Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
332/14.0TBCTX-B.E1
Relator: MÁRIO COELHO
Descritores: INIBIÇÃO DO PODER PATERNAL
REPRESENTAÇÃO EM JUÍZO
CURADOR ESPECIAL OU PROVISÓRIO
Data do Acordão: 11/19/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. A inibição das responsabilidades parentais só pode ser decretada como medida extrema, de última “ratio”, quando os progenitores se comportarem de forma grave e culposa, assim colocando em risco os interesses do menor.
2. No inventário para partilha dos bens do casal, na sequência de divórcio, falecendo na sua pendência um dos ex-cônjuges, o processo prosseguirá com os respectivos herdeiros, nos termos do artigo 1785.º, n.º 3, do Código Civil.
3. Sendo esses herdeiros menores, agora representados pelo ex-cônjuge e progenitor sobrevivo, o conflito de interesses será solucionado pelo recurso ao regime da curadoria especial, como previsto no artigo 1881.º, n.º 2, do Código Civil e no novo artigo 1086.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil, aditado pela Lei 117/2019.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Sumário:
(…)

Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo de Família e Menores de Santarém, (…) requereu a inibição parcial das responsabilidades parentais de (…), relativamente aos menores (…) e (…), filhos do Requerido e de (…).
Alegou que é tia materna dos menores e que a sua irmã – e mãe dos menores – faleceu a 04.11.2019, no estado de divorciada do Requerido, sem testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, pelo que o Requerido passou a exercer as responsabilidades parentais relativamente aos menores. Sucede que o Requerido e a (…), divorciados por sentença de 18.05.2015, não estavam de acordo quanto à partilha dos bens comuns do casal, tendo esta interposto inventário para esse efeito, que corre termos em cartório notarial. Perante este litígio, entende a Requerente que o Requerido não reúne condições para cumprir os deveres relativamente à representação e administração dos bens dos menores. Pede que seja ela, a Requerente, nomeada como responsável pela administração dos bens dos menores.

O requerimento inicial foi objecto de despacho de indeferimento liminar, pelo que a Requerente recorre e conclui:
1. Pode o tribunal decretar a inibição do exercício das responsabilidades parentais quando:

a) – Qualquer um dos pais infrinja culposamente os deveres para com os filhos, com grave prejuízo destes, ou,

b) – Quando, por inexperiência, enfermidade, ausência, ou,

c) – Outras razões, não se mostrem em condições de cumprir aqueles deveres.

2. O Tribunal a quo não entendeu o alcance do pedido formulado pela Recorrente, circunscrevendo-se às situações em que a inibição das responsabilidades parentais pode ser decretada quando se perfilar uma situação de violação grave e culposa dos deveres enunciados na sentença ora recorrenda, no entanto, essa é apenas uma das situações que a lei prevê, que a verificar-se, seja decretada a inibição do exercício das responsabilidades parentais.

3. In casu, a Recorrente na qualidade de tia materna dos menores (…) e (…), e após o falecimento da mãe destes, (…), requereu que fosse decretada a inibição do exercício das responsabilidades parentais do pai dos menores, quanto à administração dos bens dos mesmos, nos termos do nº 1 do art.º 1915º do Código Civil. Pois,

4. (…) interpôs processo de inventário contra o aqui pai dos menores, para partilha dos bens comuns do casal, entretanto dissolvido por divórcio, no entanto, em virtude do seu falecimento, a mesma será representada no processo pelos respectivos herdeiros, que ocupam a posição processual da falecida, nos termos do nº 3, do art.º 1785º, do Código civil.

5. Pelo que, nos termos do artigo 16.º do Código de Processo Civil, competindo o exercício das responsabilidades parentais ao pai dos aqui menores (…) e (…), será ele a suprir a incapacidade destes ao representá-los no referido processo de inventário, onde assumirá a dupla qualidade de Autor e Réu, num claro conflito de interesses na administração dos bens dos menores e dos seus próprios interesses patrimoniais, o qual impede que esteja em condições de cumprir os deveres de boa administração dos bens dos filhos menores.

6. Por todo o exposto, impõe-se concluir que a sentença, objecto do presente recurso, faz uma errada interpretação e aplicação da norma constante do nº 1, do artigo 1915º do Código Civil.

Citado para os termos da causa, o Requerido sustenta a manutenção do julgado.
A Digna Magistrada do Ministério Público, nas suas alegações, conclui de modo idêntico.
Dispensados vistos, cumpre-nos decidir.

Consigna-se que se procedeu à consulta de processo de inventário notarial, através do respectivo Portal[1], porquanto os respectivos dados de acesso estão disponíveis em documento anexo à petição inicial.
Dessa consulta e dos documentos anexos à petição inicial, resulta apurado o seguinte:
1. Por sentença de 18.05.2015, foi convolada a acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge em divórcio por mútuo consentimento, decretado o divórcio de (…) e de (…), e homologados os acordos relativos à casa de morada de família e não precisão de alimentos entre cônjuges.
2. Foi igualmente homologado o acordo relativo à residência dos menores (…) e (…) com a mãe e o regime de visitas.
3. Como inexistia acordo relativamente aos alimentos devidos aos menores e comparticipação nas respectivas despesas, a sentença fixou o respectivo regime.
4. Interposto recurso pelo Requerido, por Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 17.12.2015 foi mantida a pensão de alimentos devida pelo pai, mas alterado o regime de comparticipação nas despesas.
5. Em 11.12.2017, a (…) requereu em cartório notarial a realização de inventário para partilha dos bens comuns do casal.
6. O Requerido foi nomeado cabeça-de-casal e em 06.03.2018 apresentou a relação de bens;
7. Em 26.03.2018 a (…) reclamou da relação de bens.
8. O inventário notarial esteve sem movimento até 14.02.2020, data em que foi apresentado requerimento, informando que a (…) havia falecido no dia 04.11.2019.
9. Mais foi junta cópia do procedimento simplificado de habilitação de herdeiros, mencionando que esta havia falecido sem testamento ou outra disposição de última vontade, tendo deixado como únicos herdeiros os menores (…) e (…), ambos nascidos a 16.02.2010.
10. Em 27.08.2020, o notário proferiu despacho no qual, ponderando que eram interessados directos menores de idade, ordenou a remessa do inventário ao Juízo de Família e de Menores de Santarém.

Aplicando o Direito.
Da representação dos menores em caso de conflito de interesses com o progenitor sobrevivo
A decisão recorrida entendeu que “apenas em situações de extrema gravidade e em que se verifique dolo do progenitor intervêm os mecanismos de limitação e, no limite, de inibição do exercício do complexo dos poderes/deveres que constituem as responsabilidades parentais por lei atribuídas aos progenitores”, existindo mecanismos alternativos de resolução de eventual conflito de interesses entre o progenitor sobrevivo e os seus filhos.
Porém, a Recorrente entende que o conflito de interesses apenas poderá ser solucionado através da inibição parcial de responsabilidades parentais, nos termos do art. 1915.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil.
De acordo com esta norma, qualquer dos pais poderá ser inibido do exercício de responsabilidades parentais caso infrinja culposamente os deveres para com os filhos, com grave prejuízo destes, ou quando, por inexperiência, enfermidade, ausência ou outras razões, se não mostre em condições de cumprir aqueles deveres.
Comentando norma idêntica contida no art. 52.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (Lei 141/2015, de 8 de Setembro), Tomé Ramião[2] sustenta o seguinte:
“Sendo as responsabilidades parentais um poder funcional, o seu exercício não é livre, mas vinculado e controlado, pelo que em certas situações graves e no interesse e protecção da criança, poderá ser limitado ou mesmo inibir-se os pais do seu exercício. (...)
A privação do exercício das responsabilidades parentais gera uma carga negativa ou ‘infamante’, pelo que os tribunais, em regra, só a aplicarão em casos de muita gravidade, pois nem sempre a inibição se revela como a medida mais adequada à situação, que poderá reclamar outras reacções menos radicais. (...)
A valoração da incapacidade dos progenitores para exercerem as responsabilidades parentais assenta basicamente em dois factores: por um lado, na culpa imputável aos progenitores pela violação dos deveres para com os filhos e, por outro, na averiguação da gravidade do prejuízo para estes resultantes dessa violação.
Por isso, são pressupostos da inibição:
- A violação dos deveres para com os filhos;
- Que essa violação seja culposa;
- Que dela resultem graves prejuízos para os filhos.
Importa, por isso, averiguar da existência de culpa (em sentido lato), ou seja, se a violação dos deveres lhes é imutável, em termos de censura ético-jurídica, bem como da gravidade do prejuízo resultante dessa violação.
E, independentemente de culpa, quando os pais, por inexperiência, enfermidade, ausência ou outras razões, se não mostrem em condições de cumprir aqueles deveres – parte final do preceito.”
Também Pais do Amaral[3] defende que a inibição é subsidiária em relação à limitação das responsabilidades parentais, estando aquela reservada para casos de maior gravidade, “pois passar um atestado, via sentença, ao filho criança de que o pai não presta é contraproducente em relação à auto-estima deste e à possibilidade de o mesmo recuperar, com relativa facilidade, a imagem parental do progenitor.”
A jurisprudência vem igualmente afirmando que, competindo aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, e administrar os seus bens – artigo 1878.º, n.º 1, do Código Civil – devendo a sua actuação pautar-se pelo critério fundamental do interesse do filho menor, a inibição das responsabilidades parentais só pode ser decretada como medida extrema, de última “ratio”, quando os progenitores se comportarem de forma grave e culposa, assim colocando em risco os interesses do menor.[4]
Assente que a medida pretendida pela Recorrente apenas pode ser decretada em situações extremas e se inexistirem outras que melhor se adeqúem à protecção dos interesses dos filhos, cabe constatar que não está descrito nos autos qualquer comportamento culposo por parte do progenitor sobrevivo, ou outra actuação grave colocando em risco os interesses dos menores.
Na verdade, a situação dos autos deve ser enquadrada noutra perspectiva, da devida protecção dos menores em situação de eventual conflito de interesses com o seu progenitor.
Note-se que o inventário para partilha dos bens do casal, na sequência de divórcio, foi intentado pela mãe dos menores, e a circunstância desta ter falecido na pendência daquele processo, não obsta ao seu prosseguimento pelos respectivos herdeiros, nos termos do artigo 1785.º, n.º 3, do Código Civil, pois esta norma permite que um dos efeitos patrimoniais a ser prosseguidos pelos herdeiros do ex-cônjuge falecido consista no direito de partilha dos bens comuns.
Tivesse a cônjuge mulher falecido na pendência da acção de divórcio, ou vindo a falecer já na pendência do inventário – como foi o caso – a solução seria a mesma: o processo prossegue com os seus herdeiros, para efeitos meramente patrimoniais.[5]
Devendo o inventário para partilha dos bens do casal, intentado pela mãe dos menores, prosseguir os seus termos, importa recordar que o regime jurídico do processo de inventário foi alterado pela Lei 117/2019, de 13 de Setembro, que entrou em vigor no passado dia 1 de Janeiro de 2020, resultando dos respectivos artigos 11.º, n.º 1 e 12.º, n.º 1, que o novo regime aplica-se aos processos que, nessa data, estejam pendentes nos cartórios notariais mas sejam remetidos ao tribunal, nomeadamente nos casos em que existam interessados directos menores, maiores acompanhados ou ausentes.
Sendo interessados directos no inventário intentado pela (…), os seus filhos menores (…) e (…), em representação da sua falecida mãe, o notário ordenou a remessa dos autos a juízo, em cumprimento daquelas disposições legais.
Mas correndo agora o inventário perante o Juízo de Família e de Menores de Santarém, será nesse processo que se tomarão as providências adequadas à protecção dos interesses patrimoniais dos menores em conflito de interesses com o progenitor sobrevivo.
Para o efeito, o artigo 1881.º, n.º 2, do Código Civil prevê um regime de curadoria especial, se houver conflito de interesses cuja resolução dependa de autoridade pública, entre qualquer dos pais e o filho sujeito às responsabilidades parentais, enquanto o novo art. 1086.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil – aditado pela Lei 117/2019 – estipula que são representados por curador especial nomeado pelo tribunal “os menores, os maiores acompanhados e os ausentes, quando os seus representantes legais concorram com eles à herança ou a esta concorram vários incapazes representados pelo mesmo representante.”
Concluindo, não apenas os autos não permitem identificar qualquer comportamento culposo por parte do progenitor sobrevivo, como existem efectivamente outros mecanismos legais adequados à adequada representação dos menores em conflito de interesses com esse progenitor, pelo que bem procedeu a decisão recorrida ao indeferir liminarmente a pretensão da Recorrente.

Decisão.
Destarte, nega-se provimento ao recurso.
Custas pela Recorrente.
Évora, 19 de Novembro de 2020
Mário Branco Coelho (relator)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões


__________________________________________________
[1] Consultável em www.inventarios.pt.
[2] In Regime Geral do Processo Tutelar Cível, Anotado e Comentado, Quid Juris, 2.ª ed., Junho de 2017, págs. 221-222.
[3] In Direito da Família e das Sucessões, Almedina, 2.ª ed., 2015, págs. 242/243
[4] Neste sentido, os Acórdãos da Relação de Coimbra de 29.04.2014 (Proc. 241/10.2TMCBR.C1) – relatado pela Exm.ª 2.ª Adjunta – e de 17.05.2016 (Proc. 3001/09.0TBFIG-B.C1), e da Relação do Porto de 24.09.2020 (Proc. 2747/06.9TQPRT-C.P1), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[5] Neste sentido, cfr. Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais, vol. III, Almedina, 4.ª ed., 1991, págs. 360/362. Na jurisprudência, vide os Acórdãos da Relação de Coimbra de 26.05.1983 (BMJ 329-637), da Relação do Porto de 11.04.2005 (Proc. 0550909), da Relação de Lisboa de 11.05.2009 (Proc. 4631/04.1TBVFX-B.L1-1), da Relação de Guimarães de 26.06.2012 (Proc. 1533/09.9TBFLG-C.G1), e da Relação do Porto de 10.03.2014 (Proc. 3434/12.4TBPRD.P1), publicados (com ressalva do primeiro) em www.dgsi.pt.