Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
12/17.5GASLV.E1
Relator: FÁTIMA BERNARDES
Descritores: ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
Data do Acordão: 09/08/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 - Se o único facto que foi dado como provado na sentença e que não constava da acusação é o destino que a arguida pretendia dar ao produto estupefaciente que detinha e na parte que lhe pertencia, destinando-o ao seu consumo próprio, tal facto não constitui alteração substancial ou sequer não substancial dos factos descritos na acusação.

2 - O que ocorre é uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação. Porém sendo o crime de consumo de estupefacientes por que a arguida, ora recorrente, foi condenada, na sentença recorrida, menos grave do que o crime de tráfico por que se encontrava acusada, sendo a moldura penal abstrata aplicável ao crime de tráfico de menor gravidade de 1 a 5 anos de prisão (cf. artigo 25º, al. a), do DL 15/93, de 22 de janeiro) e a correspondente ao crime de consumo de estupefacientes a de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias (cf. artigo 40º, n.º 2, do mesmo diploma legal), constando da acusação os factos relevantes para o preenchimento do tipo objetivo e subjetivo de um e de outro dos crimes, permitindo à arguida o pleno exercício do contraditório e dos seus direitos de defesa, constitucionalmente consagrados no artigo 32º da CRP, não tinha o Tribunal a quo que proceder, como não procedeu, à comunicação à arguida, da alteração da qualificação jurídica dos factos, nos termos e para efeitos disposto no n.º 3 do artigo 358º do CPP.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Évora:

1 - RELATÓRIO
1.1. Nestes autos de processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, n.º 12/17.5GASLV, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo Local Criminal de Portimão – Juiz 1, foi submetida a julgamento a arguida (…), melhor identificada nos autos, estando acusada da prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelos artigos 21º, n.º 1 e 25º, al. a), ambos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, por referência à Tabela I-C anexa ao mesmo diploma legal.
1.2. Realizado o julgamento foi proferida sentença em 05/02/2020, depositada nessa mesma data, na qual se decidiu absolver a arguida da prática do crime de tráfico de menor gravidade por que vinha acusada e condená-la pela prática de um crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 40º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na pena de 65 (sessenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), perfazendo a multa global de €325,00 (trezentos e vinte cinco euros).
1.3. Inconformada com o assim decidido, recorreu a arguida para este Tribunal da Relação, extraindo da motivação de recurso apresentada, as conclusões que se passam a transcrever:
«1. Condenou o Tribunal Recorrido a Recorrente pela prática de um crime de consumo de estupefacientes p. e p. pelo art.º 40.º do Dl 15/93 de 22 de Janeiro, na pena de 65 dias de Multa à taxa diária de € 5,00, no total de € 325,00.
2. A Recorrente foi acusada da prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art.º 21.º n.º 1 e 25.º al. a) do Dl 15/93 de 22 de Janeiro, com referencia à tabela I-C anexa àquele diploma legal, e condenada por crime diverso.
3. Dos factos de natureza objetiva narrados na acusação apenas se extrai que o(s) arguido(s) detinha(m) na sua posse, ou seja, simples detenção, de canabis.
4. Importa, referir que, com exceção da detenção, as demais ações mencionadas no facto n.º 6 não têm qualquer respaldo nos factos antecedentes. As ações ali designadas por “compra”, “guarda”, “venda”, “cedência”, na justa medida em que nenhuma destas ações é concretamente imputada aos arguidos nos factos n.s 1 a 5 do libelo.
5. Todavia, a modalidade de ação “detenção” está inscrita no ilícito previsto no art.º 21.º e art.º 25.º, pelo qual a arguida foi acusada, e também, nos artigos 26.º e 40.º do referido decreto-lei 15/93 e, bem ainda, no artigo 2.º, n.º 1 da Lei 30/2000 de 29/11.
6. Assim, o elemento essencial para a integração (ou relevância) da detenção em qualquer um dos referidos crimes é a finalidade que lhe preside, ou seja torna-se necessário dizer qual o fim que a “droga detida” visa assegurar, ou seja qual o destino que se lhe pretende dar.
7. Ora, é precisamente a respeito da finalidade da detenção que a narração da acusação, cf. a al. b), do n.º 3. do artigo 283.°, do Código de Processo Penal, se revela Insuficiente para poder, originariamente, ser apta a preencher as exigências do tipo de ilícito que imputa, o tráfico de menor gravidade.
8. A narração realizada na acusação não contém todos os factos necessários ao preenchimento, ab initio, do tipo de crime que imputa, o previsto no artigo 25.°, al. a), do DL 15/93. de 22/01.
9. A acusação é manifestamente infundada nos termos e para os efeitos dos artigos 311.°, n.º 2, al. a) e 3. al. b), do Código de Processo Penal, o que implicava a sua rejeição.
10. Pelo que, mal andou o Tribunal a quo ao considerar que os factos da acusação integram a prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade e ao recebê-la – transcrição da decisão – “Imputando-lhe os factos constantes da acusação de fls 288 e segs., que se dão aqui por reproduzidos, os quais integram a prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo art.º 25.º, al. a) e 21.º, n.º 1, ambos do DL n.º 15/93, de 22-01, por referência à Tabela l-C, anexa àquele diploma.
11. A falta, na acusação, de todos ou alguns dos elementos caracterizadores do tipo subjetivo do ilícito, não pode ser integrada no julgamento nem por recurso ao mecanismo previsto no art.º 358.º do CPP, nem sequer através do mecanismo do art.º 359.º, do mesmo Código, devendo o Juiz atalhar o vício antes de chegar àquela fase, o que não sucedeu no caso sub judice.
12. Pelo que, deverá esse Venerando Tribunal, revogar a decisão recorrida, substituindo por outra que absolva a arguida/recorrente do crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade do qual vinha acusada, porquanto da acusação não é possível imputar à arguida/recontente a prática deste crime nem de qualquer outro, não a condenando pelo crime de consumo p. e p. pelo art.º 40.º a quo do Dl 15/93 de 22 de
Janeiro, pelo qual foi erradamente condenada pelo Tribunal.
13. Sem prescindir nem conceder,
14. O CPP prevê no seu art.º 379º, o regime da nulidade da sentença, que só ocorre nas situações mencionadas nas três alíneas do seu nº 1, a saber [tendo em vista a forma comum do processo penal]: a) a ausência das menções referidas no nº 2 e na alínea b) do nº 3 do art. 374º portanto, e além do mais, a inexistência de fundamentação; b) a condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia e; c) a omissão ou o excesso de pronúncia. In casu, releva a nulidade da alínea b), a condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstas nos artigos 358.º e 359.º.
15. Num sistema processual penal de estrutura essencialmente acusatória, o exercício pleno de todas as garantias de defesa (cfr. art. 32º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa) exige uma necessária correspondência ou correlação entre a acusação [e a pronúncia, quando exista] e a sentença, vista a necessidade de preservar a imutabilidade do objeto do processo por ela, acusação [ou pronúncia], fixado.
16. Esta correspondência não é, no entanto, absoluta. A lei admite que na sentença, seja por razões de economia processual, seja por razões da paz do arguido, possam ser considerados factos novos, resultantes da discussão da causa [ou por esta tornados relevantes] ainda que constituam alteração dos constantes da acusação [ou da pronúncia], observadas que sejam determinadas formalidades e verificados que sejam determinados pressupostos, matéria que o CPP regula nos arts. 1º, 358º e 359º.
17. Pois bem. Estaremos perante factos novos e portanto, perante uma alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, quando se modifica – substitui ou adita – o concreto «pedaço de vida» que constitui o objecto do processo, dando-lhe uma outra imagem. E aqui, a primeira distinção a fazer é entre alteração substancial e alteração não substancial de factos.
18. O art.º 1º, f) do C. Processo Penal define «alteração substancial dos factos» como aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. Assim, primeiro requisito é que ocorra uma modificação dos factos, considerando-se facto o acontecimento ou ocorrência, passada ou presente, suscetível de prova. Depois, é necessário que a modificação ocorra em factos relevantes para a imputação de um crime ou para a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
19. A alínea a) do mesmo artigo define «crime» como o conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais. O crime que para este efeito releva, é o crime diverso, entendido, não como diferente tipo legal, em sentido substantivo, mas no sentido de facto diferente, situado para além dos limites do «pedaço da vida» que constitui o objeto do processo e portanto, um crime novo. A autonomia dos critérios estabelecidos no art.º 1º, f) do CPP determina que não deixa de ser crime diverso o que, face à alteração dos factos, passa a ser punido com sanção menos grave.
20. A «alteração não substancial dos factos» define-se por exclusão de partes, comungando desta qualidade toda a alteração de factos que, não sendo substancial, tenha relevo para a decisão da causa (cfr. art.º 358º, nº 1 do C. Processo Penal).
21. A disciplina da alteração substancial dos factos encontra-se fixada no art.º 359º do CPP, cujas linhas gerais podem traçar-se em torno de duas realidades: acordo dos sujeitos processuais e falta dele. Existindo acordo entre o Ministério Público, o arguido e o assistente quanto à continuação do julgamento pelos novos factos, e não determinando estes a incompetência do tribunal, prossegue o julgamento, devendo aqueles ser considerados para efeitos de condenação (nº 3 do artigo citado). Não existindo acordo, os novos factos não podem ser considerados pelo tribunal para o efeito de condenação, nem implica a extinção da instância (nº 1 do artigo citado). Quando tal sucede, quando não existe acordo, ou os novos factos são autonomizáveis em relação ao objecto do processo e a comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para o respetivo procedimento (nº 2 do artigo citado) ou não são autonomizáveis, situação em que, porque não podem ser considerados para efeito de condenação, se tornam irrelevantes.
22. A disciplina da alteração não substancial dos factos encontra-se fixada no art.º 358º, nº 1 do C. Processo Penal e consiste, basicamente, na sua comunicação ao arguido e na concessão do tempo estritamente necessário para a preparação da defesa, considerada em toda a sua amplitude.
23. Conforme se extrai das atas de audiência de discussão e julgamento, o Tribunal Recorrido não promoveu a alteração não substancial ou substancial dos factos constantes da acusação, nenhuma comunicação foi efetuada à Recorrente.
24. Os factos julgados provados pelo Tribunal Recorrido são diversos dos factos pelos quais a arguida/recorrente vinha acusada, designadamente, quanto à conclusão de que o produto estupefaciente pertencia à arguida, na proporção de metade e que se destinava ao seu consumo.
25. Pois que, a acusação pública, conforme se extrai da sua leitura não imputa tal conduta, só a mera detenção, conforme supra se deixou explicito.
26. Comparando os factos acusados e os factos provados da sentença em crise é evidente que nestes constam circunstâncias relativas ao consumo de estupefacientes (canabis) que não foram levadas ao libelo acusatório. Existem, portanto, factos novos.
27. Como se vê, o aditamento factual em que se traduziu a alteração dos factos descritos na acusação alterou a essencialidade da ação alegadamente levada a cabo pela recorrente.
28. Estas circunstâncias tiveram como efeito a imputação à recorrente de um crime diverso, pelo que, salvo melhor opinião, estamos perante uma alteração substancial dos factos descritos na acusação.
29. Trata-se, portanto, de uma alteração substancial.
30. Assim, onde na acusação se imputava a simples detenção de produto estupefaciente, sem qualquer descrição do destino da ação de detenção, na sentença passou a constar a mesma detenção mas agora acrescentando o destino da ação de detenção, o consumo.
31. Ocorreu pois, uma alteração substancial dos factos descritos na acusação, com relevo para a decisão da causa.
32. A alteração dos factos constante da acusação (factos 1, 2, 3 e 4.) nos termos da sentença impugnada, constitui uma alteração substancial dos factos que teria, necessariamente, de ser comunicada à Arguida nos termos das disposições legais em vigor, o que in casu não aconteceu, com a consequente cominação de nulidade da decisão recorrida.
33. O tribunal recorrido introduziu na decisão de facto, circunstâncias específicas incriminadoras (posse da droga e que se destinava ao seu consumo), relativas à apurada conduta da Recorrente, o que constitui uma alteração substancial dos factos descritos na acusação pública, matéria que só poderia ser considerada se tivesse sido dado cumprimento ao disposto no art.º 359 º do CPP, o que não sucedeu, sendo por isso manifesto que a sentença recorrida padece da nulidade prevista no art.º 379º, nº 1, b) do mesmo código.
34. Ao não ter sido dado cumprimento ao art.º 359.º CPP pelo Tribunal Recorrido após ou no decurso da audiência, e ao estarmos perante inequívoca alteração substancial dos factos não comunicada ao Arguido (que resulta um imperativo do princípio do contraditório e da salvaguarda de uma defesa eficaz) é pois manifesto que a sentença recorrida padece de nulidade nos termos do art.º 379.º, n.º 1 al. b), do Código de Processo Penal, o que expressamente se argui, com as legais consequências.
35. A recorrente tinha, portanto, o direito a pronunciar-se sobre os factos aditados, para este efeito, a M.ª Juiz a quo deveria ter procedido à comunicação à recorrente da alteração produzida, o que não fez, como resulta da leitura das atas da audiência de julgamento de 21 de Janeiro de 2020, 28 de Janeiro de 2020 e 5 de Fevereiro de 2020.
36. Assim, padece a sentença recorrida da nulidade prevista no art.º 379º, nº 1, b) do CPP, pelo que deverá esse Venerando Tribunal declarar a nulidade da decisão recorrida.
37. A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 21.º, 25.º, e 40.º do DL 15/93, de 22/01, 359.º, 379.º, do Código de Processo Penal, 18.º e 32.º da Constituição da Republica Portuguesa.
Termos em que, se requer a V. Exas., Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora, a reparação da douta decisão de acordo com as premissas modestamente supra expostas, fazendo-se assim a habitual, sã e serena Justiça.»
1.4. O recurso foi regularmente admitido.
1.5. O Ministério Público, junto da 1ª Instância, apresentou resposta ao recurso, pronunciando-se no sentido de dever ser negado provimento ao mesmo, confirmando-se o acórdão recorrido, formulando, a final, as seguintes conclusões:
«1 - A arguida (...), nos presentes autos de processo comum, com a intervenção do Tribunal Singular, foi condenada, por sentença datada de 5.2.2020, pela prática de um crime de consumo de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 40º, nº 1 e 2 do DL 15/93 de 22.1, na pena de multa de 65 dias à taxa diária de €5,00 (cinco euros).
2 - Alega a recorrente que na acusação não se encontra descrita a finalidade que presidia à detenção de canábis, nada se dizendo se a arguida o destinava à venda ou cedência a terceiros ou pelo menos que, não o destinava ao seu consumo;
3 - Pelo que, a narração da acusação não continha os factos necessários ao preenchimento do tipo de crime que lhe é imputado na acusação, previsto no artigo 25º a) do DL 15/93 de 22.1;
4 - Sendo por isso, a acusação é manifestamente infundada, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 311º nº 2 a) e nº 3 b) do CPP, o que deveria ter conduzido à rejeição da mesma pela Mmª Juiz;
5 - Ora, os elementos típicos objectivos descritos no normativo, abrangem um vasto leque de actuações do agente que vão desde produção até à detenção do produto, quando o mesmo não se destina ao consumo.
5 - Este último asserto da lei, entendido como constituindo um elemento negativo do tipo, tem levado a que se conclua que, quando não demonstrado que o produto se destina ao consumo, tem-se por presumido que se destina ao tráfico.
6 - Ora, entendemos que, tratando-se de um elemento negativo do tipo de crime em apreço, tal elemento subentendido na própria detenção, não tem que constar expressamente da descrição da peça acusatória.
7 - Acresce que, na fase de inquérito destes autos, a arguida em sede de interrogatório de arguido, não quis prestar declarações, no uso de um direito que lhe assiste, nos termos do artigo 61º d) do CPP.
8 - Ora constituindo um elemento negativo do tipo- a não verificação da detenção de droga com finalidade de consumo pessoal exclusivo- teve-se por presumido que metade do produto apreendido à arguida se destinava ao tráfico, aliado ao facto de na residência da arguida também terem sido encontrados vestígios de canábis numa faca.
9 - Entendemos pois que, a acusação não é manifestamente infundada e que, bem andou o Tribunal em proferir despacho de admissão da mesma, (cfr fls. 259), pelos factos aí descritos, bem como pela qualificação jurídica aí referida.
10 - Alega ainda recorrente que a alteração dos factos constantes da acusação (factos 1, 2, 3 ,4) nos termos da sentença constituiu uma alteração substancial dos factos que teria necessariamente ser comunicada à arguida, nos termos do artigo 359º do CPP, e não tendo sido feito, tal sentença padece de nulidade prevista no artigo 379º nº 1 b) do CPP.
11 - No caso vertente, adiantamos desde já que se considera não existir alteração, substancial, dos factos da acusação.
12 - Entendemos que não se trata da imputação de um crime de diverso, pois que embora previstos em normas diferentes, se trata de um mesmo ilícito, em que se tutela o mesmo bem jurídico- a saúde pública, nas suas componentes física e mental-em ordem a garantir o desenvolvimento são e seguro dos cidadãos.
13 - Sendo o crime de consumo de estupefacientes um minus em relação ao crime de tráfico, a alteração não teve que ser comunicada visto que o arguido ao defender-se de um crime mais grave se defendeu em relação a todos os elementos de facto e normativos de ilícito que protege o mesmo bem jurídico mas menos grave.
14 - Por todo o exposto, entende-se deve ser negado provimento ao presente recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
V.EXAS. VENERANDOS DESEMBARGADORES, FARÃO, COMO É HABITUAL, A MELHOR JUSTIÇA»
1.6. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de o recurso dever ser julgado improcedente, confirmando-se a sentença recorrida, aderindo à fundamentação expendida na resposta ao recurso.
1.7. Foi cumprido o disposto no art.º 417º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, não tendo a recorrente oferecido resposta.
1.8. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

2 – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Delimitação do objeto do recurso
Em matéria de recursos, que ora nos ocupa, importa ter presente as seguintes linhas gerais:
O Tribunal da Relação tem poderes de cognição de facto e de direito (cfr. artº. 428º do CPP).
As conclusões da motivação recursiva balizam ou delimitam o respetivo objeto do recurso (cfr. artºs. 402º, 403º e 412º, todos do CPP), delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.
Tal não impede o conhecimento, também oficioso, dos vícios enumerados nas als. a), b) e c), do nº. 2 do artigo 410º do C.P.P., mas tão somente quando os mesmos resultem do texto da decisão recorrida por si só ou em sua conjugação com as regras da experiência comum (cfr. Ac. do STJ nº. 7/95 – in DR I-Série, de 28/12/1995, ainda hoje atual), bem como das nulidades principais, como tal tipificadas por lei.
No caso vertente, tendo presentes as considerações que se deixam enunciadas e atentas as conclusões extraídas pela recorrente da motivação de recurso apresentada, são suscitadas as seguintes questões:
- Acusação manifestamente infundada (artigo 311º, n.ºs 2, al. a) e 3, al. b), do CPP);
- Nulidade da sentença, por condenar a arguida por factos que constituem uma alteração substancial dos factos descritos na acusação (artigo 379º, n.º 1, al. b), com referência ao artigo 359º, ambos do CPP).
2.2. Para que possamos apreciar as questões suscitadas no recurso, importa ter presente o teor da sentença recorrida, nos segmentos que relevam para esse efeito e que se passam a transcrever:
«(…)
FUNDAMENTAÇÃO:
A) Da matéria de facto
Com relevância para a boa decisão da causa, apuraram-se os seguintes factos:
I - FACTOS PROVADOS:
1. No dia 22 de Dezembro de 2017, pelas 08h45m, a arguida, juntamente com o seu namorado, (…), com quem a mesma residia, na Rua (…), seguiam, como passageiros, no veículo automóvel com a matrícula (…), pela Estrada Nacional n.º (…).
2. Nessa ocasião, a GNR, no âmbito de uma operação de fiscalização rodoviária, fiscalizou a viatura e os seus ocupantes, tendo a arguida e o seu namorado, consigo, uma bolsa preta, que continha 81,683 gramas de resina de canábis (peso líquido), com um grau de pureza de 15,9% de THC, que daria para 259 doses.
3. A referida substância pertencia à arguida e ao seu namorado, em partes iguais, a qual se destinava ao respectivo consumo, conhecendo a arguida a natureza estupefaciente da mesma.
4. No dia 22 de Dezembro de 2017, pelas 10h00, a arguida tinha ainda, no interior da sua residência, sita na Rua (…), uma faca, que continha resíduos de canábis.
5. A arguida agiu de modo livre, deliberado e consciente, sabendo que não tinha autorização para deter, ainda que para o seu consumo, aquela quantidade de resina de canábis, correspondente a 40,841 gramas.
6. A arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
7. A arguida não tem antecedentes criminais.

FACTOS NÃO PROVADOS:
Nenhum outro facto com relevo para a decisão se apurou, designadamente que:
1. A arguida sabia que a compra, transporte, recebimento, venda, ou cedência de produtos estupefacientes são proibidos por lei e, não obstante quis desenvolver tal conduta, apesar de não estar autorizada a tal.
*
B) Da convicção do Tribunal:
Sendo certo que, salvo quando a lei disponha diferentemente (como sucede quanto à prova pericial), a prova, nos termos do art.º 127.º do CPP deve ser apreciada, no seu conjunto, segundo as regras da experiência e segundo a livre convicção do julgador, foram os seguintes os meios de prova nos quais o Tribunal fundou a sua convicção quanto à factualidade apurada:
1) Depoimento das testemunhas (…): Guardas da GNR, os quais intervieram na operação “stop” levada a cabo na ocasião e local dos autos, e que esclareceram que, na sequência da fiscalização rodoviária à viatura onde seguiam a arguida e o seu namorado, questionaram os seus ocupantes se tinham consigo produto estupefaciente, tendo aquele logo admitido que sim, fazendo a imediata entrega de uma bolsa, que continha resina de canábis. Tendo o mesmo explicado que a substância em causa pertencia a meias com a arguida, o que a mesma confirmou, avançaram serem ambos consumidores, destinando-se a sua parte ao respectivo consumo. Mais esclareceram as testemunhas que, após terem testado a substância, que acusou positivo para haxixe, foram realizadas buscas à residência da arguida, que deu, para tanto o seu consentimento, ali apenas se tendo encontrado duas facas, com sinais de serem usadas para cortar o estupefaciente em pedaços. As testemunhas depuseram de modo coerente e objectivo, tendo sido valorado o seu depoimento para o apuramento dos factos, incluindo o que ouviram dizer à arguida (que admitiu deter a droga que se encontrava no interior da bolsa do seu namorado, a meias com este, e que se destinava ao respectivo consumo), porquanto tais declarações foram espontaneamente prestadas pela mesma, após a entrega da bolsa às autoridades, e numa altura em que ainda se averiguava se havia sequer lugar a algum ilícito, pelo que não se impunha, então, a sua constituição na qualidade de arguida (na senda do entendimento vertido no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 04.06.2013, relatado pelo Exmo. Desembargador João Gomes de Sousa, acessível in www.dgsi.pt).
2) Prova Pericial: relatório de exame de toxicologia de fls 209.
3) Documentos: auto de apreensão, de fls 13 do Apenso A; auto de busca e apreensão, com relatório fotográfico, de fls 65 a 69 do Apenso A; relatório de diligência criminalística e relatório fotográfico de fls 102 a 105 do Apenso A; e CRC da arguida.
Os factos dados como provados resultam da conjugação de todos os meios de prova produzidos nos autos, ponderados ainda à luz das regras de experiência comum e da normalidade do acontecer, que os confirmam.
Decorre ainda da factualidade directamente apurada que, quem assim age, de acordo com as regras da lógica e da experiência comum, o faz de modo livre, deliberado e com consciência dos seus actos, não podendo, sem censura, desconhecer que tal actuação é proibida e penalmente punida.
Os factos dados como não provados resultam da insuficiência da prova produzida, uma vez que apenas se apurou que a arguida e o seu companheiro traziam consigo aquela quantidade de haxixe, tendo os mesmos declarado destinar a sua parte ao seu consumo, sem que outros indícios houvessem (para além da quantidade pelos mesmos detida) que contrariassem, com o necessário grau de certeza, ser esse o destino a dar à referida substância.
*
ENQUADRAMENTO JURÍDICO:
Veio a arguida acusada pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes menor gravidade porquanto, na data e ocasião dos autos, detinha uma substância estupefaciente, que destinaria, para além do mais, à venda ou cedência a terceiros.
Nos termos estatuídos pelo art.º 21.º n.º 1 do DL n.º 15/93, de 22-01, que consagra o tipo criminal base, do tráfico de estupefacientes:
«Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no art.º 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos”. (com s.n.)
Porém, se a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída - seja por causa dos meios utilizados, seja pela modalidade da acção ou das suas circunstâncias, ou pela qualidade ou quantidade das plantas, substâncias, ou preparações, a pena será de prisão mas de 1 a 5 anos, no caso de se tratarem de plantas, substâncias e preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI (cfr art.º 25.º daquele diploma legal).
Atendendo à diversidade de situações que a ampla previsão do art.º 21.º integraria (abarcando o grande, médio e pequeno tráfico), cuja aplicação indiscriminada redundaria numa manifesta injustiça e desproporcionalidade, previu o legislador um tipo privilegiado de tráfico e de outras actividades ilícitas relativas a estupefacientes (o crime previsto no art.º 25.º do diploma legal em apreço).
Com efeito, verificando-se uma conexão entre os tipos legais em evidência (os tipos previstos nos art.ºs 21.º e 25.º do referido Decreto-Lei), uma vez que os elementos constitutivos do segundo tipo correspondem aos do primeiro aos quais acrescem elementos atenuantes, não se pode deixar de qualificar o art.º 25.º como um tipo privilegiado de tráfico ainda que, ao contrário dos restantes tipos privilegiados cujos elementos atenuantes se situam no âmbito da culpa, funcione aqui a atenuação no âmbito da própria ilicitude.
Porém, como resulta do cotejo entre ambas as disposições incriminadoras, o tráfico de menor gravidade pressupõe uma ilicitude diminuída por referência os elementos objectivos consagrados no art.º 21.º, o qual, por sua vez ressalva os casos previstos no art.º 40.º do mesmo diploma (que pune o consumo de estupefacientes e o cultivo para consumo).
Ou seja, só se a situação não se enquadrar na previsão do art.º 40.º estaremos perante um crime de tráfico, o qual poderá vir a ser degradado em tráfico de menor gravidade se as circunstâncias do caso concreto convocarem uma significativa diminuição da ilicitude, traduzida no tipo de meios utilizados, nas concretas modalidades ou circunstâncias da acção, ou ainda na qualidade ou na quantidade das plantas, substâncias ou preparações.
Ora, provou-se que, no dia 22.12.2017, pelas 08h45m, um grupo de 4 indivíduos, entre os quais a arguida e o seu companheiro, seguiam, na viatura automóvel com a matrícula (…), pela EN (…), quando foram sujeitos a uma fiscalização rodoviária por militares da GNR.
No decurso da dita fiscalização, os militares questionaram os ocupantes da viatura se tinham consigo alguma substância ilícita, altura em que o namorado da arguida assumiu que sim, entregando-lhes uma bolsa onde se encontrava guardada resina de canábis, com o peso líquido total de 81,683 gramas. Porém, apesar de a dita substância se encontrar guardada no mesmo local (a referida bolsa), tal substância havia sido adquirida a meias com a arguida, sua companheira, sendo, assim, uma parte sua, e a restante da arguida, destinando-se a mesma ao respectivo consumo.
Ora, aquela substância - a resina de canabis - está prevista na Tabela I - C, em anexo ao referido diploma legal, como substância estupefaciente, pelo que é proibida a sua detenção e venda ou cedência a terceiros.
Porém, não se tendo apurado que a arguida destinasse tal substância à venda ou à cedência a terceiros, ficou assente que a mesma a detinha (ainda que a posse formal estivesse, então, a ser assegurada pelo seu companheiro, que trazia a droga toda junta na mesma bolsa, sem ter sido ainda repartida pelos dois, parte da substância era da arguida pela que, nessas circunstâncias é de considerar consumada a detenção) para o seu consumo (a sua parte).
Nesta conformidade, é de afastar o crime pelo qual veio a arguida acusada, por não se ter demonstrado que a mesma destinaria aquela substância a qualquer outra actividade que não a do seu exclusivo consumo, pelo que importa convocar o crime de consumo de estupefacientes.
*
Ora, nos termos estatuídos no art.º 40.º do DL n.º 15/93, prevê-se que:
«1. Quem consumir ou, para seu consumo, cultivar, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 30 dias.
2. Se a quantidade de plantas, substâncias ou preparações cultivada, detida ou adquirida pelo agente exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 3 dias, a pena é de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias.
3. (…)»
Com a entrada em vigor da Lei n.º 30/2000, de 29-11 (que define o regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, tal como a protecção sanitária e social das pessoas que consomem tais substâncias sem prescrição médica), determinadas condutas que eram tipificadas como crime pelo aludido DL n.º 15/93 passaram a ser punidas a título meramente contra-ordenacional.
Entre tais condutas inclui-se o consumo de estupefacientes (art.º 2.º da Lei n.º 30/2000), tendo-se operado a revogação parcial do aludido art.º 40.º do DL 15/93 (mantendo-se em vigor apenas no que ao cultivo concerne), cfr. art.º 28.º da Lei n.º 30/2000.
Ora, dispõe aquele mencionado art.º 2.º que o consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV anexas ao DL n.º 15/93 constituem contra-ordenação.
Sucede, porém que nos termos estatuídos pelo n.º 2 do citado art.º 2.º da Lei n.º 30/2000, a aplicação do referido diploma legal restringe-se aos casos em que a quantidade de droga detida não excede o necessário para assegurar o consumo médio individual durante 10 dias (estabelecida por mensuração pericial na Portaria 94/96, de 26-03).
Note-se que no caso da resina de canábis o limite quantitativo máximo para tal período será de 5 gramas.
De acordo com o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 8/2008, do Supremo Tribunal de Justiça, «não obstante a derrogação operada pelo artigo 28.º da Lei n.º 30/2000, de 29-11, o artigo 40.º, n.º 2 do DL n.º 15/93, de 22-01, manteve-se em vigor não só quanto ao ´cultivo´ como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias
Assim, nos casos de consumo de quantidade superior a 10 doses diárias, não constituindo, tais condutas, contra-ordenação, continuam a constituir crime - o crime de consumo previsto no n.º 2 do art.º 40.º do DL n.º 15/93.
Regressando ao caso dos presentes autos, e em face da factualidade apurada, verifica-se que a arguida detinha, para seu consumo, uma quantidade de resina de canábis correspondente a metade da resina apreendida, (ou seja, correspondente a 40,841 gramas), o que ultrapassa, em muito, o limite quantitativo máximo previsto na Portaria já mencionada (que é, com se referiu, de 5 gramas).
Ora, tendo-se ainda apurado que a arguida sabia que aquela substância constitui produto estupefaciente e, bem assim, que pretendia consumi-la, não podendo, sem censura, desconhecer que a sua detenção, naquelas circunstâncias, não lhe era permitida, importa concluir que a mesma agiu de modo doloso.
Nesta conformidade, estão preenchidos todos os elementos constitutivos deste tipo de crime de consumo de estupefacientes, impondo-se a condenação da arguida pela sua prática (absolvendo-se da prática do crime que lhe foi inicialmente imputado, pois que a sua conduta está ressalvada na parte final do art.º 21.º e, portanto, excluída fica também a subsunção da sua conduta no quadro do tráfico de menor gravidade).
(…).»

2.3. Apreciação do recurso
2.3.1. Da acusação manifestamente infundada
Sustenta a arguida/recorrente que a acusação que o Ministério Público deduziu nos autos, imputando-lhe a prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelos artigos 25º, al. a) e 21º, n.º 1, ambos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, é manifestamente infundada, por dela não constar qual o fim a que se destinava, a “droga detida” pela arguida, tratando-se este, no entender da recorrente, de um elemento essencial, ao preenchimento do crime de tráfico de menor gravidade, nos termos do disposto na al. b), do n.º 3 do artigo 283º do CPP. Em decorrência desse entendimento, defende a recorrente que a acusação devia ter sido rejeitada, conforme estatui o artigo 311º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. b), do CPP e que, não o tendo sido, não pode a arguida ser condenada pela prática do consumo de estupefacientes, impondo-se a sua absolvição.
O Ministério Público pronuncia-se no sentido de que a acusação não é manifestamente infundada, inexistindo fundamento legal para que fosse rejeitada, posto que, abrangendo os elementos do tipo objetivo do crime de tráfico de estupefacientes um vasto leque de atuações do agente que vão desde a produção até à detenção do produto quando o mesmo não se destina ao consumo exclusivo do agente, sendo este último um elemento negativo do crime de tráfico, subentendido na própria detenção – tendo-se por presumido que metade do produto apreendido à arguida se destinava ao tráfico –, não tinha de constar expressamente da descrição da acusação.
Apreciando:
Sob a epígrafe “Acusação do Ministério Público” dispõe o artigo 283º do Código de Processo Penal, na parte que para o caso concreto, que:
«3. A acusação contém, sob pena de nulidade:
a) (…);
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e as circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhes deve ser aplicada
E estatui o artigo 311º do CPP – Saneamento do processo –:
«1. Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2. Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) (…).
3. Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime
No conceito de “acusação manifestamente infundada”, em ordem a poder determinar a sua rejeição, no despacho de saneamento do processo, não tendo havido lugar à instrução, compreende-se a acusação que padeça de deficiências estruturais de tal modo graves «que, em face dos seus próprios termos, não tem condições de viabilidade»[1], encontrando-se taxativamente enumerados no n.º 3 do artigo 311º, as situações em que, para efeitos do n.º 2 do mesmo preceito legal, a acusação se considera manifestamente infundada. De entre eles, interessa-nos aqui considerar o que vem previsto na al. d), que se verifica quando os factos narrados na acusação não constituírem crime.
A inexistência de factos na acusação que constituam crime, reconduz-se à situação em que do texto da acusação não conste a descrição de factos suficientes para integrar os elementos típicos objetivos e/ou subjetivos do(s) crime(s) cuja prática é imputada ao(s) arguido(s).
Como refere o Cons. Maia Costa[2] «O nosso processo penal tem estrutura acusatória, como a própria Constituição impõe (art. 32º, nº 4), sendo o objecto do processo fixado pela acusação (ou pela pronúncia, no caso de ter havido instrução).
Esta vinculação temática da acusação obriga, por isso, a que ela contenha uma precisa narração dos factos, que vai delimitar o poder cognitivo do tribunal. Essa narração abrange necessariamente os factos integradores de todos os elementos típicos do crime, quer os objetivos, quer os subjetivos (…).»
Na acusação deduzida nos autos, foi imputada à arguida a prática, em autoria material, de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelos artigos 21º, n.º 1 e 25º, al. a), ambos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, com referência à Tabela I-C anexa ao mesmo diploma legal.
Decorre do disposto no artigo 21º n.º 1 do Decreto-Lei n.º15/93, que comete o crime de tráfico de estupefacientes, punível com pena de prisão de 4 a 12 anos: Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver - fora dos casos previstos no artigo 40º do citado Decreto-Lei nº 15/93 -, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III - anexas ao Decreto-Lei em referência.
E dispõe o artigo 25º al. a) do enunciado Decreto-Lei: “Se, nos casos previstos nos artigos 21º e 22º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta, nomeadamente, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou quantidade daquelas plantas, substâncias ou preparações”, a pena é de prisão de um a cinco anos se se tratar de preparações compreendidas nas tabelas I a III.
É entendimento pacífico que o normativo do artigo 21º define o tipo fundamental do crime de tráfico de estupefaciente, pelo qual se punem diversas atividades ilícitas, cada uma delas dotada de virtualidade bastante para integrar o elemento objetivo do crime; e no artigo 25º é definido um tipo privilegiado em relação ao tipo fundamental do artigo 21º.
O acento tónico do privilegiamento é explicitamente colocado na sensível diminuição do grau de ilicitude do facto, ou seja, no menor desvalor da ação, na sua menor gravidade, portanto, revelada pela valoração em conjunto dos diversos fatores, alguns deles enumerados na norma, a título exemplificativo (meios utilizados, modalidade e circunstâncias da ação, qualidade e quantidade das plantas, substâncias e preparados).
Como resulta da descrição típica do crime de tráfico de estupefacientes feita no citado artigo 21º, n.º 1, qualquer atividade aí referenciada, não autorizada pelas entidades competentes, que incida sobre produtos estupefacientes constantes das referidas tabelas, preenche este tipo de crime.
Excetua-se o consumo e a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV anexas do DL n.º 15/93, que (de harmonia com a jurisprudência fixada pelo STJ, no AFJ n.º 8/2008, de 25/06/2008[3]), se reconduzirá ao crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 40º, n.º 2, do DL 15/93, se o(s) produto(s) em causa se destinarem ao exclusivo consumo do agente e excederem “a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias” (considerando os valores que constam do mapa a que se refere o artigo 9º da Portaria nº 94/96, de 26 de março) ou, no caso de não excederem aquela quantidade, integrando a contraordenação prevista no n.º 2 do artigo 2º da Lei n.º 30/2000 de 29 de novembro.
Assim e como bem se refere no Acórdão da RL de 26/09/2018 [4]«A consumação do crime de tráfico de estupefacientes ocorre com a mera detenção das substâncias ilícitas que não se destinem na totalidade ao consumo pessoal do agente e ainda que não se demonstre a intenção de venda.»
Na acusação que o Ministério Público deduziu nos autos, a fls. 288 a 290, contra a arguida, são narrados os seguintes factos:
«(…)

A arguida e (…) (relativamente ao qual irá ser determinada a suspensão provisória do processo) à data dos factos que mais adiante irão ser descritos, mantinham uma relação de namoro um com o outro e residiam ambos numa habitação localizada em (…).
No dia 22 de Dezembro de 2017, pelas 08h45, na estrada nacional n.º (…), a arguida e (…) tinham na sua posse, no interior de uma bolsa preta (…), o seguinte: canábis (resina), com o peso líquido de 81,683 gramas e um grau de pureza de 15,9%THC (suscetível de originar 259 doses).
Sendo certo que metade da referida canábis era pertença da arguida (...) que conhecia a natureza estupefaciente daquela.
Ainda no referido dia 22 de Dezembro de 2017, pelas 10h00, a arguida (...) e (...) tinham em sua posse, no interior da residência onde habitavam, localizada (…), uma faca contendo resíduos de canabis.
Actuou de forma livre, consciente e deliberada e, bem ainda, estava perfeitamente ciente de que não tinha autorização para deter, comprar, transportar, receber, vender, ceder e ou consumir canábis.
A arguida (...) sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
(…).»
Entendemos que os factos descritos na acusação deduzida pelo Ministério Público são suficientes para integrar os elementos típicos objetivos e subjetivos do crime de tráfico de menor gravidade p. e p. pelo artigo 25º, al. a), com referência ao artigo 21º, n.º 1, ambos do Decreto-Lei n.º 15/93 e à Tabela I-C anexa ao mesmo diploma legal, cuja prática foi imputada à arguida, ora recorrente.
E contrariamente ao que defende a recorrente não tinha de constar da acusação a destinação que a arguida pretendia dar à substancia estupefaciente que, juntamente com o seu namorado, detinha, pertencendo metade de tal produto a cada um deles, posto que, como acima de referiu, a mera de detenção de substâncias estupefacientes previstas nas Tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, desde que não se destinem ao consumo exclusivo do agente, tratando-se este de um elemento negativo do tipo (como decorre do segmento normativo “fora dos casos previstos no artigo 40º”, ínsito no artigo 21º do DL n.º 15/93[5]), integra o crime de tráfico de estupefacientes (artigos 21º e 25º do mesmo diploma legal).
Assim não tinha de constar da acusação qual o concreto destino que a arguida pretendia dar ao produto estupefaciente que detinha, nas circunstâncias apuradas.
Nesta conformidade, concluímos que a acusação deduzida pelo Ministério Público, nestes autos, contém a narração de factos suficientes para integrar os elementos objetivos e subjetivos do crime de tráfico de menor gravidade, cuja prática foi imputada à arguida, não sendo, por isso, a acusação manifestamente infundada, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 311º, n.º 3, al. c), do CPP, pelo que, inexistia fundamento para que fosse rejeitada pelo Senhora Juiz que a recebeu.
Terá, pois, de julgar-se improcedente, esta vertente, do recurso.

2.3.2. Da nulidade da sentença
Sustenta a arguida/recorrente que a sentença recorrida enferma de nulidade, nos termos previstos no artigo 379º, n.º 1, al. b), com referência ao artigo 359º, ambos do CPP, por a ter condenado por factos que, na sua ótica, integram uma alteração substancial de factos descritos na acusação, designadamente, na consideração de que produto estupefaciente pertencia à arguida, na proporção de metade e que de destinava ao seu consumo, factos esses que levaram à imputação à arguida de um crime diverso, sem que tivesse procedido à comunicação à arguida dessa alteração, como se impunha, em observância do disposto no artigo 359º do CPP, preterindo o exercício do contraditório por parte da arguida e não lhe permitindo uma defesa eficaz, em violação do disposto nos artigos 18º e 32º da CRP.
O Ministério Público pronuncia-se no sentido de que não existe alteração substancial dos factos da acusação, nem se estando perante a imputação à arguida de um crime diverso, tendo em conta a identidade dos bens jurídicos tutelados pelos crimes de tráfico e de consumo de estupefacientes, sendo este último um minus em relação ao primeiro, não se exigindo que fosse comunicada a alteração visto que a arguida ao defender-se de um crime mais grave se defendeu em relação a todos os elementos de facto e normativos de ilícito que protege o mesmo bem jurídico mas menos grave.
Apreciando:
Sobre a nulidade da sentença, na parte que para o caso vertente releva, dispõe o artigo 379º, n.º 1, al. b), do CPP: «É nula a sentença: Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º
Com a cominação da nulidade da sentença prevista na al. b) do n.º 1 do artigo 379º, visa-se a salvaguarda da estrutura acusatória do processo penal, com consagração no artigo 32º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, o qual dispõe: O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio ao princípio do contraditório”.
Por força da referida estrutura acusatória do processo, o juiz de julgamento encontra-se tematicamente vinculado, em relação ao objeto do processo (thema decidendem), aos poderes de cognição (thema probandum) e aos limites da decisão, pela acusação ou pela pronúncia[6], o que constitui, para o arguido, uma garantia de defesa, na qual se inclui claramente o princípio do contraditório.
Tal implica, nomeadamente, a proibição de condenação por crime diverso do da acusação ou pronúncia, sem o arguido ter podido contraditar os respetivos fundamentos[7].
É à luz da preservação das garantidas de defesa, constitucionalmente reconhecidas ao arguido (cf. artigo 32º, n.º 1, da CRP), que se justificam os cuidados postos pelo legislador nas situações de alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, quer a nível substancial (artigo 359º da CRP), quer não substancial (artigo 358º do CPP), equiparando a esta última a alteração da qualificação jurídica dos factos (n.º 3 do artigo 358º do CPP).
Nos artigos 358º e 359º do C.P.P. é regulado o procedimento a observar pelo tribunal no caso de, na audiência de julgamento, se verificar uma alteração não substancial (artigo 358º) ou uma alteração substancial (artigo 359º) dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.
A definição de “alteração não substancial de factos” mostra-se consignada na al. f) do artigo 1º do C.P.P., como sendo aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
Não fornecendo a lei a definição de alteração não substancial dos factos, o recorte da figura terá de fazer-se, em primeira linha, em função do conceito de alteração substancial dos factos, que se acaba de enunciar.
Assim a «alteração não substancial dos factos é aquela que, consubstanciando embora uma modificação dos factos constantes da acusação ou da pronúncia, não tem por efeito a imputação de um crime diverso, nem a agravação nos limites máximos das sanções aplicáveis»[8].
Mas o que é o facto? E em que situação se deve considerar que há alteração de factos, relevante, para efeitos de ser exigido que se proceda à respetiva comunicação, nos termos do disposto no artigo 358º, n.º 1, do CPP?
A posição que vem sendo maioritariamente acolhida na doutrina e na jurisprudência e que se perfilha, é a de que, neste domínio, o facto deve ser entendido como um acontecimento histórico, um evento naturalístico, um “pedaço de vida” a ser analisado no processo[9].
A modificação dos factos constantes da acusação ou da pronúncia só integra o conceito normativo da “alteração não substancial de factos”, «quando tiver relevo para a decisão da causa e implique uma limitação dos direitos de defesa do arguido, vista em função do condicionamento da estratégia e utilidade da defesa»[10]
Como se decidiu no Acórdão da RG de 24/10/2016[11]: «O instituto da alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia visa assegurar as garantias de defesa ao arguido. O que a lei pretende é que aquele não venha a ser censurado jurídico-criminalmente com violação do princípio do acusatório, sem que tenha tido a possibilidade de adequadamente se defender.»
Citando o que se escreve no Acórdão do STJ de 21/03/2007[12], diremos que a alteração substancial de factos «significa uma modificação estrutural dos factos descritos na acusação, de modo que a matéria de facto provada seja diversa, com elementos essenciais de divergência que agravem a posição processual do arguido, ou a tornem não sustentável, fazendo integrar consequências que se não continham na descrição da acusação, constituindo uma surpresa com a qual o arguido não poderia contar, e relativamente às quais não pode preparar a sua defesa, isto é, a alteração substancial dos factos pressupõe uma diferença de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refere aos seus elementos essenciais, ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, e que determine a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis
A alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, a demandar a observância do disposto o artigo 359º do CPP - como propugna o Prof. Germano Marques da Silva[13] e que nos merece concordância - «contempla a alteração dos factos em razão do acrescentamento ou amputação de um elemento do facto que implique que o facto novo resultante da alteração constitui um outro tipo legal de crime (…)
Como se decidiu no Acórdão da RC de 17/06/2009[14], nos termos do artigo 1º, alínea f), do CPP, imputa-se ao arguido um crime diverso quando, da referida adição ou modificação dos factos resulte que: a. o bem jurídico agora protegido é distinto do primitivo; b. um facto naturalístico diferente, objeto de um diferente juízo de valoração social; c. a perda da “imagem social” do facto primitivo, ou seja, resulte a perda da sua identidade.
No caso concreto, confrontando os factos descritos na acusação e os factos que foram dados como provados na sentença, verifica-se não existir alteração destes em relação àqueles, no referente à detenção pela arguida da substância estupefaciente, à quantidade e caraterísticas desta, bem como à quota parte da mesma que era pertença da arguida, sendo que no referente aos elementos atinentes ao tipo subjetivo já constava da acusação, além do mais, que a arguida sabia que não tinha autorização para deter ou consumir canabis e que a sua conduta era proibida e punida por lei.
O único facto que foi dado como provado na sentença e que não constava da acusação é o destino que a arguida pretendia dar ao produto estupefaciente que detinha e na parte que lhe pertencia, destinando-o ao seu consumo próprio.
Este facto não constitui, porém, alteração substancial ou sequer não substancial dos factos descritos na acusação, considerando que:
- É o mesmo o facto naturalístico imputado à arguida, na acusação e na sentença, reconduzindo-se à detenção de canábis, na quantidade e com as características que já vinham descritas na acusação;
- O crime de tráfico de estupefacientes por que a arguida foi acusada tutela uma multiplicidade de bens jurídicos (de carácter pessoal - tais, como a vida, a integridade física e a liberdade dos potenciais consumidores -, a par de outros, de caráter geral como a proteção da vida em sociedade, o bem-estar da sociedade, a saúde da comunidade - na medida em que o tráfico dificulta a inserção social dos consumidores e possui comprovados efeitos criminógenos -[15]), que podendo reconduzir-se a um bem geral, que é a saúde pública, contempla o bem jurídico que é protegido pelo crime de consumo de estupefacientes e que é a saúde do consumidor, não sendo assim distinto o bem jurídico tutelado pelo crime por que a arguida foi condenada e pelo crime por que vinha acusada (diversamente do que aconteceria se fosse o contrário, ou seja, se acusação fosse pelo crime de consumo e houvesse lugar á condenação pelo crime de tráfico);
- O aditamento aos factos dados como provados na sentença, da destinação ao consumo da arguida da substância estupefaciente pela mesma detida, na parte que lhe pertencia, não teve qualquer repercussão negativa para a arguida, que se refletisse numa diminuição das suas garantias de defesa, sendo que já constava da acusação que a arguida sabia que não estava autorizada a consumir canábis e que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Entendemos que, nesta concreta situação, a condenação da arguida pela prática de um crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 40º, n.º 2, do Código Penal, não integra a imputação de um crime diverso daquele por que foi acusada, nos termos do disposto na al. f) do artigo 1º do CPP e que demandasse o cumprimento do estatuído no artigo 359º do CPP, não constituindo também uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, que impusesse a comunicação à arguida, nos termos e para efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 358º do CPP.
Estamos perante uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação. Porém sendo o crime de consumo de estupefacientes por que a arguida, ora recorrente, foi condenada, na sentença recorrida, menos grave do que o crime de tráfico por que se encontrava acusada, sendo a moldura penal abstrata aplicável ao crime de tráfico de menor gravidade de 1 a 5 anos de prisão (cf. artigo 25º, al. a), do DL 15/93, de 22 de janeiro) e a correspondente ao crime de consumo de estupefacientes a de prisão até 1 ano ou de multa até120 dias (cf. artigo 40º, n.º 2, do mesmo diploma legal), constando da acusação os factos relevantes para o preenchimento do tipo objetivo e subjetivo de um e de outro dos crimes, permitindo à arguida o pleno exercício do contraditório e dos seus direitos de defesa, constitucionalmente consagrados no artigo 32º da CRP, não tinha o Tribunal a quo que proceder, como não procedeu, à comunicação á arguida, da alteração da qualificação jurídica dos factos, nos termos e para efeitos disposto no n.º 3 do artigo 358º do CPP.
Assim sendo, forçoso é concluir que a sentença não enferma da nulidade invocada pela recorrente, prevista no artigo 379º, n.º 1, al. b), do CPP.
Improcede, por conseguinte, também nesta vertente, o recurso.

3 – DISPOSITIVO
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto pela arguida , confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC´s (cf. artigos 513º, nºs 1 e 3 e 514º, nº. 1, ambos do C. P.P. e artigo 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa).

Évora, 08 de setembro de 2020
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[1] Cf. Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado e Comentado, 12ª ed., pág. 605.
[2] In Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2ª Edição, Almedina, páginas 949 e 950.
[3] Publicado no D.R. nº 146, Série I-A, de 05/08/2008, no sentido de que “não obstante a derrogação operada pelo art. 28º da Lei 30/2000, de 29/11, a Lei 15/93, de 22/01, manteve-se em vigor não só quanto “ao cultivo”, como relativamente à detenção para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.”
[4] Proferido no proc. n.º 28/17.1GEMFR-3, acessível no endereço www.dgsi.pt.
[5] Sufragando-se o entendimento acolhido no Acórdão da Relação de Coimbra de 25/10/2017, proferido no proc. n.º 60/15.0GATND.C1, acessível em www.dgsi.pt., de que tem sempre o tribunal de investigar o fim visado com a conduta do agente consubstanciada na detenção de estupefacientes e, caso, em face das circunstâncias concretas, não resulte apurado que se esse fim era exclusivamente o consumo próprio do agente, excluindo-o, será de presumir o tráfico.
[6] Cf. Prof. Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1974, pág. 65.
[7] Cf. Prof.s Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa, Anotada, Vol. I, Coimbra Editora, 4ª edição, págs. 523.
[8] Cf. Cons. Oliveira Mendes, in Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2016 – 2ª edição, pág. 1081.
[9] Cf., entre outros, Frederico Isasca, in Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, Almedina, 2ª edição, pág. 93 e Ac. da RP de 06/10/2010, proc. 403/04.1GAMCN-A.P1 e Ac. da RC de 11/09/2013, proc. 339/11.0JALRA.C1, acessíveis em www.dgsi.pt.
[10] Ac. da RP de 28/090/2011, disponível in www.dgsi.pt.
[11] Proferido no proc. 1386/11.7TABCL.G1, acessível no endereço www.dgsi.pt.
[12] Proferido no proc. 24/2007, citado no Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2ª edição, 2016, págs. 1086 e 1087.
[13] In Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 1994, pág. 273
[14] Proferido no proc. n.º 122/07.GCACB.C1, acessível em www.dgsi.pt.
[15] Cf. Ac. do STJ de 14/11/2019, proc. n.º 104/16.8JAPTM.S1, acessível em www.dgsi.pt.