Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1192/17.5T8STR-B.E1
Relator: CANELAS BRÁS
Descritores: INSOLVÊNCIA
VALOR DA CAUSA
Data do Acordão: 12/21/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Não dispondo, na altura, de outros elementos para solucionar a problemática do valor da acção – necessária à admissão de vários recursos entretanto atravessados pelo Requerente, ainda antes da decisão final sobre o decretamento ou não da insolvência –, é lícito ao M.º Juiz socorrer-se do valor indicado pelo Requerente na petição inicial e não contestado pelo Requerido.
Decisão Texto Integral: RECURSO Nº. 1192/17.5T8STR-B.E1 – APELAÇÃO (SANTARÉM)


Acordam os juízes nesta Relação:

O Requerente, ora Apelante, (…), advogado, com domicílio na Rua do (…), n.º (…)-1.º, em Torres Novas, vem interpor recurso do douto despacho que foi proferido em 27 de Setembro de 2017 (ora a fls. 17 verso dos autos), e que veio a fixar o valor da acção em € 2.000,00 (dois mil euros), nestes autos de insolvência que havia deduzido no Juízo de Comércio do Tribunal Judicial da comarca de Santarém, contra o Requerido, agora Apelado, (…), empresário, com residência na Rua (…), n.º 1, em (…), Alcanede – com o fundamento aduzido no douto despacho de que “o Requerente atribuiu à vertente acção um valor de € 2.000,00 em sede de petição inicial, e o Requerido aceitou tacitamente esse valor”, e não havendo, na acção, neste momento, elementos para se fixar outro –, ora intentando a sua revogação e que venha a fixar-se valor diferente (que permita, designadamente, o recebimento dos recursos que já interpôs e que lhe foram rejeitados na mesma data, a fls. 18 a verso dos autos, na decorrência da fixação desse valor à acção) e alegando, para tanto e em síntese, que discorda do assim decidido, porquanto na previsão do artigo 15.º do CIRE, “o critério legal para a fixação do valor da acção de insolvência é o património do devedor e não qualquer outro”, pelo que “o Tribunal a quo estava legalmente impedido de fixar o valor da acção com base no valor indicado pelo Requerente”. E nem o Requerido aceitou esse valor. Consequentemente, “o valor da acção deverá ser apurado pelo somatório dessas responsabilidades, pelo menos daquelas de que o próprio Requerido admitiu ser devedor e que constam da relação de devedores que juntou à sua oposição aperfeiçoada”. E “o valor da acção deveria ter sido fixado oficiosamente pelo Tribunal pelo menos em € 212.225,88”, conclui.
Não foram apresentadas contra-alegações.
E nada obsta a que se decida, aceitando-se o efeito devolutivo fixado ao recurso, no douto despacho de fls. 2 verso – pese embora o pedido do recorrente para que se lhe fixasse o efeito suspensivo –, atento o disposto no artigo 14.º, n.º 5, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
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A matéria de facto necessária e suficiente para a decisão do pleito, nesta sede de recurso, está basicamente relacionada com os trâmites processuais que, até ao momento, ocorreram na acção, e de que se destacam os seguintes:

1) No Juízo de Comércio do Tribunal Judicial da comarca de Santarém foi instaurada a presente acção de insolvência, em 19 de Abril de 2017, pelo ora Apelante, (…), advogado, contra o ora Apelado (…), empresário, nos termos da douta petição inicial que constitui agora fls. 121 verso a 125 verso dos autos, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido (a data de entrada está aposta a fls. 132).
2) A 29 de Maio de 2017 o Requerido deduziu a oposição de fls. 96 a 101 verso dos autos, aqui dada por reproduzida (a data de entrada está a fls. 107).
3) E a 08 de Junho de 2017 apresentou a oposição aperfeiçoada de fls. 73 verso a 79, também aqui dada por reproduzida na íntegra (a data de entrada está aposta a fls. 80 dos autos).
4) Em 27 de Setembro de 2017 foi entretanto proferido o douto despacho de que agora se recorre, conforme fls. 17 verso dos autos, que reza assim:
Valor da acção.
O Requerente atribuiu à vertente acção um valor de € 2.000,00 em sede de petição inicial, e o Requerido aceitou tacitamente esse valor.
Uma vez que o Tribunal, neste momento, não tem elementos para fixar outro valor à acção, nos termos do artigo 15.º do CIRE, tem de se considerar o valor aceite pelas partes como sendo o valor da acção (artigo 305º/ 4 do CPC), o qual, diga-se, já deve ser superior ‘ao valor do activo do devedor indicado na petição’, que segundo os artigos 16º e 40º da mesma, para além de umas armas de caça de valor reduzido, é inexistente.
Por conseguinte considerando a necessidade de aferir da admissibilidade dos recursos interpostos, sendo seu pressuposto a fixação do valor da acção, o Tribunal fixa o valor da acção, ao abrigo do artigo 305.º do Cód. de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 17.º do CIRE, em € 2.000,00.
Notifique”.
5) Subsequentemente, foram rejeitados os recursos que haviam sido até aí interpostos na acção (vide fls. 18 a verso dos autos, aqui tido por reproduzido).
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Vejamos as questões que demandam apreciação e decisão deste Tribunal ad quem, relacionadas com o valor da acção e as consequências na admissão de recursos que haviam sido interpostos antes. Tal o que hic et nunc está em causa, como se extrai das conclusões alinhadas no recurso apresentado.
Naturalmente que da não admissão dos recursos seria adequado interpor a respectiva Reclamação, e não o Recurso, nos termos do art.º 643.º do CPC. Mas aceita-se aqui a apreciação dessa matéria da rejeição dos recursos, porquanto se acha a mesma totalmente dependente da resposta a dar à da fixação do valor.

Mas o douto despacho recorrido nem deixa de aplicar correctamente as disposições legais adequadas e pertinentes ao caso vertente, tal qual o mesmo se apresentava ao julgador, com os elementos de que, então, dispunha.
Com efeito, o Requerente da insolvência, ora Apelante, veio logo indicar na sua douta petição inicial o valor da acção como sendo de € 2.000,00 (dois mil euros) – de resto, em obediência ao comando do artigo 552.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Civil, que lhe impunha que declarasse o valor da causa.
Naturalmente, é conhecida a tendência por parte de quem intenta acções em Tribunal de lhes atribuir um valor o mais baixo possível, pois que, assim, há logo a vantagem de pagarem menos a título de taxa de justiça inicial. Mas como tudo tem vantagens e desvantagens, surge, depois, aliada à vantagem inicial de pagar menos taxa de justiça, a desvantagem de ficar a acção abaixo da alçada do tribunal de que se recorre e assim, impedir a interposição de recursos, conforme ao regime estabelecido nos artigos 296.º, n.º 2 e 629.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil – o que veio a acontecer, precisamente, in casu.
Ubi commoda, ibi incommoda, como soe dizer-se.

E para fundamentar essa sua opção, passou o Requerente da insolvência a explanar, na sua douta petição inicial, que o Requerido o encarregou de fazer a transferência para uma empresa “de todos os seus activos pessoais” (ponto 3º); e “de todos os activos de seus pais, incluindo depósitos bancários e aplicações financeiras” (ponto 4º); o que veio, efectivamente, a concretizar-se, e ainda com os activos do Requerido em sociedades por ele geridas (ponto 5º); também com a sua própria casa de habitação, que foi igualmente transferida (ponto 6º); afinal que “não são conhecidos activos do requerido, suficientes para o pagamento do crédito do requerente e de todos os seus demais credores, uma vez que o mesmo transferiu praticamente todo o seu património, bem como todos os bens que pertenciam a seus pais” (ponto 14º), “a fim de se furtar ao pagamento dos seus débitos para com os seus credores” (seu ponto 15º), “tendo ficado apenas com algumas armas de caça de reduzido valor” (ponto 16º); que “o requerido não tem actualmente qualquer activo para além da sua reforma que se encontra penhorada à ordem de processos de execução por débitos à Segurança Social” (ponto 38º); e que “não tem quaisquer bens para além das referidas armas de caça” (ponto 39º); que “o requerido tem, assim, uma impossibilidade manifesta de cumprir as suas obrigações vencidas para com os seus credores” (ponto 45º) assim “não possuindo bens penhoráveis, livres de ónus e encargos e suficientes para o pagamento do crédito do Requerente” (ponto 46º), “estando, há muito, em situação de manifesta insolvência” (ponto 47º).
Neste quadro fáctico indicou o valor da acção como sendo de € 2.000,00.

O Requerido veio contestar que estivesse em situação de insolvência, mas omitiu qualquer referência ao valor da causa indicado pelo Requerente – o que, nos termos do artigo 305.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, significa a sua aceitação (“A falta de impugnação por parte do Réu significa que aceita o valor atribuído à causa pelo Autor”, reza o preceito).

Assim sendo, porque não dispunha na altura de outros elementos para vir a solucionar a problemática do valor da acção – necessária para a admissão dos vários recursos entretanto atravessados pelo Requerente, ainda antes da decisão final sobre o decretamento ou não da peticionada insolvência (recorde-se que há prova pericial a produzir sobre os honorários do requerente e testemunhas para serem ouvidas na audiência de julgamento) – o tribunal a quo, e bem, socorreu-se daquele valor indicado pelo Requerente e não contestado pelo Requerido.
Pois que para poder fixar outro – eventualmente mais alto – é necessário vir ainda a produzir aquelas provas. Neste momento é aquele valor o disponível. Pelo que também o Apelante se não poderá queixar de que ficará impedido, no futuro, de vir recorrer da decisão final do processo – bastando, para tanto, que o Tribunal, na sentença a proferir, venha a fixar à acção outro valor, superior ao da alçada da 1ª instância, e, nessa altura, já estará então perfeitamente habilitado a fazê-lo, uma vez realizado o julgamento e produzidas as respectivas provas.

É que, nos termos do artigo 15.º do CIRE, “para efeitos processuais, o valor da causa é determinado sobre o valor do activo do devedor indicado na petição, que é corrigido logo que se verifique ser diferente o valor real” (assim, constituindo um efeito processual a relação do valor com a alçada do tribunal).
Ora, como se constata, se “o valor da causa é determinado sobre o valor do activo do devedor indicado na petição” e o Requerente aí aduz que “não são conhecidos activos do Requerido, suficientes para o pagamento do crédito do requerente e de todos os seus demais credores, uma vez que o mesmo transferiu praticamente todo o seu património, bem como todos os bens que pertenciam a seus pais”, “tendo ficado apenas com algumas armas de caça de reduzido valor” e que “o Requerido não tem actualmente qualquer activo para além da sua reforma que se encontra penhorada à ordem de processos de execução por débitos à Segurança Social”, é caso para se perguntar então do que é que agora se queixa o Apelante?

Naquele momento em que foi proferido o despacho e como dele consta, o Tribunal não teve, portanto, alternativa a socorrer-se do acordo das partes sobre o valor da causa, ao abrigo do disposto no artigo 305.º, n.º 4, do CPC, aplicável ex vi do artigo 17.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

O Apelante ainda diz que não se aplicam as regras gerais dos recursos, pois há um regime especial no CIRE que impede tal aplicação – constatando-se, porém, que quando pretendeu a fixação do efeito suspensivo do recurso já veio socorrer-se dessas regras gerais e pôs de lado uma norma expressa e especial do CIRE que atribui aos seus recursos o efeito devolutivo (o seu artigo 14.º, n.º 5).
Porém, encontra-se prevista no artigo 17.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil “em tudo o que não contrarie as disposições do presente Código”.

[Vide Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, no seu “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Reimpressão, da ‘Quid Juris’, ano de 2009, na anotação 8 àquele artigo 14.º, a páginas 114, relativa aos recursos: “Quanto aos demais aspectos da tramitação e subida que não se acham directamente contemplados neste artigo 14º, é aplicável a lei processual geral, como, para além do mais, decorre hoje da determinação do artigo 17º”.]

Pelo que foi bem fixado tal valor à causa e, decorrentemente, rejeitados sem mácula os recursos que haviam sido apresentados até então.

Razões pelas quais nesse enquadramento fáctico e jurídico se tenha agora que manter, intacta na ordem jurídica, a douta decisão recorrida da 1ª instância que assim veio a optar, e improcedendo o presente recurso de Apelação.
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Decidindo.

Assim, face ao que se deixa exposto, acordam os juízes nesta Relação em negar provimento ao recurso e confirmar o douto despacho recorrido.
Custas pelo Recorrente.
Registe e notifique.
Évora, 21 de Dezembro de 2017
Mário João Canelas Brás
Jaime de Castro Pestana
Paulo de Brito Amaral