o regime imperativo da separação?
A resposta é negativa.
Efectivamente, ainda seguindo o citado autor «à semelhança do que acontece em França, em Portugal tais doações são admitidas com reservas, que se traduzem na sua livre revogabilidade (art. 1765.º), tal como acontece relativamente às disposições testamentárias (PEREIRA COELHO / GUILHERME DE OLIVEIRA, ibid.[12])». Dispõe o n.º 1 do referido preceito que “as doações entre casados podem a todo o tempo ser revogadas pelo doador, sem que lhe seja lícito renunciar a este direito”.
Trata-se, como é evidente, da confirmação da já referida desconfiança do nosso legislador relativamente à possibilidade das doações entre casados, ficando as mesmas por via do estabelecido neste preceito legal «dependentes de uma condição resolutiva legal, a saber, a revogação pelo doador (PEREIRA COELHO / GUILHERME DE OLIVEIRA, 2016: 545)», sendo que «o doador não pode renunciar à faculdade de livre revogação, visto que esta assenta num princípio de ordem pública (PIRES DE LIMA / ANTUNES VARELA, 1992: 493)»[13].
Não se encontrando os efeitos da revogação das doações entre casados prevista neste núcleo de normas específicas da Secção II (artigos 1762.º a 1766.º), em face do disposto no artigo 1761.º do CC, regem-se subsidiariamente pelas regras correspondentes ao regime geral das doações, contidas nos artigos 940.º a 979.º do CC.
Assim, «os efeitos da revogação são determinados pelo regime geral dos arts. 978.º e 979.º (PIRES DE LIMA / ANTUNES VARELA, 1992: 495)», dispondo na parte que ora nos importa, os n.ºs 1 e 2 do artigo 978.º do CC, de harmonia com cuja previsão “os efeitos da revogação da doação retrotraem-se à data da proposição da acção”, sendo que, “revogada a liberalidade, são os bens doados restituídos ao doador”. Por isso, atento o desenho legal do regime estabelecido, «(PEREIRA COELHO/ GUILHERME DE OLIVEIRA, 2016: 544-545), entendem que não é válida uma cláusula de não retroactividade da revogação atendendo às razões que lhe subjazem».
Acresce ainda – em reforço do que vimos referindo quanto às reservas colocadas pelo legislador às doações entre casados –, que de harmonia com o regime específico estabelecido no artigo 1766.º, n.º 1, alínea c), do CC “a doação entre casados caduca: ocorrendo divórcio ou separação judicial de pessoas e bens por culpa do donatário, se este for considerado único e principal culpado”.
Não obstante a menção neste preceito à culpa do donatário no divórcio, constata-se uma evidente incompatibilidade, por falta de adequação entre o que consta no mesmo, na versão do CC introduzida na reforma de 1977, com o que se estabelece no artigo 1791.º do CC, alterado pela Lei n.º 61/2008, de 31.10, que se mostra inserido na subsecção IV relativa aos efeitos do divórcio, e de acordo com cujo n.º 1, na parte que ora releva, cada cônjuge perde todos os benefícios recebidos, em vista do casamento ou em consideração do estado de casado, quer a estipulação seja anterior ou posterior à celebração do casamento, determinando consequentemente a revogação tácita daquele artigo 1766.º, n.º 1, alínea c), na parte em que se refere à declaração de culpa[14].
Portanto, desde a entrada em vigor da referida alteração legislativa, que o decretamento do divórcio ou a separação de pessoas e bens é causa extintiva dos benefícios ou liberalidades recebidos pelos cônjuges, em atenção ao seu estatuto presente ou futuro, pelo que, também a possibilidade das doações entre esposados que a Apelante invoca em favor da sua tese, não tem qualquer relevância em face da nova solução prevista no artigo 1791.º, que obviamente se aplica ao casamento de A. e R. celebrado em 2013 (artigo 12.º, n.º 1, do CC).
Assim, tendo presente a ideia vertida na exposição de motivos da Lei de 2008, de que o casamento não é um meio de adquirir património e que, portanto, cessando aquela relação jurídica familiar cessa a causa dos benefícios, «de acordo com a nova lógica que preside à solução – desligada da declaração de culpa e associada simplesmente à extinção da relação matrimonial – justifica-se que o art. 1791.º se aplique em qualquer modalidade de divórcio», sendo que «a perda dos benefícios abrangidos pelo art. 1791.º opera ipso jure, sem que seja necessária a manifestação das partes nesse sentido (COELHO e OLIVEIRA (2016) 770) (…). Depende, portanto, do facto do decretamento do divórcio cf. art. 1789º, quanto à data da produção dos efeitos)»[15].
Deste modo, também por esta via, decretado o divórcio, a perda do benefício concedido pelo A. à R., com a entrega da quantia de 80.000,00€, igualmente operaria.
Em suma, tanto por aplicação directa do disposto no artigo 1762.º do CC que estabelece a nulidade da doação entre casados no regime imperativo da separação de bens, como por via do preceituado no artigo 1765.º que estabelece a livre revogabilidade das doações legalmente admitidas entre cônjuges, e finalmente do estatuído nos artigos 1761.º, n.º 1, alínea c) e 1791.º do CC, que determinam a caducidade ipso jure das doações e a perda das liberalidades, com o decretamento do divórcio, verificamos que o direito do Autor à restituição da avultada quantia de 80.000,00€ tem ampla consagração legal quanto à sua legitimidade, já que a mesma, óbvia e manifestamente, não se enquadra no elenco de “simples donativos conformes aos usos sociais” excluídos do conceito de doação no artigo 940.º, n.º 2, do CC, e enquadráveis na definição de “presente” em que a Apelante ancorou a sua pretensão.
Ora, tão expressa intenção do legislador de que o casamento não sirva para adquirir património, basta para afastar a pretensão da Recorrente de ver aplicado à situação em presença o instituto do abuso do direito, para obstar à pretendida restituição daquela quantia.
Na realidade, de acordo com o preceituado no artigo 334.º do CC “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico desse direito”.
Conforme cristalinamente se esclareceu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10.07.2008[16], louvando-se na mais autorizada doutrina, «Este dispositivo legal – já o afirmamos noutro aresto – vale o que vale: nada ou quase nada.
Este “quase nada” é justificado por CASTANHEIRA NEVES quando considera como não despicienda a consagração legal do abuso do direito e até conveniente “para evitar farisaicos escrúpulos, já que haverá sempre radicais positivistas-legalistas entre nós, e assim é possível combater com as suas próprias armas” (Questão-de-Facto e Questão-de-Direito ou o Problema Metodológico da Juridicidade, página 529, nota 54).
Segundo este mui ilustre Mestre a adequada compreensão do abuso do direito só se atinge com a mutação da forma como se compreende o próprio direito subjectivo.
Para tanto, parte da ideia de que o direito subjectivo é “uma intenção normativa que apenas subsiste na sua validade jurídica enquanto cumpre concretamente o fundamento axiológico-normativo que a constitui”, ou seja, o direito subjectivo deixa de ser uma estrutura formal para ser encarado “com uma função normativa, teleológico-materialmente fundada”, havendo abuso de direito quando “um comportamento tenha a aparência de licitude jurídica – … – e, no entanto, viole ou não cumpra, no seu sentido materialmente realizado, a intenção normativa que materialmente fundamenta e constitui o direito invocado, ou de que o comportamento realizado se diz exercício”.
Desta forma, “o abuso de direito configura-se como uma contradição entre dois pólos que entretecem o direito subjectivo”: a sua estrutura formal reconhecida pelo ordenamento jurídico e o fundamento normativo que integra esse mesmo direito e lhe confere materialidade devem estar em conformidade, certo que quando esta não é detectada, ocorre abuso de direito (obra citada, páginas 523 a 524).
Comungando das mesmas ideias, diremos que não temos que ficar presos, amarrados, ao que está prescrito no citado artigo 334º, antes nos cumpre, e sempre, procurar detectar se o exercício formal de um direito se mostra desconforme com a teologia desse mesmo direito. Se a resposta for positiva, então sim, há abuso do direito.
Resumindo o muito que a este respeito se poderia dizer, queremos apenas salientar que, a referência à boa fé, ínsita no preceito em referência, é deslocada, porquanto, no ensinamento do Ilustre Mestre, “ela sustenta todo o mundo contratual, modelando a conduta dos contraentes, sindicando-a e chancelando-a de lícita ou ilícita”.
Razão de sobra para MAFALDA MIRANDA BARBOSA, sustentar, com brilho, que “naquelas situações em que se coloca um problema relativo à boa fé e aos deveres que ela faz emergir não faz sentido recorrer ao abuso do direito” (Liberdade vs. Responsabilidade – A Precaução como fundamento da imputação delitual?, página 324).
Avisados deste axioma, deveremos, pois, interpretar com naturais reservas o citado artigo 334º do Código Civil, “sem que isso nos impeça de ir mais além”, pois “perante a mobilização em concreto de um direito, teremos de indagar sempre, por referência aos princípios normativos em que se funda, se aquele exercício os contraria ou não” (ainda CASTANHEIRA NEVES, obra citada, páginas 323 a 326)».
Defende a Recorrente que, como o recorrido lhe entregou a quantia de € 80 000,00 com vista à aquisição, em nome dela, do apartamento em causa, mas não resulta, nem foi alegado, que o recorrente pretendesse a devolução do mencionado valor ou que tivesse imposto qualquer condição à recorrida, o que nos conduz no sentido da legitimidade e, sobretudo, razoabilidade, das expetativas criadas na recorrente.
Sem qualquer razão, como é evidente.
Não ter sido alegado pelo Autor que logo que entregou aquele montante à Ré a advertiu de que pretenderia a devolução, é absolutamente inócuo em face do regime legal acima vertido, porquanto a causa pela qual o entregou, esvaneceu-se, primeiro, levando-o a instaurar a acção de divórcio, e concretizou-se com a extinção do vínculo conjugal.
Conforme se afirmou no já citado aresto, «a modalidade de suppressio, um subtipo do “venire” e que traduz a ideia de comportamento contraditório do titular do direito que o vem exercer depois de uma prolongada abstenção.
Esta situação pode, em determinadas circunstâncias, suscitar uma legítima e razoável expectativa de que o seu titular não o irá exercer e que renunciará, por certo, ao seu próprio direito. É esta expectativa que “é atendível quando a sua criação seja imputável ao titular do direito e resulte de uma situação de confiança que seja justificada e razoável” (PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral do Direito Civil – 2ª edição –, pág. 664).
Como observa MENEZES CORDEIRO, “a suppressio” é, no fundo, uma forma de tutela da confiança do beneficiário, perante a inacção do titular do direito”, certo que “teremos de compor um modelo de decisão, destinado a proteger a confiança de um beneficiário, com as proposições seguintes: não exercício prolongado, uma situação de confiança, uma justificação para essa confiança, um investimento de confiança e a imputação da confiança ao não exercente” (Tratado de Direito Civil Português – I – Parte Geral, Tomo IV, pág. 313 e ss., nomeadamente, 323 e 324)».
Em face do acima já referido, estando fora de dúvida a legitimidade do Autor para impetrar judicialmente a restituição do valor que entregou à Ré, ora Recorrente, arrimado em qualquer uma das vias de análise do caso presente que acima se enunciaram, é ainda certo que perante a factualidade alegada e provada não é permitida a conclusão de que a sua pretensão seja abusiva, seja em que modalidade for do instituto do abuso do direito, e concretamente na invocada suppressio.
Ao invés, o mesmo não se diria se idêntico juízo se fizesse relativamente à posição assumida pela Ré, não se compreendendo porque razoável razão esta considera ser legítima a sua expectativa de que pudesse conservar o avultado valor que lhe foi entregue pelo então marido, na constância de um casamento que durou escassos anos, quando não pode desconhecer que o próprio legislador optou, em qualquer caso, pela caducidade, com a extinção da relação matrimonial, dos benefícios que os cônjuges tenham recebido antes ou no decurso do casamento, em atenção ao seu estatuto presente ou futuro.
Pelo exposto, e sem necessidade de maiores considerações, a apelação improcede.
Vencida, a Apelante suporta as custas de parte, atento o princípio da causalidade e o disposto nos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do CPC.
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III - Decisão
Pelo exposto, na improcedência da apelação, acorda-se em confirmar a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
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Évora, 14 de Julho de 2020
Albertina Pedroso [17]
Tomé Ramião
Francisco Xavier
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[1] Juízo Central Cível de Faro - Juiz 1.
[2] Relatora: Albertina Pedroso; 1.º Adjunto: Tomé Ramião; 2.º Adjunto: Francisco Xavier.
[3] Que se restringem às necessárias para a compreensão do objecto do recurso.
[4] Doravante abreviadamente designado CPC.
[5] Por lapso, na decisão recorrida foi referido o artigo 288.º.
[6] Doravante abreviadamente designado CC.
[7] Parafraseando BAPTISTA MACHADO, in Resolução do Contrato de Arrendamento Comercial, Colectânea de Jurisprudência, Ano IX, Tomo II, página 17.
[8] In Código Civil Anotado – Livro IV – Direito da Família, CLARA SOTTOMAYOR (Coord.), ALMEDINA, 2020, pág. 490.
[9] Em anotação ao artigo 1720.º, obra citada, pág. 410.
[10] Idem, pág. 408.
[11] In obra citada, págs. 488 e 489.
[12] Refere-se a (2016: 538-539).
[13] In obra citada, págs. 494 e 495, de onde se extraem as citações entre «aspas».
[14] Cfr. neste sentido, DUARTE PINHEIRO, citado por DANIEL MORAIS, obra citada, pág. 498, e PAULA TÁVORA VITOR, idem, pág. 567.
[15] Cfr. Autora e obra citada, em anotação ao artigo 1791.º do CC, págs. 565 e 566.
[16] Processo n.º 08A2115, relatado pelo Cons. Urbano Dias, disponível em www.dgsi.pt.
[17] Texto elaborado e revisto pela Relatora, e assinado electronicamente pelos três Desembargadores desta conferência.