Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
126/16.8GCPTM.E1
Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA
Descritores: MARCAÇÃO DE AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
JULGAMENTO NA AUSÊNCIA DO ARGUIDO
Data do Acordão: 10/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: PROVIDO
Sumário: 1 - O artigo 333º do C.P.P. não pode ser interpretado em concreto como permitindo uma regra geral de que o julgamento de arguidos não presentes é a normalidade do nosso sistema judiciário. Isto consequencia uma exigente interpretação do referido normativo em dois relevante aspectos, nos aspectos notificativos e na substancialidade motivadora da desnecessidade de presença do arguido.
2 - É um ónus do tribunal assegurar a existência de uma segunda marcação, não um ónus do arguido o requerer ao tribunal que a designe.
3 - Está vedado ao tribunal não designar – nem notificar o arguido – de uma segunda data que, dessa forma, surge como elemento essencial ao exercício do direito a que se refere o nº 3 do artigo 333º do diploma. Está-lhe igualmente vedado encerrar a audiência de julgamento na única data designada sem que o arguido seja notificado da disponibilidade de uma segunda data para prestar declarações, tal requerendo.
4 - O direito pessoal a ser ouvido em declarações, que supõe uma segunda data e uma notificação, é questão que se coloca antes – com anterioridade lógica – de saber se o arguido está ou não pessoalmente representado por advogado.
5 - O requisito formal – falta justificada ou não – tem que ser analisado em conjunção com o requisito substancial igualmente presente: saber se “é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência”.
(Sumário do relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 121/16.8GCPTM


Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:


A - Relatório:
No Tribunal Judicial de Faro - Juízo Local Criminal de Portimão 3 - correu termos o processo comum singular supra numerado no qual CC, assistente no processo, requereu o julgamento, em processo comum e perante Tribunal Singular, de:
BB, solteiro, maior, nascido em (…),
imputando-lhe a prática de factos integradores, em autoria material e na forma consumada, de oito crimes de injúria, p. e p. pelo artigo 181º, n.º 1, do Código Penal.
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Deduziu, igualmente, a assistente, pedido de indemnização civil contra o arguido, peticionando o pagamento da quantia de 800,00 € a título de danos não patrimoniais sofridos na sequência das injúrias de que alegadamente terá sido vitima.
A final - por sentença lavrada a 23 de Março de 2018 - veio a decidir o Tribunal recorrido, julgar procedente por provada a acusação particular - com a limitação operada no inicio do julgamento - procedente, por provada e, em consequência:
- condenou o arguido BB pela prática, como autor material, de 7 (sete) crimes de injúria, p. e p. pelo art. 181º/1 do C.Penal na pena de 40 (quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), por cada um deles;
- procedendo ao cumulo jurídico das penas, condenou o arguido numa pena única de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz a quantia de € 1.200,00 (mil e duzentos euros);
- advertiu o arguido que em caso de não pagamento da multa, voluntaria ou coercivamente, ou não sendo a mesma substituída por trabalho a favor da comunidade, será a mesma convertida em prisão subsidiária, que cumprirá pelo tempo correspondente a 2/3 dos dias de multa a que foi condenado, ou seja, 133 (cento e trinta e três) dias (art. 49º/1 do C.Penal);
- condenou o arguido nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) Uc’s (art. 8º/9 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III ao mesmo anexa);
- julgou o pedido de indemnização civil formulado por CC parcialmente procedente, por parcialmente provado e, em consequência, condenar o demandado BB no pagamento ao demandante da quantia de € 600,00 (seiscentos euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, acrescidas de juros de mora, contabilizados à taxa legal, desde a sua notificação para contestar o pedido de indemnização, absolvendo o demandado do demais peticionado;
- condenou demandante e demandado nas custas do pedido civil, na proporção do respectivo decaimento, que se fixa em 25% para a demandante e 75% para o demandado (art. 527º nºs 1 e 2 do N.C.P.Civil, ex-vi art. 523º do C.P.Penal).
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Inconformado, o arguido interpôs recurso, com as seguintes conclusões:
1 - Vem o arguido, ora recorrente, condenado pela prática:
- pela prática, como autor material, de 7 (sete) crimes de injúria, p. e p. pelo art. 181º nº. 1 do C.Penal na pena de 40 (quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), por cada um deles;
- Procedendo ao cúmulo jurídico das penas, condenar o arguido numa pena única de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz a quantia de € 1.200,00 (mil e duzentos euros);
- Advertir o arguido que em caso de não pagamento da multa, voluntária ou coercivamente, ou não sendo a mesma substituída por trabalho a favor da comunidade, será a mesma convertida em prisão subsidiária, que cumprirá pelo tempo correspondente a 2/3 dos dias de multa a que foi condenado, ou seja, 133 (cento e trinta e três) dias (art. 49º/1 do C.Penal);
- Condenar o(a) arguido(a) nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) Uc’s (art. 8º/9 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III ao mesmo anexa); e) Julgar o pedido de indemnização civil formulado por CC parcialmente procedente, por parcialmente provado e, em consequência, condenar o demandado BB no pagamento ao demandante da quantia de € 600,00 (seiscentos euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, acrescidas de juros de mora, contabilizados à taxa legal, desde a sua notificação para contestar o pedido de indemnização, absolvendo o demandado do demais peticionado;
2 - O arguido não se conforma com a sentença condenatória, uma vez que nunca foi ouvido na audiência de julgamento, não podendo assim exercer o seu direito de defesa;
3 - Na verdade o tribunal está vinculado, no caso de ausência do arguido que se ache regularmente notificado, a tomar todas as medidas necessárias e legalmente admissíveis «para obter a sua comparência» (n.º 1 do artigo 333º);
4 - Ora, no presente caso o arguido estava, momentaneamente, incapacitado de comparecer, no dia da audiência de julgamento, por motivo de doença, tendo feito um requerimento aos autos a informar da sua indisponibilidade nesse dia.
5 - Pelo que, como situação excepcional quando, estando o arguido notificado para comparecer em julgamento, faltar, o tribunal pode considerar que não é absolutamente indispensável a sua presença «desde o início da audiência» para o efeito da «descoberta da verdade material» (n.º 1 do artigo 333º);
6 - E mesmo que se considerasse que o arguido tinha dado o seu consentimento, uma vez que estava presente o seu defensor tal não poderia ser considerado,
7 - Uma vez que o consentimento a que alude o art. 334 nº 2 do CPP, além de ter de ser expresso (não pode ser meramente tácito), é um ato em que o arguido prescinde de um direito eminentemente pessoal, que está para além da formulação duma mera estratégia de defesa. Por isso, “este direito do arguido só pode ser por ele exercido e não pelo seu defensor, salvo se este estiver munido de poderes especiais emitidos para esse concreto efeito (…). A realização da audiência de julgamento na ausência do arguido, a requerimento do defensor munido de poderes gerais, constitui uma nulidade insanável (art.119 al. c” – Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, 3º ed, pag. 839, onde igualmente se indica jurisprudência de tribunais da relação no mesmo sentido.
8 - Ora, o arguido não subscreveu declaração no sentido indicado, nem a sua defensora tinha poderes para tal.
9 - Assim, deve, efetivamente, ser considerada a nulidade insanável de todo o processado a partir do início da audiência de julgamento, o que se requer, desde já, aos Venerandos Desembargadores do douto Tribunal da Relação de Évora e, consequentemente ser o arguido absolvido.
Nestes termos, e nos mais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá ser dado provimento ao presente recurso, por provado, com todas as consequências legais.
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CC, assistente no processo respondeu ao recurso interposto, defendendo a improcedência do mesmo, com as seguintes conclusões:
a Vinha o arguido, nos presentes autos, acusado da prática, em autoria material e na forma consumada, de sete crimes de injúrias, p. e p. pelo n.º 1 do artigo 181º do Código Penal;
b A assistente/demandante deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido/demandado pelos danos morais sofridos em consequência da conduta deste;
c A acusação particular deduzida foi julgada procedente por provada e em consequência foi o arguido condenado pela prática, como autor material, de 7 (sete) crimes de injúria, na pena de 40 (quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), por cada um deles;
d Efectuado o cúmulo jurídico foi o arguido condenado numa pena única de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz a quantia de € 1.200,00 (mil e duzentos euros);
e Foi, também, condenado nas custas do processo;
f O pedido de indemnização civil formulado foi julgado parcialmente procedente, por parcialmente provado e, em consequência, foi o demandado, BB, condenado no pagamento à demandante da quantia de € 600,00 (seiscentos euros), acrescida de juros de mora, contabilizados à taxa legal, desde a sua notificação para contestar o pedido de indemnização, absolvendo o demandado do demais peticionado;
g Demandante e demandado foram condenados nas custas do pedido civil, na proporção do respectivo decaimento, que se fixou em 25% para a demandante e 75% para o demandado;
h Vem agora o arguido interpor recurso da douta sentença proferida pelo Tribunal “a quo” alegando existir uma nulidade, uma vez que não foi ouvido na audiência de julgamento, por se encontrar “incapacitado de comparecer”, na data agendada, por motivo de doença;
i Não assiste qualquer razão ao arguido;
j O arguido prestou termo de identidade e residência e foi, ao longo de todo o processo, correctamente notificado na morada indicada;
k Notificado para comparecer na data agendada para a audiência de discussão e julgamento, veio, ele próprio, informar que estava impossibilitado de comparecer e apresentou o correspondente comprovativo;
l Não requereu a sua audição em nova data a agendar, o que poderia ter feito;
m A audiência de discussão e julgamento foi iniciada na ausência do arguido por a sua presença não se considerar imprescindível desde o início;
n O arguido encontrava-se devidamente representado pela sua Ilustre Defensora a qual declarou nada ter a opor ou a requerer quanto ao promovido;
o A Ilustre defensora do arguido também não requereu a marcação de nova data para audição do arguido e poderia tê-lo feito;
p A justificação apresentada pelo arguido comprovava a necessidade de permanência na habitação até dia 12 de Março de 2018, ou seja, impossibilidade de comparência do mesmo apenas na data agendada para a audiência de discussão e julgamento, realizada em 08 de Março de 2018;
q Uma vez notificado, na pessoa do seu Defensor, da data agendada para leitura da sentença, que veio a ter lugar em 23 de Março de 2018, poderia o mesmo ter comparecido e ter solicitado a sua audição, o que, novamente, não aconteceu;
r Não pode vir agora o arguido alegar que o seu direito à defesa foi violado pois tal não corresponde à verdade.
s Além do mais, o arguido teve prazo para contestar a acusação particular e o pedido de indemnização contra si deduzidos, o que não fez por opção;
t O caso em apreço não constitui uma nulidade insanável nos termos da al. c) do artigo 119º do CPP;
u O caso dos presentes autos não é uma das situações em que a lei exige a comparência do arguido;
v Nesse sentido vejamos o estatuído no n.º 1 do artigo 332º e os n.ºs 1 a 3 do artigo 333º, ambos do CPP;
w Ora, uma vez que nada foi requerido pelo próprio ou pelo seu defensor, entende-se que o arguido renunciou, de livre vontade, a esse direito, até porque o seu defensor, a quem a lei confere a possibilidade de requerer que o arguido seja ouvido na segunda data, declarou não ter nada a requerer.
x Se assim fosse nunca seria possível julgar e condenar arguidos regularmente notificados que não comparecessem na audiência de discussão e julgamento e os quais não fosse possível fazer comparecer nem contra a sua vontade, mesmo tendo os mesmos prestado termo de identidade e residência;
y Os presentes autos não enfermam de qualquer nulidade ou irregularidade, bem como a douta sentença proferida pela Mm.ª Juiz “a quo”, a qual não merece qualquer reparo.
z Pelo exposto, o recurso, interposto pelo arguido, deverá ser julgado improcedente, por não provado, sendo mantida a douta sentença proferida pelo Tribunal “a quo”.
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O Digno magistrado do Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso interposto, defendendo a improcedência do mesmo, com as seguintes conclusões:
1ª – O arguido BB interpôs recurso da sentença que o condenou pela prática de sete crimes de injúria p. e p. pelo artigo 181º n.º 1 do Código Penal na pena única de 200 dias de multa à taxa diária de € 6, no valor total de € 1.200;
2ª – O arguido prestou Termo de Identidade e Residência, tendo sido regularmente notificado do despacho de acusação e posteriormente da data de audiência de discussão e julgamento na referida morada por via postal simples com prova de depósito conforme estipulam os artigos 113º, 283º e 313º n.º 3, todos do Código de Processo Penal;
3ª – O arguido foi notificado do despacho de acusação e do despacho que designou data para audiência de discussão e julgamento;
4ª – E tanto mais que assim é que o arguido elaborou, e deu entrada, de um requerimento no dia 06 de Março de 2018, ou seja, dois dias antes da audiência de discussão e julgamento, através do qual informou os autos que havia sido submetido a uma intervenção cirúrgica e que teria que permanecer no domicílio até ao dia 12 de Março de 2018, pelo que não seria possível estar presente na audiência de discussão e julgamento agendada para o dia 08 de Março de 2018;
5ª – Nessa sequência, conforme acta da sessão de audiência de discussão e julgamento do dia 08 de Março de 2018, foi pela Mma. Juiz justificada a falta do arguido e determinado o início da audiência de discussão de julgamento na ausência do arguido por não se considerar imprescindível a sua presença, tudo ao abrigo do previsto no artigo 331º nºs 1 a 3 do Código de Processo Penal;
6ª – A Ilustre Defensora Oficiosa do arguido, que esteve presente na audiência de discussão e julgamento, nada requereu conforme inclusive possibilita expressamente o artigo 333º n.º 3 do Código de Processo Penal;
7ª – Nesta sequência foi efectuada a produção de prova e de seguida concedida a palavra para alegações, designando-se nesse mesmo dia data para leitura de sentença;
8ª – Refere o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 9/2012 publicado in Diário da República, 1.ª série, N.º 238 de 10 de Dezembro de 2012, aplicável mutatis mutandis que: “Notificado o arguido da audiência de julgamento por forma regular, e faltando injustificadamente à mesma, se o tribunal considerar que a sua presença não é necessária para a descoberta da verdade, nos termos do nº 1 do art. 333º do CPP, deverá dar início ao julgamento, sem tomar quaisquer medidas para assegurar a presença do arguido, e poderá encerrar a audiência na primeira data designada, na ausência do arguido, a não ser que o seu defensor requeira que ele seja ouvido na segunda data marcada, nos termos do nº 3 do mesmo artigo.”;
9ª – Salvo o devido respeito e melhor opinião, o recorrente confunde o disposto no artigo 331º nºs 1 a 3 do Código de Processo Penal com o disposto no artigo 334º do Código de Processo Penal, este último inaplicável in casu porquanto o arguido não deu qualquer autorização para o julgamento na ausência;
10ª – Assim, atendendo ao supra exposto, outra não podia ter sido a decisão do Tribunal a quo inexistindo, salvo melhor opinião, qualquer nulidade, pelo que, nessa sequência, entendemos não merecer qualquer censura a decisão do Tribunal a quo ao decidir nos termos e com os fundamentos expostos na douta sentença recorrida.
Termos em que, deverá ser negado provimento ao recurso e, em consequência, ser confirmada a Douta sentença recorrida.
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A Exmª Procuradora-geral Adjunta neste Tribunal da Relação emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.
Deu-se cumprimento ao disposto no artigo 417º n.º 2 do Código de Processo Penal.
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B - Fundamentação:
B.1.1 - O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:
1. A hora não concretamente apurada do dia 03.09.2016, quando a assistente chegava a casa, sita no …, sem que nada o fizesse prever, BB, seu vizinho, dirigiu-se-lhe com a expressão “cabra”.
2. A hora não concretamente apurada do dia 04.09.2016, no mesmo local, BB, sem motivo apurado, apelidou a assistente de “cabra” e “estupida de merda”.
3. Do mesmo modo, no dia 07.09.2016, a hora não concretamente apurada, à porta de casa, voltou a dirigir-lhe as expressões “cabra” e “grande cabra”.
4. A hora não concretamente apurada do dia 27.09.2016, novamente à entrada da residência da assistente, o arguido chamou-a de “estupida”.
5. Nos dias 12, 19 e 20.10.2016, no mesmo local, a horas não concretamente apuradas, o arguido, repetidamente, voltou a apelidar a assistente de “cabra”, “estupida” e “estupida de merda”.
6. Ao proferir tais expressões agiu o arguido com o intuito, que logrou alcançar, de ofender o bom nome, a honra, consideração e dignidade da assistente.
7. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas descritas condutas eram proibidas e punidas por lei, tendo a liberdade necessária para se determinar de acordo com tal avaliação.
8. Com relevo para a decisão da causa, provaram-se, ainda, os seguintes factos relativos ao pedido de indemnização deduzido:
9. A assistente sentiu-se ofendida, envergonhada e humilhada com as expressões que o arguido lhe imputou.
10. Os factos praticados pelo arguido causaram na assistente grande inquietação, impedindo-a de estar tranquila na sua própria residência.
11. Não regista antecedentes criminais.
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B.1.2 - E afirmou quanto a factos não provados: «Não se provaram quaisquer outros factos, com relevo para a decisão da causa, sendo certo que aqui não importa considerar as alegações meramente probatórias, conclusivas e de direito, que deverão ser valoradas em sede própria».
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B.1.3 – E adiantou os seguintes considerandos sobre a fundamentação de facto:
«O Tribunal formou a sua convicção quanto aos factos provados com base na análise critica e conjugada da prova produzida em audiência de julgamento, apreciada à luz das regras de experiência comum e segundo juízos de normalidade, beneficiando, ademais, da imediação, dispensando-se a descrição pormenorizada dos depoimentos prestados uma vez que a prova se encontra devidamente registada em suporte magnético.
Na ausência do arguido, regularmente notificado, foram valoradas as declarações prestadas pela assistente CC, bem como os depoimentos das testemunhas DD e EE, respectivamente marido e mãe da assistente, que pela sua coerência, simplicidade e genuinidade nos mereceram inteira credibilidade.
Confirmou a assistente os vários episódios ocorridos à porta da sua residência e as expressões que lhe foram concretamente dirigidas, sem qualquer razão aparente, pelo seu vizinho, aqui arguido, em tom de voz elevado e susceptível de ter sido ouvido pelos outros vizinhos. Mais explicou nunca ter tido qualquer problema com este, desconhecendo, em absoluto, a razão pela qual a insultava repetidamente.
Instada esclareceu não ter qualquer dúvida que as expressões lhe eram dirigidas a si, já que foram proferidas na sua direcção e era a única pessoa que se encontrava presente nas imediações.
Evidenciou, ainda, bastante desconforto, indignação e humilhação pelo sucedido, que deve, sendo perceptível para o Tribunal que a presença próxima do arguido lhe traz alguma perturbação.
DD e EE, embora não tendo logrado concretizar as respectivas datas, garantiram já ter ouvido as expressões proferidas pelo arguido relativamente à pessoa da assistente, à porta de sua casa, não encontrando, igualmente, qualquer motivo justificativo para o efeito, já que nenhum conflito existe ou existiu entre ambos. Mais confirmaram a indignação e perturbação sentidas pela assistente na sequência dos factos.
A prova da ausência de antecedentes criminais do arguido resulta do certificado do registo criminal constante de fls. 148.»
***
Cumpre conhecer.
Aparentemente de uma só questão importaria conhecer, tal como patente no recurso: no caso em apreciação o julgamento realizado na ausência física do arguido foi lícita?
No entanto no caso dos autos essa questão apresenta três distintos aspectos, a que acrescem vícios de facto de conhecimento oficioso no seguimento da previsão do artigo 410º, nº 2 do C.P.P. e da sequente jurisprudência fixada pelo Acórdão n.º 7/95 do Plenário das Secções Criminais do STJ de 10/19/1995 (in D.R., I-A de 28/12/95, proc. 046580, rel. Cons. Sá Nogueira), ”É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”.
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B.2 – Naturalmente que está suposta no processo penal português a existência de uma regra geral de obrigatoriedade da presença do arguido, expressa no nº 1 do artigo 332.º do C.P.P. que, sob a epígrafe «Presença do arguido» dispõe que é obrigatória a sua presença na audiência, “sem prejuízo do disposto nos ns. 1 e 2 do artigo 333.º e nos ns. 1 e 2 do artigo 334.º”.
Trata-se de uma concretização do princípio da tutela jurisdicional efetiva, tal como prevista no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, assumindo esta – enquanto garantia de processo criminal – que o processo criminal tem estrutura acusatória, definindo a lei “os casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em actos processuais, incluindo a audiência de julgamento” – números 5 e 6 do artigo 32º da dita C.R.P.).
Mas também está expressa regra de direito processual penal, na sequência da previsão dos artigos 332º, n. 1 e 333º, ns. 1, 2 e 3 do C.P.P., que permite o início da audiência de julgamento de arguido devidamente notificado, como pareceria ser o caso do arguido nos presentes autos.
Como tal era permitido à Mmª Juíza determinar o início de julgamento (artigo 333º, nº 2 do diploma), sendo certo que ao arguido sempre seria reconhecido o direito a prestar declarações em momento posterior, como cristalinamente se explicita no nº 3 do citado normativo, sendo o arguido representado, para todos os efeitos, pelo defensor nomeado.
Trata-se, portanto, do regime vigente de há muito, não constituindo surpresa a sua aplicação, nem constitui violação do princípio do contraditório. No fundo nem se trata de julgamento na ausência do arguido na medida em que ele está “presente processualmente” e devidamente representado pelo defensor.
A necessidade de proceder a uma distinção entre o “estar presente fisicamente” e o “estar presente processualmente” - logo “processualmente ausente” – dá a imagem das dificuldades de lidar com as duas vertentes processuais que aqui se impõem, o assegurar do contraditório e de uma efectiva defesa e a necessidade de afirmar a concretização processual das exigências de uma justiça eficaz e célere.
É o regime resultante da prática pretérita de gentes incívicas que conduziu à prática impossibilidade de realizar julgamentos em anos não muito distantes. Daí que o regime processual vigente presuma o desinteresse do arguido na sua presença cumpridas as exigências do artigo 333º do C.P.P..
Daqui resulta que seja deveras importante que o regime contido nos artigos 332º e 333º do Código de Processo Penal não seja torpedeado por uma prática rotineira que transforme a regra geral (necessidade de presença do arguido) numa excepção, e esta (julgamento sem a presença do arguido) em regra geral. Isto é, o artigo 333º do C.P.P. não pode ser interpretado em concreto como permitindo uma regra geral de que o julgamento de arguidos não presentes é a normalidade do nosso sistema judiciário.
Isto consequencia uma exigente interpretação do referido normativo em dois relevante aspectos, nos aspectos notificativos e na substancialidade motivadora da desnecessidade de presença do arguido. [1]
E se já o STJ lavrou o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 9/2012 no sentido de considerar que "Notificado o arguido da audiência de julgamento por forma regular, e faltando injustificadamente à mesma, se o tribunal considerar que a sua presença não é necessária para a descoberta da verdade, nos termos do nº 1 do art. 333º do CPP, deverá dar início ao julgamento, sem tomar quaisquer medidas para assegurar a presença do arguido, e poderá encerrar a audiência na primeira data designada, na ausência do arguido, a não ser que o seu defensor requeira que ele seja ouvido na segunda data marcada, nos termos do nº 3 do mesmo artigo" haverá que considerar os seus termos de forma cuidadosa.
Ora, os termos desta decisão (“Notificado o arguido da audiência de julgamento por forma regular, e faltando injustificadamente à mesma, se o tribunal considerar que a sua presença não é necessária para a descoberta da verdade…”) implicam que se descrevam factos processualmente relevantes e que não constam da matéria de facto provada e que irão permitir concluir que nem o arguido se encontrava regularmente notificado, nem faltou injustificadamente.
Isto quanto aos aspectos notificativos. Quanto ao aspecto substancial – fundamentação para a desnecessidade de presença do arguido – o mesmo haveremos de concluir adiante.
*
B.3 – Assim, são factos processualmente relevantes para as questões colocadas:
a) - Em 12-10-2017 a assistente acusou o arguido da prática de oito crimes de injúrias e o Ministério Público acompanhou tal acusação;
b) - Em 17-10-2017 o Ministério Público formalizou nos autos a nomeação de defensora oficiosa ao arguido – fls. 120;
c) – Nessa mesma data foi enviada notificação ao arguido da dedução da acusação e da nomeação da defensora oficiosa, com nome e morada profissional desta – fls. 123;
d) - Em 10-01-2018 foi lavrado despacho nos termos do artigo 311ºdo C.P.P, designando-se para julgamento os dias 22-02-2018 e 08-03-2018 – fls. 132;
e) - Em 05-02-2018 a mandatária da assistente invocou impedimento para a primeira data designada – fls. 137-138;
f) - Por despacho de 08-02-2018 o tribunal deu sem efeito a data de 22-02-2018 e designou julgamento para a segunda data, 08-03-2018 – fls. 140;
g) - O arguido foi de tal notificado – fls. 146;
h) - Em 06-03-2018 o arguido fez entrar requerimento afirmando ter sido submetido a intervenção cirúrgica em 05-03-2018 e que estava aconselhado a não se locomover até à data da próxima consulta - em 12-03-018 – e impossibilitado de comparecer a julgamento da data designada de 08-03. Juntou comprovativos hospitalares – fls. 154-157;
i) - Em 08-03-2018 realizou-se a audiência de julgamento com produção de toda a prova e designou-se data para leitura da decisão – fls. 158-161;
j) - Na acta dessa audiência lavrou-se despacho nos seguintes termos: “Considera-se justificada a falta do arguido à presente audiência de discussão julgamento, face ao requerimento apresentado pelo mesmo. Pelo exposto, e por não se considerar imprescindível a sua presença desde o início da audiência, dar-se-á início à mesma, na sua ausência, sendo, para todos os efeitos, representado pela sua Ilustre Defensora Oficiosa e sem prejuízo da faculdade que lhe assiste de ser ouvido em data posterior, a seu requerimento (artigo 333.°, ns. 1 a 3 do C.P.Penal). Notifique.
Constatamos, pois, que após a primeira designação de datas - duas nos termos do artigo 312º, nº 2 do C.P.P. – apenas uma data (a segunda) foi mantida para julgamento a pedido da ilustre advogada da assistente.
Ora, entre marcação e seu adiamento a pedido da mandatária da assistente, foi olvidada a segunda data e a audiência foi encerrada sem que essa segunda data existisse desde momento anterior ao do início da audiência de julgamento. Por isso, em bom rigor, não havia segunda data marcada que permitisse o cumprimento do disposto no artigo 333º, nº 3 do diploma.
A audiência de julgamento decorreu in totum nessa data, até ao final de alegações, designando-se para leitura da decisão uma data não prevista inicialmente e de que o arguido não foi pessoalmente notificado.
E se o artigo 312.º, nº 1 do diploma estatui que o juiz “despacha designando dia, hora e local para a audiência” e logo o nº 2 adianta que nesse despacho “é, desde logo, igualmente designada data para realização da audiência em caso de adiamento nos termos do n.º 1 do artigo 333.º, ou para audição do arguido a requerimento do seu advogado ou defensor nomeado ao abrigo do n.º 3 do artigo 333.º”, isso quer significar que essa segunda data e a notificação respectiva são elementos que incumbe ao tribunal assegurar estejam garantidos ao arguido quer no momento da prolação daquele despacho, quer no decurso da audiência na primeira data designada.
Ou seja, é um ónus do tribunal assegurar a existência de uma segunda marcação, não um ónus do arguido o requerer ao tribunal que a designe.
O que está vedado ao tribunal é não designar – nem notificar o arguido – de uma segunda data que, dessa forma, surge como elemento essencial ao exercício do direito a que se refere o nº 3 do artigo 333º do diploma. Está-lhe igualmente vedado encerrar a audiência de julgamento na única data designada sem que o arguido seja notificado da disponibilidade de uma segunda data para prestar declarações, tal requerendo.
No caso concreto verifica-se, pois, que não estava notificado o arguido da audiência por forma regular numa dupla vertente: nem houve designação de uma segunda data para o exercício do direito, nem o arguido dessa segunda data foi notificado. Ou seja, baqueia desde logo o primeiro requisito formal contido no aresto supra citado: a existência de uma segunda data para a audiência (onde o arguido pode, querendo, exercer o direito pessoal de ser ouvido) e correspondente notificação do arguido (que surge como essencial ao exercício do direito pessoal já referido).
E este direito pessoal a ser ouvido em declarações, que supõe uma segunda data e uma notificação, é questão que se coloca antes – com anterioridade lógica – de saber se o arguido está ou não pessoalmente representado por advogado.
Este não pode substituir aquele na decisão daquele acto pessoal antes da existência da data e da notificação nos termos do artigo 312º do código. Só o pode fazer posteriormente e nos estritos termos da previsão do artigo 333º.
Mas falha outro dos pressupostos formais do A.U.J. nº 9/2012. O arguido não faltou injustificadamente (Recordemos: “Notificado o arguido da audiência de julgamento por forma regular, e faltando injustificadamente à mesma, se o tribunal considerar que a sua presença não é necessária para a descoberta da verdade…”).
Dispõe o artigo 333º do C.P.P. que:
1 - Se o arguido regularmente notificado não estiver presente na hora designada para o início da audiência, o presidente toma as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência e a audiência só é adiada se o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência.
2 - Se o tribunal considerar que a audiência pode começar sem a presença do arguido, ou se a falta de arguido tiver como causa os impedimentos enunciados nos n. 2 a 4 do artigo 117.º, a audiência não é adiada, sendo inquiridas ou ouvidas as pessoas presentes pela ordem referida nas alíneas b) e c) do artigo 341.º, sem prejuízo da alteração que seja necessária efectuar no rol apresentado, e as suas declarações documentadas, aplicando-se sempre que necessário o disposto no n.º 6 do artigo 117.º.
Naturalmente que este requisito formal – falta justificada ou não – tem que ser analisado em conjunção com o requisito substancial igualmente presente: saber se “é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência”.
Considerando a ausência justificada do arguido – e a aceitável dificuldade de movimentação devida à intervenção cirúrgica – e a circunstância de apenas haver uma data designada para a audiência, supõe-se a existência de uma decisão dupla: designar nova data e notificar o arguido; decidir se o julgamento se deve iniciar de imediato sem a presença do arguido.
A primeira decisão não foi tomada, a segunda foi deficientemente fundamentada com um despacho de mero formalismo a não se considerar imprescindível a presença do arguido sem se afirmar o porquê dessa não imprescincidibilidade, dito de outra forma, da sua dispensabilidade.
É que aqui uma outra questão mais substancial se impõe fazer notar. O arguido foi julgado pela prática de sete crimes de injúrias. Os factos revelam desde a acusação uma extrema “secura” não revelando a motivação dos factos imputados. A prova contra ele resumiu-se às declarações da assistente e de duas testemunhas, marido e mãe da assistente.
Se há processos onde a presença do arguido mais se justifica (onde a sua presença se nota menos prescindível) – deixando-lhe o ónus de não prestar declarações – são estes processos de cariz essencialmente pessoal e subjectivamente probatórios, onde as declarações dos interessados são o único (ou essencial) elemento probatório relevante. Serão os casos de injúrias, ofensas corporais simples, violência doméstica de fraca intensidade física (por não deixarem rastos de ofensas pericialmente indesmentíveis) ou outros do mesmo jaez.
Por isso que a fundamentação do tribunal recorrido se revele substancialmente inexistente, com clara violação do disposto no artigo 333º, nº 1 e 2 do C.P.P. e AUJ nº 9/2012.
Motivos que firmam a procedência do recurso que apenas conduziriam à declaração de uma nulidade.
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B.4 – Acresce que – como se afirmou supra - é oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal e no caso verifica-se um desses vícios.
Afirma-se na fundamentação de facto da decisão recorrida, a propósito da assistente, que:
“Instada esclareceu não ter qualquer dúvida que as expressões lhe eram dirigidas a si, já que foram proferidas na sua direcção e era a única pessoa que se encontrava presente nas imediações.
Evidenciou, ainda, bastante desconforto, indignação e humilhação pelo sucedido, que deve, sendo perceptível para o Tribunal que a presença próxima do arguido lhe traz alguma perturbação.”.
Se assim é quanto ao primeiro parágrafo, como houve testemunhas?
Se assim é quanto ao segundo, como foi o arguido julgado não estando presente se a sua presença causava tais incómodos?
Essa evidente incongruência lógica é, processualmente, uma contradição insanável na fundamentação, vício de que fala o artigo 410º, nº 2, al. b) do C.P.P., implicando o reenvio total dos autos para novo julgamento, nos termos dos artigos 426º, nº 1 e 410º, nº 2, al. b) do Código de Processo Penal. É o que se determinará.
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C - Dispositivo
Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso interposto e, oficiosamente, anular o julgamento e, em consequência, determinam o reenvio total do processo ao tribunal recorrido nos termos dos artigos 426º nº 1 e 410º, nº 2, al. b) do Código de Processo Penal.
Sem tributação.
(elaborado e revisto pelo relator antes de assinado).

Évora, 18 de Outubro de 2018
João Gomes de Sousa (relator)
António Condesso

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[1] - Ver, com muito interesse, o acórdão da Relação do Porto de 07-04-2012 relatado por Joaquim Gomes (proc. nº 765/09.4PRPRT-A.P1): I - A dispensa de presença do arguido à audiência de julgamento tem sempre um carácter excepcional e visa essencialmente estabelecer uma concordância prática entre as garantias de defesa, no caso a comparência do arguido na audiência de julgamento, com a realização da justiça penal através dos Tribunais. II (…)
IV - A realização de audiência de julgamento sem a presença do arguido regulamentada no art.º 333° cinge-se apenas a duas situações: i) uma por iniciativa do tribunal, em virtude de ausência voluntária do arguido, que tanto pode ser injustificada como justificada, por estar impossibilitado de comparecer (n.º 1); ii) outra por iniciativa e com o consentimento do arguido (n.º 4).
V - O mesmo já não se passa se se tratar de uma ausência forçada do arguido, não lhe sendo imputável qualquer falta relevante de diligência, a qual configura nulidade insanável, ainda que o arguido tenha prestado TIR e tenha sido expedida notificação para a sua residência [119°, al. c)].