Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
80/15.4JAPTM.E1
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
DEPOIMENTO INDIRECTO
PROIBIÇÃO DE PROVA
Data do Acordão: 07/05/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário:
I - Do cumprimento do artigo 271.º do CPP (audição de menor em declarações para memória futura) resulta a validação formal da prova “por ouvir dizer” (ao menor) nos termos do art. 129.º, nº 1 do CPP, e a possibilidade de valoração das declarações da mãe do menor, da psicóloga e da médica, na parte em que relatam o que ouviram ao menor.

II - Se bem que a criança, de três anos de idade, não tenha chegado a relatar os factos, presencialmente e pessoalmente a um juiz, ela esteve presente perante um juiz em produção de prova por declarações para memória futura, no estrito cumprimento do disposto no artigo 271.º do CPP. Inexiste uma proibição de prova pois o tribunal chamou o menor a depor (artigo 128.º, n.º 1, do CPP), procedendo à audição do modo como a lei determina (artigo271.º do CPP).

III - Se a criança narrou, ou não, depois, os factos perante o juiz, é já um problema de valoração de provas, de maior ou menor consistência da prova, e não de legalidade de prova. [1]
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal:

1. No processo comum colectivo nº 80/15.4JAPTM da Comarca de Faro foi proferido acórdão em que se decidiu absolver o arguido A da prática de um crime de abuso sexual de criança do art. 171º, n.º2, do CP, condenando-o antes como autor de um crime de abuso sexual de criança do art. 171º, n.º1 e 177º, n.º1, al. a), do CP, na pena de 6 anos de prisão.

Inconformado com o decidido, recorreu o arguido, concluindo:

“1) Na estrutura do nosso processo penal a audiência de discussão e julgamento é o momento do processo onde se confluem todos os elementos probatórios relevantes, onde todas as provas têm de se produzir e examinar e onde todos os argumentos devem ser apresentados, para que o Tribunal possa alcançar a verdade histórica e decidir justamente a causa.

2) Terminado o julgamento, é proferida a sentença, que deve conter relatório, fundamentação e dispositivo, tendo por base o disposto no artigo 374.º do CPP.

3) Na sua fundamentação, a sentença começará pela descrição dos factos provados e não provados, seguida da exposição dos motivos de facto com exame crítico das provas que conduziram à formação da convicção do julgador, após o enquadramento jurídico-penal da matéria de facto apurada, se existem causas de exclusão da ilicitude da conduta ou da culpa do mesmo e, por fim, concluindo-se que o arguido praticou o facto punível, seguir-se-á a escolha e a determinação da medida concreta da pena.

4) A pronúncia deve ser inequívoca: em caso algum pode ficar a dúvida sobre qual a posição real do tribunal sobre determinado facto.

5) É na fundamentação da sentença, sua explicitação e exame crítico que se poderá avaliar a consistência, objectividade, rigor e legitimidade do processo lógico e subjectivo da formação da convicção do julgador.

6) Não é suficiente a mera indicação das provas, sendo necessário revelar o processo racional que conduziu à expressão da convicção do julgador.

7) Face a estes considerandos, o recorrente entende que salta à vista pelo próprio texto do acórdão, que se verifica, in casu, a nulidade do douto acórdão proferido em 1ª instância por insuficiência de fundamentação da decisão de facto e falta de exame crítico da prova.

8) Em julgamento foram apresentadas duas versões (opostas) dos factos da acusação: a versão do arguido, que negou a sua prática, e a formulada na acusação pelo Ministério Público, tendo o Tribunal a quo nitidamente dado uma credibilidade especial aos meios de prova apresentados pelo Ministério Público, ignorando por completo a prova apresentada pelo arguido.

9) Perante provas de sinal contrário - declarações da mãe do menor e declarações complementares da perita (parágrafo 23 do ponto 3 “Motivação da decisão de facto”), versus declarações das testemunhas arroladas pelo arguido, o tribunal não está, nem pode estar, desobrigado de justificar a maior credibilidade que as testemunhas arroladas pelo arguido tenham eventualmente merecido, ainda para mais quando presentes no dia dos alegados factos.

10) As declarações prestadas pelas testemunhas arroladas pelo arguido deveriam ter alcançado uma consistência que o tribunal, por razões que no acórdão não se explicou, não lhes reconheceu.

11) A explicitação da convicção do Tribunal recorrido quanto à matéria factual e apurada não traduziu o exame crítico.

12) A motivação em processo penal não se compadece como no aresto recorrido com a falta de enumeração dos meios de prova presentes em julgamento, sendo necessária uma verdadeira reconstituição e análise crítica do iter que conduziu a considerar cada facto como provado ou não provado, ou seja, uma declaração genérica e tabelar não é suficiente.

13) O tribunal recorrido, limitou-se a reproduzir o que constava da acusação, com excepção que tivesse sido introduzido o pénis erecto no ânus do menor.

14) Deste modo, o acórdão revidendo incumpriu o dever de fundamentação da decisão de facto, quer no que respeita aos factos dados como provados, quer no que concerne aos factos dados como não provados.

15) O acórdão revidendo omitiu uma descrição clara e elucidativa dos motivos fundantes da decisão.

16) O Tribunal a quo violou claramente o preceituado no artigo 374º, nº 2, do CPP.

17) Assim o acórdão proferido é nulo, nos termos previstos no artigo 379º, nº1 alínea a), do Código de Processo Penal o que conduz à nulidade da decisão proferida.

18) Os elementos com base nos quais o Tribunal “a quo” fundou a convicção de que o arguido praticou o crime de abuso sexual de criança agravado do qual vinha acusado, são manifestamente insuficientes para que se possa concluir pela culpa do mesmo, e pela consequente condenação a um cárcere de Seis anos a cumprir num Estabelecimento prisional.

19) O recorrente considera que a matéria dada como provada deveria ter sido dada como não provada, mais precisamente, os pontos 4 a 10.

20) O arguido, numa postura cooperante com o Tribunal, quis, à semelhança do que tinha feito anteriormente em 1º interrogatório judicial (fls.132) prestar declarações, tendo negado a sua participação por qualquer meio no crime de abuso sexual de que vinha acusado.

21) Negou de modo claro, coerente, lógico e perfeitamente credível na totalidade os factos que lhe são imputados na acusação pública, justamente por não os ter praticado, descrevendo com um depoimento sintético, mas verdadeiramente claro, pautado pela humildade de um pai que se vê colocado numa situação tão complexa e grave como a presente, tudo o que se passou no dia 10 de Maio de 2015. (Audiência de discussão e julgamento no dia 19/ 10/2015, pelas 09 horas e 41 minutos e 22 segundos até às 10 horas e 07 minutos e 52 segundos, encontrando-se gravado em suporte digital, conforme passagens constantes das presentes Alegações no ponto III ”Erro notório na apreciação da prova”.)

22) A versão do arguido é reforçada pelas concretas passagens das declarações das testemunhas arroladas pela defesa e presentes no dia em que os alegados factos aconteceram, mais precisamente o depoimento de Isabel (1ª sessão de julgamento – 19/10/2015- pelas 11horas e 11 minutos e 12 segundos até às 11 horas e 28 minutos e 59 segundos); Maria Odete (1ª sessão de julgamento – 19/10/2015- pelas 11horas e 29 minutos e 21 segundos até às 11 horas e 37 minutos e 25 segundos) e Maria Elisabete (1ª sessão de julgamento – 19/10/2015- pelas 11horas e 44 minutos e 25 segundos até às 11 horas e 50 minutos e 20 segundos,), em conformidade com as passagens a que se alude nas Alegações.

23) Quanto ao menor não temos qualquer depoimento, aliás em conformidade com o auto de fls. 213 a 215 que no dia 03/07/2015 e no dia 08/07/2015 foram colhidas as suas declarações para memória futura, sendo as mesmas gravadas em suporte magnético e posteriormente ouvidas em audiência de julgamento (1ª sessão de julgamento – 19/10/2015).

24) Na ausência de uma prestação testemunhal do menor, e sem prova alguma produzida nesse sentido, restam os outros contributos, que não alcançam a consistência que o Tribunal, por razões que no douto acórdão explicou, lhes reconheceu.

25) O depoimento da mãe do menor, N que não viu, nem assistiu a qualquer dos factos constantes da acusação, portanto também irrelevante quanto ao apuramento dos factos, porquanto não estava presente quando os alegados factos aconteceram, não os tendo presenciado (1ª sessão de julgamento – 19/10/2015- pelas 10horas e 07 minutos e 56 segundos até às 10 horas e 49 minutos, encontrando-se gravado em suporte digital, conforme concretas passagens a que se alude nas Alegações no ponto III ”Erro notório na apreciação da prova”.)

25) O depoimento prestado pela Técnica da CPCJ de Lagos (Sílvia), no entendimento do recorrente, o mesmo não merece qualquer credibilidade, por estar em causa a percepção e a apreciação de factos que exigem especiais conhecimentos científicos de que aquela, manifestamente não dispõe, para além do seu depoimento ser sempre também considerado indirecto (não podendo ser valorado como meio de prova) e pela inquirição da criança ter sido feita apenas no dia 12 de Maio de 2015 (passados dois dias da alegada ocorrência dos factos).

26) O restante conjunto probatório em que o Tribunal a quo fundou a sua convicção, ou seja, o relatório de urgência de fls. 9, o relatório pericial elaborado pela Drª Ana o relatório do serviço de genética e biologia forenses de fls. 258 e o relatório pericial de criminalística biológica de fls.283 também impõe uma decisão diferente da recorrida, não podendo o tribunal recorrido dar como provados os factos 5 e 6, em consequência, os restantes elencados no acórdão.

27) Aliás as declarações complementares prestadas pela Sra. Perita, que elaborou o relatório pericial de fls.244/283 abalam toda a credibilidade do relatório por si elaborado, trazendo novos factos aos autos que consistiram essencialmente em três aspectos (existência de sangue, data das fissuras e sua proveniência), os quais importavam uma análise com elevado sentido de responsabilidade, e grande empenhamento pelo Tribunal a quo que a própria complexidade da causa impõe, o que não se verificou.

28) A motivação da decisão de facto não podia ser sustentada, quer pelo relatório pericial de fls. 244/283, quer pelas declarações da Srª. Perita que o elaborou, devendo a decisão recorrida ser modificada, pois as práticas dadas como provadas, não o poderiam ter sido, padecendo assim, a referida fundamentação de facto, de vícios que inquinam todo o Douto Acórdão, pois alicerça-se em factos que não resultam de qualquer prova produzida em audiência, estando antes em nítida contradição com a prova produzida.

29) Impunha-se que o tribunal “a quo” tomasse uma decisão oposta à que resulta do acórdão recorrido, considerando que o Recorrente não praticou o crime hediondo de que vinha acusado.

30) A lei dispõe igualmente que a prova é apreciada segundo as regras da experiência comum e da lógica do homem médio, tendo como limite o principio in dubio pro reo.

31) Dever-se-á aplicar o princípio in dubio pro reo por existir a dúvida ao confrontarmos a prova testemunhal e documental, mais precisamente o relatório pericial junto aos autos a fls. 244/283.

32) O Arguido põe em crise os pontos da matéria de facto provada relativos ao crime pelo qual vem acusado por entender que no decurso da audiência de julgamento não foi produzida prova suficientemente relevante para a determinação da sua condenação.

33) Mostram-se incorrectamente julgados os pontos 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 10 da matéria de facto que no douto Acórdão recorrido se considera provada e cuja resposta deve ser alterada para “não provado”, por tal impor a prova que foi produzida nos autos.

34) Não tendo sido produzida prova sobre a matéria de facto constante da douta Acusação Pública, não pode o Tribunal dar como provados tais factos, sendo que o princípio da livre apreciação da prova que se encontra consagrado no art.º 127° do CPP não significa que ao Julgador seja conferido o poder arbitrário de julgar factos sem prova ou contra as provas.

35) O arguido presume-se inocente enquanto não for provado o contrário, não lhe competindo provar essa sua inocência, beneficiando do princípio in dubio pro reo, que subsidiariamente se invocou.

36) Entende o recorrente que o Tribunal de 1.ª Instância fez errada apreciação e interpretação da prova produzida nos autos e, consequentemente, errada aplicação do Direito aos factos, violando o douto Acórdão recorrido, entre outros, o disposto nos artigos 32º, nº2 da C.R.P., 97º, nº5, art.º 126º, nº1 e nº2, art.º 127°, 355º, 410, nº2, alíneas a) e c) do C.P.P..

37) Devendo, em consequência, ser tal Acórdão revogado e substituído por outro que, julgando a matéria de facto nos termos supra referidos, absolva o arguido aqui recorrente da prática do crime de que vem acusado, com as demais consequências da lei.

38) Se por mera hipótese, se considerar que o Recorrente incorreu na prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art° 171°, n° 1 e 177º, nº1, alínea a), do Código Penal, entendemos que a medida da pena aplicada pelo Tribunal a quo é extremamente excessiva.

39) O Tribunal a quo, não ponderou, na fixação da medida da pena todos os factores relevantes para o efeito que, por imposição legal, deveria ter considerado.

40) Não considerou como circunstâncias atenuantes da culpa do arguido, o facto de o arguido não ter antecedentes criminais, (ponto 11 da matéria de facto dada como provada) quer no país de origem, quer no nosso país, bem como o facto do arguido, se encontrar no nosso país, pela segunda vez, meados de 2013, sem que lhe seja conhecida a prática de qualquer ilícito criminal (ponto 12 da matéria de facto dada como provada) e o facto de estar bem inserido na comunidade.

41) Como não valorizou, sequer o facto de o arguido ter querido prestar declarações, o que revela a sua atitude cooperante com o Tribunal.

42) Entendeu o Tribunal a quo que contra o arguido também depõe a circunstância do “alarme social que provocou na cidade” (ponto 6 da Escolha e Medida da Pena), extraindo conclusões da prova que não lhe são permitidas, já que nada consta a este respeito nos factos dados como provados.

43) O colectivo de juízes considerou como agravante as consequências que o alegado acto do arguido provocou no menor (ponto 6 da Escolha e Medida da Pena), no entanto para além da prova deste facto não se ter feito, uma vez que não há qualquer relatório médico junto aos autos a este respeito, a prova também vai no sentido oposto (o Lucas continuou a perguntar e a querer estar com o pai).

44) A única solução equilibrada e justa teria sido fixar a pena única aplicável ao arguido num quantum muito próximo do limite mínimo da moldura penal aplicável.

45) A pena de Seis anos de prisão a que o Tribunal a quo condenou o arguido, ultrapassando exacerbadamente os limites da sua culpa, revela-se desproporcional à necessidades de prevenção geral e especial que o caso reclama, desadequada à concreta finalidade da ressocialização do agente, frontalmente violadora do comando contido no artigo 71º do Código Penal, portanto injusta e inadmissível, impondo-se a sua revogação.

46) Devendo a mesma ser reduzida, aplicando-se ao arguido uma pena inferior a 5 anos de prisão, que deverá ser suspensa na sua execução.

47) O recorrente considera que é possível realizar um juízo de prognose favorável, pois, encontra-se inserido socialmente no nossa comunidade, não tem antecedentes criminais, surge amplamente documentada uma personalidade absolutamente íntegra, séria e respeitada, quer pelas testemunhas presentes em julgamento, quer pelo conteúdo do relatório social, totalmente credível ao dever ser jurídico-penal, porque profundamente cumpridora dos valores mais elementares que colocam valor da virtualidade de um juízo de prognose positiva de que a aplicação de uma pena suspensa surta efeito.

48) Assim, atendendo à personalidade do arguido, e à ameaça da prisão ser de molde a afastar a prática de novos crimes, sendo a simples ameaça da prisão censura suficiente, de tal forma que deverá consentir a aplicação de uma pena suspensa, encontrando-se preenchidos para o efeito os requisitos previstos no art. 50º, nº1 do CP.

Nestes termos e sem prescindir do douto suprimento de V. Exas., requer desde logo o recorrente a modificação da decisão do Tribunal de primeira instância sobre matéria de facto tendo em conta que constam do processo todos os elementos de prova que lhe serviram de base pelo que deve o presente recurso merecer provimento e, em consequência, ser revogado o douto acórdão proferido pelo tribunal “a quo”.

Decidindo-se no sentido de absolver o recorrente,

a) Deve ainda o presente acórdão ser revogado por nulidade, por insuficiência de fundamentação da decisão de facto e exame crítico da prova, nos termos previstos no artigo 379º, nº1 alínea a), do Código de Processo Penal, por violação do preceituado no artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal.

b) Deve ainda o presente acórdão ser revogado por erro notório na apreciação da prova, em manifesta e inequívoca violação do art.º 32.º n.º 2, 205.º n.º 1, da C.R.P da C.R.P. e art.º 410.º, n.º 2, alínea a) e c) do C.P.P. e em consequência o recorrente absolvido do crime de abuso de criança agravado.

c) Deve ainda ser revogado por nulidade o douto acórdão por clara violação do princípio “in dubio pro reo”, e que se reconduz ao erro notório na apreciação da prova enunciado na alínea c) do n.º2 do art.º 410º do Código de Processo Penal e em consequência o recorrente absolvido do crime de abuso sexual de criança agravado.

d) Deve a pena aplicada ao recorrente ser reduzida, por injusta e desproporcional, aplicando-se ao arguido uma pena inferior a 5 anos de prisão, que deverá ser suspensa na sua execução, tendo o Tribunal a quo decidido em desconformidade com o disposto nos art.º 40.º e 71.º do C.P. como é de JUSTIÇA.”

O Ministério Público respondeu ao recurso pronunciando-se no sentido da confirmação do acórdão, afirmando não ocorrerem as apontadas nulidade e vício da decisão, não ter sido violado o princípio do in dubio pro reo, devendo ser também mantida a pena aplicada:

Neste Tribunal, o Sr. Procurador-geral Adjunto emitiu parecer, pronunciando-se no sentido da confirmação da decisão em matéria de facto, mas não acompanhando a resposta quanto à decisão sobre a pena. Neste ponto, considerou dever ser a pena fixada em 4 anos de prisão e suspensa na execução com regime de prova.

Não houve resposta ao parecer. Colhidos os vistos, teve lugar a conferência.

2. No acórdão, consideraram-se os seguintes factos provados:

“1.º - Desde data não concretamente apurada mas seguramente após o mês Janeiro de 2011, o arguido A. e N. tiveram uma relação de namoro com relações sexuais de cópula completa.

2.º - Das referidas relações sexuais nasceu, no dia 06.12.2011, B.;

3º. – Em data não concretamente apurada, mas seguramente no mês de Maio de 2013, o arguido regressou a Portugal e passou a residir na Quinta das Seis Marias,…, Lagos.

4º- No dia 10 de Maio de 2015, em horas não concretamente apuradas mas certamente anterior às 18h30m, na referida residência sita na Quinta das Seis Marias, o arguido abeirou-se do filho B- e retirou-lhe a roupa da cintura para baixo.

5.º- Após, despiu-se e tentou introduzir o seu pénis erecto no ânus do filho e friccionou-o.

6.º- A conduta do arguido causou duas fissuras, cada uma medindo 5mm de comprimento, no ânus do ofendido, tendo-lhe provocado dores.

7.º - O arguido tinha perfeito conhecimento que, à data dos factos, o ofendido tinham três anos de idade, agiu com intenção de satisfazer os seus intentos libidinosos, bem sabendo que este em razão da sua idade, não tinha a capacidade e o discernimento necessários a uma livre decisão, e que aquele relacionamento sexual prejudicava o seu normal desenvolvimento.

8.º -O arguido ofendeu, assim, o sentimento de criança, de inocência, de modéstia e de vergonha do menor, bem como a integridade física e psicológica daquele.

9.º - O arguido sabia que os factos que praticou com e sobre o seu filho eram adequados a prejudicar um livre e harmonioso desenvolvimento da personalidade deste, e que tinha reflexos na esfera sexual da personalidade do mesmo.

10.º - O arguido agiu, livre e conscientemente, bem sabendo que tal conduta lhe estava vedada e era punida criminalmente.

11º O arguido não possui antecedentes criminais;

12º Antes da ocorrência dos factos agora em julgamento e de ser sujeito a uma medida de prisão preventiva em Maio/2015, A. estava a residir em instalações da Quinta das Seis Marias,---, herdade agrícola de produção biológica onde exercia funções laborais desde 2013, com vínculo contratual e descontos para a Segurança Social, auferindo um salário mensal de 500 euros.

A. encontra-se separado de facto desde há cerca de 2 anos da mulher, N., com quem casou em Cabo Verde em Junho/2011 e da qual tem um filho de 3 anos, B., menor vítima neste processo e que reside com a progenitora e os avós maternos no Chinicato, perto de Lagos.

O arguido cresceu com os seus 10 irmãos numa zona rural da Ilha do Fogo, Cabo Verde, no seio de um agregado familiar de parcos recursos económicos, dedicando-se o progenitor a uma agricultura de subsistência. O seu processo de desenvolvimento foi enquadrado por regras rígidas impostas pelo pai, que no entanto sofria de problemas de alcoolismo traduzido no exercício de alguma violência física sobre a mulher e os filhos.

A. estudou até aos 15 anos na terra natal, tendo concluído o 6º ano de escolaridade antes de começar, conjuntamente com os irmãos, a ajudar o pai em tarefas agrícolas, ocupação que conjugava com a criação de algum artesanato da região para venda aos turistas que visitam a Ilha do Fogo.

No final de 2010, durante um período de permanência em Cabo Verde para desenvolvimento de um projecto cultural, N e o arguido envolveram-se afectivamente e viveram juntos em Cabo Verde, uns meses antes de casarem e viajarem para Portugal em meados de 2011, fixando residência na morada dos sogros de A.

Apesar do nascimento do filho no final de 2011, e de não existir registo de episódios de agressividade física e/ou sexual nem hábitos aditivos do arguido, o relacionamento do casal nem sempre foi pacífico. Verificaram-se alguns conflitos provocados por ciúmes da parte do arguido, e diferenças culturais que originaram uma ruptura conjugal em 2012 e o subsequente regresso de A. para o Fogo, onde viveu cerca de um ano junto do agregado de origem.

Nesta fase o arguido manteve relacionamentos amorosos com várias mulheres e ocupou-se na venda de artesanato, mas o empobrecimento da região de origem originado pela erupção vulcânica e as saudades do filho, segundo o próprio, motivaram o seu regresso a Lagos em meados de 2013.

Durante os últimos 2 anos o arguido e N. permaneceram a viver separados, tendo A. retomado o seu emprego na herdade biológica do Sargaçal enquanto a mãe do seu filho continuou o seu trabalho na Associação…, residindo com os progenitores. Não foram sinalizados nesta fase focos de tensão entre ambos relativamente ao filho, apesar de não terem sido reguladas judicialmente as responsabilidades parentais relativas ao menor.

O arguido mantinha diálogo com N. e via o filho com regularidade, normalmente aos domingos, dia que B. passava na quinta biológica na companhia do progenitor, sem pernoitar.

Nunca houve sinais notórios de que esta relação com o pai fosse problemática ou que constituísse um risco para a criança.

No contacto efectuado com F, responsável pela herdade biológica onde A. vive e trabalha, foi-nos referenciado que o arguido é uma pessoa sociável em contexto laboral e um trabalhador empenhado. Um dos seus hábitos é tocar viola, mantendo um hobby que trouxe de Cabo Verde.

O presente processo teve um enorme impacto junto de A., mas sobretudo e pelo inesperado da situação, junto da mãe da criança vítima e da entidade empregadora do arguido, pessoas com as quais o arguido passava a quase totalidade do seu tempo.

Sem qualquer contacto anterior com o sistema penal, em contexto de entrevista A. verbalizou plena consciência da gravidade da acusação, mas não assumiu responsabilidade perante o sucedido, apresentando relativamente às lesões do menor vítima uma explicação diferente dos factos, não patenteando grande envolvimento emocional.

Manifesta vontade de permanecer a residir em Portugal e retomar, logo que possível, os contactos com o filho.

Nos últimos 5 meses em meio prisional, o arguido frequentou uma acção formativa sobre cidadania e reinserção e comparece regularmente nas sessões de apoio religioso. Não tem apoio exterior nem visitas regulares e já foi alvo de uma sanção disciplinar interna.

Foram considerados como não provados os seguintes factos:
“Que o arguido tivesse introduzido o pénis erecto no ânus do filho.”

O exame crítico da prova consistiu no seguinte:

“O tribunal formou a sua convicção com base nas declarações das testemunhas e documentos juntos aos autos.

Concretizando,
O arguido quis prestar declarações negando a prática dos factos. Pelo mesmo foi dito que no dia em causa estava com o filho em casa a fazer o almoço e o filho estava a saltar em cima da sua cama. Acto contínuo, o B. começou a chorar e a dizer que lhe doía o rabinho, sendo que o arguido viu uma das bolas que ornamentam a cama caída, pelo que pensou ter sido algo com a bola. Como o filho lhe disse que doía, o arguido deu-lhe banho, almoçaram e foram ao café tendo regressado à Quinta e ficado a brincar até a mãe ir busca-lo, sendo que o B. não referiu mais nada. Admite no entanto que quando a mãe veio o B. não aceitou uma bolacha que o pai lhe deu e disse, - perante a mãe – que o pai o tinha magoado no rabinho, sendo que igualmente quando se sentou no assento do veículo disse que lhe doía o rabo. Acrescenta que não sabe porque é que o filho disse aquilo e que se sente revoltado com a situação.

A testemunha N, mãe do B., referiu que no dia 10 de maio chegou a casa do ex-marido para ir buscar o filho de ambos e que o arguido ofereceu-lhe café e uma bolacha ao filho. O B. não aceitou a bolacha e deu uma palmada na mão do pai ao que foi repreendido pela depoente, sendo que o menor respondeu que ‘o pai magoou-me no rabinho com a pilinha’. O pai negou e o B. saiu e o pai foi atras dele. O pai acabou por insistir levar o B. até ao carro e o B. não se conseguia sentar no banco do veículo, ao que o arguido disse que era melhor voltar para casa para conversar, o que a depoente negou.

Foram para casa dos avós maternos onde vivem e o B. quando chegou foi direito ao avô e contou-lhe o que havia referido e correu para o seu quarto (reacção que segundo a depoente não é normal). A depoente pediu ao seu pai para ir ao Hospital com ela e o filho, sendo que foi visto pelos médicos.

Mais referiu que o filho já não usava fraldas e tinha trato intestinal normal, não padecendo de obstipação.

No dia seguinte, a depoente deslocou-se à CPCJ de Lagos e foi atendida pela Dra. Sílvia, com quem o menor falou sobre o assunto mais pormenorizadamente.

Na terça-feira, dia 12, o arguido enviou-lhe um SMS a dizer que se ia embora para Cabo Verde.

Acrescenta ainda que o filho teve pesadelos durante duas ou três semanas e durante uma semana fazia cócó pelas pernas abaixo, sendo que voltou ao Hospital no dia 18 de Maio devido a isso mesmo.

Referiu ainda que o filho, nos dias seguintes, perguntava pelo pai e falava do pai com regularidade, sendo que já não o faz neste momento.

Consta igualmente do processo duas declarações para memória futura do menor, mas que – após várias tentativas – não foram feitas declarações sobre os factos pela tenra idade do menor, como se pode constatar da sua audição.

Aqui chegados, o Tribunal ao abrigo do disposto no artigo 340º do CPP, ordenou que se ouvisse a Técnica da CPCJ que ouviu o menor.

A Dra. Sílvia, Psicóloga na CPCJ de Lagos, referiu que a mãe do menor deslocou-se à comissão no dia 11 de Maio e levou o filho no dia 12 de Maio de 2015. Tentou colocar o menor à vontade através de brincadeiras e quando percebeu que o menor estava integrado, pediu à mão para sair. Sozinhos e com a ajuda de bonecos anatómicos próprios, o menor disse-lhe que o pai pôs a pilinha no rabinho, que o pai estava despido (despindo o respectivo boneco) e que o pai o magoou e ‘eu chorei’, o ‘pai pôs gelo e pediu desculpa’. Acrescentou ainda que o menor explicou com a ajuda dos bonecos, escolhendo o do sexo masculino mais escuro. O menor pediu entretanto para chamara a mãe e a entrevista acabou, tendo em atenção que a depoente não insistiu mais, porém percebeu que o menor tinha vergonha em falar do assunto (mormente, não porque percebesse na altura qualquer conotação sexual – provavelmente posteriormente através de perguntas, mas apenas sabendo que o pai fez mal porque doeu).

Aqui chegados, o Tribunal socorreu-se igualmente

- do relatório de urgência de fls. 9, onde é referido “criança explica e diz ter sido o pai que fez dói dói”, sendo referido nesse relatório “rubor perianal. Duas fissuras anais às 12h e 6h em posição geno-peitoral. Toque rectal com esfíncter normotonico, sem resíduos hematicose sem muco” (…) trânsito intestinal habitualmente mantido e normal” (segundo a mãe)

- Conversa informal de fls. 69, relatada pela Sra. Inspectora da PJ Margarida, a 12 de Maio de 2015, onde o menor reafirma os factos;

- O Relato de diligência externa de fls. 79 e respectivo auto de apreensão de fls. 84;

- Informação de fls. 85 onde é referido que a Sr. Perita Medica que examinou o menor, examinou igualmente as fotografias efectuadas no interior da residência, nomeadamente a peça plástica e embutida na estrutura metálica da cama, concluindo que tal peça não pode ter sido responsável pelas lesões apresentadas pelo menor, pois não são compatíveis com queda em cima daquele objecto, mas sim com abuso sexual de que aquele diz ter sido vitima por parte do pai;

- O Relatório pericial que se encontra junto aos autos a fls. 244/283 e respectivo anexo de fls. 280, onde é referido que o examinado apresenta “duas fissuras, cada uma medindo 5mm de comprimento, uma delas no ponto correspondente às 12 horas e outra no ponto correspondente às 6 horas do mostrador de um relógio, ambas a nível de pregas anais”, concluindo que “as lesões observadas a nível da região anal e peri-anal, são compatíveis com a informação prestada pelo menor (revelando-se o seu discurso espontâneo, coerente e consistente) ”;

- O Relatório pericial de criminalística biológica de fls. 283, onde se constata que “nas zaragatoas perianal, intranal e oral, a presença do mesmo perfil genético individual masculino, distinto do perfil do arguido. “

O Tribunal ordenou que fossem prestados esclarecimentos pela Sr. Perita, face aos resultados acima referidos, sendo que a mesma prestou os esclarecimentos solicitados de uma forma claríssima e coerente.

Pela Sra. Perita foi referido que as fissuras que o menor apresentava eram recentes (sendo que não pode garantir o tempo, face ao sitio onde se situam ser um sitio normalmente húmido e, portanto, de difícil cicatrização, pelo que poderiam ter sido feitas no dia anterior como há 15 dias).

Os esclarecimentos foram muito relevantes na medida em que referiu que não pode ter havido introdução do pénis, pois apresentaria obrigatoriamente um ‘estrago’ muito maior, pelo que é compatível com tentativa através de fricção mas sem penetração. Mais acrescentou que aquelas fissuras não são compatíveis com a bola da cama e são aptas a sangrarem, mas se foi colocado gelo, as mesmas tendem a retrair e a desinflamar e se foi dado banho de seguida, é normal que as mesmas não tenham sangrado para as cuecas. Mais referiu que a ausência de ADN do arguido é perfeitamente possível face ao gelo e ao banho dado ao menor de seguida, sendo que os exames ao relatarem a presença de outro ADN masculino, deverá ser – no seu entendimento – o do próprio menor que apenas possuía o seu ADN como amostra problema e não como amostra referencia, pelo que não é referido ser do próprio.

Questionada, a Sr. Perita referiu ainda que o próprio menor lhe disse que o pai fez dói dói no rabinho com a pilinha e que foi muito coerente, sendo que já sabia da história quando efectuou o exame pericial. Acresce ainda que aquele tipo de fissuras poderão igualmente ser compatíveis com a força para fazer cócó e mesmo com diarreia, mas que tal foi afastado pelo facto de a mãe referir inicialmente que o menor era regular. Por fim referiu que, muito embora tal acto tenha sido praticado no início da tarde, é normal que o menor tivesse brincado o restante período da tarde, pois deixa de doer quando não está em contacto com nada.

Aqui chegados, face ao que foi atrás exposto, o Tribunal não tem duvidas algumas que se facto o arguido praticou os factos como acima se encontram provados, não arredando tal convicção com os testemunhos das testemunhas de defesa que referiram que o menor se encontrava bem disposto e a brincar nessa mesma tarde e que parece gostar muito do pai.

Na verdade, ainda que o arguido tenha negado a prática dos factos (o que está no seu direito), toda a prova produzida sustenta a acusação, sendo que o próprio arguido admite que o menor tenha referido que o pai o magoou assim que a mãe chegou a casa, sem conversas anteriores e relatado os factos sempre do mesmo modo ainda que sem grandes pormenores, o que é normal face à idade do menor e ao facto de o mesmo – atento a idade – não saber em concreto o que se passou para além de saber que o pai o magoou com a pilinha no rabinho, sendo que as lesões não estavam no ânus do menor por coincidência nesse dia (sendo estas compatíveis com o abuso), até porque o mesmo não sofre de problemas do trato intestinal, como é prontamente referido desde o inicio pela mãe.

Relativamente à situação pessoal do arguido, baseou o Tribunal no relatório social junto aos autos.

Quanto aos antecedentes criminais, o Tribunal tomou em consideração o certificado de registo criminal do arguido, constante dos autos.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº 2 do CPP (AFJ de 19.10.95), as questões a apreciar são (a) a impugnação da matéria de facto e (b) a pena.

(a) Da impugnação da matéria de facto

No questionamento da factualidade, embora invoque também o vício do erro notório na apreciação da prova, o arguido pretende impugnar a matéria de facto por via do recurso amplo, e fá-lo realmente ao abrigo do disposto no art. 412º, nº 3 do CPP.

Individualiza os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e que são os factos dados como provados sob os nºs 4 a 10, ou seja, todos os factos que realizam objectiva e subjectivamente o crime da condenação.

Procede à indicação das provas em que funda a impugnação, por referência à prova gravada que transcreve nas partes que interessam ao recurso. Transcreve, assim, excertos das declarações do arguido, da mãe do menor vítima, da perita médica, das testemunhas de defesa. Socorre-se ainda da perícia médica e da avaliação psicológica feita ao menor.

Começa por se consignar que, uma vez diagnosticada a complexidade de que se revestiria a decisão do presente recurso sobre a matéria de facto, para além da análise dos excertos de prova especificados e transcritos na motivação do recurso, procedeu-se também, nesta Relação, à audição integral da gravação das declarações do arguido, das declarações da mãe do menor e das declarações da perita médica. Audição que se fez ao abrigo do disposto no art. 412º, nº 6 do CPP, e por se afigurar importante para a decisão.

Tendo-se, só então, procedido à sindicância da “decisão de facto” do acórdão (decisão consistente nos factos provados, factos não provados e exame crítico das provas), no confronto agora das razões da discordância apresentadas pelo recorrente, sustentada nas concretas provas que suportaram a sua argumentação, adianta-se que a decisão do colectivo de juízas se mostra seguramente justificada, resistindo à impugnação.

Lembra-se que o recurso da matéria de facto visa a reparação de erros de facto. Como se tem afirmado sem dissensão na jurisprudência e na doutrina, é um remédio jurídico e não consiste nunca num segundo julgamento.

A Relação não pode proceder à reapreciação das provas na exacta medida em que o fez o juiz de julgamento porque não se encontra na mesma posição perante as provas – não dispõe de uma imediação total (embora tenha uma imediação parcial: relativamente a provas reais e à componente voz da prova pessoal) e não tem a possibilidade de interagir com a prova pessoal, estando impedida de intervir na orientação da produção da prova e de questionar directamente. Também o objecto do recurso não coincide com o objecto da decisão do tribunal de julgamento (este decide sobre a acusação, aquele decide sobre a sentença).

Há, por tudo, que reconhecer a existência de uma impressão causada no julgador, pelo prestador da prova oral, que só a imediação, em primeira instância, possibilita ao nível mais elevado. E tem de aceitar-se que, no modelo de recurso plasmado no Código de Processo Penal e numa interpretação conforme à Constituição, existirá sempre uma margem de insindicabilidade da decisão do juiz de primeira instância sobre a matéria de facto.

Regressando à concreta matéria objecto de apreciação, reconhece-se, como adiantámos, a complexidade da resolução da questão de facto sub judice, dificuldade naturalmente adensada na fase de recurso.

O desenrolar do julgamento, a direcção da audiência, o cuidado colocado na produção da prova e na averiguação dos factos, o desenvolvimento que a explicação da apreciação da prova mereceu no acórdão, tudo é revelador das dificuldades da presente decisão da matéria de facto. Complexidade resultante, desde logo, da circunstância da vítima ser uma criança de três anos de idade (que não conseguiu relatar os factos típicos em tribunal e perante um juiz) e de os factos típicos não terem sido directamente observados por terceiros.

Assim, trata-se de uma acusação sem prova directa dos factos relacionados com a imputação do crime à pessoa do seu agente. O arguido negou a prática desses factos e ninguém os observou directamente.

No entanto, do confronto das razões do recurso com o acórdão (restrito agora à parte relativa aos factos não provados e à sua explicação de acordo com as provas examinadas em julgamento), resulta que o recurso, mau grado a correcção abstracto-formal de argumentação, não procederá. Assim sucede desde logo porque o acórdão, num exame crítico de prova bastante cuidado e minucioso, continua a dar resposta às objecções suscitadas no recurso, como se passa a concretizar.

Em julgamento foram efectivamente apresentadas duas versões dos factos integrantes do crime de abuso sexual de criança – a do arguido, de negação, e a da mãe da criança, de confirmação do que se provou.

Estas versões foram antagónicas ou opostas quanto aos factos essenciais (ou seja, quanto aos pontos impugnados em recurso, pontos 4. a 10. dos factos provados), coincidindo já quanto a muitos dos factos circunstanciais que rodearam aqueles (circunstâncias estas exaustivamente referidas no exame crítico da prova, não já na matéria de facto, o que não consubstancia porém erro de fundamentação, pois trata-se de factos não essenciais e sendo por isso dispensável a sua inclusão na matéria de facto do acórdão).

De tudo se dá conta detalhadamente, repete-se, no exame crítico das provas, para o qual se remete, dispensando-se agora tanto a re-transcrição (cf. supra, ponto 2.), como a repetição por outras palavras do que ali se disse tão bem.

A problematização da oposição de versões ali tratada, não é nova. Ocorre frequentemente em casos de criminalidade como a presente. E da constatação desta circunstância não derivam, nem regras especiais de valoração de prova que conduzam a uma sobreavaliação injustificada do depoimento da vítima (ou das “suas” testemunhas) por contraposição a uma negação dos factos pelo arguido, nem uma impossibilidade de realização da prova da acusação.

Inexistem regras processuais penais especiais que confiram, só por isso e por si só, um “estatuto” especial às declarações da vítima, como regras que imponham que estas declarações tenham de ser corroboradas sob pena de nada valerem.

Como o recorrente aqui refere e como temos repetido em inúmeras decisões anteriores (jurisprudência que aliás conhece pois utilizou expressões nossas nas conclusões 8ª a 10ª), no confronto de prova oral de sinal contrário – como sucede com as declarações do arguido versus as declarações da vítima –, o tribunal não fica desobrigado de justificar a maior credibilidade que estas tenham eventualmente merecido, em detrimento daquelas. Sob pena de, não o logrando, dever fazer operar o princípio do in dubio pro reo.

Isto não significa, insiste-se, que a prova dos factos da acusação não possa assentar em declarações de ofendido, mesmo quando opostas à versão do acusado e desacompanhadas de provas corroborantes. A prova por depoimento de vítima é livremente valorada, também no eventual confronto com a prova por declarações de arguido. A lei não proíbe que possa, por si só, conduzir à condenação, e não o reconhecer (o que seria sempre e desde logo contra legem) inviabilizaria até a perseguição de crimes que ocorrem na privacidade – crimes não presenciados ou não testemunhados – em que o depoimento/declaração da vítima constitui muitas vezes a única prova possível dos factos da acusação, como notámos já.

As declarações do arguido também não são, em abstracto, menos credíveis do que as declarações da vítima. As declarações de arguido, reconhecidamente consideradas como um meio de defesa, corolário do direito a ser ouvido, a falar e/ou a não falar, são também um meio de prova. Foi esta a opção do legislador, na disciplina do art. 344º do CPP, por via do qual atribuiu à confissão efeitos de prova plena. E aceitando-se que o arguido tenha um especial interesse no desenrolar do processo, há que reconhecer que tal interesse também se pode encontrar do lado da vítima. Seria, pois, juridicamente errado retirar um eventual menor peso probatório das declarações de arguido (versus declarações do ofendido) da ausência de juramento e da obrigação de falar a verdade ou do interesse pessoal no desfecho do processo.

As declarações de arguido e as declarações de ofendido são, pois, valoradas segundo o princípio da livre apreciação da prova que significa ausência de critérios legais pré-fixados e, simultaneamente, “liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada verdade material – de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e susceptíveis de motivação e controlo” (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 2004, p. 202-3), não podendo tratar-se de uma convicção puramente subjectiva ou emocional, curando-se sempre de uma convicção pessoal, mas necessariamente objectivável e motivável.

Do princípio do in dubio pro reo decorrerá, por último, que ao arguido basta fragilizar a um certo nível a prova da acusação, já que, no enfoque probatório, acusação e defesa não se encontram em situação de igualdade. Inexiste repartição de ónus de prova em processo penal.

No presente caso, não é visível que o julgador se tenha afastado do cumprimento de qualquer regra e princípio de prova enunciados, particularmente dos relativos à apreciação, e que tenha sido atribuído aqui um peso incompreensivelmente diminuído à negação do arguido. Ou seja, que o tribunal tenha chegado às conclusões de “provado” infundada ou injustificadamente.

Do acórdão resulta que o tribunal se deparou, efectivamente, com provas de sinal contrário e abstractamente de igual peso probatório. O sentido das declarações do arguido e da assistente foi correctamente apreendido pelo colégio de juízas e foi devidamente sinalizada essa oposição de versões. Mostram-se também correctamente percebidas as especiais dificuldades de prova deste julgamento, logo resultantes da impossibilidade de uma audição judicial da criança vítima sobre factos cuja prática ninguém mais presenciou. A criança, de três anos de idade, não chegou a relatar os factos, presencialmente e directamente a um juiz.

Consigna-se que, no entanto, esteve presente perante um juiz (e por duas vezes), em diligência de produção de prova por declarações para memória futura, em estrito cumprimento do disposto no art. 271º do CPP. Mais se consigna que do cumprimento do art. 271º do CPP resulta então a validação formal da prova “por ouvir dizer” (ao menor), nos termos do art. 129º, nº 1 do CPP.

O tribunal pode, por isso, valorar todas as declarações e depoimentos - maxime o da mãe da criança - inexistindo assim qualquer proibição de prova. Pode-o porque chamou o menor a depôr (art. 128º, nº 1, do CPP), fazendo essa audição do modo como a lei determina (art. 271º do CPP).

Se a criança narrou, ou não, depois, os factos perante o juiz, é já um problema de valoração de provas e de maior ou menor consistência da prova. Não, de legalidade de prova. O que, apesar de não questionado em recurso (só muito superficialmente foi sugerido), não deixa de se resolver aqui.

Do exame crítico do acórdão resulta patente a complexidade da prova, como referimos. Mas o acórdão resolve as dificuldades, procedendo a um exame sério, detalhado e exaustivo, sendo-lhe absolutamente inaplicáveis observações que se fazem nas conclusões do recurso, como as seguintes: “não é suficiente a mera indicação das provas, sendo necessário revelar o processo racional que conduziu à expressão da convicção do julgador”, “salta à vista pelo próprio texto do acórdão, que se verifica, in casu, a nulidade do douto acórdão proferido em 1ª instância por insuficiência de fundamentação da decisão de facto e falta de exame crítico da prova”, “a explicitação da convicção do Tribunal recorrido quanto à matéria factual e apurada não traduziu o exame crítico das provas”.

Chamar “mera indicação das provas” ao exame crítico do presente acórdão pode revelar apenas pouca atenção na sua leitura, e não mais do que isso.

Do confronto do exame crítico da prova com a motivação do recurso resulta então que as especificações da prova feitas pelo recorrente vão afinal ao encontro das percepções tidas pelo julgador. Repeti-las em recurso nada acrescenta nem retira, portanto, às valorações de prova patentes no acórdão.

O tribunal socorreu-se acertadamente de todos os elementos probatórios, procurando corroboração das versões opostas sobre os factos controvertidos em apreciação. E todos os elementos “externos” (todas as provas corroborantes, directas e indirectas ou circunstanciais), foram avaliados, no sentido de se perceber perfeitamente como o tribunal considerou, no caso, e atenta a negação do arguido, como consistentemente mais verosímil a versão dada como provada. Fazendo-o, apoiado na maior racionalidade da versão relatada pela mãe do menor (de acordo com regras de lógica e de experiência comum), numa superior credibilidade (devidamente objectivada) que esta mereceu.

Na audição das gravações da prova a que a relação procedeu, concretamente do depoimento da médica que examinou, observou e falou com a criança, ficou patente a enorme valia destes esclarecimentos no sentido da corroboração da versão da mãe do menor e da consequente demonstração dos factos impugnados.

A médica, no decurso do amplo debate do contraditório, referiu, por exemplo: “quando falei no pai, a criança não hesitou” e à pergunta de “deu tautau?”, a criança respondeu “não, fez dódói no rabinho com a pilinha”.

A senhora perita médica foi sempre muito clara no sentido de que a criança “disse sempre a mesma coisa”, e esclareceu também que as lesões no ânus do menor são absolutamente compatíveis com a prática dos factos provados (embora não necessariamente só com eles), que de tais lesões sobrevém depois alguma dor, mas por contacto, o que seria compatível com a circunstância de o menor ter brincado durante a tarde sem apresentação queixas (o que foi relatado pelas testemunhas de defesa) e com a de só se ter queixado quando a mãe o foi buscar e ao ser sentado no banco do veículo automóvel desta.

Perante a mãe, a psicóloga e a médica, a criança repetiu sempre a mesma coisa (“o pai fez dóidói no rabinho com a pilinha”), simulou o acto com bonecos, durante a audição. A sua avaliação psicológica não revelou qualquer motivo para a suspeição.

Ainda a propósito da fidedignidade da declaração incriminatória proferida pela criança, a perita médica referiu em tribunal: “sou perita há vinte anos e não me deixa qualquer dúvida a maneira como a criança respondeu”.

Mas também as declarações do arguido, de negação da sua responsabilidade, é certo, não se apresentam afinal assim tão infirmativas dos factos provados, como pretende.

O arguido admite que o menor se terá lesionado no dia da ocorrência dos factos, e relata uma explicação inconciliável com as lesões que o seu filho apresentava depois.

A perita médica foi clara na explicação de que essas lesões eram absolutamente incompatíveis com a versão de que a criança se teria lesionado numa parte da cama (e já absolutamente compatíveis com a fricção de um pénis).

O arguido não se limitou a negar os factos, antes apresentou uma versão, mas destituída de credibilidade (as lesões no ânus da vítima não podiam resultar dos factos que o arguido relatou).

As declarações de arguido – na imediação e oralidade, no mais amplo palco de contraditório que é a audiência de julgamento - são o seu meio de defesa por excelência. Mas não deixam de constituir um meio de prova (foi essa a opção do legislador na disciplina do art. 344º do CPP, por via do qual atribui à confissão efeitos de prova plena). E ao prestar declarações, optando livremente por abandonar a defesa de nada dizer, as suas declarações passam a integrar o conjunto das provas livremente valoráveis, de acordo com o princípio da aquisição processual das provas.

O arguido não tem que provar a verdade da sua versão – inexiste repartição de ónus de prova em processo penal – mas ao apresentá-la, coloca-a à disposição do tribunal.

O tribunal passa a conhecer, não só a versão (das provas) da acusação, mas também uma versão que o arguido àquela contrapõe. E sobre a possibilidade de valoração positiva – no sentido da condenação - da “apresentação de uma versão inverídica pelo arguido” se pronunciou já o Supremo Tribunal de Justiça (cf. Acórdão do STJ de 12.03.2009, Rel. Santos Cabral).

O arguido continua a beneficiar da presunção de inocência até à sua condenação transitada em julgado, consagrada no art. 32º, nº2 da CRP e um dos direitos fundamentais reconhecido internacionalmente. Recai sempre sobre o acusador o encargo de destruir essa presunção de inocência. O in dubio pro reo impõe a valoração do non liquet, em questão de prova, sempre no sentido favorável ao arguido. Só que, no caso, não estamos em presença de um non liquet, pois as provas dos factos ora impugnados – todas elas indirectas, é certo – permitem concluir, em conjunto também com as declarações do arguido, pela suficiente consistência da versão dos factos dados como provados no acórdão.

Finda a produção da prova, o colectivo de juízas não teve dúvidas (no sentido de dúvida razoável, pois não é de uma certeza absoluta que se trata) sobre a ocorrência dos factos dados como provados. O exame crítico da prova materializa as preocupações que se enunciaram como devendo estar presentes, revela um particular cuidado na apreciação das provas, designadamente dos factos circunstanciais e das conclusões a retirar da prova científica, provas importantes na demonstração dos factos principais, como tudo se descreve em detalhe no acórdão.

A Relação deve, por tudo, aceitar que a apreensão do episódio de vida em apreciação tenha sido a correcta, tal como se encontra descrito nos factos do acórdão e como se mostra justificado na motivação. Não é detectável qualquer erro de facto.

(b) Da pena
O arguido impugna também a pena aplicada, dizendo que “deve ser reduzida, por injusta e desproporcional, aplicando-se ao arguido uma pena inferior a 5 anos de prisão, que deverá ser suspensa na sua execução, tendo o Tribunal a quo decidido em desconformidade com o disposto nos art.º 40º e 71º do CP”.

Na parte que releva em recurso, a fundamentação da pena no acórdão foi a seguinte:

“A moldura abstracta da pena do crime de abuso sexual de criança cometido pelo arguido é de 1 ano e quatro meses a 10 anos e 8 meses – artigo 171º, n.º 1 e 177º, n.º1, alínea a), do CP.

Na determinação da medida concreta da pena, importa atender à culpa do agente, às exigências de prevenção de futuros crimes e a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele (artº 71º do C.P.). Pela via da culpa, segundo refere o Prof. Figueiredo Dias (“As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, pág. 239), releva para a medida da pena a consideração do ilícito típico, ou seja, “o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente”, conforme prevê o artº 71º, nº 2, al. a) do C.P.

A culpa, como fundamento último da pena, funcionará como limite máximo inultrapassável da pena a determinar (artº 40º, nº 2 do C.P.). A prevenção geral positiva (“protecção de bens jurídicos”), fornecerá o limite mínimo que permita a reposição da confiança comunitária na validade da norma violada. Por último, é dentro daqueles limites que devem actuar considerações de prevenção especial, isto é, de ressocialização do agente (F. Dias, ob. cit., págs. 227 e segs.; Anabela Rodrigues, in R.P.C.C., 2, 1991, pág. 248 e segs.; e Ac. S.T.J. de 9/11/94, B.M.J. nº 441, pág. 145).

Assim, partindo desta moldura, atendemos aos factos praticados, às suas consequências na vida do ofendido, o alarme que provocou na cidade e atendemos igualmente ao modo de execução dos factos.

Se, por um lado, a ausência de antecedentes criminais do arguido não assumem qualquer relevo, e o arguido está socialmente inserido, já a ausência de arrependimento, a ausência de interiorização da gravidade das suas condutas, fazem concluir que não são despiciendas as exigências de prevenção especial.

Nestes termos, e à luz do disposto nos artigos 171º e 177º nº 1, do Código Penal, todos do Código Penal, entendemos adequado e proporcional aplicar ao arguido: pelo crime de abuso sexual de crianças, a pena de 6 (seis) anos de prisão.”

A sindicabilidade da pena em recurso situa-se na detecção do desrespeito dos princípios que norteiam a pena e das operações de determinação impostas por lei. A sindicância pelo tribunal superior nunca abrange a determinação/fiscalização do quantum exacto de pena que, decorrendo duma correcta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionada. A sindicância da pena não inclui a compressão da margem de livre apreciação reconhecida ao tribunal de 1ª instância, enquanto componente individual do acto de julgar.

Mesmo assim, é de reconhecer que a medida da pena foi fixada acima das exigências de prevenção geral e especial diagnosticadas no caso, e ultrapassa também o limite da culpa do arguido.

Cremos que a razão está em parte com o Sr. Procurador-geral Adjunto quando, no seu parecer, se pronuncia no sentido da confirmação da decisão em matéria de facto, mas não acompanha a resposta quanto à decisão sobre a pena. Neste ponto, considerou dever ser a pena fixada em 4 anos de prisão e suspensa na execução com regime de prova.

Dizemos “em parte”, pois embora se aceite que a pena se possa situar abaixo dos 5 anos, mas ainda assim acima dos 4 anos, sempre terá de ser efectiva.

Indo à decisão, o acórdão selecciona elementos de facto relevantes para a determinação da pena, procede à correcta identificação das normas legais aplicáveis, aplica os critérios de ponderação retirando deles uma medida de pena excessiva.

Na conhecida síntese de Figueiredo Dias, “toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção geral e especial; a pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais” (Direito Penal Português, Parte Geral I, Coimbra Editora, 2004, p.81).

Não se discute a gravidade dos factos praticados, sendo elevado o grau da ilicitude, tendo em conta desde logo o concreto acto sexual de relevo praticado, próximo da “violação”, e com causação de lesão física e de dor.

As consequências do crime cometido também não se esgotaram no momento da sua prática, nem nos momentos que se lhe seguiram. Se bem que a criança, pela sua idade, não se tenha apercebido do verdadeiro sentido do acto sobre ela praticado (assim o referiu expressamente a perita médica e assim resulta das regras da experiência comum) e possa mesmo tê-lo esquecido (o que também explicaria o resultado das declarações para memória futura), este episódio não desaparecerá da sua vida, não deixará de se repercutir muito negativamente no seu desenvolvimento (pois dele irá ter conhecimento no futuro) e no seu direito a (man)ter uma relação incólume e saudável com o pai (pois dela ficará privado).

Mas há que atender ao comportamento anterior do arguido, sem passado criminal, bem inserido social e profissionalmente, bem considerado por todos os que com ele privam.

Não há nota do cometimento de outros actos agressivos sobre a pessoa do filho, antes transparecendo de todo o julgamento a existência de uma relação boa e próxima com a criança, de quem gostava e que gostava dele. Também a circunstância de ser o pai da vítima e de ter agido sobre o próprio filho já faz parte do tipo da condenação, e não pode ser duplamente valorada.

Inexistem também elementos que apontem no sentido de não se ter tratado de um acto isolado e único e, nessa medida, assim terá de ser considerado.

É certo que o arguido não confessou, e ao não confessar não pode considerar-se que se arrependeu. Mas é também verdade que julgou hediondos os factos que lhe foram imputados, repudiando-os em abstracto, portanto.

E se é legítimo concluir que a ausência de arrependimento não deixa de se repercutir nas exigências de prevenção especial (pelo menos não as diminui), conhece-se a controvérsia que a questão tem suscitado no plano doutrinário. A relevância do arrependimento é discutível na teoria penal, pois é discutível “se o direito penal como direito de intervenção mínima deve ou não deixar intacta a liberdade interior” (Teresa Beleza, Reconciliação Culpa e Castigo, Uma Breve Reflexão a Partir de Oshima e Coetze, in Homenagem de Viseu a Figueiredo Dias, Coord. P.Pinto de Albuquerque, 2011, p. 70). Refere Teresa Beleza que “o paradigma psicológico dominante ainda é o de obediência externa” (loc. cit.).

Tudo sopesado, considera-se mais adequada às exigências de prevenção em concreto diagnosticadas, e mais respeitadora do limite da culpa do arguido, uma pena próxima do meio da moldura abstracta, ou seja, a pena de 4 anos e 6 meses de prisão.

Da não suspensão da execução da pena
As penas de prisão aplicadas em medida não superior a cinco anos devem ser, por princípio, suspensas na execução, “salvo se o juízo de prognose sobre o comportamento futuro do agente se apresentar claramente desfavorável, e a suspensão for impedida por prementes exigências geral-preventivas, em feição eminentemente utilitarista da prevenção” (STJ 07.11.2007, Henriques Gaspar). É o que resulta do disposto no art. 50º do Código Penal, lido à luz da Constituição, no conjunto das normas e dos princípios que disciplinam a pena.

Assumindo neste momento do processo aplicativo a prevenção especial um papel dominante, aceita-se que a ausência de antecedentes criminais e a boa inserção social e profissional do arguido não evidenciam exigências de prevenção especial muito elevadas.

Mas há que lembrar que “a finalidade essencial e primordial da aplicação da pena reside na prevenção geral” e que “os limites de pena assim definida pela necessidade de protecção de bens jurídicos não podem ser desrespeitados em nome da realização da finalidade de prevenção especial, outra finalidade em nome da qual a pena é medida”, sendo aqui o “desvalor do facto valorado à luz das necessidades individuais e concretas de socialização” do agente. E que “a sociedade tolera uma certa perda do efeito preventivo geral – isto é, conforma-se com a aplicação de uma pena de substituição, mas, quando a sua aplicação possa ser entendida pela sociedade, no caso concreto, como uma injustificada indulgência e prova de fraqueza face ao crime, quaisquer razões de prevenção especial que aconselhassem a substituição cedem, devendo aplicar-se a prisão” (Anabela Rodrigues, “Estudos em Homenagem ao Professor Eduardo Correia”).

E são claras e fortes as exigências de prevenção geral, já destacadas no acórdão e não colocadas em crise no recurso. A comunidade não compreenderia uma suspensão de pena num caso como o presente.

A pena de prisão deverá manter-se efectiva.

4. Face ao exposto, acordam na Relação de Évora em julgar parcialmente procedente o recurso, reduzindo-se a pena de prisão para 4 anos e 6 meses, mantendo-se no mais o acórdão.

Sem custas.

Évora, 05.07.2016

(Ana Maria Barata de Brito)

(Maria Leonor Vasconcelos Esteves)

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[1] - Acórdão sumariado pela relatora.