Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3428/19.9T8FAR.E1
Relator: PAULA DO PAÇO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
ACIDENTE IN ITINERE
INTERRUPÇÃO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO E PROVA
Data do Acordão: 06/15/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - De acordo com o artigo 9.º , n.º 1, alínea a), e n.º 2, alínea b) da Lei n.º 98/2009, de 14 de setembro (LAT), estende-se o conceito de acidente de trabalho ao acidente que preencha os seguintes requisitos cumulativos: (i)- Ocorra no trajeto normalmente utilizado entre a residência do trabalhador e o seu local de trabalho (seja na ida, seja no regresso); (ii) Ocorra no período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador nesse trajeto.
II - Não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajeto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito – n.º 3 do artigo 9.º da LAT.
III - Compete àquele que reclama a qualificação do acidente como acidente de trabalho in itinere, alegar e provar a verificação dos requisitos necessários a tal qualificação.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1]

I. Relatório
Na presente ação especial emergente de acidente de trabalho que AA, com o patrocínio do Ministério Público, intentou contra Companhia de Seguros Fidelidade - Mundial, S.A., foi proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente e, em consequência, absolveu a Ré de todo o pedido.
Inconformado, veio o Autor recorrer para esta Relação, formulando no final das suas alegações as seguintes conclusões:
«I. A douta sentença ora em recurso julgou provado que o trajeto utilizado pelo A. no dia do acidente era o trajeto habitualmente utilizado pelo mesmo da sua residência para o local de trabalho ( e vice versa), por ser o trajeto mais rápido entre o local de trabalho e a sua residência;
II. E que no dia do acidente, logo após ter saído do seu local de trabalho, pelas 18.18 horas, o sinistrado dirigiu-se à concentração de motas de Faro, em Faro, que ocorria nessa data;
III. Tendo sido possível determinar que o A. se dirigiu a Faro, à concentração de motas que aí acontecia, de modo a bordar um colete para o filho, já que o próprio A. é motard;
IV. O A., à data do acidente exercia as funções de gestor de tráfego internacional de camiões, as quais implicam uma necessidade de permanente disponibilidade do gestor de tráfego, quer para contactos com os motoristas, quer com fornecedores e clientes;
V. O legislador isenta da desqualificação como acidente de trabalho in itinere aqueles que ocorram quando o trajeto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador;
VI. Necessidades atendíveis do trabalhador são necessidades da vida pessoal e familiar do trabalhador que a nossa lei, aliás, não exige sequer que sejam urgentes ou de satisfação imprescindível;
VII. Não pode o trabalhador ser penalizado pelo facto de, após sair do trabalho ter pretendido comprar um presente para o seu filho, numa demonstração de carinho, cuidado e atenção, mantendo o desvio e a interrupção em causa conexão, numa ótica de razoabilidade, com a situação laboral do A., enquadrando-se, pois, na satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador;
VIII. Mostrando-se assim preenchidos todos os requisitos para o acidente do trabalhador ser qualificado como acidente de trabalho in itinere, uma vez que ocorreu no trajeto normalmente utilizado de ida do local de trabalho e regresso a casa, tendo sofrido um desvio/interrupção, determinado pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, nos termos do nº 3 do artº. 9º da Lei 98/2009.
Assim, não subsumindo os factos provados ao conceito de acidente de trabalho in itinere, violou a douta sentença ora em recurso o disposto no nº 3 do artº 9º da Lei 98/2009.
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, devendo a decisão absolutória posta em crise ser revogada e substituída por outra, que condene a Recorrida a reconhecer como acidente de trabalho in itinere o dos autos com todas as legais consequências.».

Contra-alegou a Ré, concluindo:
«a) O acidente ocorrido no dia 18.07.2019, pelas 20h22m, na EN 2, sentido Faro – S. Brás de Alportel, ao Km 727,500, dá-se a cerca de 6 Km do local de trabalho do Recorrente, distância que demoraria cerca de 7 minutos a percorrer[2].
b) Acontece que, tendo este saído do local de trabalho cerca das 18h18m, o acidente dá-se 2h após[3], sendo certo que, no trajeto habitual entre o local de trabalho e a sua residência, o Recorrente demoraria cerca de 15/20 minutos a percorrer[4].
c) Sucede que, pela Testemunha BB foi confirmado que o Recorrente saiu do local de trabalho cerca das 18h15/18h18m, enquanto a Testemunha CC assegurou que se cruzou com o Recorrente na concentração motard localizada em Faro, cerca das 19h00m.
d) Factualidade que nos leva a concluir que o Recorrente terá saído do local de trabalho pelas 18h18m, com destino à concentração motard, em Faro, no sentido oposto à sua residência, não percorrendo, assim, o trajeto habitual, dando-se o acidente 2h após a saída do local de trabalho, já no trajeto habitual para a sua residência.
e) Não podendo o acidente ser havido como acidente de trabalho in itinere, nos moldes previstos no artigo 9.º, n.os 1, al. a), e 2, al. b), da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, porquanto, pese embora tenha ocorrido no trajeto habitual para a residência do Recorrente, dá-se 2h após a saída do local de trabalho, provindo de Faro, portanto, sentido oposto à sua residência.
f) Acresce que, também não merece provimento a tese pugnada pelo Recorrente, dado que, não só a concentração motard não ficava localizada entre o local de trabalho e a sua residência, mas sim no sentido oposto ao local de trabalho, como também não logrou o Recorrente demonstrar o tempo despendido na dita concentração, isto é, se dedicado unicamente à obtenção do colete para o seu filho, se usado para outras tarefas.
g) Além de que, também não se considera a obtenção do colete subsumível no conceito do artigo 9.º, n.º 3, da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, nem tão pouco se equipara o caso em apreço ao explanado no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa com data de 05.12.20189.
h) Termos em que, deverá manter-se inalterada a sentença recorrida, com fundamento na não classificação do acidente sub judice como sendo in itinere, por não ser subsumível no artigo 9.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro.».

A 1.ª instância admitiu o recurso com subida imediata, nos próprios autos, e com efeito meramente devolutivo.
Tendo o processo subido à Relação, o recurso foi mantido e foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II. Objeto do Recurso
É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso (artigos 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil, aplicáveis por remissão do artigo 87.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho).
Em função destas premissas, a única questão que importa dilucidar e resolver é a de saber se o acidente ocorrido deve ser qualificado como acidente de trabalho in itinere.
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III. Matéria de Facto
A 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:
A) No dia 18 Julho 2019, o A. exercia as funções de gestor de tráfego internacional de camiões sob as ordens direção e fiscalização de ..., Transportes de Mercadorias, Ldª.., com local de trabalho no sítio de Bela Salema, Faro;
B) Auferia nessa data a retribuição anual de € 2 150,00, por 14 meses, acrescida de € 5,12, por cada dia de trabalho, respeitante a subsídio de refeição, num total de € 31.339,04;
C) A entidade empregadora tinha a sua responsabilidade emergente de acidentes de trabalho transferida para a Ré, mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...59, que vigorava sob a modalidade de seguro a prémio variável;
D) Nessa data, pelas 20.22 horas, quando o A. se dirigia para a sua residência, sofreu um acidente, que consistiu em acidente de viação, quando conduzia o seu veículo moto, de matrícula ..-..-FD, pela E.N.2, no sentido Faro - S. Brás de Alportel, ao Km 727,500;
E) Tendo embatido com a parte frontal da moto na traseira do veículo automóvel ligeiro, de matrícula ..-FH-.., que seguia na mesma via e sentido de marcha e efetuou paragem junto ao eixo da via, a fim de mudar de direção para a esquerda;
F) Como consequência necessária e direta desse acidente, o A. sofreu politraumatismo (TCE com perda de conhecimento e traumatismo vertebro-medular) e fratura antebraço e punho esquerdo e fratura dos ossos da perna esquerda;
G) Este acidente foi participado pela sua entidade empregadora à seguradora;
H) Esta prestou assistência médica ao A., pagando indemnização por ITA, até 19 agosto 2019 (32 dias);
I) A partir dessa data, nada mais pagou;
J) Submetido a exame médico pelo Perito Médico do Gabinete Médico-Legal, em 22 de novembro de 2021, o mesmo concluiu pela existência de nexo causal entre o acidente e as lesões apresentadas pelo A.;
K) E que, em consequência das mesmas, o A. esteve afetado de Incapacidade Temporária Absoluta para o trabalho, desde 19.07.2019 até 18.03.2020, num total de 244 dias;
L) Após 18.03.2020, o Perito médico considerou o A. afetado de IPP de 100%, com IPATH e necessidade de ajudas técnicas e consultas de MFR;
M) Em 22 de fevereiro de 2022 foi realizada a tentativa de conciliação entre o A. e a Ré, onde esta reconheceu a existência do contrato de seguro supra referido, a transferência da responsabilidade da entidade empregadora pelo montante da retribuição referida em B);
N) Não reconheceu, porém, a existência e caracterização do acidente como acidente de trabalho, nem o resultado do exame médico realizado pelo perito médico do GML de Faro;
O) A Ré pagou ao A. € 103,71, respeitante a indemnização por ITA;
P) O A. suportou despesas com consultas no valor de € 11,50;
Q) E suportou o pagamento de € 36,54, respeitante a despesas com medicamentos que necessitou tomar;
R) O A. despendeu ainda € 24,60, com deslocações obrigatórias que teve de efetuar a este Tribunal e para exame médico– 4x6,50€ (www.eva-bus.com);
S) O local de trabalho do Autor fica no Sítio de Bela Salema, 8005-419 Faro, a morada da sua residência habitual é em ..., ... S, Brás de Alportel. e o local do acidente foi na estrada nacional EN 2, Km 727,500;
T) O local de trabalho do A. fica entre S. Brás de Alportel e Faro;
U) O trajeto utilizado pelo Autor no dia do acidente era o trajeto habitualmente utilizado pelo mesmo da sua residência para o local de trabalho (e vice-versa), por ser o trajeto mais rápido entre o local de trabalho e a sua residência;
V) O percurso em causa (local do trabalho ao local onde ocorreu o acidente) tem extensão de cerca de 6 Km, sendo, normalmente, necessários 7 minutos para o concluir em veículo motorizado de duas rodas, como utilizado naquele dia pelo Autor;
W) No dia do acidente, o Sinistrado saiu das instalações da sua entidade patronal às 18.18 horas e o acidente ocorreu às 20.22 horas;
X) O período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador para efetuar o trajeto local de trabalho-casa, era de cerca 15/20 minutos;
Y) O A., na sequência do acidente e por causa das lesões causadas pelo mesmo, necessitou tomar medicamentos que lhe foram prescritos pelo médico;
Z) Suportou com esse encargo, até à data, o valor total de € 2.287,91;
AA) Suportou ainda € 83,59€ com outras despesas médicas diversas;
BB) E € 718,82, com ajudas técnicas;
CC) E € 7.594,90, respeitante a despesas com a readaptação da sua habitação, dos quais 80% (€ 6.075,92) foi financiado pela Câmara Municipal de S. Brás de Alportel através do Programa Mão Amiga, tendo o A. pago 20% (€ 1.518,98);
DD)[5] No dia do acidente, logo após ter saído do seu local de trabalho, pelas 18.18 horas, o sinistrado dirigiu-se à concentração de motas de Faro, em Faro, que ocorria nessa data.
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E considerou que não se provou a seguinte factualidade:
A) O acidente ocorreu logo após o termo da jornada laboral do A..
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IV. Qualificação do acidente
Infere-se da factualidade dada como provada que, no dia 18/07/2019, pelas 20h22m, o Apelante sofreu um acidente, que consistiu num acidente de viação, do qual resultaram lesões na sua integridade física.
Na petição inicial, o Apelante pediu que o mencionado acidente fosse qualificado como acidente de trabalho in itinere.
A 1.ª instância, porém, julgou improcedente tal pedido, estribando-se na seguinte fundamentação:
«Os trabalhadores têm direito à reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho nos termos previstos da lei (artigo 2.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro).
De acordo com o estabelecido no artigo 8º, n.º 1, da Lei dos Acidentes de Trabalho, “é acidente de trabalho aquele que e verifique no local e no tempo do trabalho e produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte a morte ou redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte”.
O conceito de acidente de trabalho surge, assim, delimitado por três elementos cumulativos:
- o elemento espacial (o local de trabalho, sendo este definido no nº 2, alínea a), do mesmo preceito legal, como todo o lugar em que o trabalhador se encontre ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, direta ou indiretamente, sujeito ao controlo do empregador);
- o elemento temporal (o tempo de trabalho, sendo este definido no nº 2, alínea b), do mesmo artigo, não só como o período normal de laboração como também o que precede o seu início em atos de preparação ou com eles relacionados e o que se lhe segue também em atos também com ele relacionados, e ainda a interrupções normais e forçosas de trabalho);
- o elemento causal (o nexo de causalidade entre o acidente e a(s) lesão(ões)), um seja, uma relação de causalidade direta ou indireta entre o acidente e as suas indicadas consequências e não propriamente uma relação de causalidade entre o trabalho e o acidente e que está, aliás, inserta na enunciação legal dos elementos referidos em a) e b).
A questão que no caso se coloca consiste em saber se o acidente dos autos é qualificável como acidente de trabalho in itinere e, portanto, indemnizável.
Vejamos.
Como ficou dito, tendo o acidente dos autos ocorrido em 2019, ao caso é aplicável a Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro.
(…)
Como se disse, caracterizado o acidente de trabalho com referência aos elementos tempo de trabalho e local de trabalho, a Lei vem depois alargar o conceito de acidente de trabalho, referindo na alínea a) do n.º 1 do artigo 9.º, que se considera acidente de trabalho o ocorrido “a) No trajeto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, nos termos referidos no número seguinte;”, e no n.º 2 deste mesmo artigo que a “alínea a) do número anterior compreende o acidente de trabalho que se verifique nos trajetos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador: a) Entre qualquer dos seus locais de trabalho, no caso de ter mais de um emprego; b) Entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho; (…); e) Entre o local de trabalho e o local da refeição; f) (…)”.
Considera-se, deste modo, como acidente de trabalho o ocorrido no trajeto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, desde que o trajeto seguido seja o normalmente utilizado e o acidente ocorra durante o período habitualmente gasto pelo trabalhador.
Relevam neste contexto, entre outros, os trajetos definidos entre a residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o local de trabalho e entre o local de trabalho e o local da refeição.
Finalmente, no n.º 3 do mesmo dispositivo, considera-se que “não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajeto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito”.
À luz deste dispositivo, as interrupções do trajeto ou os respetivos desvios não afastam a qualificação do acidente como acidente de trabalho, desde que sejam determinados “pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, ou motivo de força maior ou caso fortuito.
A caracterização dos acidentes de trajeto depende, assim, de dois elementos fundamentais: a via de ligação, o iter, entre os locais considerados, e o tempo normalmente gasto nessa deslocação. Quer um quer outro destes dois elementos podem ser objeto dos ajustamentos previstos no n.º 3 do mesmo dispositivo, motivados nas circunstâncias atendíveis acima referidas.
Nas suas linhas fundamentais, o regime dos acidentes de percurso, também conhecidos por acidentes in itinere, decorrente deste diploma, não apresenta alterações significativas relativamente ao regime que resultava do artigo 6.º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro e do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, que a regulamentou, pelo que a jurisprudência formulada na vigência daquela Lei continua a ser um ponto de referência para a interpretação do novo diploma.
Referiu-se, com efeito, no acórdão da Relação do Porto de 26 de Outubro de 2011, ainda na vigência da anterior LAT, depois de se historiar a evolução do regime destes acidentes, o seguinte:
“E assim sendo, para que se esteja em face dum acidente de trajeto indemnizável, já não exige o legislador o preenchimento daqueles exigentes requisitos da lei anterior, bastando para tanto que o acidente ocorra no trajeto normalmente utilizado e durante o período de tempo habitualmente gasto para o percorrer.
Trata-se da consagração das modernas teorias que consideram que o risco de acidentes neste percurso é inerente ao cumprimento do dever que incumbe ao trabalhador de comparecer no lugar do trabalho, para nele executar a prestação resultante do contrato de trabalho, constituindo assim uma das suas obrigações instrumentais ou acessórias.
Por isso, sendo o trabalhador obrigado a fazer o percurso necessário ao cumprimento da sua obrigação de trabalhar no lugar determinado pela sua entidade patronal e usando, para tanto, as vias de acesso e os meios de transporte disponíveis, justifica-se que os acidentes ocorridos neste percurso e no tempo habitualmente gasto para o percorrer, já gozem da proteção própria dum acidente de trabalho, conforme prescrevia o artigo 6º, nº 2 do DL nº 143/99 de 30/4.
Por outro lado, estão abrangidos nesta previsão legal, os acidentes que se verifiquem no trajeto normalmente utilizado pelo trabalhador e durante o período de tempo habitualmente gasto entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho - alínea a).
Donde resulta que não basta o trabalhador estar no percurso normalmente utilizado para ir trabalhar ou para regressar a casa depois do trabalho, pois para além disso é preciso que o acidente ocorra dentro do período de tempo que se gasta habitualmente nesse percurso.”
O tempo da deslocação do trabalhador entre a residência e o seu local de trabalho assume desta forma uma função fulcral na caracterização dos acidentes de trajeto, uma vez que objetiviza e delimita a sujeição do sinistrado à obrigação de deslocação para o seu local de trabalho, a fim de realizar a prestação a que está adstrito, sujeição esta que é o fundamento último da consideração destes sinistros como acidentes de trabalho.
Vejamos o caso dos autos.
Resulta da matéria de facto dada como provada que no dia 18 Julho 2019, o A. exercia as funções de gestor de tráfego internacional de camiões sob as ordens direção e fiscalização de ..., Transportes de Mercadorias, Ldª.., com local de trabalho no sítio de Bela Salema, Faro.
Nessa data, pelas 20.22 horas, quando o A. se dirigia para a sua residência, sofreu um acidente, que consistiu em acidente de viação, quando conduzia o seu veículo moto, de matrícula ..-..-FD, pela E.N.2, no sentido Faro - S. Brás de Alportel, ao Km 727,500.
Tendo embatido com a parte frontal da moto na traseira do veículo automóvel ligeiro, de matrícula ..-FH-.., que seguia na mesma via e sentido de marcha e efetuou paragem junto ao eixo da via, a fim de mudar de direção para a esquerda.
Como consequência necessária e direta desse acidente, o A. Sofreu politraumatismo (TCE com perda de conhecimento e traumatismo vertebro-medular) e fratura antebraço e punho esquerdo e fratura dos ossos da perna esquerda.
O local de trabalho do Autor fica no Sítio de Bela Salema, 8005-419 Faro, a morada da sua residência habitual é em ..., ... S, Brás de Alportel. e o local do acidente foi na estrada nacional EN 2, Km 727,500.
O local de trabalho do A. fica entre S. Brás de Alportel e Faro.
O local do acidente fica no trajeto utilizado pelo Autor da sua residência para o local de trabalho (e vice-versa), por ser o trajeto mais rápido entre o local de trabalho e a sua residência.
O percurso em causa (local do trabalho ao local onde ocorreu o acidente) tem extensão de cerca de 6 Km, sendo, normalmente, necessários 7 minutos para o concluir em veículo motorizado de duas rodas, como utilizado naquele dia pelo Autor.
No dia do acidente, o Sinistrado saiu das instalações da sua entidade patronal às 18.18 horas e o acidente ocorreu às 20.22 horas.
O período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador para efetuar o trajeto local de trabalho-casa, era de cerca 15/20 minutos.
No dia do acidente, logo após ter saído do seu local de trabalho, pelas 18.18 horas, o sinistrado dirigiu-se à concentração de motas de Faro, em Faro, que ocorria nessa data.
Face o referido, podemos concluir que o acidente ocorreu numa estrada ou local que faz parte do percurso normal utilizado pelo A. para ir trabalhar ou para regressar a casa depois do trabalho.
No entanto, apurou-se que o A., logo após ter saído do seu local de trabalho, pelas 18.18 horas, dirigiu-se à concentração de motas de Faro, em Faro, que ocorria nessa data.
O seu local de trabalho situa-se entre S. Brás de Alportel e Faro, por isso o A. seguiu, após sair do trabalho naquele dia, o sentido contrário àquele que deveria seguir se fosse para casa.
Na verdade, seguiu para Faro em vez de seguir para S. Brás de Alportel.
E este não é o seu percurso habitual, já que o A. quando saia do trabalho não ia a Faro para depois voltar para trás e dirigir-se à sua casa em S. Brás de Alportel.
O que o A. fazia habitualmente era o percurso entre a sua residência e o seu local de trabalho.
Por outro lado, estão abrangidos nesta previsão legal, os acidentes que se verifiquem no trajeto normalmente utilizado pelo trabalhador e durante o período de tempo habitualmente gasto entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho.
Importa avaliar este último aspeto.
E relativamente ao mesmo, resultou provado que o A. gastava, sensivelmente 15 a 20 minutos.
Aqui chegados, vejamos o que sucedeu no dia do acidente.
Vimos que, no dia do acidente o A. saiu do seu local de trabalho pelas 18.18 horas e o acidente ocorreu às 20.22 horas.
Decorre efetivamente da matéria de facto dada como provada que o tempo habitualmente gasto pelo sinistrado no trajeto entre a sua residência e o seu local de trabalho era de cerca de 15 a 20 minutos e que o acidente ocorreu pelas 20.22 horas, sendo que o A. havia saído do seu local de trabalho pelas 18.18 horas.
Ora, passadas pelo menos duas horas da saída do seu local de trabalho, o A. teve um acidente.
Não se pode dizer que o acidente ocorreu dentro do período de tempo que o A. gastava habitualmente nesse percurso do trabalho para casa.
Na verdade, esta referência ao período de tempo habitualmente gasto era particularmente importante, como já atrás dissemos, quando o fundamento para a inclusão dos acidentes in itinere nos acidentes de trabalho consistia num risco acrescido a que o trabalhador ficava exposto pelo trajeto, risco variável em função de uma multiplicidade de fatores.
Apurou-se que o A., logo após ter saído do seu local de trabalho, pelas 18.18 horas, dirigiu-se à concentração de motas de Faro, em Faro, que ocorria nessa data.
O seu local de trabalho situa-se entre S. Brás de Alportel e Faro, por isso o A. seguiu, após sair do trabalho naquele dia, o sentido contrário àquele que deveria seguir se fosse para casa.
Na verdade, seguiu para Faro em vez de seguir para S. Brás de Alportel, o que levou a que o acidente tivesse ocorrido mais de duas horas após ter saído do trabalho.
Desconhece-se o que fez o sinistrado durante este período de tempo, embora se saiba onde esteve, pelo que não é possível indagar se o mesmo poderia estar a satisfazer necessidades atendíveis, desde logo, as necessidades da vida pessoal e familiar do trabalhador.
Não pode considerar-se que estejamos perante um acidente de trabalho, por não se enquadrar no disposto no artigo 9º, da Lei 98/2009.
No mesmo sentido, veja-se o Ac STJ, 27/2/2008, recurso nº 3901/07- 4ª secção – sumários de Fevereiro/2008, que considerou não indemnizável o acidente que ocorreu mais de uma hora depois do período de tempo habitualmente gasto, se o trabalhador não provou as razões que determinaram este excesso.
Também o acidente sofrido pelo trabalhador que esteve 40 minutos a confraternizar com os colegas da empresa e teve um acidente de motorizada quando ia regressar à sua residência, já não foi considerado acidente de trabalho, pois para tanto era necessário que esse regresso se tivesse verificado a seguir ao termo do trabalho – STJ, 27/9/1995, CJS, 269/3.
Também no Acórdão do STJ, relator Gonçalves Rocha, de 26-10-2011, se refere que o que justifica a responsabilização do empregador por este tipo de acidentes é a ligação que o regresso a casa do trabalhador tem com o trabalho, sendo que os trajetos de ida para o trabalho e de regresso a casa depois dele são inerentes ao cumprimento do dever de trabalhar. Por isso, ao deslocar-se para comparecer no lugar do trabalho para o executar, ou ao regressar dele depois de trabalhar, o trabalhador está a dar cumprimento a uma das suas obrigações instrumentais ou acessórias, o que legitima a exigência de responsabilização da entidade patronal pelos acidentes ocorridos neste percurso.
Neste sentido, observa o Acórdão de STJ de 26-10-2011 [Proc.º 54/06.2TTCTB.C1.S1, Conselheiro Gonçalves Rocha, disponível em www.dgsi.pt] o seguinte:
“ (…) o que justifica a responsabilização do empregador por este tipo de acidentes é a ligação que o regresso a casa do trabalhador tem com o trabalho, sendo razoável impor-lhe tal ónus em virtude dos trajetos de ida para o trabalho e de regresso a casa depois dele, serem inerentes ao cumprimento do dever de trabalhar.
Por isso, ao deslocar-se para comparecer no lugar do trabalho para o executar, ou ao regressar dele depois de trabalhar, o trabalhador está a dar cumprimento a uma das suas obrigações instrumentais ou acessórias, o que legitima a exigência de responsabilização da entidade patronal pelos acidentes ocorridos neste percurso”.
Proteção que se manterá ainda que o acidente ocorra “quando o trajeto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito”.
Retira-se de tudo isso, que a caracterização de um acidente como de trabalho de trabalho in itinere pressupõe sempre que exista uma ligação ao trabalho, isto é, uma conexão ou causalidade com a prestação laboral ou, pelo menos, com a relação laboral [Cfr. Ac. do STJ de 26-10-2011, acima citado; Ac. STJ de 16-09-2015, proc.º 112/09.5TBVP.L2.S1, Conselheiro Mário Belo Morgado, disponível em www.dgsi.pt; e, Maria Beatriz Cardoso, O conceito de acidente de trabalho, Conexão com a relação laboral, Revista Portuguesa do Dano Corporal, 2015, p. 57.
A propósito deste elemento observa o Professor Júlio Gomes (O Acidente de Trabalho, o Acidente in itinere e a sua descaracterização, 1.ª Edição, Coimbra Editora, 2013, p. 175) que “(..) o acidente há-de ocorrer num segmento temporal próximo da hora de entrada ou de início de trabalho do trabalhador (no caso da viagem de ida) ou próximo da hora de saída do trabalho do trabalhador, sem esquecer num e noutro caso, que circunstâncias várias podem influir na duração de um trajeto (engarrafamento, situações anómalas de trânsito por força, por exemplo, de uma greve de transportes, etc)”, para mais adiante concluir (p.177): “No fundo, este elemento temporal indicia o elemento teleológico que parece ser, ele sim, essencial: o trajeto tutelado é, em princípio, aquele que o trabalhador empreende ao sair da sua residência habitual ou ocasional com a intenção de se deslocar para o seu local de trabalho e aqueloutro, de regresso a essa mesma residência habitual ou ocasional, a partir do seu local de trabalho, uma vez terminada a sua prestação”.
Improcede, nestes termos, a presente ação.».
O Apelante não se conforma com esta decisão.
Em sede de recurso, impugna-a, utilizando, para tanto, a seguinte argumentação:
- No dia do acidente, depois de ter saído do seu local de trabalho, dirigiu-se a Faro, à concentração de motas que aí acontecia, para mandar bordar um colete para o filho, que pretendia oferecer-lhe como prenda, pelo que se deve considerar que o trajeto normal entre a sua residência e o local de trabalho sofreu uma interrupção ou desvio determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador.
Ora, com arrimo nos factos assentes, não se nos afigura que lhe possa ser dada razão.
De acordo com o artigo 9.º , n.º 1, alínea a), e n.º 2, alínea b) da Lei n.º 98/2009, de 14 de setembro[6], estende-se o conceito de acidente de trabalho ao acidente que preencha os seguintes requisitos cumulativos:
(i) - Ocorra no trajeto normalmente utilizado entre a residência do trabalhador e o seu local de trabalho (seja na ida, seja no regresso);
(ii) - Ocorra no período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador nesse trajeto.
Por seu turno, prescreve o n.º 3 do referido artigo:
- Não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajeto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito.
Decorre das aludidas normas legais que a proteção resultante do regime especial de acidentes de trabalho é estendida ao acidente que ocorra no trajeto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste à residência, no percurso normalmente utilizado e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador desde que inexistam interrupções, sendo que, quando estas ocorram, não deixa de se considerar acidente de trabalho se as interrupções ou desvios tiverem sido determinados para satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito.
Na motivação do recurso, o Apelante invoca que o tribunal a quo deveria ter considerado que o desvio que fez até Faro, à concentração de motas que aí acontecia, para mandar bordar um colete para o filho, foi para satisfação de uma necessidade atendível, tendo retomado, depois, o seu trajeto normal entre o local de trabalho e a sua residência.
Sucede, porém, que apesar de ter ficado demonstrado que no dia do acidente, logo após ter saído do seu local de trabalho, pelas 18h18m, o Apelante se dirigiu à concentração de motos que decorria em Faro, não resultou demonstrada a especifica motivação pessoal que determinou tal deslocação, o que, desde logo, impede que se considere que o Apelante se deslocou até Faro para satisfazer uma necessidade atendível, ou que se deslocou por motivo de força maior ou caso fortuito.
Ademais, não se nos afigura que a deslocação até Faro se possa considerar uma interrupção ou um desvio ao trajeto normalmente utilizado pelo Apelante entre casa-trabalho.
O que a factualidade provada evidencia é que, após ter terminado o seu dia de trabalho, pelas 18h18, o Apelante decidiu dirigir-se para a concentração de motos, que estava a decorrer em Faro, situação que nada tinha a ver com o seu trabalho.
Ou seja, ao invés de regressar a casa após o dia de trabalho, decidiu deslocar-se a Faro, seguindo em sentido contrário ao da sua casa.
Acresce, ainda, que o acidente ocorreu duas horas depois de o Apelante ter finalizado a sua prestação laboral e de ter saído do seu local de trabalho.
Assim, embora no regresso de Faro para a sua residência, o Apelante tivesse utilizado a estrada que normalmente utilizava entre local de trabalho-residência (e vice-versa), nunca poderia considerar-se preenchido o segundo dos requisitos enunciados supra, isto é, que o acidente ocorreu no «período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador».
Repare-se que resultou provado que o período de tempo normalmente necessário para percorrer a distância entre o local de trabalho e o local onde sucedeu o acidente de viação, era de 7 minutos.
E o período de tempo, habitualmente, gasto para efetuar o trajeto local de trabalho-residência era de 15/20 minutos.
Em suma, não logrou o Apelante demonstrar, como lhe competia, que o acidente em causa nos autos, ocorreu no trajeto de regresso do local de trabalho para a sua residência, no percurso normalmente utilizado e durante o período de tempo habitualmente gasto nesse trajeto, ou que ocorreu uma interrupção ou desvio nesse trajeto para satisfação de necessidades atendíveis, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito.
Bem andou, pois, a 1.ª instância ao decidir que o acidente que se aprecia não deve ser qualificado como acidente de trabalho in itinere, por não terem ficado demonstrados os requisitos previstos no artigo 9.º, n.º 1, alínea a), n.º 2, alínea b) e n.º 3 da LAT.
Por conseguinte, não pode proceder o recurso interposto.
Concluindo, o recurso terá de ser julgado improcedente.
*
V. Decisão
Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.
Sem custas.
Notifique.

Évora, 15 de junho de 2023
Paula do Paço (Relatora)
Emília Ramos Costa (1.ª Adjunta)
Mário Branco Coelho (2.º Adjunto)

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[1] Relatora: Paula do Paço; 1.ª Adjunta: Emília Ramos Costa; 2.º Adjunto: Mário Branco Coelho
[2] «Cfr. Factos D., U. e V. integrantes da factualidade dada como provada.».
[3] «Cfr. Facto W. integrante da factualidade dada como provada.».
[4] «Cfr. Factos S. e X. integrantes da factualidade dada como provada.».
[5] Alterámos a alínea indicada pela 1.ª instância – que era alínea A) – por uma questão de ordem alfabética e para que não existissem duas alíneas com a mesma designação no conjunto dos factos provados.
[6] Doravante, designada por LAT.