Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | JOSÉ ANTÓNIO MOITA | ||
Descritores: | INTERDIÇÃO POR ANOMALIA PSÍQUICA AUDIÊNCIA DO REQUERIDO NULIDADE | ||
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Data do Acordão: | 11/23/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | 1-Decorre inequivocamente do disposto nos artigos 139.º, n.º 1, do Código Civil e 897.º, n.º 2, do Código de Processo Civil ser obrigatória em fase instrutória, como tal previamente à prolação da decisão final, a realização da diligência de audição pessoal e directa do beneficiário num processo especial de acompanhamento de maior; 2-A omissão ou preterição de tal diligência de audição do beneficiário, mormente em situações em que o estado, ou condição de saúde, do beneficiário o permite, é passível de integrar a nulidade prevista no artigo 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que tem como efeito necessário a anulação da sentença que tenha sido proferida sobre a matéria do acompanhamento, por tal omissão influir no exame e decisão da causa. (Sumário do Relator) | ||
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Decisão Texto Integral: | Apelação n.º 1618/22.6T8BJA.E1 Tribunal Judicial da Comarca de Beja-Juízo Local Cível de Beja-Juiz 2 Apelante: Ministério Público Apelado: … (Beneficiário) … (Acompanhante) *** Sumário do Acórdão (da exclusiva responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC) (…) *** Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora no seguinte: I – RELATÓRIO O Ministério Publico instaurou, nos termos do disposto nos artigos 138.º, 141.º e seguintes do Código Civil e artigo 891.º e seguintes do Código de Processo Civil a presente ação especial de acompanhamento de maior relativamente a (…), nascido a 16.01.1940, filho de (…) e de (…), natural de (…), Mértola, portador do BI n.º (…), residente em (…), caixa postal (…), (…), Mértola, pedindo que se decrete o acompanhamento do identificado Requerido com aplicação, nos termos do disposto no artigo 145.º, n.º 2, alínea b), do Código Civil, da medida de representação geral com dispensa da constituição do Conselho de Família, indicando para o exercício das funções de acompanhante (…), residente em (…), caixa postal (…), (…), Mértola. O Digno Requerente alegou, em apertada síntese, que (…) sofreu um acidente vascular cerebral e que em função de tal se encontra incapaz de reger a sua pessoa e bens sem apoio permanente de terceiros. Citado, o Requerido não contestou. Após, o Tribunal a quo determinou a realização de perícia à pessoa de (…), ao abrigo do disposto nos artigos 897.º e 899.º, ambos do Código de Processo Civil, que foi endereçada ao Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P.. A dita perícia foi realizada e enviado aos autos o respectivo relatório pericial no dia 20/07/2023. Em 10/08/2023 foi proferido despacho no Tribunal a quo com o seguinte teor: “[…] iii) Marcação de audição: Para realização da audição do Requerido, nos termos do artigo 897.º, n.º 2, do C.P.C., e da pessoa designada como Acompanhante, designa-se o próximo dia 11 de Setembro de 2023, às 10h30. Caso o Requerido não tenha condições para se deslocar o Tribunal, deverá a Ilustre Defensora e/ou a pessoa indicada como Acompanhante informar o Tribunal antecipadamente, de forma a puderem ser tomadas alternativas para a sua audição”. A referida data foi alterada, por despacho prolatado em 11/08/2023, para o dia 12/09/2023, pelas 10h30m. A ilustre defensora oficiosa do beneficiário (…) interveio nos autos em 28/08/2023 requerendo o seguinte: “(…), defensora oficiosa de (…), beneficiário nos autos supra referenciados e aí melhor identificada tendo sido notificada de que foi designado o dia 12-09-2023, às 10:30 horas, para audição do beneficiário, vem aos autos requerer a realização da diligência através de meios de comunicação à distância – webex, indicando desde já o seu e-mail: […]” A 06/09/2023 foi proferida sentença nos autos, a qual contem o seguinte dispositivo: “III. DECISÃO Conforme os critérios e fundamentos normativos supra referidos, julga-se a acção parcialmente procedente e, em consequência: Decreta-se que o Beneficiário (…), nascido a 16.01.1940, filho de (…) e de (…), natural de (…), Mértola, portador do BI n.º (…), residente em (…), caixa postal (…), (…), Mértola se encontra sujeito ao regime legal do maior acompanhado, nomeando-se como acompanhante (…), residente em (…), caixa postal (…), (…), Mértola. Declara-se que o Acompanhado não possui Directivas antecipadas de vontade (DAV) e / ou Procuração de cuidados de saúde (PCS), por referência ao n.º 3 do artigo 900.º do Código de Processo Civil. Revisão quinquenal. Sem custas. Fixa-se o valor da acção em € 30.000,01. Registe e notifique. Comunique-se à Conservatória do Registo Civil (artigos 902.º e 894.º do CPC). Sem efeito a diligência agendada”. * Inconformado, veio o Digno Requerente apresentar requerimento de recurso para este Tribunal da Relação de Évora enunciando as seguintes conclusões: “CONCLUSÕES A - No âmbito da acção de maior acompanhado peticionou o Ministério Público que, nos termos do disposto nos artigos 138.º, 141.º e seguintes do Código Civil e artigo 891.º e seguintes do Código de Processo Civil, fosse decretado o acompanhamento ao beneficiário (…), com a aplicação, nos termos do artigo 145.º, n.º 2, alínea b), do Código Civil, da medida de representação geral, com dispensa da constituição do conselho de família. B - Por sentença proferida em 06.09.2023, decretou a Mm.ª Juiz do Tribunal a quo que o beneficiário (…), se encontra sujeito ao regime legal do maior acompanhado, nomeando como acompanhante (…), e na própria sentença, deu a Mm.ª Juiz sem efeito a data anteriormente designada para audição do beneficiário, 11 de Setembro de 2023, não fazendo qualquer referência à não audição do beneficiário ou à sua dispensa. C - Nos processos de maior acompanhado a diligência de audição pessoal e direta do beneficiário é obrigatória e em caso algum pode ser dispensada, sendo que qualquer eventual impossibilidade de proceder àquela audição deve ser pessoalmente verificada pelo juiz, aquando a realização da diligência – artigos 897.º e 898.º, ambos do Código Processo Civil. D - Com efeito, esta audição pessoal deve sempre ocorrer, mesmo que o juiz se tenha que deslocar ao local onde o beneficiário se encontre, pois que um dos princípios orientadores do processo especial de acompanhamento de maiores é o da imediação na avaliação da situação física ou psíquica do beneficiário, não só para se poder conhecer a real situação daquele, mas também para se poder ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas a essa situação e, a nosso ver, da pessoa que melhor desempenhará as funções de acompanhante. E - Cremos, pois, que a sentença proferida, violou a norma legal prevista no artigo 897.º, n.º 2, do CPC, o que, por ter manifesta influência no exame e decisão da causa, configura uma nulidade processual, nos termos previstos no artigo 195.º, n.º 1, 2ª parte, do CPC, e que tem como consequência a nulidade da sentença proferida. F - Mais, ainda que assim não se entenda, sempre se dirá que a sentença proferida está ferida de nulidade posto que nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC, o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, e nos termos do artigo 615.º, n.º 1 alínea d), quando o Juiz deixe de se pronunciar quanto a questões que devesse apreciar a sentença é nula. G - Ora a sentença recorrida não decreta qualquer medida de acompanhamento ao beneficiário, limitando-se a decretar que “o Beneficiário (…), nascido a 16.01.1940, filho de (…) e de (…), natural de (…), Mértola, portador do BI n.º (…), residente em (…), caixa postal (…), (…), Mértola se encontra sujeito ao regime legal do maior acompanhado”. H - Conforme decorre expressamente do disposto no artigo 900.º do CPC, num processo de acompanhamento de maior, as questões a decidir dizem respeito à designação do acompanhante (e eventualmente de acompanhante substituto, de vários acompanhantes e, sendo o caso, do conselho de família) e à definição das medidas de acompanhamento, nos termos do artigo 145.º do CC e, quando possível, à fixação da data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes. I - A sentença recorrida omitiu a pronúncia sobre uma questão concreta que devia ter conhecido – cfr. artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC –, uma vez que não decretou qualquer medida de acompanhamento ao acompanhado, conforme o disposto no artigo 145.º, n.º 2, do Código Civil, pelo que está ferida de nulidade. J - Pelo exposto, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, e, em consequência, revogar-se a sentença final, e determinar-se a audição pessoal e direta de (…), nos termos do artigo 139.º, n.º 1, do Código Civil e nos artigos 897.º, n.º 2 e 898.º, ambos do Código de Processo Civil, e, caso assim não se entenda, deverá ser declarada a nulidade da sentença nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do C.P.C., impondo-se a sua substituição por outra que decreta medida ou medidas de acompanhamento adequadas às necessidades do acompanhado. L - Deverá ser declarada a nulidade da sentença nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do C.P.C., impondo-se a sua substituição por outra que decreta medida ou medidas de acompanhamento adequadas às necessidades do acompanhado. Nestes termos e nos mais de direito, deve o presente recurso ter provimento e em consequência ser declarada a nulidade da sentença, e ainda que assim não seja entendido, deve a decisão ser substituída por outra que decida concretamente sobre as medidas decretadas ao beneficiário no âmbito do seu acompanhamento, para que assim se faça JUSTIÇA. * Não foi apresentada resposta ao recurso interposto. * O recurso foi recebido na 1ª instância como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos cabendo-lhe, porém, o efeito suspensivo, por aplicação do disposto no artigo 647.º, n.º 3, alínea a), do CPC. * Colheram-se os Vistos, pelo que cumpre de seguida decidir. * II – QUESTÕES OBJECTO DO RECURSO Nos termos do disposto no artigo 635.º, n.º 4, conjugado com o artigo 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil (doravante apenas CPC), o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso, salvo no que concerne à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas pertinentes ao caso concreto e quando se trate de matérias de conhecimento oficioso que, no âmbito de recurso interposto pela parte vencida, possam ser decididas com base em elementos constantes do processo, pelo que, in casu, importa apenas apreciar o seguinte: 1-Se foi cometida a nulidade processual invocada pelo Ministério Público e quais as respectivas consequências no caso vertente; 2-Se a sentença padece de nulidade por omissão de pronúncia. * III – FUNDAMENTOS DE FACTO Consta discriminada na sentença recorrida a seguinte matéria de facto: “FACTOS PROVADOS Da petição 2.º O beneficiário nasceu no dia 16.01.1940, e é natural da freguesia de (…), Mértola (documento n.º 1). 3.º O beneficiário sofreu um acidente vascular cerebral (documento n.º 2). 6.º O beneficiário não conhece o valor do dinheiro. 7.º Não consegue realizar a sua higiene e cuidados pessoais, sem auxílio de terceiros. 8.º O beneficiário não se consegue vestir sem auxílio de terceiros. A) O requerido é casado e reside no (…), (…), Mértola. A esposa tem 76 anos. Têm 4 filhos.” * IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO 1-Quanto à primeira questão objecto do recurso respeitante à nulidade processual invocada e efeitos decorrentes da mesma no caso em apreço: Argumenta o Digno Apelante que o Tribunal a quo não procedeu à audição do beneficiário (…) previamente ao proferimento da sentença recorrida tendo, como tal, incorrido em violação da norma legal prevista no artigo 897.º, n.º 2, do CPC, “o que, por ter manifesta influência no exame e decisão da causa, configura uma nulidade processual, no termos previstos no artigo 195.º, n.º 1, 2.ª parte, do CPC e que tem como consequência a nulidade da sentença proferida”. Vejamos se lhe assiste razão. Resulta do artigo 891.º do CPC, o seguinte: “1.O processo de acompanhamento de maior tem carácter urgente, aplicando-se-lhe, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes. Na mesma linha orientadora, preceitua o n.º 1 do artigo 897.º do CPC, epigrafado “Poderes instrutórios”, que: “1.Findos os articulados, o juiz analisa os elementos juntos pelas partes, pronuncia-se sobre a prova por elas requerida e ordena as diligências que considere convenientes, podendo, designadamente, nomear um ou vários peritos.” (realce a azul nosso) Percebemos, como tal, em consequência dos citados normativos, que ao processo de acompanhamento de maior aplicam-se, desde logo, com as adaptações que se revelem necessárias ao caso concreto, o disposto nos artigos 986.º, n.º 2, 987.º e 988.º, todos do CPC. Para a apreciação da questão que ora nos prende a atenção há que destacar o que refere o n.º 2 do artigo 986.º, respeitante aos poderes do julgador e que estatui o seguinte: “2. O tribunal pode, no entanto, investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes; só são admitidas as provas que o juiz considere necessárias.” Sobre esta temática, dizem António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa em comentário ao artigo 891.º do CPC (“Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, 2020-Reimpressão, Almedina, pág. 331), o seguinte: “Como parece evidente, a multiplicidade de circunstâncias observáveis é incompatível com uma rigidez processual, compreendendo-se, assim, a alteração do paradigma revelada pela maior aproximação ao regime dos processos de jurisdição voluntária (arts. 986.º a 988.º), expressamente ressalvado pelo n.º 1. Do novo regime emerge um claro reforço dos poderes inquisitórios do juiz (artigo 986.º, n.º 2), o fortalecimento do poder de direção, que pode manifestar-se através da limitação aos meios de prova que, em concreto, se revelem necessários e ainda a possibilidade de se alicerçar a decisão em razões de oportunidade ou de conveniência, sempre sob o signo da satisfação dos interesses do beneficiário (artigo 987.º).” Aqui chegados impõe-se, porém, trazer a colação a norma contida no n.º 2 do aludido artigo 897.º do CPC, que se traduz no seguinte: “2.Em qualquer caso, o juiz deve proceder, sempre, à audição pessoal e direta do beneficiário, deslocando-se, se necessário, ao local onde o mesmo se encontre.” Esta norma tem respaldo no nosso direito civil substantivo, mormente na norma contida no artigo 139.º do Código Civil, que prevê o seguinte: “1. O acompanhamento é decidido pelo tribunal, após audição pessoal e direta do beneficiário e ponderadas as provas” (realce a azul nosso). Relativamente à transcrita norma do n.º 2 do artigo 897.º do CPC, convocamos de novo o comentário, que sufragamos, de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa exposto na obra acima citada (pág. 337): “Como diligência obrigatória, em qualquer caso […], prescreve-se a audição do beneficiário pelo juiz (artigo 139.º do CC), Seja, ou não, o requerente, tenha ou não apresentado oposição ao requerimento inicial, a audição do beneficiário confere ao juiz a imediação de elementos mais seguros acerca da situação em que se encontra. A audição do beneficiário deve ocorrer, em regra, na fase inicial da produção da prova pericial, sendo relevante a presença dos peritos (artigo 898.º).” Pelo mesmo diapasão afina Pedro Callapez no artigo intitulado “Acompanhamento de Maiores”, integrado na obra “Processos Especiais”, Volume I, coordenado por Rui Pinto e Ana Alves Leal, Editora AAFDL, Lisboa, 2020, o qual nos transmite (pág. 112), o seguinte: “No nosso entender, o contacto direto do juiz com o beneficiário é sempre obrigatório, independentemente da condição deste não lhe permitir comunicar. Com efeito, salvo melhor opinião, o que a lei visa garantir é que o juiz tem uma percepção direta da situação do beneficiário, independente de todas as outras eventuais fontes desse conhecimento que lhe hajam sido apresentadas, designadamente a factualidade no requerimento inicial ou plasmada no relatório pericial”. Deslocando a análise para o plano jurisprudencial encontramos no sentido doutrinário que temos vindo a destacar, entre outros, os recentes acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 04/06/2019 e de 03/03/2020, da Relação de Lisboa de 10/09/2019 e desta Relação de Évora de 10/10/2019, de que fomos 2.º adjunto (todos acessíveis para consulta in www.dgsi.pt.). Num plano de menor intensidade relativamente à necessidade de cumprir em todos os casos a diligência de audição pessoal e direta do beneficiário no processo de acompanhamento de maior encontramos a posição de Miguel Teixeira de Sousa (“O regime do acompanhamento de maiores: alguns aspectos processuais”, incluído no e-book “O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado”, Centro de Estudos Judiciários, Fevereiro 2019, pág. 51, disponível in www.cej.mj.pt), bem como o acórdão da Relação de Lisboa de 16/09/2019 (acessível para consulta in www.dgsi.pt.) que, sem deixarem de reconhecer a obrigatoriedade da realização da audição pessoal e direta do beneficiário na grande maioria das situações, admitem excepcionalmente a dispensa de tal audição ancorando-se no uso pelo julgador dos poderes de gestão processual e de adequação formal (previstos respectivamente nos artigos 6.º, n.º 1 e 547.º do CPC), bem como da limitação dos actos (por forma a obstaculizar à pratica de actos inúteis no processo), em situações de manifesta impossibilidade de realização da audição pessoal e direta do beneficiário por virtude deste último não apresentar o mínimo de condições para ser ouvido, designadamente por se encontrar em situação clínica de coma. Descendo neste momento aos contornos do caso que temos em mãos percebemos, através da análise do processado seguido pelo Tribunal a quo, que a instrução dos autos não contemplou a audição pessoal e direta do beneficiário (…) tendo a sentença sido proferida sem a realização prévia de tal diligência, a qual, conforme já concluímos supra, se afigura como legalmente obrigatória no processo de acompanhamento de maior. Com efeito, apesar de em serviço de turno ter sido designada e bem a diligência de audição pessoal e direta do beneficiário (…), certo é que a mesma não foi realizada previamente à prolação da sentença recorrida, tendo na parte final desta se determinado expressamente ficar sem efeito a dita agendada audição. Neste contexto, impõe-se ainda salientar estar demonstrado nos autos ser perfeitamente possível realizar a audição pessoal e direta do beneficiário (…), ainda que, com grande probabilidade, se afigure necessário que o Tribunal tenha de se deslocar à Estrutura Residencial para Pessoas Idosas/Centro de Dia da SCM (…) onde o mesmo se encontra presentemente. Aqui chegados, qual a consequência jurídica da preterição da audição do beneficiário (…)? Diz o artigo 195.º, n.º 1, do CPC, o seguinte: “1- Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”. Ora afigura-se-nos, sem margem para rebuços, que a omissão no caso em apreço da audição pessoal e direta do beneficiário (…), designadamente em fase instrutória dos autos e, naturalmente, prévia ao proferimento da sentença recorrida, comportando tal omissão, conforme já concluímos acima, a preterição de uma diligência obrigatória no processo em causa, que permitiria ao Tribunal a quo averiguar por si a situação do beneficiário e melhor ponderar/ajuizar sobre as medidas de acompanhamento mais adequadas a tomar, traduziu-se em irregularidade que influiu no exame e decisão da causa, pois que na sentença proferida decretou-se o acompanhamento e designou-se o acompanhante, projectando-se assim tal irregularidade na dita decisão final proferida, uma vez que somente com a notificação da mesma foi possível às Partes e designadamente ao Digno Apelante aperceber-se da nulidade praticada, devendo, assim, considerar-se que a arguiu tempestivamente em sede de recurso. Como se salienta no sumário do acórdão já acima salientado da Relação de Coimbra de 03/03/2020, processo n.º 858/18.7T8CNT-A.C1: “I- Entre os vários princípios que orientam/norteiam o processo especial de acompanhamento de maiores encontra-se o da imediação (pelo tribunal/juiz) na avaliação da situação física e/ou psíquica do beneficiário. II- Princípio esse que impõe obrigatoriamente ao juiz que, em qualquer caso e circunstância, proceda (direta e pessoalmente) à audição do beneficiário, sem que a possa dispensar. III- A omissão dessa audição é geradora de nulidade processual.” Do mesmo modo, relembramos o que foi decidido no acórdão, também já acima mencionado, proferido nesta mesma Relação de Évora em 10/10/2019, no processo n.º 1110/18.3T8ABF.E1: “Considerando que a 1.ª instância não procedeu à audição da beneficiária, com vista a averiguar a sua situação e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas, e veio a proferir decisão, na qual decretou o acompanhamento da requerida, designou o respetivo acompanhante e definiu medidas de acompanhamento, verifica-se que aquela omissão influiu na decisão da causa, assim constituindo nulidade processual, nos termos previstos no artigo 195.º, n.º 1, do CPC. […] Nesta conformidade, considerando que foi omitida a audição da beneficiária, ato imposto pelos artigos 139.º, n.º 1, do CC, e 897.º, n.º 2, do CPC, e que tal influiu na decisão recorrida, ao abrigo do disposto no artigo 195.º, n.º 2, do mesmo Código, há que anular tal decisão e determinar se proceda à diligência omitida, designando-se data e local para a respetiva realização”. Perante o exposto é de concluir, do mesmo passo, no sentido da anulação da sentença proferida nestes autos pelo Tribunal a quo em 06/09/2023. Procedem, pois, as conclusões recursivas no que tange a esta questão. A procedência do recurso no tocante à questão acabada de apreciar prejudica necessariamente a reapreciação da outra questão elencada no objecto do recurso sob o ponto 2, nos termos do disposto no artigo 608.º, n.º 2, 1ª parte, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, parte final, ambos do CPC. * V – DECISÃO Pelo exposto acorda-se em conceder provimento ao recurso de apelação apresentado pelo Ministério Público e em consequência decide-se o seguinte: a) Julgar procedente a nulidade processual arguida pelo Digno Apelante, anulando-se a sentença proferida pelo Tribunal a quo em 06/09/2023, mais se determinando que o Tribunal recorrido profira despacho a designar dia, hora e local para a realização da audição pessoal e direta do beneficiário (…); b) Não há lugar a condenação em custas. * DN. * Évora, 23/11/2023 José António Moita (Relator) José Lúcio (1º Adjunto Ana Pessoa (2ª Adjunta) |