Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1119/21.0T8LLE-A.E1
Relator: JOSÉ MANUEL BARATA
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
SUCESSÃO MORTIS CAUSA
RESIDÊNCIA HABITUAL
Data do Acordão: 06/30/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I.- O Regulamento (UE) n.º 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4-07-2012, atribui, como regra geral, à lei da residência habitual do de cujus à data do óbito a competência para regular a sua sucessão.
II.- Mas o falecido pode escolher a lei da sua nacionalidade, mesmo que tenha lavrado testamento antes da entrada em vigor do Regulamento, nos termos do disposto no artigo 83.º/4.
III.- Se o de cujus escolheu a lei de Grenada como lei da nacionalidade a aplicar e, após a data da celebração do testamento, contraiu matrimónio, por aplicação do artigo 13.º da Lei de Testamentos, Capítulo 340 das Leis de Grenada, as disposições testamentárias são revogadas, incluindo a que escolheu a lei da nacionalidade para regular a sua sucessão.
IV.- O que implica o ressurgir da lei geral a que alude o artigo 21.º/1, do Regulamento (UE) 650/2012, sendo, por isso, competente para regular a sucessão a lei portuguesa, porque lei da residência habitual no momento do óbito.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1119/21.0T8LLE-A.E1

Acordam os Juízes da 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora


Recorrente: (…)

Recorridos: (…) e esposa, (…)e (…)
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No Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Cível de Loulé – Juiz 2, no âmbito do inventário por óbito de … (que também usava o nome de …), foi proferido o seguinte despacho:
(…) e esposa, (…)e (…) intentaram o presente processo de inventário por óbito de sua mãe … (que também usava o nome de …), falecida em 11.10.2020, no estado de casada com (…), com vista à partilha da herança por si deixada.
Indicaram para o cargo de cabeça de casal o cônjuge sobrevivo, (…) que, citado nos termos do disposto no artigo 1100.º, n.º 2, alínea b), do CPC, veio impugnar a legitimidade dos Requerentes.
Para tanto, alega, em suma, que a ora inventariada, em 30.11.2011, outorgou testamento no qual o instituiu herdeiro de todos os bens existentes à data da sua morte e que tal testamento foi feito à luz da sua lei pessoal, que o permite.
A inventariada tinha nacionalidade de Grenada e quando faleceu tinha a residência em Portugal.
Assim, tendo tal disposição testamentária sido feita antes de 17.08.2015, à luz da sua lei pessoal, Lei de Grenada, invoca o disposto no artigo 83.º, n.º 4, do Regulamento (UE) n.º 650/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho de 04/07/2012, e sustenta que a mesma escolheu a lei da nacionalidade para regular a sucessão.
Como tal, conclui que, tendo sido instituído único e universal herdeiro da inventariada, inexiste comunhão hereditária e os Requerentes carecem de legitimidade para intentar o inventário.
Juntou a Lei sucessória de Grenada, acompanhada da respetiva tradução.
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Os Requerentes apresentaram Resposta, sustentando, em suma, que o testamento em causa é inválido, com fundamento em várias ordens de razões que apresentam, e, ainda que não o fosse, de acordo com a lei da nacionalidade da inventariada foi revogado pelo casamento posterior da testadora.
Juntaram parecer jurídico.
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Por em causa apenas estar a apreciação de questões de direito, foi o Requerido, aqui impugnante, notificado para, querendo, exercer o contraditório relativamente à matéria de exceção invocada na Resposta (cfr. despacho de fls. 174), tendo-se remetido ao silêncio.
Cumpre apreciar.
Com relevo para a decisão há que considerar os seguintes factos que se encontram assentes por acordo e resultam dos documentos juntos aos autos (e não impugnados):
1) Por testamento lavrado no dia 30 de Novembro de 2011, no Cartório Notarial sito na Rua Cidade de Bolama, lote F, rés-do-chão esquerdo, em Faro, perante o notário (…), (…), divorciada, nacional de Grenada, declarou “Que revoga todos os seus testamentos feitos no estrangeiro e que esta disposição lhe é permitida pela lei pessoal:
- Que deixa a (…), divorciado, de nacionalidade britânica, residente com ela testadora, todos os seus bens móveis, mesmo que de natureza pessoal, e imóveis, que tenha em Portugal à data da sua morte, e todo o dinheiro que tenha em Portugal à data da sua morte, não depositado ou existente em qualquer conta aberta em nome da testadora em qualquer instituição bancária”.
2) (…) e (…) contraíram casamento entre si em 12 de dezembro de 2011.
3) (…) faleceu em 10 de novembro de 2020, no estado de casada com (…), com última residência habitual em Monte das (…), Sítio do (…), Almancil, concelho de Loulé.
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O Regulamento (UE) n.º 650/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho de 4/07/2014, publicado no Jornal Oficial da União Europeia de 27/07/2012, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos atos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu, entrou em vigor em 16.08.2012, é direta e imediatamente aplicável em todos os Estados-Membros da União Europeia, com exceção do Reino Unido, da Irlanda e da Dinamarca, beneficia de prioridade em relação às regras de fonte interna e rege as sucessões abertas a partir de 17 de Agosto de 2015, com salvaguarda transitória da escolha de lei feita pelo de cujus ou da validade formal e material de disposições por morte feitas antes dessa data.
Considerando que a diversidade de regras materiais e processuais dos seus Estados-Membros dificultava a vida dos herdeiros nos casos em que a sucessão tinha fatores de conexão com vários países bem como daqueles que queriam planear antecipadamente a sua sucessão, se composta por bens em mais do que um Estado ou tencionassem reformar-se e mudar de residência para outro país para aí viverem os últimos anos das suas vidas, sujeitando-os a insegurança jurídica, a União Europeia resolveu criar um quadro jurídico conflitual e adjetivo para estas matérias.
E, nos termos do artigo 4.º daquele Regulamento, são competentes para decidir do conjunto da sucessão os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em que o falecido tinha a sua residência habitual no momento do óbito.
Pelo que, nos presentes autos, não existem dúvidas quanto à competência dos tribunais portugueses, questão diferente, e que cumpre decidir, é o direito aplicável, uma vez que a autora da sucessão, em 30 de Novembro de 2011, outorgou testamento instituindo o ora impugnante como herdeiro de “todos os seus bens móveis, mesmo que de natureza pessoal, e imóveis, que tenha em Portugal à data da sua morte, e todo o dinheiro que tenha em Portugal à data da sua morte, não depositado ou existente em qualquer conta aberta em nome da testadora em qualquer instituição bancária”.
Refere o artigo 83.º do diploma em apreço “(…) 3. Sempre que o falecido tenha feito uma disposição por morte antes de 17 de agosto de 2015, essa disposição é admissível e válida quanto ao mérito e quanto à forma, se respeitar as condições previstas no Capítulo III ou se for admissível e válida quanto ao mérito e à forma em aplicação das regras do direito internacional privado em vigor no momento em que a escolha foi feita, no Estado em que o falecido tinha a sua residência habitual ou em qualquer dos Estados de que era nacional ou no Estado-Membro da autoridade que trata da sucessão.
4. Sempre que o falecido tenha feito uma disposição por morte antes de 17 de agosto de 2015 nos termos da lei que o falecido tivesse podido escolher por força do presente regulamento, considera-se que essa lei foi escolhida como lei aplicável à sucessão”.
Sendo que, de acordo com o Regulamento “Uma pessoa pode escolher como lei para regular toda a sua sucessão a lei do Estado de que é nacional no momento em que faz a escolha ou no momento do óbito” (artigo 22.º, n.º 1).
No caso dos autos, o testamento foi outorgado em data anterior à aplicação do citado Regulamento, tendo ficado consignado que era feito ao abrigo da lei pessoal.
A lei pessoal de qualquer indivíduo é a lei da sua nacionalidade, pelo que, sendo a autora da sucessão nacional de Grenada é esta a sua lei pessoal.
O impugnante juntou aos autos o conteúdo das normas do direito de Grenada que regem a matéria das sucessões em causa nos autos – cfr. fls. 110 a 154 – , que solicitou e lhe foi remetido pelo Ministério dos Assuntos Jurídicos daquele país, e que não foi colocado em causa pelos Requerentes.
Assim, considerando as questões suscitadas, importará, antes de mais, apreciar da existência do testamento à data em que foi aberta a sucessão, tendo em consideração a lei pessoal da autora à luz do qual o mesmo foi celebrado e, só depois, sendo o caso, apreciar a sua validade.
Conforme se mostra assente, a autora da sucessão outorgou testamento a favor do Requerido em 30.11.2011, à data ambos divorciados. E, em 12.12.2011, os mesmos contraíram casamento entre si.
Nos termos do artigo 13.º do Capítulo 340 da Lei de Testamentos de Grenada, todos os testamentos são revogados, por força da lei, pelo casamento posterior do testador.
Pelo que, o testamento em apreço dos autos foi revogado com aquele casamento, em 12.12.2011.
E, uma vez que o testamento foi revogado, fica prejudicada e mostra-se desnecessária a apreciação das questões suscitadas quanto à sua validade.
Conclui-se, assim, ante o exposto, que a autora da sucessão faleceu sem deixar disposições por morte e, tendo a sua residência habitual no nosso país, nos termos do artigo 21.º do citado Regulamento, a lei aplicável ao conjunto da sucessão é a lei portuguesa.
Como tal, os Requerentes, filhos da autora da sucessão, têm legitimidade para requerer a que se proceda a inventário (artigo 2133.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil e 1085.º, n.º 1, alínea a), do CPC), pelo que, julgo improcedente a impugnação apresentada e determino o prosseguimento dos presentes autos, devendo o Cabeça de Casal dar cumprimento ao disposto no artigo 1102.º do Código de Processo Civil.
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Custas a cargo do impugnante (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
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Loulé, 7 de abril de 2022.

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Não se conformando com a decisão, (…) apelou, formulando as seguintes conclusões que delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, artigos 608.º/2, 609.º, 635.º/4, 639.º e 663.º/2, do CPC:

1 - O artigo 24.º do Regulamento prevê que a validade material do ato jurídico em questão são regidas pela lei que “seria aplicável à sucessão do autor da disposição e se este tivesse falecido no dia em que fez da disposição”;

2 - E resulta da fundamentação da douta decisão do Tribunal a quo sobre a validade do testamento que se aplica a lei pessoal escolhida pela inventariada, ou seja, a Lei de Grenada.

3 - Por sua vez, dispõe a Lei de Grenada no seu 13.º do Capítulo 340 da Lei de Testamentos, que todos os testamentos são revogados, por força da lei, pelo casamento posterior do testador.

4 - Apoiado na Lei de Grenada, a lei pessoal da inventariada, decidiu o Tribunal a quo que o casamento de 12 de dezembro de 2011 revogou o testamento de 30 de novembro de 2011;

5 - Revogado ope legis o testamento, decidiu o Tribunal a quo que inexistia escolha da lei pessoal e mandou aplicar à sucessão as regras da lei portuguesa.

6 - Todavia, aquela disposição do 13.º do Capítulo 340 da Lei de Testamentos de Grenada reporta-se as atribuições por morte dos bens do testador anteriores ao casamento e é omissa quanto a outras disposições que não tenham eficácia patrimonial, que não confiram bens, como por exemplo, e ao que ao presente recurso interessa, uma disposição que verse sobre a lei a aplicar à sua sucessão.

7 - Claramente o Regulamento, para o ato de alterar ou revogar uma escolha de lei, manda atender à lei elegida pelo falecido e esta – no caso em apreço, a lei de Grenada – é omissa quanto a estas disposições de conteúdo não patrimonial.

8 - Ao ter decidido, como decidiu, indicando logo a Lei portuguesa com a competente para regular toda a sucessão da inventariada incorreu no vicio da segunda parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, conhecendo do que não podia tomar conhecimento, sendo, pois, nula a decisão proferida a 7.04.2022.

Quando assim não se entenda,

9 - Segundo o disposto nos artigos 22.º, n.º 1 e 2, 83.º, n.º 3 e 4, do artigo 83.º do Regulamento (UE) n.º 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 4/07/2014, “Uma pessoa pode escolher como lei para regular toda a sua sucessão a lei do Estado de que é nacional no momento em que faz a escolha ou no momento do óbito”;

10 - No caso dos autos, e como resulta da fundamentação da decisão, o testamento foi outorgado em data anterior à aplicação do citado Regulamento, tendo ficado consignado que era feito ao abrigo da lei pessoal e a lei pessoal de qualquer indivíduo é a lei da sua nacionalidade, pelo que, sendo a autora da sucessão nacional de Grenada é esta a sua lei pessoal.

11 - Segundo as normas do direito de Grenada que regem a matéria das sucessões em causa nos autos, nomeadamente segundo o 13.º do Capítulo 340 da Lei de Testamentos de Grenada, todos os testamentos são revogados, por força da lei, pelo casamento posterior do testador.

12 - Concluiu o tribunal a quo que, uma vez revogado o testamento que a inventariada não elegeu a lei aplicável à sua sucessão.

13 - Com respeito por entendimento distinto, ente o recorrente que o Tribunal a quo fez incorreta interpretação e aplicação das normas que regem o Regulamento da UE em matéria sucessória;

14 - Aceita que a disposição testamentária relacionada com a atribuição, por morte, dos bens da testadora seja revogada pelas normas do direito de Grenada que revogam os testamentos com fundamento em casamento posterior, mas não aceita que não possam subsistir, com ignorou o tribunal a quo, outras estipulações que não têm eficácia patrimonial.

15 - Nomeadamente, “a escolha da lei para regular toda a sua sucessão” como resulta do artigo 22.º do Regulamento da UE e dispõe o n.º 2 que “a escolha deve ser feita expressamente numa declaração que revista a forma de uma disposição por morte ou resultar dos termos dessa disposição”.

16 - E não existem duvidas de que a declaração da autora da sucessão para a escolha da lei aplicável para regular toda a sucessão cumpre os requisitos do citado n.º 2, nomeadamente,

- Reveste a forma de uma disposição por morte, trata-se de um testamento publico lavrado em Portugal, pelo notário no seu livro de notas, requisito de forma imposto pelo artigo 2005.º do Código Civil, 7.º, n.º 1, alínea a) e 140.º do Código Notariado e goza de fé pública, através do qual

- Expressamente se socorre da sua “lei pessoal”.

17 - Como muito bem fundamenta o tribunal a quo, a inventariada fez consignar no testamento “que era feito ao abrigo da lei pessoal. A lei pessoal de qualquer individuo é a lei da sua nacionalidade, pelo que sendo a autora da sucessão nacional de Grenada é esta a sua lei pessoal”.

18 - Só que o tribunal a quo, apesar do mencionado raciocínio, concluiu, sendo o testamento revogado pelo casamento posterior, que a escolha da lei para regular a sucessão feita pela autora da sucessão estaria também prejudicada.

19 - Ora, esta conclusão viola o disposto nos artigos 22.º e n.º 2 do 83.º, ambos do Regulamento da UE, que mandam atender à declaração expressa pela autora da sucessão e esta elegeu a sua lei pessoal, a lei da sua nacionalidade, devendo aproveitar essa declaração que não se encontra prejudicada pela norma da Lei de Grenada que tem apenas por objeto as atribuições de bens por morte anteriores ao casamento.

20 - Isso mesmo decorre do considerando (39) do regulamento: A escolha da lei aplicável deverá ser feita expressamente numa declaração sob a forma de disposição por morte ou resultar dos termos dessa disposição. Poderá considerar-se que a escolha de lei resulta de uma disposição por morte, por exemplo, se o falecido tiver feito referência, na sua disposição, a normas especificas da lei do estado da sua nacionalidade ou se, de outra forma, tiver mencionado essa lei.

Termos em que deve ser revogada a decisão proferida pelo tribunal a quo no segmento em que elege a lei portuguesa a aplicável ao conjunto da sucessão, remetidas as partes para os meios comuns e a instância suspensa ou, quando assim não entenda, em sua substituição, que fique a constar ser a Lei de Grenada a competente para regular a sucessão da inventariada.

Assim se fará Justiça.


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Os recorridos contra-alegaram, concluindo:

A súmula da posição dos Recorridos é, pois, a seguinte:

a. O recurso incide sobre questões novas, que não foram suscitadas junto do tribunal a quo, motivo pelo qual não podem ser apreciadas nesta sede.

b. A lei pessoal da testadora, mãe dos Recorridos, é a lei portuguesa, que é a lei do seu domicílio, em resultado do reenvio da lei de Grenada, aceite pelo artigo 34.º do Regulamento e artigo 18.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil.

c. O testamento não contém nenhuma escolha de lei, sendo omisso quanto a isso.

d. A lei de Grenada não excetua da revogação do testamento anterior ao casamento qualquer eventual cláusula de escolha de lei que dele conste, regra que o Recorrente invoca, mas cuja existência não demonstra, nem resulta dos autos.

e. Mesmo que tal regra existisse, no caso concreto, não havendo no testamento nenhuma disposição de escolha de lei, a mesma não teria aplicação.

f. Em qualquer caso, a lei de Grenada não reconhece a legítima dos filhos, ofendendo os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, pelo que nunca poderia ser aplicada, nos termos do artigo 35.º do Regulamento [Cfr. ainda os Considerandos 38 e 50].

g. A lei aplicável ao caso é, pois, a lei portuguesa, como foi decidido, e que é, aliás, a regra geral do artigo 21.º do Regulamento, e a que melhor assegura a justa composição dos interesses de todas as partes, e a efetividade da intervenção do tribunal português.

30. Requer-se, pois, a V. Exas. o indeferimento do recurso, mantendo-se a douta decisão de primeira instância.


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Foram dispensados os vistos.

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As questões que importa decidir são:
1.- A nulidade por excesso de pronúncia.
2.- A interpretação das declarações testamentárias à luz do Regulamento (EU) n.º 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4-07-2012.
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A matéria de facto a considerar é a que consta do Relatório Inicial e a fixada na 1ª instância, que é a seguinte:
1) Por testamento lavrado no dia 30 de Novembro de 2011, no Cartório Notarial sito na Rua Cidade de Bolama, lote F, rés-do-chão esquerdo, em Faro, perante o notário (…), (…), divorciada, nacional de Grenada, declarou:
“Que faz o seu testamento pela forma seguinte:
Que revoga todos os seus testamentos feitos no estrangeiro e que esta disposição lhe é permitida pela lei pessoal:
- Que deixa a (…), divorciado, de nacionalidade britânica, residente com ela testadora, todos os seus bens móveis, mesmo que de natureza pessoal, e imóveis, que tenha em Portugal à data da sua morte, e todo o dinheiro que tenha em Portugal à data da sua morte, não depositado ou existente em qualquer conta aberta em nome da testadora em qualquer instituição bancária.
- Que, caso o referido (…) não lhe sobreviva (também portanto em caso de comoriência), ou por qualquer outra causa não possa ou não queira aceitar, deixa os deferidos bens ao fundo denominado “(…)” constituído na HLD (…), com sede em (…) House, 4 (…)’s Passage, em Gibraltar.”.
2) (…) e (…) contraíram casamento entre si em 12 de dezembro de 2011.
3) (…) faleceu em 10 de novembro de 2020, no estado de casada com (…), com última residência habitual em Monte das (…), Sítio do (…), Almancil, concelho de Loulé.
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Conhecendo.
1.- A nulidade por excesso de pronúncia.
O recorrente alega que o tribunal a quo incorreu no vício a que alude o artigo 615.º/1, d), 2.ª parte, do CPC, ao ter conhecido de questão de que não podia tomar conhecimento, porque concluiu ter a lei de Grenada revogado o testamento em causa nos autos, em virtude de a testadora ter contraído matrimónio com o recorrente após a feitura desse testamento, como estipula o artigo 13.º do Capítulo 340 da Lei de Testamentos de Grenada.
Acrescenta que a lei de Grenada apenas regula as atribuições por morte dos bens do testador anteriores ao casamento, mas é omissa quanto a outras disposições que não tenham eficácia patrimonial, como a que dispõe sobre a lei aplicável à sucessão, ou seja, a disposição que está em causa nos autos.
Assim sendo, uma vez que estamos perante uma questão com relevância para a definição de direitos de interessados diretos na partilha, deveriam os interessados ser remetidos para os meios comuns, ao abrigo do disposto no artigo 1092.º/1, a), do CPC.
Vejamos.
A questão que interessa dirimir prende-se com a aplicação de normas de Direito Internacional Privado, Direito Testamentário de Grenada, o Regulamento n.º 650/2021, de 04-07 e o direito sucessório português.
Os instrumentos legislativos internacionais encontram-se nos autos devidamente traduzidos.
Por outro lado, ao contrário do que defende o recorrente, não está apenas em causa a interpretação da cláusula testamentária em que a testadora escolheu a sua lei pessoal (para cuja regulação, na sua perspetiva, a lei de Grenada é omissa), mas sim a totalidade das cláusulas testamentárias e, estas são de carácter patrimonial e, acerca destas, a lei de Grenada dispõe minuciosamente.
De onde se conclui que o tribunal a quo dispunha de todos os instrumentos necessários para proferir uma decisão, sendo que a lei a aplicar ao caso dos autos depende da vontade da testadora e das leis que a sua disposição por morte colocou em confronto, havendo apenas que interpretar e aplicar o direito, prerrogativa exclusiva do tribunal.
O que equivale por dizer que bem andou o tribunal a quo ao ter decidido a questão que lhe foi colocada, sem remeter os interessados para os meios comuns, o que implica a improcedência das conclusões nesta parte.
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2.- A interpretação do testamento, à luz do Regulamento (EU) n.º 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4-07-2012, da Lei de Testamentos de Grenada e do Direito Sucessório Português.
A questão a dirimir resume-se nestes termos:
- (…) tinha nacionalidade de Grenada;
- Residia habitualmente em Portugal;
- Em 30 de novembro de 2011, lavrou testamento, em Faro, Portugal;
- Em 12 de dezembro de 2011 contraiu matrimónio com (…), em Portugal;
- Faleceu em 10 de novembro de 2020, na sua residência habitual, em Portugal;
No testamento referido dispôs o seguinte:
“Que revoga todos os seus testamentos feitos no estrangeiro e que esta disposição lhe é permitida pela lei pessoal”.
Na data do óbito já se encontrava em vigor o Regulamento (UE) n.º 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos atos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu.
No seu artigo 21.º dispõe esta lei da União Europeia que: Salvo disposição em contrário do presente regulamento, a lei aplicável ao conjunto da sucessão é a lei do Estado onde o falecido tinha a residência habitual no momento do óbito.
Mas, o artigo 22.º dispõe: 1. Uma pessoa pode escolher como lei para regular toda a sua sucessão a lei do Estado de que é nacional no momento em que faz a escolha ou no momento do óbito.
Ora, apesar de residir habitualmente em Portugal, a falecida escolheu para regular a sua sucessão testamentária a lei da sua nacionalidade, ou seja, Grenada.
Com efeito, se o de cujus escolheu para revogar os testamentos feitos anteriormente a lei da sua nacionalidade, é evidente que também nesse ato escolheu para regular a sua sucessão testamentária a lei da sua nacionalidade, como manifestação da professio iuris, ou seja, da autonomia da vontade no direito internacional privado.
Acompanhamos neste entendimento Helena Mota in A Autonomia Conflitual e o Reenvio no Âmbito do Regulamento (UE) n.º 650/2012 de PE e do Conselho, FDUP, janeiro de 2014, disponível on-line, onde realça que “(…) o legislador comunitário, mais do que tentar restringir a liberdade contratual entendeu que a professio iuris serve (ainda) nesta sede como corretor dessa putativa limitação ao permitir-lhe que, no momento em que faz a disposição por morte, escolha a própria lex sucessionis; será até normal que o faça sabendo que a escolha desta lei, nos termos do artigo 22.º, n.º 2, deve revestir a forma de uma disposição por morte ou resultar, tacitamente, dos termos desta disposição. Não será crível que o de cujus ao fazer, por hipótese um testamento e tendo a preocupação de escolher a lei aplicável à sua validade material também não o acoste à lei sucessória que também pode escolher nesse mesmo momento”.
É o caso dos autos.
Uma interpretação que concluísse pelo afastamento da lei da nacionalidade a todas as cláusulas do testamento, apenas se poderia estribar numa declaração testamentária inequívoca de afastamento dessa lei.
Ora, no caso presente, tal declaração não foi contemplada, o que se consagrou foi o contrário.
Logo, ao testamento é aplicável a lei de Grenada, tendo a falecida afastado a regra geral prevista no artigo 21.º do Regulamento, o que este veio a permitir pelo artigo 83.º/4.
Aqui chegados, importa agora aplicar a lei de Grenada.
Não contestam os interessados que os tribunais portugueses são os competentes para decidir a relação material controvertida (artigo 4.º do Regulamento) e que a lei de Grenada permite a revogação dos testamentos anteriores, por nova declaração testamentária, o que implica a validade da referida declaração.
Bem como que o Regulamento, no citado artigo 83.º/4, permite a escolha da lei da nacionalidade para regular a sucessão, quanto aos testamentos efetuados antes de 17-08-2015, data da sua entrada em vigor.
Também se mostra incontestado que a lei de Grenada mandar revogar o testamento que seja lavrado antes do casamento (artigo 13.º da Lei de Testamentos, Capítulo 340 das Leis de Grenada), pelo que o casamento celebrado entre a falecida e o interessado (…), em 10-11-2020, teve o efeito de revogar o testamento celebrado em 12-12-2011.
De onde se conclui que (…) faleceu sem testamento, pelo que é ineficaz a sua declaração de vontade de que escolhia a lei pessoal para regular a sua sucessão, o que tem como consequência o reenvio, pela Lei de Grenada, da competência à lei do país da sua residência habitual para regular a sua sucessão por morte.
Com efeito, falecendo sem disposição de última vontade, a lei aplicável à sucessão é a portuguesa, onde residia habitualmente à data do óbito, por ressurgimento da regra geral do artigo 21.º/1, do Regulamento 650/2012.
Porque seguiu o mesmo raciocínio lógico-dedutivo, à mesma conclusão chegou o parecer que o recorrente juntou aos autos, onde se analisa o caso em apreço.
De onde se conclui que não merece censura a decisão do tribunal a quo, pelo que deve ser mantida, com o que improcede a apelação na totalidade.
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Sumário: (…)

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DECISÃO.

Em face do exposto, a 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora julga a apelação improcedente e confirma a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente – artigo 527.º do CPC.
Notifique.

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Évora, 30-06-2022

José Manuel Barata (relator)

Rui Machado e Moura

Emília Ramos Costa