Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1082/22.0T8OLH-D.E1
Relator: MARIA DOMINGAS
Descritores: VENDA
OPOSIÇÃO
DIREITO DE RETENÇÃO
Data do Acordão: 01/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. Tendo o crédito dos reclamantes sido reconhecido e graduado como crédito comum por sentença transitada, não podem opor-se à venda dos imóveis apreendidos com o fundamento de que o mesmo goza da garantia do direito de retenção.
II. Ainda que assim não fosse, uma vez que o direito de retenção conferido ao promitente comprador na alínea f) do n.º 1 do artigo 755.º do CC visa garantir o crédito indemnizatório previsto no artigo 442.º do mesmo diploma legal para o caso de o contrato promessa não ser cumprido, não é aplicável a contrato promessa de dação em pagamento, cuja finalidade é a extinção futura de uma dívida previamente constituída, sem que no momento dessa constituição exista alguma ligação ao imóvel objecto da promessa de dação.
III. O direito de retenção não obsta à venda do bem em processo insolvencial, transferindo-se a garantia para o produto da venda e concedendo ao credor retentor o direito a ser pago com preferência sobre os demais, nos termos prevenidos no n.º 3 do artigo 824.º do CC.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1082/22.0T8OLH-D.E1[1]
Tribunal Judicial da comarca de Faro
Juízo do Comércio de Olhão – Juiz 1


I. Relatório
Nos autos principais foi declarada a insolvência de (…) por sentença de 21 de Outubro de 2022, transitada em julgado, tendo sido fixado em 30 dias o prazo para a reclamação de créditos.

No prazo designado vieram (…) e (…) reclamar um crédito no valor de € 90.000,00 e juros vencidos, que alegaram ser proveniente de empréstimos concedidos à insolvente e seu ex-cônjuge, conforme estes reconheceram em declaração de dívida por ambos subscrita, tendo celebrado com os reclamantes contrato promessa, nos termos do qual se obrigaram a dar em pagamento o prédio misto e o prédio rústico que identificaram, contrato que submeteram ao regime da execução específica e a que conferiram eficácia real. Mais alegaram que na sequência da celebração de tal contrato entraram na posse dos imóveis prometidos transmitir, donde encontrar-se o crédito de que são titulares garantido por via do direito de retenção, assim devendo ser reconhecido.

Foram apreendidos para a massa os seguintes bens:
Verba n.º 1:
Prédio misto sito no lugar do (…), freguesia e concelho de Pombal, inscrito na matriz urbana sob o artigo (…) e na matriz rústica sob o artigo (…), descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º (…), da freguesia e concelho de Pombal.
Verba n.º 2
Prédio rústico sito no lugar de (…), inscrito na respectiva matriz urbana sob o artigo (…), da freguesia de (…), concelho de Pombal, descrito na Conservatória do Registo Predial de Pombal sob o n.º (…), da sobredita freguesia.

A insolvente foi casada com (…), o qual tinha sido declarado insolvente no processo que corre termos sob o n.º 810/22.8 T8OLH.

O Sr. AI informou nos autos (apenso B) terem os imóveis identificados no auto de apreensão sido igualmente apreendidos na sua totalidade no âmbito do referido processo n.º 810/22.8 T8OLH, aí tendo sido vendidos, com a devida repartição do produto da venda pelos dois processos.

Por sentença proferida em 13 de Junho de 2023 no apenso A, já transitada em julgado, foi o crédito reclamado pelos aludidos credores reconhecido como comum e graduado a par com os restantes.

Por requerimento entrado em juízo em 19 de Julho de 2023 [Ref.ª 46177413], os credores reclamantes (…) e (…) vieram manifestar a sua oposição à venda do bem apreendido, fazendo notar que se encontrava ainda pendente a reclamação de créditos que haviam apresentado e na qual tinham invocado encontrar-se o crédito de que são titulares garantido pelo direito de retenção, enquanto beneficiários de promessa de transmissão do bem apreendido “nos termos do disposto nos artigos 759.º e 755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil”.

Sobre o assim requerido recaiu o despacho ora recorrido, com o seguinte teor:
“Indefere-se o requerido, uma vez que o crédito de (…) e (…) foi graduado como comum e, ainda que tivesse sido reconhecido o direito de retenção, que não foi, tal não obstava à alienação do imóvel, já que o direito de retenção apenas confere prioridade no pagamento do credor que dele beneficia.
Notifique”.
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Inconformados, interpuseram os credores o presente recurso e, tendo desenvolvido na alegação apresentada os fundamentos da sua discordância com o decidido, formularam a final as seguintes conclusões:
“1.ª Os credores ora Recorrentes vieram aos autos apresentar reclamação de créditos no valor de € 99.576,99 e requereram que se reconheça o direito de retenção do prédio misto em apreço a favor dos mesmos até efectivo e integral pagamento da quantia reclamada e bem assim dos respetivos juros.
2.ª O Administrador de Insolvência promove a venda do bem em apreço no processo de insolvência, tendo sido manifestada a oposição porquanto encontra-se pendente reclamação de créditos apresentada por (…) e (…), os quais exercem o direito de retenção sobre o bem apreendido, nos termos do disposto nos artigos 759.º e 755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil.
3.ª Tal direito advém-lhes da qualidade de beneficiários da promessa de transmissão do bem imóvel acompanhada da traditio da coisa nos termos do artigo 755.º, alínea f), do Código Civil.
4.ª Por despacho datado de 06-10-2023 o tribunal a quo indeferiu o requerido e considera que ainda que tivesse sido reconhecido o direito de retenção, que não foi, tal não obstava à alienação do imóvel, já que o direito de retenção apenas confere prioridade no pagamento do credor que dele beneficia.
5.ª Os ora recorrentes não se conformam com o despacho de que ora se recorre.
6.ª Os credores ora recorrentes celebraram com a insolvente (…) e com o seu esposo (…) no dia 24-02-2020 uma declaração de dívida no valor de € 90.000,00 (noventa mil euros) e um contrato promessa de dação em cumprimento do prédio misto composto pelo prédio urbano sito em (…), freguesia de Pombal, concelho de Pombal, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…), com o valor patrimonial de 76.960,00 euros, e pelo prédio rústico sito em (…), freguesia de Pombal, concelho de Pombal, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…), com o valor patrimonial de € 5.480,00, sendo este prédio misto registado na Conservatória do Registo Predial de Pombal sob o n.º (…).
7.ª Motivo pelo qual os ora Recorrentes reclamaram créditos e peticionaram que fosse reconhecido o direito de retenção.
8.ª Não se conformando com o despacho recorrido porquanto os credores ora Recorrentes têm direito de retenção sobre o imóvel em apreço.
9.ª Andou mal o tribunal a quo ao decidir que o reconhecimento do direito de retenção não obsta à venda do imóvel, devendo ser declarado como garantido pelo direito de retenção o crédito reclamado, nos termos do disposto nos artigos 759.º e 755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil.
10.ª O direito de retenção dos ora reclamantes advém-lhes da qualidade de beneficiários da promessa de transmissão do bem imóvel acompanhada da traditio da coisa nos termos do artigo 755.º, alínea f), do Código Civil.
11.ª O despacho de que ora se recorre viola o disposto nos artigos 442.º, n.º 1 e n.º 2 e 755.º, n.º 1, alínea f) ambos do Código Civil.
12.ª Termos em que deverá o despacho de que ora se recorre ser revogado e consequentemente deverá ser proferido outro que reconheça o crédito reclamado pelos ora Recorrente e determine o cancelamento de todos os atos de venda”.
Pediram a final que na procedência do recurso fosse revogado o despacho recorrido.
Não foram oferecidas contra alegações.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita os objecto do recurso, são as seguintes as questões a decidir:
i. indagar se o crédito dos recorrentes se encontra garantido pelo direito de retenção;
ii. determinar se tal garantia obsta à venda do bem sobre que a mesma incide.
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II. Fundamentação
Da garantia do direito de retenção e dos seus efeitos
Interessando à decisão os factos relatados em I., deles resulta que, tendo sido a aqui insolvente e seu ex-marido declarados insolventes em processos distintos, e tendo como únicos bens aqueles que constituíam o património comum do casal, na circunstância os dois imóveis identificados no auto de apreensão acima indicado, foram os mesmos vendidos no processo onde fora antes declarada a insolvência do ex-cônjuge da insolvente, no qual a apreensão ocorrera primeiro, após o que o produto da venda foi repartido por ambos os processos.
Tendo sido entretanto proferida sentença de graduação dos créditos, nela foram reconhecidos, em conformidade com o mapa elaborado pelo Sr. AI, todos os reclamados, incluindo, portanto, o titulado pelos ora apelantes, e a todos foi atribuída natureza comum, em consequência do que foi determinado que seriam pagos, sem ordem de precedência, pelo produto da venda, procedendo-se a rateio se necessário.
Os ora recorrentes, que se opuseram no apenso de liquidação à venda dos imóveis, com fundamento no facto de o seu crédito se encontrar garantido por direito de retenção que sobre eles incidia, reiteram agora no recurso interposto que lhes deve ser reconhecida tal garantia e que a mesma constitui obstáculo à venda.
Antes de mais, cumpre esclarecer os diversos equívocos em que os apelantes incorrem: em primeiro lugar, a venda dos imóveis não ocorreu neste processo, pelo que, a existir obstáculo à venda, teria que ser invocado no processo onde a mesma teve lugar; acresce, decisivamente, que na sentença que reconheceu o crédito reclamado e o graduou com os demais, foi-lhe atribuída natureza comum, sentença que, ao que resulta dos elementos constantes dos autos, se mostra transitada em julgado, o que sempre obstaria à procedência da pretensão aqui formulada.
Sem embargo, sempre se dirá que tendo os agora apelantes alegado na reclamação apresentada que o crédito de que eram titulares -proveniente de empréstimos feitos aos insolventes, os quais reconheceram a dívida em declaração que subscreveram- se mostrava garantido por direito de retenção, face à celebração de contrato promessa de dação em pagamento dos prédios apreendidos, ao qual as partes teriam conferido eficácia real, na sequência do que os imóveis teriam sido traditados, a questão que se poderia colocar era antes outra, a saber, se o Sr. AI não estaria vinculado ao cumprimento do contrato celebrado.
Nos termos da lei insolvencial, decretada a insolvência, os negócios celebrados pelo insolvente que devam ser qualificados como negócios em curso -nos termos do n.º 1 do artigo 102.º, aqueles que à data da declaração de insolvência não se mostrem totalmente cumpridos, nem pelo insolvente, nem pela outra parte- ficam submetidos à regra geral da suspensão do cumprimento, tendo em vista o exercício pelo administrador do seu direito (potestativo) de optar entre recusar definitivamente o cumprimento do contrato ou antes executá-lo.
Tratando-se de contrato promessa de compra e venda, rege especificamente o artigo 106.º, preceito que distingue entre os contratos a que foi atribuída eficácia real, tendo ocorrido tradição da coisa a favor do promitente-comprador, cujo cumprimento não pode ser recusado pelo AI (vide n.º 1 do preceito), e os demais, cujo incumprimento por opção do administrador convoca a aplicação do regime consagrado no n.º 5 do artigo 104.º e, por força da remissão aqui operada, do n.º 3 do artigo 102.º (cfr. o n.º 2 do artigo 106.º).
A inclusão do contrato na previsão do n.º 1 do artigo 106.º, impondo ao administrador a sua celebração, exige, portanto, que o contrato promessa sinalizado se encontre dotado de eficácia real e, ainda, que tenha ocorrido a tradição da coisa.
Nos termos previstos no artigo 413.º do CC, à promessa de transmissão ou constituição de direitos reais sobre bens imóveis ou móveis sujeitos a registo podem as partes atribuir eficácia real, mediante declaração expressa e inscrição no registo.
Não valendo a pena discutir aqui se o direito atribuído ao promitente transmissário por via do contrato-promessa com eficácia real é um direito real de aquisição ou um direito de natureza meramente creditória de eficácia ampliada a terceiros por via do registo, nem tão pouco se, face à letra do mesmo artigo 413.º, a inscrição registal – obrigatória nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea f) e 8.º-A, n.º 1, alínea b), do Código do Registo Predial – tem uma função constitutiva ou apenas a função geral de oponibilidade a terceiros, a verdade é que, em qualquer caso, na ausência de registo a promessa não adquire eficácia “erga omnes”, não podendo ser oposta a terceiros, como é o caso dos demais credores da insolvente.
Incidindo agora sobre o caso que nos ocupa, a verdade é que não está em causa um contrato promessa de compra e venda[2], das certidões juntas não resulta que a invocada atribuição de eficácia real ao contrato celebrado tenha sido levada a registo, sendo certo ainda que, tendo os apelantes alegado a traditio[3], tal factualidade foi, sem censura, completamente desconsiderada na sentença que procedeu à verificação e graduação dos créditos. Mostrando-se tal sentença transitada em julgado, tal obsta à discussão desses mesmos factos nesta sede, de tudo resultando que nada impunha aos Srs. AI que cumprissem o contrato celebrado com os apelantes, antes podendo livremente decidir pela sua venda.
Insistem todavia os apelantes que o crédito que lhes foi reconhecido se mostra garantido pelo direito de retenção, obstáculo à venda dos imóveis a terceiros. Sem razão o fazem.
Conforme se deixou já dito e não parece demais repetir, não tendo tal garantia sido reconhecida na sentença que verificou e graduou os créditos reclamados, sem que contra ela se tenham os apelantes insurgido, é questão que se mostra definitivamente decidida nos autos. Não deixará, porém, de se referir que o direito de retenção conferido ao promitente comprador na alínea f) do n.º 1 do artigo 755.º do CC, que os recorrentes pretendem aqui aplicável, visa garantir o crédito indemnizatório previsto no artigo 442.º do mesmo diploma legal para o caso de o contrato promessa não ser cumprido, sinal que não existe no caso que nos ocupa. Acresce que, conforme se considerou no TRL, em acórdão de 12/9/2019, proferido no processo n.º 6058/16.3T8FNC-F.L2-6, também acessível em www.dgsi.pt., entendimento que aqui se acolhe, o “(…) contrato promessa de dação em pagamento visa apenas a extinção futura de uma dívida previamente constituída, sem que no momento dessa constituição exista alguma ligação ao imóvel objecto da promessa de dação, pelo que não poderá ser aplicável o artigo 755.º, n.º 1, alínea f) (…)”.
Por último, e tal como se fez constar do despacho ora recorrido, mesmo a ser reconhecido -que não foi- o direito de retenção, é pacífico que o mesmo não obsta à venda do bem, transferindo-se a garantia para o produto da venda e concedendo ao credor retentor o direito a ser pago com preferência sobre os demais, nos termos prevenidos no n.º 3 do artigo 824.º do CC (cfr., por todos, o acórdão do STJ de 16/12/2020, no processo n.º 231/15.9T8AVR.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt). Em abono deste entendimento vale ainda aqui recordar que o artigo 1.º do CIRE afirma ser o processo de insolvência um processo de execução universal tendo como finalidade a satisfação dos credores “pela forma prevista num plano de insolvência, baseada, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor e a repartição do produto obtido pelos credores”. E pese embora não seja consensual a atribuição da natureza executiva ao processo insolvencial, na consideração de que tais concepções “menosprezam a fase declarativa do processo de insolvência”, salientando-se que os “importantes efeitos substantivos da declaração de insolvência” justificam que lhe seja atribuída a natureza mista de acção declarativa e executiva, é, em qualquer caso, isento de dúvida, que os “actos do processo relativos ao activo da massa insolvente têm natureza prevalentemente executiva”[4]. Nesta medida, é-lhe aplicável o disposto no n.º 2 do citado artigo 824.º do CC, pelo que “(…) com a venda executiva, os bens são transmitidos livres de todos os direitos reais de garantia que oneravam o bem vendido, sejam eles de constituição anterior ou posterior à penhora e tenham ou não sido reclamados na ação executiva os direitos de crédito que os garantam” (do citado acórdão do STJ de 16/12/2020).
Improcedendo, nos termos expostos, todos os fundamentos do recurso, subsiste a decisão recorrida.
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.
Custas do recurso a cargo dos credores recorrentes (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
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Sumário: (…)
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Évora, 25 de Janeiro de 2024
Maria Domingas Simões
Cristina Dá Mesquita
Francisco Matos

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[1] Ex.mos Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos:
Dr.ª Cristina Dá Mesquita
Dr. Francisco Matos
[2] Recusando a aplicação analógica do artigo 106.º, n.º 1, do CIRE à promessa de dação em pagamento, sendo prometida a transmissão de imóvel, o acórdão do STJ de 3/1/2023, proferido nos autos de revista excepcional no âmbito do processo n.º 4668/18.3 T8OAZ-A.P1, em www.dgsi.pt.
[3] Tradição que, conforme se explicita no acórdão do STJ de 10/1/2019 (processo n.º 3595/16.3T8GMR.G1.S1, em www.dgsi.pt), “consiste na cedência da coisa prometida alienar de modo a proporcionar ao beneficiário da promessa o uso e/ou a fruição da mesma, com a amplitude que seja concretamente acordada, podendo reconduzir-se a uma mera detenção por parte daquele beneficiário, configurável, em princípio, como um atípico direito pessoal de gozo (…)”.
[4] Prof. Lebre de Freitas, “Apreensão, Separação, Restituição e Venda”, acessível em https://recil.ensinolusofona.pt/bitstream/10437/6397/1/jurismat5_15-25.pdf.