Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
435/19.5T8ELV.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
INVENTÁRIO
INCIDENTE
COMPETÊNCIA MATERIAL
CABEÇA DE CASAL
ADMINISTRAÇÃO DA HERANÇA
Data do Acordão: 10/08/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I – Tendo a prestação de contas sido requerida depois de se ter iniciado o inventário notarial, tinha a mesma de ser requerida como incidente nesse processo de inventário, sendo incompetente em razão da matéria para tal prestação de contas o tribunal judicial.
II - A tal não obsta o facto de o requerido não ter sido nomeado cabeça-de-casal no processo de inventário, porquanto o desempenho das funções de cabeça-de-casal não depende da nomeação em inventário.
III - Como vem sendo entendido, as funções do cabeça-de-casal têm início na data da abertura da herança, ou seja, à morte do de cujus, ainda que o artigo 2079º do Código Civil se refira apenas ao termo final de tais funções.
IV - Assim, o cabeça-de-casal de facto, desde que efetivamente administre bens da herança, tem a obrigação de prestar contas aos herdeiros. (sumário do relator)
Decisão Texto Integral:

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I – RELATÓRIO
M… e A… intentaram a presente ação especial de prestação de contas contra Ma…, pedindo que este preste contas da administração dos prédios rústicos que identificam, e que a final seja o réu condenado a pagar aos autores, na proporção que lhes couber, o saldo que venha a apurar-se.
Alegaram que está pendente um processo de inventário para partilha das heranças abertas por óbito de V…, que faleceu em 02.01.1964, no estado de viúva de F…, e por óbito de C… falecida em 12.06.1985, no estado de solteira, maior e com última residência habitual em Elvas, sendo que neste inventário foi determinada a cumulação do inventário aberto por óbito de D… e F…, por os herdeiros serem os mesmos.
Mais alegaram que compõem aquelas heranças, entre outros bens, os prédios rústicos denominados “Herdade da Soeira” e “Herdade da Lentisca”, que o réu tem administrado e explorado em exclusivo há mais de vinte anos, e é ele quem recebe a totalidade das ajudas e dos subsídios do IFAP por inscrever em seu nome aqueles dois imóveis, assim como os demais proveitos e rendimentos que retira da exploração dos mesmos, sem que alguma vez tenha prestado contas da sua administração, nem distribuiu os rendimentos pelos demais herdeiros.
Alegaram, por último, que no processo de inventário foi nomeado cabeça-de-casal um outro herdeiro, o que não impede que o réu preste contas da administração dos aludidos imóveis.
Foi proferido despacho mandando notificar os autores para «fundamentarem a competência material dos Tribunais Judiciais para tramitarem e decidirem o processo de prestação de contas conexo com o inventário em curso no cartório notarial».
Responderam os autores, dizendo que no âmbito do processo de inventário notarial apenas o herdeiro J… exerceu o cargo de cabeça-de-casal e não o réu Ma…, que nunca foi cabeça-de-casal de nenhuma das heranças, estando em causa na presente ação a administração dos referidos imóveis pelo réu.
Após, foi proferida decisão com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto e aqui chegados, face às normas dos artigos art.º 96.º al. a), art.º 97.º n.º 1, art.º 99.º n.º 1, 576.º, n.º 2, 577.º, alínea a), 578.º e art. 278.º, n.º 1, alínea a), todos do Código de Processo Civil, conjugadas com as normas dos artigos 2.º, 3.º e 45.º e 47.º da Lei n.º 23/2013, de 5 de Março, os Tribunais Judiciais são materialmente incompetentes para tramitar a presente acção, o que desde já declara, pelo que indefiro liminarmente a petição.»
Inconformados, os autores apelaram do assim decidido, tendo finalizado a respetiva alegação com as seguintes conclusões (transcrição):
«1ª- O Tribunal a quo errou na determinação da norma aplicável, porque entendeu que as contas deveriam ser prestadas ao abrigo do disposto no Artigo 749º, do C.P.C. e por apenso ao inventário pendente no Cartório Notarial.
2ª- Contudo, as contas que se pedem deverão ser prestadas pelo R. nos termos previstos no Artigo 741º, do C.P.C. no Juízo Local Cível de Elvas, por ser o Tribunal do domicílio do R. (Arts. 64º e 71º, C.P.C).
3ª- Com efeito, os AA. são herdeiros de 4 heranças, cuja partilha está pendente no processo de inventário notarial.
4ª- Fazem parte dessas heranças, entre outros bens, dois prédios rústicos que estão na posse e sob administração do R. há mais de 20 anos.
5ª- Está nomeado cabeça-de-casal no inventário notarial o herdeiro J….
6ª- O R. nunca exerceu de facto as funções de cabeça-de-casal, nem para tal foi nomeado por acordo dos herdeiros ou investido no cargo por decisão notarial.
7ª- Não tem por isso o R. quaisquer das obrigações que impedem sobre o cabeça-de-casal e a que se referem os Arts. 2087º, 2092º, 2093º do Código civil, nem está sujeito a penalidades.
8ª- Nestes autos não se pedem contas ao cabeça-de-casal, nem se pedem contas da administração da herança.
9º- Pedem-se contas ao R. porque administra bens alheios, nos termos previstos no Artigo 741º, C.P.C.
10ª- Pedem-se contas da administração de dois prédios rústicos e não de todos os bens da herança.
11º- Pedir as contas ao R. por apenso ao inventário notarial, não seria admissível porque o R. nunca foi cabeça-de-casal de facto ou investido e consequentemente seria parte ilegítima.
11º- Devem assim as contas ser prestadas nos termos previstos no artigo 941º do C.P.C. e no Juízo Local Cível de Elvas por ser o Tribunal do domicilio do R. (Ars. 64º e 71º, C.P.C.)
12º - Termos em que se requer a Vs. Exªs. se dignem revogar a douta sentença recorrida substituindo-a por decisão que julgue que o Juízo Local Cível de Elvas do Tribunal da Comarca de Portalegre é o competente para apreciar a presente acção de prestação de contas, ordenando-se a citação do R. e o prosseguimento dos autos, tudo como se pediu, com o que se fará a costumada JUSTIÇA».

Citado para os termos do recurso e da causa, veio o réu apresentar contestação, concluindo pela manutenção da decisão de indeferimento liminar, e assim não se entendendo, pela sua absolvição do pedido de prestação de contas.

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a única questão a decidir consubstancia-se em saber se os Tribunais Judiciais são os competentes para tramitar a presente ação de prestação de contas, ao invés do que decidiu a 1ª instância.

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
O circunstancialismo processual e os factos a considerar na decisão a proferir são os enunciados em I supra e, bem assim, que a presente ação foi instaurada em 13.09.2019.

O DIREITO
A apreciação da questão em apreço far-se-á levando em conta o regime vigente à data da apresentação do requerimento inicial em juízo, tal como impõe o disposto no artigo 38º, nº 1, da LOSJ, nos termos do qual a competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei.
Ora, o processo de inventário, àquela data, encontrava-se regulado pela Lei nº 23/2013, de 5 de março. Embora o regime jurídico do processo de inventário aprovado em anexo à referida Lei tenha sido revogado pela Lei nº 117/2019, de 13 de setembro (cfr. art. 10º), certo é que esta só entrou em vigor no dia 1 de janeiro de 2020.
Como se vê da fundamentação da decisão recorrida, o Sr. Juiz do Tribunal a quo entende que estando pendente inventário (v.g., em Cartório Notarial), é neste que se deve pedir a prestação de contas ao ora réu, que no seu entender exerceu o cargo de cabeça de casal de facto.
E, adiantamos desde já, que corroboramos inteiramente este entendimento.
Prescreve o artigo 45º do diploma anexo à Lei 23/2013, de 05.03:
«1 - O cabeça de casal deve apresentar a conta do cabecelato, até ao 15.º dia que antecede a conferência preparatória, devidamente documentada, podendo qualquer interessado proceder, no prazo de cinco dias, à sua impugnação.
2 - Compete ao notário decidir sobre a impugnação prevista no número anterior.»
Nos termos do artigo 2079º do Código Civil, ao cabeça-de-casal compete administrar a herança até à liquidação e partilha. Por isso, administra os bens próprios do falecido e, tendo este sido casado em regime de comunhão, os bens comuns do casal – artigo 2087º, nº 1, do mesmo Código.
No âmbito dessa administração compete-lhe, outrossim, cobrar as dívidas ativas da herança, quando a cobrança possa perigar com a demora ou o devedor efetue espontaneamente o pagamento – artigo 2089º do Código Civil.
Daí que tenha a obrigação de prestar contas da sua administração, como todo o administrador de bens alheios, apresentando as despesas efetuadas com a administração dos bens e rendimentos que deles obteve.
Nesse sentido, como observa Tomé d’Almeida Ramião[1], «o preceito não traz nada de novo, exceto quanto ao momento em que as contas devem ser prestadas, excluindo, assim, a necessidade do uso da ação de prestação de contas, prevista no art.º 947.º do Cód. Proc. Civil. Dispõe este preceito legal que as contas são apresentadas por dependência do processo em que a nomeação haja sido feita, isto é, a prestação de contas será processada por apenso ao processo de inventário, dele constitui apenso, processado autonomamente como um incidente, sendo-lhe aplicável o regime previsto nos art.ºs 14.º e 15.º».
O cabeça-de-casal está, pois, obrigado a prestar as contas no inventário notarial até ao 15º dia antecedente à conferência preparatória.
Sobre esta matéria, temos como absolutamente acertada a doutrina do Acórdão da Relação do Porto de 30.05.2018[2] no qual, além do mais, se escreveu:
«(…), no que toca a uma prestação voluntária de contas, estando pendente inventário notarial, mesmo que as contas de anos anteriores não tenham sido prestadas, não pode dizer-se que o cabeça de casal deva prestar contas voluntariamente através duma acção especial de prestação de contas a intentar em tribunal, mas sim, apenas, que ele tem de prestar contas do cabecelato no inventário notarial, e essas contas são quaisquer contas que estiverem por prestar.
Não há, por conseguinte, à partida, um tipo de contas que deva ser sujeito a acção especial de prestação de contas e outras que devam ser sujeitas ao procedimento do artigo 45.º da Lei 23/2013.
A solução deverá, por isso, ser esta: estando pendente o inventário na altura em que o cabeça de casal as presta ou o interessado na prestação de contas as pede, a competência é notarial; se, porém, o inventário ainda não estiver pendente, o regime jurídico processual das contas anualmente a prestar só pode ser o da acção especial de prestação de contas previsto nos artigos 941.º e ss. do CPCivil.
Significa, pois, que o citado preceito (artigo 45.º da Lei 23/2013) não altera o dever de prestação de contas anual do cabeça de casal: o que sucede é que não há um momento pré-definido legalmente para a instauração de inventário e, por isso, pode ocorrer que o cabeça de casal tenha de prestar contas vários anos, anualmente, antes de chegar o momento a que se refere o artigo 45.º da Lei 23/2013, isto é, antes de se iniciar o processo de inventário notarial, caso em que o fará, como dissemos, na acção especial judicial de prestação de contas.
É certo que a finalidade do preceito do artigo 45.º da Lei 23/2013 é a da preparação da conferência, mas daí nada resulta em termos de se autonomizar a prestação da conta do cabecelato das demais contas que deviam ser prestadas até ao início do inventário porque, em todo o caso, a prestação de contas sempre interessa à definição do acervo patrimonial que integra a herança e que será partilhado, objectivo que a conferência preparatória intenta facilitar.»[3]
Ora, no caso concreto, está adquirido que a prestação de contas foi requerida já depois de se ter iniciado o inventário notarial, pelo que a mesma tinha de ser requerida como incidente no processo daquele inventário, sendo incompetente para tal prestação de contas o tribunal.
A tal não obsta o facto de o requerido não ter sido nomeado cabeça-de-casal no processo de inventário, porquanto o desempenho das funções de cabeça-de-casal não depende da nomeação em inventário.
Como vem sendo entendido, as funções do cabeça-de-casal têm início na data da abertura da herança, ou seja, à morte do de cujus, ainda que o artigo 2079º do Código Civil se refira apenas ao termo final de tais funções[4].
Assim, o cabeça-de-casal de facto, desde que efetivamente administre bens da herança, tem a obrigação de prestar contas aos herdeiros.
Este entendimento foi acolhido pela nossa jurisprudência, citando-se a título exemplificativo os seguintes acórdãos:
- Acórdão da Relação de Coimbra de 11.11.2003[5], assim sumariado:
I- O cabeça de casal tem existência jurídica desde a data da morte do autor da herança, independentemente de haver ou não lugar a inventário.
II- A circunstância de não existir qualquer decisão formal de nomeação do c. casal não impede que a pessoa a quem a lei confere esse cargo detenha essa qualidade e, sobretudo, que exerça as funções correspondentes.
III- O c. casal de facto, desde que efectivamente administre os bens da herança, tem obrigação de prestar contas aos demais interessados, não obstando a tal a inexistência de qualquer nomeação para o cargo, o que deve ser feito pelo processo geral dos art. s 1014° e segs. do C.P.C.
- Acórdão da Relação de Lisboa de 27.05.2010[6], com o seguinte sumário:
1. Quem administra bens ou interesse alheio está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses.
2. O que importa é o facto da administração de bens alheios, seja qual for a sua fonte.
Acórdão da Relação do Porto de 07.11.2019[7], em cujo sumário de consignou:
I - Qualquer interessado pode exigir que o cabeça-de-casal de facto ou investido preste contas da sua administração sobre bens pertencentes à herança e que não tenham sido objecto de partilha no âmbito do respectivo inventário.
II - Nestas situações o limite temporal para a referida prestação de contas verifica-se entre a data do óbito da inventariada e a data em que as contas forem prestadas.


O Cartório Notarial é, pois, a sede própria para a apreciação da presente prestação de contas, pelo que bem andou o Tribunal a quo em indeferir liminarmente a petição inicial, com fundamento na incompetência material do Tribunal.
Por conseguinte, o recurso improcede.
Tendo nele decaído, são os recorrentes responsáveis pelas custas – artigo 527º. nº 1 e 2, do CPC.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes.
Évora, 8 de outubro de 2020
(Acórdão assinado digitalmente no Citius)
Manuel Bargado (relator)
Albertina Pedroso (1º adjunto)
Tomé Ramião (2º adjunto)

__________________________________________________

[1] O Novo Regime do Processo de Inventário, Notas e Comentários, Quid Juris, 2ª edição, 2015, p. 127.

[2] Proc. 22255/17.1T8PRT.P1, in www.dgsi.pt.

[3] Cfr., neste sentido, o Acórdão da Relação de Lisboa de 30-03.2017, proc. 13079/16.4T8SNT.L1-6, in www.dgsi.pt, igualmente citado na decisão recorrida.

[4] Neste sentido, LOPES CARDOSO, Partilhas Judiciais, Almedina, vol. III, 4ª edição, pp. 64-65.

[5] Proc. 1907/03, in www.dgsi.pt.

[6] Proc. 1101/09.5YXLSB.L1-8, in www.dgsi.pt.

[7] Proc. 4233/09.6T2OVR-C.P1, in www.dgsi.pt.