Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3443/14.9T8STB.E1
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: ACÇÃO EXECUTIVA
DESISTÊNCIA DO PEDIDO
REVOGAÇÃO
ACÇÃO DE ANULAÇÃO
Data do Acordão: 11/30/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:
I - A desistência do pedido é de qualificar como acto jurídico unilateral em qualquer fase do processo, enquanto a desistência da instância, só assume essa natureza quando requerida antes da contestação ou do oferecimento de embargos à execução, isto porque, se requerida depois do oferecimento da contestação ou dos embargos, assume a natureza de negócio jurídico bilateral
II - Operando as necessárias adaptações entre o processo declarativo e o processo executivo, podemos concluir que a desistência do pedido, tendo na acção executiva a mesma natureza de negócio de direito privado que tem na acção declarativa, configura uma declaração de renúncia ao próprio crédito exequendo.
III - Porém, ao invés do que ocorre na acção declarativa, não é homologada por sentença, produzindo directamente, não apenas aqueles efeitos de direito civil, mas também o efeito processual de extinção da obrigação exequenda.
IV - Actualmente, a extinção do processo executivo não é declarada por sentença, decorrendo automaticamente da verificação das situações elencadas no artigo 849.º, n.º 1, do CPC, e não carecendo de intervenção judicial ou da secretaria, conforme expressamente declara o n.º 3 do preceito.
V - Assim, sendo a declaração de desistência do pedido, uma das outras causas de extinção da execução, a que alude a norma residual constante da alínea f) do n.º 1 do artigo 849.º do CPC, com a notificação aos executados de tal acto jurídico (n.º 2 do mesmo artigo), opera-se automaticamente a extinção da execução.
VI - Afirmando o artigo 286.º, n.º 2, do CPC, que a desistência do pedido é livre, de acordo com o expressamente estatuído no artigo 291.º, n.º 1, do CPC, a mesma só pode ser declarada nula ou anulada, como os outros actos da mesma natureza, ou seja, de acordo com as causas que, segundo a lei civil, determinem a nulidade ou a anulabilidade do acto ou negócio jurídico.
VII - Com o acto postulativo do exequente de desistência do pedido executivo, precludiu a possibilidade de apresentação de um outro de sentido contrário.
VIII - Aplicando o disposto no artigo 292.º, n.º 2, do CPC, com as necessárias adaptações, ao processo executivo em que, como dito, não existe actualmente sequer prevista a extinção por sentença, então temos de concluir que o único meio legalmente possível de obter a revogação da desistência é a acção de declaração de nulidade ou anulação, não sendo obviamente possível a revisão de sentença.
IX - Existindo previsão legal expressa sobre a forma processual como o direito que o exequente pretende fazer valer pode ser exercido, nem o uso dos princípios da cooperação e da boa-fé processual previstos nos artigos 7.º e 8.º do CPC, nem sequer o dever de gestão processual ínsito no artigo 6.º do CPC, permitiria que a peticionada revogação da declaração de desistência fosse decidida por incidente nestes autos de processo executivo, com produção de prova.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[1]:

I – Relatório
1. AA, exequente no processo em referência, por requerimentos de fls. 29 e 30 (de 26 e 27.11.2013), apresentou termo de desistência do pedido, na execução movida contra os executados, BB e CC.
2. Foi determinada a notificação da executada para, querendo, se pronunciar, com o fundamento de que a mesma apresentara oposição à execução (fls. 32).
3. A executada veio, então, dizer que a desistência é válida e, como tal deve ser declarada, e requerer a extinção da instância de oposição à execução, por inutilidade superveniente da respectiva lide.
4. Porém, por novo requerimento de fls. 37 (de 27.12.2013), veio o exequente solicitar que a declaração de desistência do pedido que apresentara fosse dada sem efeito, informando que a emitiu por erro e coacção.
5. Após, foi proferido o seguinte despacho: «A homologação da desistência do pedido depende da sua validade. Considerando que a desistência do pedido não foi ainda homologada por sentença a eventual invalidade invocada pelo desistente deve ser apreciada nestes autos».
6. E, nessa sequência, foi entendido que a alegada invalidade da declaração de desistência carecia da produção de prova, por parte do exequente (despacho de fls. 40), convidando-o a apresentá-la no prazo de dez dias.
7. A executada apresentou recurso deste despacho.

8. Por despacho proferido em 02-06-2014, foi considerado que «A desistência do pedido configura um direito disponível das partes mas cabe ao tribunal fiscalizar a regularidade e validade da vontade das partes.
Sucede que o exequente veio dizer que não subscreveu livremente a desistência do pedido apresentado nos autos e não chegou ainda a ser homologada, por sentença, essa desistência do pedido.
Afigura-se-nos que se impõe, efectivamente, apurar se o próprio acto de vontade e em si mesmo inválido, por coação, o que implica que a homologação da desistência não pode ter lugar.
Deverá, pois, ser apreciada a questão com audição das testemunhas indicadas pela exequente e executada.
Antes de mais, adverte-se o exequente para uma eventual litigância de má-fé, pelo que, se determina a sua notificação para, querendo, exercer o contraditório».
9. Porém, em novo despacho, veio o Tribunal considerar que embora haja preconizado a necessidade de ser produzida prova com o intuito de ser apreciada a validade da desistência do pedido (despachos de fls. 40 e 60), como o requerido a fls. 37 não fora ainda objecto de decisão, entendeu não se mostrar precludida a possibilidade de sobre tal requerimento recair despacho, que passou a proferir, com o seguinte teor:
«[A] perfilhar-se o entendimento de que impende sobre o exequente o ónus de provar que emitiu a declaração de desistência do pedido por se encontrar em erro ou sob coacção, teria que se impor também a conclusão de que a declaração de desistência não é, pelo próprio, livremente revogável. E, no limite, caso não lograsse provar os factos que sustentam o alegado erro ou coacção, a declaração de desistência teria, forçosamente, de ser homologada por sentença.
Há ainda a considerar que, caso o exequente não tivesse vindo juntar aos autos o requerimento de fls. 37, a desistência do pedido teria sido devidamente homologada, por nenhum vício patentear que impusesse decisão diversa.
Porém, tendo aquela parte requerido que a sua anterior declaração (de fls. 29 e 30) fosse dada sem efeito, jamais esta poderia ser ignorada, sob pena de incorrer o próprio Tribunal em violação dos deveres de cooperação e actuação segundo a boa fé processual a que se encontra adstrito, ínsitos nos arts. 7º e 8º do NCPC.
Por conseguinte, apurar as razões que estiveram na base do requerido a fls. 37 afigura-se um acto processualmente inútil, porque tal requerimento teve como consequência a impossibilidade de ser homologada a desistência do pedido executivo.
De contrário, colocar-se-ia o exequente na contingência de, não logrando provar o erro ou a coacção da declaração inicial, se ver confrontado com a homologação de uma desistência que deixou de desejar, e contra a qual apenas poderia reagir lançando mão do pedido de anulação previsto no art. 291º, nºs 1 e 2, do NCPC.
Assim, não tendo sido homologada, por sentença, a declaração de desistência do pedido por parte do exequente, constante de fls. 29 e 30, e tendo este vindo, posteriormente, revogar tal declaração, encontra-se o Tribunal impossibilitado de, sobre aquela, proferir decisão de homologação, por já não corresponder à vontade do declarante, o que redunda na manifesta inutilidade de quaisquer diligências de prova destinadas a verificar a invalidade da desistência do pedido. Nesta medida:
- Determino o prosseguimento dos autos, não se procedendo à produção das provas requeridas pelas partes;
- Julgo extinta a instância de recurso intentada pela executada, a fls. 43 e seguintes, por ter deixado de subsistir o despacho que lhe serviu de fundamento».

10. Inconformada, a Executada apresentou o presente recurso de apelação finalizando com as seguintes conclusões:
«1 – A desistência do pedido, regularmente formalizada, é um acto jurídico a que se aplica as normas dos negócios jurídicos, pelo que é anulável por erro – vício de vontade.
2 – Formalizada no processo essa desistência do pedido ela não é livremente revogável.
3 – A desistência deve ser homologada, o que não preclude a possibilidade de impugnação do próprio acto de desistência, se anulável.
4 – E tal possibilidade de impugnação da desistência existe quer haja ou não sentença, quer tenha ou não transitado tal sentença.
5 – O que tem é de ser feito em acção própria ou por via de recurso de revisão (artigo 291º do C.P.C.)
6 – Nenhuma norma do Código Civil ou do Código de Processo Civil, permite considerar que a desistência, confissão ou transacção, sejam actos livremente revogáveis, pois, além do mais, isso conduziria à maior insegurança e incerteza jurídica.
7 – Há uma norma do Código Civil que a douta julgadora não atentou e que contraria, em termos absolutos, a possibilidade de revogação livre da desistência.
8 – Trata-se do artigo 13º, nº 2, que, no caso de surgimento de lei interpretativa mais favorável ao desistente, permite a revogação da desistência ainda não homologada por sentença.
9 – No presente caso, não estamos perante um caso em que tenha surgido uma lei interpretativa.
10 – E assim, a contrario sensu, não é permitido a revogação da desistência pelo desistente.
11 – Nenhum princípio da cooperação impõe que o executado respeite as consequências de revogações inválidas do acto de desistência.
12 – Pelo contrário, os princípios da cooperação e boa-fé impunha que o exequente, tendo desistido do pedido, não viesse um mês depois tentar subverter o acto praticado mediante alegação de factos falsos e contraditórios».

3. Pelo Exequente foram apresentadas contra-alegações, que terminou com as seguintes conclusões:
«1 – A desistência do pedido, é um acto jurídico a que se aplica as normas dos negócios jurídicos, pelo que é anulável por erro – vício de vontade, ou coacção.
2 – Formalizada no processo essa desistência do pedido ela é livremente revogável, enquanto não for homologada.
3 – A desistência após homologada, mantém a possibilidade de impugnação, se anulável.
4 – Nenhuma norma do Código Civil ou do Código de Processo Civil, permite considerar que a desistência, confissão ou transacção, não homologadas sejam actos revogáveis».

4. Dispensados os vistos, cumpre decidir.
*****
II. O objecto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[2], é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo evidentemente daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, vistos os autos, a única questão colocada no presente recurso de apelação é a de saber se o Exequente pode ou não revogar o requerimento em que formalizou a desistência do pedido na presente acção executiva.
Para o efeito, importará debruçarmo-nos sobre a natureza jurídica, requisitos, e efeitos de tal requerimento.
*****
III – Fundamentos
III.1. – De facto:
A tramitação processual relevante que importa à decisão do presente recurso é a que se mostra vertida no relatório supra.
*****


III.2. – O mérito do recurso
Entende a Recorrente/Executada que, tendo o Recorrido/Exequente formalizado nos autos a apresentação de requerimento de desistência da execução, tal desistência do pedido não é livremente revogável, devendo ser homologada, existindo a possibilidade de impugnação da desistência quer haja ou não sentença, quer tenha ou não transitado tal sentença, posto que tal seja feito em acção própria ou por via de recurso de revisão.
Será que lhe assiste razão? Vejamos.
Conforme é consabido, a acção executiva tem na sua base a existência de um título executivo pelo qual se determinam o seu fim e os respectivos limites subjectivos e objectivos, daí que se defina como executiva a acção que “tem por fim exigir o cumprimento duma obrigação estabelecida em título bastante, ou a substituição da prestação respectiva por um valor igual do património do devedor”[3].
Trata-se, por natureza, de uma acção em que se pretende obter a cobrança coerciva do crédito do exequente, donde decorre que na mesma estão em causa direitos disponíveis, sendo consequentemente admissível a sua extinção, quer pelas causas que se mostram especialmente previstas no artigo 849.º do CPC, que rege quanto à extinção da execução, quer quando ocorra outra causa de extinção da execução (alínea f) do mesmo preceito), quer ainda, e centrando-nos no que ora releva, precisamente pela desistência do exequente, incluída naquelas outras causas de extinção.
Efectivamente, atento o expressamente preceituado no artigo 848.º, n.º 1, do CPC, a desistência do exequente extingue a execução, e aquela só depende da aceitação do embargante, se se tratar de desistência da instância e estiverem pendentes embargos de executado (artigo 848.º, n.º 2, do CPC), caso em que o legislador deixa na esfera deste a apreciação da manutenção ou não do respectivo interesse no prosseguimento dos embargos.
Ao invés, se a desistência declarada pelo exequente for do pedido, não está dependente da aceitação do embargante, o que bem se compreende porque, nesse caso, a instância de embargos extingue-se por inutilidade superveniente da lide.
Esta distinção entre a desistência do pedido e a desistência da instância é precisamente o primeiro ponto que importa clarificar, posto que, na espécie, não havia que determinar a notificação a que alude o ponto 2. do relatório supra, a qual só teria lugar caso o exequente tivesse requerido a desistência da instância, situação que não se confunde com a desistência do pedido.
Vejamos, então, com mais detalhe, a natureza jurídica do acto praticado, não restando dúvidas interpretativas dos requerimentos apresentados pelo exequente, quanto à declaração que efectuou nos presentes autos no sentido de pretender a desistência do pedido.
Efectivamente, logo do teor do primeiro requerimento manuscrito (fls. 29, de 26-11-2013), apresentado no tribunal e com conferência da identificação do exequente através do respectivo cartão de cidadão, consta: «venho pelo presente solicitar o termo de desistência do processo acima mencionado, conforme artigo 283.º do novo Código de Processo Civil, a desistência definitiva do mesmo».
Por seu turno, no requerimento que apresentou no dia seguinte, a fls 30, após a respectiva identificação, consta expressamente «exequente no processo acima identificado vem aos autos declarar que desiste do pedido, contra os executados Florindo Santos Pelixo e Maria de Fátima Branco Amaro Pelixo (artigos 285.º, n.º 1, e 290.º, n.º 1, do CPC).
Juntou com o mesmo termo de autenticação exarado no Cartório Notarial de Palmela (notária Sandra Bolhão), onde após a identificação respectiva e verificação da identidade, consta «o qual me apresentou para fins de autenticação, o documento anexo, que consta de uma declaração para o Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, com o número de processo 100583-A/1994-A», aduzindo-se seguidamente: «que disse haver lido e assinado e que a mesma exprime a sua vontade».
Portanto, dúvidas não podem existir - e, aliás, o próprio exequente não coloca esse facto em causa -, que o mesmo declarou nos presentes autos que desistia do pedido.
Como dito, esta declaração tem efeitos distintos da desistência da instância, sendo a própria lei que os estabelece.
De facto, sendo certo que ambas as declarações de desistência, do pedido como da instância, são declarações de vontade através das quais o autor/exequente visa obter um certo efeito, in casu, fazer extinguir a instância, porquanto tais declarações são, por via da lei, causas de extinção da instância - quer declarativa, por força do disposto na alínea d) do artigo 277.º do CPC, quer executiva, por via do citado artigo 848.º do CPC, ou seja, ambas têm efeitos processuais legalmente estabelecidos -, não é menos certo que a sua qualificação jurídica é distinta, sendo também distintos os efeitos em cada uma das espécies e, por isso, o legislador efectua a devida distinção.
Assim, enquanto a desistência do pedido é de qualificar como acto jurídico unilateral em qualquer fase do processo, já a desistência da instância, só assume essa natureza quando requerida antes da contestação ou do oferecimento de embargos à execução, isto porque, se requerida depois do oferecimento da contestação ou dos embargos, assume a natureza de negócio jurídico bilateral[4].
Por isso mesmo “enquanto a desistência do pedido é inteiramente livre, a da instância depende da concordância do executado, se estiver pendente oposição à execução”[5].
Vejamos agora os efeitos da declaração de desistência.
Como é sabido, na acção declarativa, tais efeitos resultam directamente dos preceitos legais que regem a matéria, pelo que, desde que não verse sobre direitos indisponíveis, enquanto a desistência do pedido é livre e extingue o direito material que através da acção o autor pretendia fazer valer, implicando, portanto, a absolvição do Réu do pedido, nos termos dos artigos 285.º, nº 1, 286.º, nº 2, e 289.º, nº 1, do CPC, já a desistência da instância só é livre antes do oferecimento da contestação, dependendo da aceitação do Réu quando requerida depois desse momento (artigos 286.º, nº 1, CPC), e limita-se a fazer cessar o processo que se instaurara (artigo 285.º, nº 2, CPC), não importando, em princípio, extinção do direito material que se pretendia fazer valer.
Por seu turno, na acção executiva, não resultando todos aqueles efeitos expressamente do citado artigo 848.º que apenas refere que a desistência do exequente extingue a execução, o certo é que, por via do preceituado no artigo 551.º do CPC, as disposições reguladoras do processo declarativo aplicam-se, com as necessárias adaptações, ao processo de execução, desde que se mostrem compatíveis com a natureza da acção executiva.
Assim, como ensina Lebre de Freitas[6], “a desistência do pedido, tendo na acção executiva a mesma natureza de negócio de direito privado que tem na acção declarativa, não pode ser entendida como renúncia ao direito de executar o crédito (…), mas como renúncia ao próprio crédito exequendo. De particular tem, porém, que não é homologada por sentença, produzindo directamente, não só os seus efeitos de direito civil (como na acção declarativa), mas também o efeito processual de extinção da instância executiva». Mais adiante, explicando as diferenças do termo do processo executivo relativamente ao regime anterior volta a enfatizar que «hoje como ontem, o efeito de direito substantivo de facto (pagamento ou outro) invocado na acção executiva não deixa de se produzir, obstando ao êxito duma nova acção executiva». E, concretamente, quanto à sentença homologatória da desistência do pedido refere que «já na vigência do direito anterior era sustentado (…) que a sentença homologatória da desistência do pedido ou da transacção não tinha na acção executiva a mesma estrutura nem o mesmo efeito que na acção declarativa: como negócios jurídicos de direito substantivo praticados no processo, a desistência do pedido e a transacção surtiam a sua eficácia directa no campo da relação obrigacional exequenda, tal como na acção declarativa; mas a sentença que, seguidamente, extinguia a execução não absolvia o executado do pedido”.
Deste modo, operando as necessárias adaptações entre o processo declarativo e o processo executivo, podemos concluir que a desistência do pedido, tendo na acção executiva a mesma natureza de negócio de direito privado que tem na acção declarativa, configura uma declaração de renúncia ao próprio crédito exequendo. Porém, ao invés do que ocorre na acção declarativa, não é homologada por sentença, produzindo directamente, não apenas aqueles efeitos de direito civil, mas também o efeito processual de extinção da obrigação exequenda[7].
Assim, perante a expressa vontade de desistência do pedido manifestada nos autos pelo exequente, que para o efeito tem a necessária legitimidade, e sendo a mesma formalmente válida (artigo 290.º n.ºs 1 e 3, do CPC), em face do sobredito regime legal, tal declaração produz directamente os referidos efeitos no âmbito do processo, designadamente o efeito processual de extinção da presente instância executiva, tanto mais que, como já dito, a desistência requerida, por ser do pedido, não carecia de aceitação do executado, operando de imediato.
Na verdade, desde a anterior reforma do processo executivo que o actual CPC nessa parte manteve, a instância do processo executivo não é declarada extinta por sentença[8], decorrendo automaticamente da verificação das situações elencadas no artigo 849.º, n.º 1, do CPC, e não carecendo de intervenção judicial ou da secretaria, conforme expressamente declara o n.º 3 do preceito.
Assim, sendo a declaração de desistência do pedido, uma das outras causas de extinção da execução, a que alude a norma residual constante da alínea f) do n.º 1 do artigo 849.º do CPC, com a notificação aos executados de tal acto jurídico (n.º 2 do mesmo artigo), opera-se automaticamente a extinção da execução.
Consequentemente, conclui-se que toda a tramitação processual posterior à referida declaração não tem respaldo na lei, já que, de harmonia com os referidos efeitos directos da desistência, havia apenas que o declarar, face ao requerimento nesse sentido dirigido ao processo.
Mas, ainda que se entenda que, ao abrigo do disposto na norma residual constante da alínea d) do n.º 1 do artigo 723.º do CPC, o juiz mantém a competência para aferir da validade do acto ou negócio jurídico de auto-composição do litígio que a desistência do pedido constitui, então, pela mesma ordem de razões, cabia ao juiz apenas homologar a desistência do pedido.
Isto para dizer que, por qualquer um dos prismas por que se encarem os poderes do juiz nesta matéria no âmbito do processo executivo - o mesmo é dizer, exista ou não sentença homologatória da desistência -, a revogação da mesma pelo exequente, que invocou posteriormente ter sido coagido para o efeito, não pode ser efectuada - como aquele pretende -, por via de simples declaração nesse sentido ao processo, mesmo que não tenha havido homologação da mesma por sentença que, no âmbito do processo executivo, como vimos, nem sequer se encontra legalmente prevista.
Efectivamente, afirmando o artigo 286.º, n.º 2, do CPC, que a desistência do pedido é livre, de acordo com o expressamente estatuído no artigo 291.º, n.º 1, do CPC, a mesma só pode ser declarada nula ou anulada, como os outros actos da mesma natureza, ou seja, de acordo com as causas que, segundo a lei civil, determinem a nulidade ou a anulabilidade do acto ou negócio jurídico, a saber, por simulação, erro, dolo, coacção, etc.
De facto, esta disposição legal é expressa e dela decorre claramente que, tratando-se a desistência do pedido de um acto enquadrado nas formas de auto-composição do litígio, tal acto ou negócio jurídico encontra-se sujeito ao respectivo regime legal. Ora, conjugando esta estatuição com o que estabelece o n.º 2 do mesmo preceito, não restam quaisquer dúvidas de que a declaração de nulidade ou a anulação da desistência do pedido só pode ser efectuada por via dos meios ali previstos: a acção destinada a tal fim (afirmando-se expressamente que o trânsito em julgado da sentença homologatória não impede a referida acção); ou a revisão de sentença com esse fundamento (neste caso, impondo-se evidentemente o trânsito da referida sentença).
E compreende-se que assim seja.
Na verdade, já afirmava Alberto dos Reis[9] que o erro de direito não podia ser invocado como fundamento de revogação, isto porque, “quem confessa, desiste, ou transige deve saber o que faz, qual o alcance e as consequências jurídicas do seu acto, qual o direito que lhe assiste; se não sabe, consulte um técnico; se pratica o acto sem ouvir pessoa que possa elucidá-lo, sibi imputet”.
Por isso que, o referido n.º 2 permite efectivamente que seja pedida a revogação, designadamente com o fundamento em coacção, mas ela apenas pode vir a ser conseguida por uma das duas indicadas vias: o recurso de revisão, apenas admissível caso exista sentença homologatória da desistência e a mesma tenha transitado (artigo 696.º, alínea d), do CPC), ou a acção destinada à declaração de nulidade ou anulação, independentemente de ter ou não transitado a sentença[10].
De referir, ainda, que o CPC de 39 explicitava isto mesmo no corpo do artigo 306.º, ao preceituar que “a confissão, desistência ou transacção não pode ser revogada por erro de direito; mas pode sê-lo por erro de facto, por dolo, coacção ou simulação, em acção intentada para esse fim”.
Em comentário a este normativo legal, Alberto dos Reis sublinha a natureza da sentença homologatória, frisando que “a mesma não deixa de produzir efeitos, e portanto valer como título executivo, pelo facto de ser intentada a acção de revogação”. E acrescenta: “só depois de julgada procedente esta acção é que desaparece a eficácia daquela sentença, mas deve entender-se que o efeito da revogação se retrotrai à data em que o acto foi praticado”.[11]
O facto de o actual CPC - à semelhança do que acontecia com o CPC de 61, mesmo após a Reforma de 95/96 -, ser omisso a este respeito, em nada invalida a argumentação exposta, que continua actual.
Em reforço, sempre se dirá que, a verificarem-se os vícios de vontade alegados pelo exequente (coacção moral e erro) os mesmos poderiam ser anuláveis e por via de acção, como resulta do n.º 1 do artigo 287.º do CC.
Tudo isto para concluir que, na hipótese de ter havido homologação da desistência e tendo esta transitado em julgado, duas vias de impugnação coloca o legislador à disposição da parte que emitiu declaração viciada: a acção de anulação nos termos já apontados e o recurso extraordinário de revisão.
Com profundidade, Paula Costa e Silva lembra que o acto postulativo é o acto no qual a parte formula pedidos, cuja apreciação requer ao tribunal. Daqui retira, desde logo, uma consequência: “é no acto postulativo que a parte procede à delimitação do pedido e da causa de pedir. O mesmo é dizer que o objecto do processo coincide com o conteúdo do acto postulativo”.
A mesma processualista não deixa de questionar sobre a possibilidade de revogação do acto postulativo, informando-nos, desde logo, que “Teixeira de Sousa afirma que o acto postulativo é revogável enquanto não se tiver constituído uma situação favorável para a contraparte. Ao invés, esta situação deve ter-se por constituída com a apresentação da contestação”.[12]
Exemplo prático desta tomada de posição é, a nosso ver, o que está preceituado no artigo 46.º do CPC:
“As afirmações e confissões expressas de factos, feitas pelo mandatário nos articulados, vinculam a parte, salvo se forem rectificadas ou retiradas enquanto a parte contrária as não tiver aceitado especificadamente”.
Com interesse para a solução do caso em apreço, importa saber se, em concreto, o nosso sistema processual admite a revogação por substituição.
E a mesma Autora dá-nos a resposta. Caracterizando o nosso sistema processual como sendo de eventualidade, o que equivale a dizer que “cada acto processual cria uma situação de irreversibilidade tendencial”, conclui que “estando cada acto afecto a uma função específica”, “deve ser esgotada no momento destinado à prática de cada um dos actos previstos pelo legislador”. Ou seja: vigora, no nosso sistema processual, a regra da preclusão.
E, em conclusão, sublinha que “o acto postulativo só pode ser revogado a todo o tempo se for acompanhado de um acto de renúncia, quer quanto ao pedido, quer quanto aos fundamentos desse mesmo pedido”, sendo que “a revogação por substituição só é possível dentro dos limites previstos nos artigos 272 e 273” (artigos estes do revogado CPC e a que tem a sua correspondência nos artigos 264.º e 265.º do actual CPC)[13].
Revertendo a lição da ilustre processualista para o caso em análise, podemos agora dizer o seguinte:
Com o acto postulativo do exequente de desistência do pedido executivo, precludiu a possibilidade de apresentação de um outro de sentido contrário.
O acto de desistência do pedido obrigava in casu o juiz a julgar a validade ou invalidade do mesmo. Concomitantemente, não cabendo na previsão dos aludidos artigos 264.º e 265.º do CPC, forçados somos a concluir que com a apresentação de tal acto precludiu a possibilidade de apresentação de um outro acto postulativo, este de sentido contrário.
Aplicando agora estes ensinamentos, com as necessárias adaptações, ao processo executivo em que, como vimos, não existe actualmente sequer prevista a extinção da execução por sentença, então temos de concluir que o único meio legalmente possível de obter a revogação da desistência é a referida acção, não sendo obviamente possível a revisão de sentença.
Assim, existindo previsão legal expressa sobre a forma processual como o direito que o exequente pretende fazer valer pode ser exercido, e se, nos termos do n.º 2 do artigo 2.º do CPC, a todo o direito corresponde a acção adequada a fazê-lo valer em juízo, não podem colher os argumentos expendidos pela Senhora Juíza quanto ao uso dos princípios da cooperação e da boa-fé processual previstos nos artigos 7.º e 8.º do CPC.
E, acrescente-se, nem sequer o dever de gestão processual ínsito no artigo 6.º do CPC, permitiria que a peticionada revogação fosse decidida por incidente nestes autos de processo executivo, com produção de prova.
Efectivamente, a aplicação dos poderes do juiz que este princípio tutela, dirige-se designadamente às diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção, ou seja, não é um poder absolutamente discricionário que lhe permita postergar as normas legais expressamente consagradas para o exercício de um determinado direito.
Deste modo, encontrando-se tabelada pelo artigo 291.º do CPC, a acção adequada a fazer exercer em juízo a pretensão de revogação da desistência do pedido, não pode tal forma de acautelar o exercício desse direito ser alterada por via de despacho judicial.
Concluindo, a desistência do pedido produziu directamente os seus efeitos, e, consequentemente, extinguiu-se a presente execução.
Assim, a revogação da desistência só pode ser efectivada pelo exequente na acção própria em que alegue e demonstre a invocada coacção, sendo que, só em caso de procedência dessa acção, os efeitos da revogação retroagem à data da desistência, seguindo o presente processo os termos posteriores a esta.
Desta forma, somos forçados a dizer que a única posição que a Senhora juíza a quo podia e devia tomar, face ao requerimento que ao processo foi dirigido, era a homologação ou não homologação da desistência por parte do exequente, não deixando de considerar como incidente anómalo a apresentação do segundo requerimento, com todas as devidas consequências.
Pelo exposto, e sem necessidade de maiores considerações, o presente recurso deve proceder, sendo de revogar o despacho recorrido e, substituindo-nos ao tribunal recorrido, nos termos do disposto no artigo 665.º, n.º 1, do CPC, declarar a extinção da presente execução.
*****
III.3. Síntese conclusiva:
I - A desistência do pedido é de qualificar como acto jurídico unilateral em qualquer fase do processo, enquanto a desistência da instância, só assume essa natureza quando requerida antes da contestação ou do oferecimento de embargos à execução, isto porque, se requerida depois do oferecimento da contestação ou dos embargos, assume a natureza de negócio jurídico bilateral
II - Operando as necessárias adaptações entre o processo declarativo e o processo executivo, podemos concluir que a desistência do pedido, tendo na acção executiva a mesma natureza de negócio de direito privado que tem na acção declarativa, configura uma declaração de renúncia ao próprio crédito exequendo.
III - Porém, ao invés do que ocorre na acção declarativa, não é homologada por sentença, produzindo directamente, não apenas aqueles efeitos de direito civil, mas também o efeito processual de extinção da obrigação exequenda.
IV - Actualmente, a extinção do processo executivo não é declarada por sentença, decorrendo automaticamente da verificação das situações elencadas no artigo 849.º, n.º 1, do CPC, e não carecendo de intervenção judicial ou da secretaria, conforme expressamente declara o n.º 3 do preceito.
V - Assim, sendo a declaração de desistência do pedido, uma das outras causas de extinção da execução, a que alude a norma residual constante da alínea f) do n.º 1 do artigo 849.º do CPC, com a notificação aos executados de tal acto jurídico (n.º 2 do mesmo artigo), opera-se automaticamente a extinção da execução.
VI - Afirmando o artigo 286.º, n.º 2, do CPC, que a desistência do pedido é livre, de acordo com o expressamente estatuído no artigo 291.º, n.º 1, do CPC, a mesma só pode ser declarada nula ou anulada, como os outros actos da mesma natureza, ou seja, de acordo com as causas que, segundo a lei civil, determinem a nulidade ou a anulabilidade do acto ou negócio jurídico.
VII - Com o acto postulativo do exequente de desistência do pedido executivo, precludiu a possibilidade de apresentação de um outro de sentido contrário.
VIII - Aplicando o disposto no artigo 292.º, n.º 2, do CPC, com as necessárias adaptações, ao processo executivo em que, como dito, não existe actualmente sequer prevista a extinção por sentença, então temos de concluir que o único meio legalmente possível de obter a revogação da desistência é a acção de declaração de nulidade ou anulação, não sendo obviamente possível a revisão de sentença.
IX - Existindo previsão legal expressa sobre a forma processual como o direito que o exequente pretende fazer valer pode ser exercido, nem o uso dos princípios da cooperação e da boa-fé processual previstos nos artigos 7.º e 8.º do CPC, nem sequer o dever de gestão processual ínsito no artigo 6.º do CPC, permitiria que a peticionada revogação da declaração de desistência fosse decidida por incidente nestes autos de processo executivo, com produção de prova.
*****
IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em revogar o despacho proferido, substituindo-se ao tribunal recorrido e declarando a extinção da presente execução.
*****

Évora, 30 de Novembro de 2016
Albertina Pedroso [14]
Francisco Xavier
Maria João Sousa e Faro

__________________________________________________
[1] Relatora: Albertina Pedroso;
1.º Adjunto: Francisco Xavier;
2.º Adjunto: Maria João Sousa e Faro.
[2] Doravante abreviadamente designado CPC, na redacção introduzida pela Lei n.º 41/2013 de 26 de Junho.
[3] Cfr. Eurico Lopes Cardoso, in Manual da Acção Executiva, 3.ª edição, pág. 22.
[4] Cfr. Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, in Direito Processual Civil, vol. I, Almedina 2010, pág. 658, citando no mesmo sentido, J. Rodrigues Bastos.
[5] Cfr. Fernando Amâncio Ferreira, in Curso de Processo de Execução, Almedina 2010, 13.ª edição, pág. 417.
[6] In A Acção Executiva Depois da Reforma, Coimbra Editora, 4.ª edição, págs. 358 a 361, e nota de rodapé 13, que mantêm actualidade no regime vigente.
[7] Cfr. quanto a este efeito de extinção também Fernando Amâncio Ferreira, ob. e loc. citados.
[8] Evidentemente, que nos restringimos ao processo executivo em si mesmo considerado, porque é certo que a respectiva extinção pode ser a consequência da procedência dos embargos que hajam sido deduzidos.
[9] In Comentário ao Código de Processo Civil, Volume III, Coimbra Editora, 1946, págs. 550 a 552.
[10] Cfr. para mais desenvolvimentos, autor e obra citada, págs. 552 a 559.
[11] In Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 3.ª edição, Coimbra Editora, página 407.
[12] A autora remete-nos para a Introdução do processo civil, 2.ª edição, página 96.
[13] In ACTO E PROCESSO O DOGMA DA VONTADE NA INTERPRETAÇÃO E NOS VÍCIOS DO ACTO POSTULATIVO, Coimbra Editora, 2003, página 271 a 306.
[14] Texto elaborado e revisto pela Relatora.