Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
185/20.0JAFAR.E1
Relator: MOREIRA DAS NEVES
Descritores: IMPUTABILIDADE OU IMPUTABILIDADE DIMINUÍDA
REALIZAÇÃO DE PERÍCIA
NULIDADE OU IRREGULARIDADE
Data do Acordão: 07/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Havendo fundadas razões para crer que um arguido praticou os factos descritos no tipo de ilícito sem capacidade de avaliação da ilicitude e/ou liberdade para se determinar de acordo com essa avaliação, o tribunal, oficiosamente, ou os demais sujeitos processuais mediante requerimento, devem suscitar a questão (artigo 351.º, § 1.º CPP) e realizar-se a perícia.
II - Havendo fundada dúvida acerca da capacidade diminuída do arguido, não existe a obrigatoriedade de realização de perícia, tendo o tribunal o poder de a ordenar se a considerar necessária para a descoberta da verdade (artigo 351.º, § 2.º CPP).

III – A omissão da realização da perícia sobre o estado psíquico do arguido, com referência à sua inimputabilidade, constitui nulidade sanável (artigo120.º, § 2.º, al. d) CPP), uma vez que se trata de uma diligência de prova «indispensável». Já se estiver em causa a imputabilidade diminuída do arguido, por constituir legalmente uma diligência «necessária» para a descoberta da verdade, a omissão da perícia constituirá mera irregularidade.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório

a) No 1.º Juízo Central Cível e Criminal de Beja, do Tribunal Judicial da comarca de Beja, procedeu-se a julgamento em processo comum, perante tribunal coletivo de MSM, nascido a …, solteiro, reformado, residente em …, com os demais sinais dos autos, a quem foi imputada a prática, como autor, de um crime de homicídio qualificado, previsto nos artigos 131.º e 132.º, § 1.º e 2.º, al. e) do Código Penal (CP), agravado pelo artigo 86.º, § 3.º do Regime Jurídico das Armas e suas Munições; e um crime de detenção de arma proibida, previsto no artigo 86.º, § 1.º, al. d), e 3.º, § 2.º al. f) do Regime Jurídico das Armas e suas Munições.

PAFF constitui-se assistente e deduziu pedido de indemnização contra o arguido/demandado, pedindo a condenação deste no pagamento da quantia de 60 000€ a título de indemnização pela perda do direito à vida de seu pai; e da quantia de 45 000€ a título de outros danos não patrimoniais; acrescidas de juros de mora;

JIFF, também constituída assistente, deduziu pedido de indemnização contra o arguido/demandado, pedindo a condenação deste no pagamento da quantia de 60 000€ a título de indemnização pela perda do direito à vida de seu pai; da quantia de 45 000€ a título de outros danos não patrimoniais; bem como a quantia de 1 107€ correspondente ao dano patrimonial correspondente ao custo da sepultura, quantias estas acrescidas de juros de mora.

O arguido apresentou contestação, oferecendo o merecimento dos autos e alegando ter graves problemas do foro psiquiátrico, requerendo a realização de perícia psiquiátrica, o que lhe foi indeferido.

A final o tribunal coletivo proferiu acórdão, pelo qual condenou o arguido pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio, previsto no artigo 131.º § 1.º CP (para o qual foi convolado o crime de homicídio qualificado), na pena de 14 anos de prisão. Absolvendo-o da prática dos demais crimes.

Condenou-o também no pagamento das indemnizações cíveis requeridas, nomeadamente a PAFF a quantia total de 55 000€, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora a contar da data da prolação do acórdão; e a IFF a quantia total de 55 000€, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora a contar da data da prolação do acórdão; absolvendo-o do demais que havia sido peticionado

b) Inconformado com a decisão recorreu o arguido, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

«1. Vem o presente recurso interposto do acórdão proferido pelo Juízo Central Cível e Criminal de Beja-Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Beja no processo nº185/20.0JAFAR que condenou o recorrente no crime de homicídio simples do artigo 131º, nº1 do CP, na pena de 14 anos de prisão; e nos pedidos de indemnização civil por danos não patrimoniais a PF e a JF em €55.000,00 cada um.

2. O que se vem por em causa, no presente recurso, é a valoração desadequada que o tribunal fez da prova e da sua subsunção ao Direito, pois face à factualidade dada como provada não era possível atingir-se a decisão de Direito a que se chegou.

3. O arguido confessou, integralmente e sem reservas, desde o primeiro interrogatório até à audiência de julgamento, a prática do crime, mostrando-se arrependido e formulando um juízo de autocensura, colaborando, dessa forma, com o tribunal na descoberta da verdade.

4. O tribunal não deu importância, nomeadamente, quando se apurou que a vítima estava de frente para a porta e não de costas, como desenhava a acusação, tendo sido dado como “facto não provado” que o “FF encontrava-se sentado na cama de costas para a porta e não se apercebeu da aproximação do arguido”.

5. O tribunal refere, apenas, a taxa de álcool registada, não dando relevância à conduta do arguido face à taxa de álcool de 1,92 gr/l que a vítima apresentava; que teria que ser culpabilizante pelo facto das expressões injuriosas proferidas terem contribuído para este fatal desenlace.

6. Como refere o acórdão, o arguido ficou “exaltado e irritado” e ia acumulando as ofensas à sua honra e consideração só para si, até que teve uma atitude irrefletida e impensada, provocando a morte ao FF,

7. Apesar de estarmos perante uma situação que nunca deveria ter acontecido, mas que, lamentavelmente, aconteceu, é possível que o arguido tenha agido com intenção de ofender corporalmente a vítima, mas a situação desenrola-se de tal maneira que, sem que o agente tivesse intenção, a vítima vem, efetivamente, a morrer daquela atuação.

8. Estamos, eventualmente, perante uma situação em que uma pessoa causou realmente um mal mais grave do que o pretendido, apesar da sua intenção ser, pura e simplesmente, feri-la, acabando por lhe causar a morte, indo para além da intenção do agente.

9. O tribunal deu como provado que “o arguido padece de doença pulmonar obstrutiva crónica tabágica, hipotiroidismo, policitémia secundária, insuficiência cardíaca de predomínio direito, etanolismo crónico e perturbação de pessoalidade (doença psiquiátrica)”.

10. O tribunal deu como provado o constante do Relatório Social, que refere que o arguido “possui vários problemas de saúde, nomeadamente, depressão nervosa, esquizofrenia, bronquite crónica, hérnias discais, encontrando-se medicado e, de acordo com as fontes, dependente de oxigénio e aerossóis, situação que o levava regulamente, antes da reclusão, às urgências do Hospital …, onde pernoitava quase diariamente. Também já manteve tratamento psiquiátrico ambulatório”.

11. Assim, face a todas estas patologias que afetam a saúde do arguido, foi requerido, nos termos dos artigos 351º e 151º e ss., ambos do CPP, em audiência de julgamento, na sequência do depoimento do arguido e de acordo com os documentos existentes nos autos (Relatório Social e Relatório Médico do Estabelecimento Prisional), que o arguido fosse submetido a perícia médico-legal, pois, parece colocar-se algumas dúvidas quanto à capacidade do arguido avaliar a ilicitude à data da prática dos factos constantes da acusação e, consequentemente, da sua imputabilidade.

12. Tal perícia teria por objeto saber se, na data de 26-05-2020,

(a) o arguido era capaz de avaliar a ilicitude dos seus atos e de determinar de acordo com essa avaliação;

(b) e se as capacidades de avaliação e de determinação encontrar-se-iam diminuídas.

13. O objeto da perícia visava aferir da responsabilidade criminal do arguido, face aos factos descritos na acusação, pretendendo-se saber se, em virtude de uma eventual anomalia psíquica, o arguido teria ou não a noção de poder estar a violar normas jurídicas e a cometer um crime.

14. Na sequência do requerimento ditado para a ata e do indeferimento da perícia, foi, por parte do arguido, interposto recurso.

15. Apesar de toda a documentação existente nos autos e da prova testemunhal apresentada, “o tribunal não ficou com qualquer dúvida acerca da capacidade do arguido em avaliar a ilicitude dos seus atos, da sua intenção e do conhecimento do carácter reprovável da sua conduta”.

16. O tribunal comportou-se como um verdadeiro perito, não tendo dúvidas quanto ao arguido ser imputável; e nem falou, sequer, de uma possível imputabilidade diminuída, omitindo esta última, como foi aventada pela defesa do arguido, não equacionando essas possibilidades em termos do princípio in dubio pro reo.

17. Pareceu existir, neste caso concreto, faltar, por parte do tribunal, a vontade de se apurar o verdadeiro estado de saúde do arguido; parecendo existir uma maior preocupação em condenar uma pessoa nestas condições de saúde do que submetê-la a um tratamento adequado e, quem sabe, necessário e urgente.

18. Quanto aos pedidos de indemnização civil, há que dizer que eles são manifestamente exagerados, tendo em conta a factualidade dada como não provada, quanto ao facto ilícito, ao prejuízo e ao nexo de causalidade entre o facto e o dano verificado, pois, como refere o próprio acórdão, “apesar do alegado pelos demandantes, não se demostrou que a vítima não tivesse falecido de imediato ou tivesse tido a perceção da iminência da sua morte ou sequer tivesse sentido dores”.

19. Sobre a convicção a que o tribunal chegou, o recorrente, respeitando o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 127º do CPP) pretende abalar não apenas o raciocínio conclusivo, com base na factualidade provada, mas, sobretudo, os pressupostos lógico-dedutivos desse raciocínio.

20. Na determinação da medida da pena, ter-se-á que ter em consideração os critérios estabelecidos nos artigos 71º, 1 e 2 e 40º do CP, nomeadamente, quanto às finalidades das penas; mas também a reintegração do agente na sociedade, a sua ressocialização e reabilitação, tendo por base uma política administrativa de segurança mas, sobretudo, uma política criminal de justiça.

21. Após o sucedido, o arguido “viu sangue na barriga, mas foi embora pensando que o FF estaria vivo”, admitindo o quadro jurídico-factual, para além de existir dolo de ofensas à integridade física; nexo de “causalidade adequada” entre as ofensas e a morte; temos a negligência em relação à morte, ou seja, o arguido, negligentemente, causou a morte através das ofensas que provocou dolosamente.

22. Encontramo-nos, assim, perante um crime que vai para além da intenção do agente, os chamados crimes preterintencionais – artigos 18º e 145º, ambos do CP – agravação pelo resultado, onde o resultado excedeu a intenção do agente.

23. Mesmo que se entenda estarmos perante um crime de homicídio simples, a pena é desajustada e excessiva, atendendo aos factos provados, uma vez que a moldura penal se situa entre 8 a 16 anos de prisão, pois como refere o artigo 40º, nº2 do CP, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, sendo o fundamento ético da pena e um limite inultrapassável da sua medida.

24. Como no-lo refere o próprio acórdão, quando fala em “determinar a pena a aplicar ao arguido, devendo considerar-se para o efeito: (…) a postura do arguido em julgamento, contribuindo de forma relevante para a descoberta da verdade”.»

c) Admitido o recurso o Ministério Público respondeu circunstanciadamente a cada um dos argumentos apresentados pelo recorrente, pugnando, no essencial, pela sua improcedência, e sintetizando a sua posição do seguinte modo:

«1.ª – A factualidade provada (e não impugnada por qualquer das vias definidas para esse efeito no Código de Processo Penal) não se amolda, de todo, ao crime preterintencional dos artigos 18.º e 147.º do Código Penal.

2.ª – O tribunal coletivo não violou o princípio do in dubio pro reo nem omitiu pronúncia quanto à questão da inimputabilidade ou da imputabilidade diminuída do arguido.

3.ª – Com respeito ao quantum da pena em que o arguido deve ser condenado, o Ministério Público aceita que uma pena de 12 anos de prisão seja mais ajustada aos critérios orientadores dos artigos 40.º e 71.º do Código Penal.»

d) Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, manifestando no essencial a falta de consistência do argumentário recursivo e o entendimento de que o recurso não merece provimento.

e) Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, nada se acrescentou.

Colhidos os vistos, teve lugar a conferência.

II – Fundamentação

A. Delimitação do objeto do recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP) (1).

A questões que cabe examinar neste caso são as seguintes:

- Omissão de pronúncia e in dubio por reo (relativamente a uma preconizada imputabilidade diminuída);

- Erro de julgamento da questão de facto;

- In dubio pro reo;

- Qualificação jurídica dos factos;

- Medida da pena;

- Montante das indemnizações cíveis.

B. Na sentença recorrida o tribunal a quo deu como provado e não provado e motivou a decisão sobre esse acervo factual nos seguintes termos:

«1. Em data indeterminada do mês de outubro de 2019 FJDF arrendou um quarto à irmã do arguido, na habitação que herdou de seus pais em conjunto com os seus irmãos e onde este também residia, sita na Rua …, em ….

2. Durante a coabitação a relação entre os dois foi pautada por discussões relativas à limpeza e arrumação da casa e durante as quais o FF insultava o arguido chamando-lhe “filho da puta” e dirigindo-lhe expressões como “vai para o caralho” sempre que o arguido lhe exigia que limpasse ou arrumasse a casa.

3. No dia 26 de maio de 2020, cerca das 10.30h/11.00h, na cozinha da residência de ambos, o arguido disse ao FF para limpar a zona onde tinha o micro-ondas ao que o FF lhe respondeu “limpa tu com os cornos filho da puta”, tendo de imediato saído de casa.

4. Cerca das 13.30h o FF regressou à residência tendo o arguido, de novo, insistido para que ele limpasse a zona do micro-ondas ao que o FF lhe respondeu “limpa tu, cabrão, filho da puta” e dirigiu-se para o seu quarto.

5. Nesse momento, o arguido muniu-se de uma faca de cozinha de cabo preto e com lâmina de 12,5cm, dirigiu-se ao quarto onde o FF se encontrava em posição não concretamente apurada, e desferiu-lhe com a faca 6 (seis) golpes, atingindo-o na zona do tórax e abdómen.

6. Em seguida, ao ver o FF inanimado na cama e o sangue abundante, o arguido saiu de casa e dirigiu-se ao café “…” e de seguida ao “…”, onde contou o sucedido à sua irmã e após apresentou-se na esquadra da PSP de ….

7. Com a conduta acima descrita, o arguido provocou em FF as lesões descritas no exame de fls. 256 a 259 e que se dão aqui por reproduzidas, nomeadamente: três feridas corto-perfurantes na face anterior do tórax direito com fratura da grelha costal e perfuração do pulmão direito; duas feridas corto-perfurantes na região lateral esquerda na transição entre a região abdominal e dorsal; e uma ferida corto-perfurante na região anterior do hipocôndrio direito com perfuração do diafragma, tendo tais lesões lhe determinado a sua morte.

8. O arguido decidiu-se a tirar a vida ao FF apenas porque este lhe dirigia expressões verbais ofensivas da sua honra e não colaborava na limpeza da habitação.

9. O arguido desferiu 6 (seis) golpes com a aludida faca em diversas partes do tórax e abdómen da vítima, zonas onde se alojam órgão vitais do corpo humano, com intenção e vontade de lhe causar a morte, o que quis e conseguiu.

10. Mais sabia que a faca, enquanto meio usado nas agressões perpetradas em FF era idónea a produzir as lesões acima descritas.

11. O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Dos pedidos de indemnização civil:

12. PAFF e JIFF são filhos do falecido FF.

13. FF tinha, à data dos factos, 63 anos de idade.

14. PF sofreu com a morte do pai, de quem era próximo e muito amigo.

15. Mantinham uma convivência regular.

16. FF deslocava-se a casa do seu filho, onde tomava refeições e visitava a neta.

17. A assistente JIFF tinha grande afeição pelo seu pai e ficou bastante chocada com a sua morte, que a angustiou e angustia profundamente, causando-lhe desgosto e tristeza.

18. Frequenta o serviço de psiquiatria de adultos do Hospital de … desde o dia 12.10.2020.

19. Continua com dificuldades de integração do trauma vivenciado, com consequência de ataques de pânico em diversas situações.

20. Toma habitualmente medicação para síndrome depressiva.

Mais se provou relativamente ao arguido:

21. O arguido padece de Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica tabágica, hipotiroidismo, policitemia secundária, insuficiência cardíaca de predomínio direito, etanolismo crónico e perturbação de pessoalidade (doença psiquiátrica).

22. Realizado relatório social pelos serviços da DGRSP, do mesmo consta:

“I – Condições sociais e pessoais

MS tem 59 anos de idade, é solteiro e à data dos factos de que está indiciado residia na morada constante dos autos, em …, em casa herança indivisa de família, onde possuía um quarto alugado à vitima e subsistia do valor da reforma de cerca de 200 euros, acrescido da renda que recebia.

O arguido é natural de …, possuía … irmãos, sendo que … já faleceram por problemas oncológicos, cirrose, overdose e deficiência mental. Os restantes encontram-se autónomos e emancipados da família de origem. Integrou um conjunto familiar de condição humilde e precário em termos económicos.

Segundo o próprio considera a família de origem disfuncional em razão de alguns irmãos evidenciarem problemáticas de saúde mental e relacionadas com o consumo de estupefacientes e bebidas alcoólicas.

Há 58 anos que vive em …, para onde a família alterou a residência quando este tinha 1 ano de idade e, onde viriam a estabelecer-se definitivamente. O pai foi … na autarquia e a mãe, doméstica.

MS frequentou o ensino em idade própria tendo concluído o 6º. Ano de escolaridade, com algumas retenções. Após abandono dos estudos por desmotivação curricular e, na sequência do falecimento do progenitor, inicia atividade laboral aos 19 anos, ocupando a função deste na …, situação que manteve com regularidade até á reforma por invalidez.

Aos 25 anos de idade juntou-se à mãe dos seus 2 filhos que possui, relacionamento que perdurou cerca de 6/7 anos e, que acabaria por desmoronar-se devido a incompatibilidades do casal. Alega que não vê os filhos há vários anos, dado que estes foram viver com a mãe para …, localidade onde sabe que mantêm residência, inexistindo relacionamento com ambos.

O arguido possui um relacionamento amistável com os irmãos, sobretudo com o JM e a FM, embora estes censurem o seu comportamento criminal.

Possui vários problemas de saúde, nomeadamente, depressão nervosa, esquizofrenia, bronquite crónica, hérnias discais, encontrando-se medicado e, de acordo com as fontes, dependente de oxigénio e aerossóis, situação que o levava regularmente antes da reclusão às urgências do Hospital ………, onde pernoitava quase diariamente. Também já manteve tratamento psiquiátrico ambulatório, em regime de consultas externas do Hospital no período de 2015 a 2016, que abandonou por iniciativa própria. Foi também consumidor de drogas (haxixe) e álcool, referindo-se abstinente desde 1995.

(…)”

23. O arguido sofreu as seguintes condenações:

- Pela prática, em julho de 1991, de um crime de furto qualificado e burla, na pena única de 4 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, suspensão essa que veio a ser revogada – proc. n.º 182/92 do Tribunal de Círculo de Beja;

- Pela prática, em 8.11.2000, de um crime de tráfico de estupefacientes, na pena de cinco anos e oito meses de prisão – proc. n.º 147.1/01, 1.º Juízo, 1.ª Secção do Tribunal Judicial de Beja;

- Pela prática, em 18.02.2004, de crime de ameaça e injúria agravada, na pena única de três meses e quinze dias de prisão, substituída por cento e cinco dias de multa – proc. n.º 91/02.0TABJA do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Beja.

- Pela prática, em 08.12.2007, de crime de furto simples, na pena de oito meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano – proc. n.º 643/07.1PBBJA do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Beja.

- Pela prática, em 31.10.2013, de um crime de furto simples, na pena de 16 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo. A pena foi declarada extinta – proc. n.º 437/13.5PBBJA do Juízo Local Criminal da Comarca de Beja.

Factos Não Provados:

FF encontrava-se sentado na cama de costas para a porta e não se apercebeu da aproximação do arguido.

FF era uma pessoa saudável.

A vítima sempre teve um comportamento social e familiar digno e de acordo com as regras instituídas.

Durante vários anos exerceu funções de administrativo no …, tendo posteriormente ingressado como contabilista da … e era estimado e considerado pela sociedade em geral.

Encontrava-se há cerca de 6 anos na condição de desempregado, recebendo o Rendimento Social de Inserção (RSI) no valor de 180€.

A sua decisão de arrendar um quarto ao demandado prendeu-se com o facto de que vivia sozinho, dado quer o demandante quer a irmã já terem seguido vidas independentes.

E vivendo em casa do demandado poderia partilhar custos, enquanto se sentia mais acompanhado.

O assistente P e seu pai pertenciam à direção do … e aí se encontravam para tomarem café e discutirem as questões da associação.

FF não faleceu de imediato, tendo durante largos minutos tido a percepção de que havia sido atingido mortalmente e que a sua vida estava a chegar ao fim.

A assistente J ajudava o pai sempre naquilo que podia.

A assistente despendeu a quantia de 1 107,00 € com a sepultura de seu pai.

Não deixaram de se provar quaisquer outros factos com interesse para boa decisão da causa, sendo certo que aqui não importa considerar alegações conclusivas ou de direito que serão ponderadas em sede própria.

Motivação:

A audiência decorreu com o registo da prova nela produzida. Tal circunstância que, também nesta fase se deve revestir de utilidade, dispensa o relatório detalhado das declarações e depoimentos nela prestados.

O decidido funda-se em todos os meios de prova produzidos em audiência de julgamento, valorados na sua globalidade.

Assim, a convicção do Tribunal assentou na conjugação dos seguintes meios de prova:

- Auto de Notícia de fls. 2-3 e 151 a 153;

- Auto de inspeção judiciária de fls. 4 a 9;

- Autos de apreensão de fls. 10 e 55;

- Reportagem fotográfica de fls. 11 a 21, 178 a 182, 183 a 187 e 190 a 195;

- Auto de Exame ao Hábito Externo do cadáver de fls. 84-85;

- Auto diligência de fls. 189 e 198 a 201;

- Relatório de exame pericial (autópsia médico-legal) de fls. 256 a 259;

- Relatório de exame pericial (exame toxicológico) de fls. 261;

- Relatório de exame pericial de fls. 290 a 294.

- Declarações do arguido;

- Depoimento das testemunhas MFS, MLSM e JE.

Concretizemos.

O arguido prestou declarações de uma forma clara e coerente, descrevendo os factos desde que a vítima foi morar para sua casa. Esclareceu que não foi ele que arrendou o quarto, mas sim a sua irmã. O relacionamento entre ambos não era bom porque o FD se recusava a limpar o que sujava e, quando confrontado, o injuriava. Na manhã do dia em que ocorreram os factos disse-lhe para limpar a zona do micro-ondas e ele ofendeu-o mais uma vez, dizendo-lhe para limpar ele com os cornos e chamando-lhe nomes, como habitualmente. Ele saiu e voltou por volta das 13h30, já bêbado. Nessa altura voltou a dizer-lhe que tinha de limpar e ele, mais uma vez, ofendeu-o e virou-lhe as costas dirigindo-se ao quarto. Ficou chateado, agarrou numa faca da cozinha que se encontrava na mesa e foi ter com ele, que se encontrava sentado na cama, de frente para si. Disse-lhe de novo para ir limpar, ele ofendeu-o e deu-lhe 3 facadas no abdómen. Pensa que a vítima teria visto a faca na sua mão, mas não tem a certeza, até porque ele estava bêbado. Estava exaltado e irritado. Viu sangue na barriga, mas foi embora pensando que o FF estaria vivo. Não telefonou a pedir ajuda, mas foi ter com a irmã ao … (tendo passado antes no …, onde tomou café) e disse-lhe que tinha dado 3 facadas no F, que o tinha matado e que se ia entregar à Policia, o que efetivamente fez. Referiu ainda ter consciência daquilo que tinha feito. Mais indicou padecer de problemas psiquiátricos, uma grande depressão, e respiratórios, que foram a causa dos internamentos após a sua prisão preventiva. Nunca teve internamento psiquiátricos.

Nenhuma testemunha presenciou os factos ocorridos no interior da habitação.

A testemunha MFS, irmã do arguido, relatou de uma forma clara e objetiva que tinha recebido uma chamada da irmã mais nova de ambos, dizendo que este havia ido ao seu café e lhe tinha dito que tinha matado o F. Acompanhada pelo seu marido, de imediato se deslocou à habitação. Entrou na cozinha e como estava tudo arrumado, disse à irmã que afinal não tinha acontecido nada. Contudo, dirigiu-se ao quarto do FF pelo exterior da habitação, abriu a persiana e viu-o estendido na cama, cheio de sangue. Confirmou que efetivamente foi ela que arrendou o quarto e que o arguido lhe chegou a dizer que não o queria lá. Acrescentou também que o arguido era medroso e depressivo.

A testemunha MLM, também irmã do arguido, relatou que estava no café quando o irmão chegou e pediu um café e uma água. Chamou-a perto de si e disse-lhe que não se dava bem com o indivíduo que vivia com ele, que tinha perdido a cabeça e o tinha matado. Acrescentou também que o arguido estava nervoso e inquieto e padecia de uma depressão.

Finalmente a testemunha JE, inspetor da Polícia Judiciária que se deslocou ao local, relatou que não detetaram qualquer sinal de luta entre os dois, para além dos ferimentos no corpo do FF. Embora não tivesse elementos para afirmar em que posição se encontrava a vítima quando foi atacado, foi perentório em afirmar que não existiam ferimentos defensivos.

Como já se disse, o arguido referiu que a vítima se encontrava de frente para ele e que apenas lhe tinha desferido 3 facadas. Quanto ao número de golpes desferidos, o relatório da autópsia contraria esta parte da versão do arguido, porquanto descreve seis lesões resultantes de uma ação violenta de natureza corto-perfurante compatíveis com ação de uma faca. Quanto à posição em que se encontrava a vítima, o tribunal ficou com dúvidas acerca da mesma. Se por um lado a localização dos golpes se apresenta como mais plausível ter sido feita por uma pessoa dextra quando a vítima se encontrava de costas, por outro lado, a localização da cama (encostada à parede) parece não permitir que efetivamente a mesma pudesse estar sentada, de costas para o agressor. E assim sendo, o Tribunal considerou como não provado que o FF estivesse de costas, quando foi surpreendido pelo arguido.

Importa ainda salientar que, ao contrário do referido pelo assistente no seu pedido de indemnização civil, não está demonstrado que a vítima tenha tido consciência do que estava a acontecer e da iminência da sua morte. É certo que no relatório de autópsia existe, a fls. 258, uma referência à existência de múltiplas equimoses, localizadas no braço, antebraço e dorso da mão esquerda, compatíveis com lesões de defesa. Tal referência deve-se seguramente a um lapso. Com efeito, não só o inspetor da PJ afirmou perentoriamente que inexistiam lesões defensivas, como o próprio relatório de autópsia refere que os membros não apresentam “lesões traumáticas, não foram observadas qualquer lesão de defesa dos antebraços ou das mãos”, e “ressalta-se que no exame do hábito externo não foram encontrados sinais de lesões traumáticas compatíveis com defesa (estaria a dormir?)”. Acresce que na cama onde se encontrava o arguido também não se encontrava qualquer vestígio de ter havido uma tentativa de defesa por parte deste, sendo que o sangue se encontrava concentrado no mesmo local. Tudo isto aliado ao facto de a vítima apresentar uma taxa de álcool no sangue de 1,92 g/l (+/-0,25), levou a que o Tribunal não ficasse convencido de que este teria tido qualquer tipo de reação, que se tivesse apercebido do sucedido ou sequer tivesse sentido dores.

Impõe-se agora fundamentar a convicção do Tribunal relativamente à capacidade de o arguido avaliar o desvalor da sua atuação e de se determinar de acordo com tal avaliação, sendo certo que tal capacidade foi colocada em causa pela defesa, em nosso entender sem qualquer razão.

A defesa fundamenta a sua pretensão no facto de o arguido se encontrar deprimido, padecer de doença psiquiátrica e ser acompanhado por psiquiatra.

Conforme já se disse nos despachos anteriores que indeferiram a realização da perícia psiquiátrica requerida, os elementos dos autos não indiciavam de forma alguma que à data dos factos o arguido não estivesse na posse de tal capacidade. E a prova produzida em julgamento também nenhuma dúvida deixou ao Tribunal. Com efeito, o arguido (à semelhança do que havia acontecido em sede de primeiro interrogatório) descreveu os factos revelando um discurso coerente, orientado e circunstanciado. Acresce que o mesmo foi claro ao afirmar que tinha consciência do que havia feito, o que é demonstrado pela sua conduta posterior, indo-se entregar à Polícia após ter confessado os factos à sua irmã. E também a sua irmã, que no seu depoimento tentou demonstrar que o mesmo estaria alterado, acabou por referir que ele apenas estava inquieto e nervoso (o que, diga-se, se afigura normal para quem acabou de desferir 6 facadas numa outra pessoa), não sendo pois relevante para a demonstração de uma qualquer incapacidade de avaliar a ilicitude dos seus atos.

E esta conclusão não é afetada pela circunstância do arguido padecer de doença mental.

Com efeito, não basta a existência de uma qualquer doença psíquica para que se possa concluir inimputabilidade. É necessário que de tal doença resulte uma incapacidade para avaliar a ilicitude do facto ou se determinar de harmonia com essa avaliação. Assim sendo, para além da comprovação da existência de uma doença “impõe-se ainda a alegação e demonstração duma afetação em concreto, decorrente dessa doença: afetação da capacidade de discernimento e de avaliação pelo arguido da ilicitude dos concretos factos delituosos em apreciação no julgamento” – cfr. Ac. RE de 21.01.2020, disponível in www.dgsi.pt .

Ora na situação em apreço inexiste qualquer meio de prova donde se possa retirar, como é exigível, qualquer facto concreto, ocorrido no momento dos factos, que permita sequer indiciar afetação da capacidade de discernimento e de avaliação pelo arguido da ilicitude dos factos delituosos em apreciação.

Em face do exposto, o Tribunal não ficou com qualquer dúvida acerca da capacidade do arguido em avaliar a ilicitude dos seus atos, da sua intenção e do conhecimento do carácter reprovável da sua conduta.

Os factos relativos aos pedidos de indemnização civil tiveram em consideração o declarado pelas testemunhas GA, psicóloga que elaborou o relatório médico junto a fls. 391, JR, irmã da vítima, BG e FA, ambos conhecedores da relação existente entre o assistente P e seu pai, depoimentos que nenhuma reserva suscitaram a este Tribunal. O Tribunal teve ainda em consideração o documento de fls. 392.

Quanto aos factos não provados, o decidido funda-se na circunstância de não ter sido prova suficiente acerca da sua verificação. Além do que supra ficou dito, importa salientar que as testemunhas arroladas pelo demandante não relataram o demais por si alegado.

Relativamente à questão das despesas com a sepultura, nenhuma prova foi feita da sua verificação, não bastando para tal a junção de um orçamento dirigido a uma terceira pessoa.

No que concerne ao arguido, o Tribunal teve também em consideração o relatório médico junto, o relatório social e o CRC.»

C. Apreciando

1. Omissão de pronúncia

Na audiência de julgamento, em momento seguido à sua prestação de declarações sobre o objeto do processo, arguido, com fundamento no disposto no artigo 351.º CPP, invocando documentos existentes nos autos (relatório médico fornecido pelo estabelecimento prisional e relatório social) e as referências ali feitas a «patologias», «perturbação da pessoalidade (doença psiquiátrica)»; e informação de que já teria mantido «tratamento psiquiátrico ambulatório, em regime de consultas externas do hospital, no período de 2015/2016, que abandonou por iniciativa própria», requereu que fosse ordenada a realização de perícia à sua capacidade para avaliar da ilicitude dos factos praticados, bem assim da sua liberdade para se determinar sobre essa avaliação.

Esse requerimento veio a ser indeferido, conforme mostra a ata da audiência, nos seguintes termos:

«Conforme resulta dos autos, já havia sido requerida a realização de perícia psiquiátrica ao arguido. Sobre esse requerimento recaiu recentemente despacho indeferindo a realização da mesma, porquanto nenhum dos elementos constantes dos autos indicia que à data dos mesmos, o arguido estivesse incapacitado de avaliar a ilicitude dos seus atos. Nada se alterou desde que foi proferido esse despacho, a não ser as declarações que o arguido hoje prestou e tal como refere o Senhor procurador, não só o mesmo referiu expressamente que sabia que tinha cometido um crime, como isso resulta também do seu próprio percurso após tê-lo cometido, que acaba por se ir entregar às autoridades, o que demonstra claramente ter consciência da ilicitude daquilo que havia praticado e, ao contrário do que refere a defesa, o discurso do arguido apresenta-se claro. Obviamente, eventualmente como estratégia de defesa, não confirma tudo aquilo que foi dito na acusação. Apresenta um discurso algo diferente do que prestou em primeiro interrogatório, efetivamente direcionado desde o princípio para afirmar que tem uma doença psiquiátrica, mas nada nos leva a crer que exista qualquer indício que permita concluir que a sua capacidade de avaliação possa ter estado diminuída.

Termos em que, à semelhança do que se fez no despacho proferido na semana passada, se indefere o requerido.»

Considera o arguido que existe omissão de pronúncia, pois apesar de ter sido solicitada a realização de perícia psiquiátrica, destinada a avaliar a sua inimputabilidade, esta lhe foi negada, tendo o tribunal agido como verdadeiro perito, sem o ser, para além de nem sequer ter equacionado a possibilidade de o arguido ser portador de imputabilidade diminuída.

Conforme evidencia a ata da audiência o arguido recorreu da decisão a que se reporta esta argumentação; mas não motivou o recurso!

Vejamos.

À luz do direito penal a pessoa presume-se livre e responsável e como tal imputável.

Dispõe o § 1.º do artigo 20.º CP que «é inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação.»

Não há responsabilidade criminal sem culpa, tal como decorre do princípio da dignidade da pessoa humana, ancorado no artigo 1.º da Constituição.

A culpa penal consiste num «juízo de censura sobre a conduta do sujeito agente que seja penalmente relevante, quando este poderia e deveria ter atuado de maneira diversa» (2) .

A inimputabilidade penal, por seu turno, traduz-se na incapacidade do agente, no momento da prática do facto ilícito, de avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de harmonia com essa avaliação (artigo 20.º, § 1.º CP).

A incapacidade de culpa surge quando a prática do facto descrito no tipo legal de crime ocorre em resultado da anomalia psíquica grave que impede a avaliação da ilicitude e/ou a liberdade de determinação.

Havendo fundadas razões para crer que um arguido praticou os factos descritos no tipo de ilícito sem capacidade de avaliação da ilicitude e/ou liberdade para se determinar de acordo com essa avaliação, o tribunal, oficiosamente, ou os demais sujeitos processuais mediante requerimento, devem suscitar a questão (artigo 351.º, § 1.º CPP) e realizar-se a perícia.

Se houver dúvida fundada acerca da capacidade diminuída do arguido, não existe a obrigatoriedade de realização de perícia, conferindo-se ao tribunal o poder de a ordenar apenas se a considerar necessária para a descoberta da verdade (artigo 351.º, § 2.º CPP).

Mas, como é óbvio, não se realiza perícia sobre o estado psíquico de todos os arguidos. Tal sucedendo, apenas, nos casos em que haja fundadas razões que o justifiquem.

A avaliação da dúvida, e mesmo a avaliação da inimputabilidade, são questões jurídicas (não médicas), integrantes da competência do tribunal, não obstante nas mais das vezes (sempre que fundadamente tal se justifique a realização da perícia) esta se conforte no parecer pericial (3).

Em termos procedimentais a realização da perícia não depende de simples manifestação de intenção por banda de um sujeito processual. É necessário que essa proposição seja fundada, isto é, que decorra de uma qualquer conexão com os factos praticados, com as circunstâncias destes, características pessoais do arguido cogentes aos factos ou posteriores a eles, dos quais emirja uma fundada dúvida sobre as referidas capacidade e liberdade (4).

Ora, os documentos para que o requerente remeteu para sustentar a sua pretensão são meros relatórios de cariz social, em que o quadro genérico deles emergente se mostra razoavelmente compaginável com a plena imputabilidade do arguido. Sendo as referências ali feitas às perturbações no passado do arguido compatíveis com o seu histórico de vida, no qual avultam, entre o mais, consumos de haxixe e abuso de bebidas alcoólicas (referidos nos mesmos relatórios).

Como bem se assinala na decisão que indeferiu a pretensão apresentada pelo arguido na audiência, nenhum dos documentos por ele indicados tem o dia ou os factos praticados como referência, nem deles se infere qualquer afeção relevante posterior.

A tudo acrescendo a atitude do arguido no dia da prática dos factos, que se foi apresentar voluntariamente às autoridades, tendo antes disso narrado a duas suas irmãs que tinha matado o hóspede por não gostar dele. Bem assim como o modo como prestou as suas declarações logo no primeiro interrogatório judicial, e depois na audiência de julgamento, o que tudo indicia a sua plena capacidade de avaliar a ilicitude e de com a mesma se determinar.

O requerimento formulado em audiência desconsiderou todas estas circunstâncias, fixando-se nas referências vagas dos citados documentos, indubitavelmente não reportadas ao momento da prática dos factos nem a afeção posterior relevante.

Finalmente, o recorrente parece partir do princípio de que o requerimento que apresentou era de deferimento obrigatório. Mas não é, conforme decorre do citado artigo 351.º CPP.

Acresce que a omissão da realização da perícia sobre o estado psíquico do arguido, com referência à sua inimputabilidade, constitui uma nulidade sanável (artigo120.º, § 2.º, al. d) CPP), uma vez que se trata de uma diligência de prova «indispensável». Já se a questão em referência for a imputabilidade diminuída do arguido, por constituir legalmente uma diligência «necessária» para a descoberta da verdade, a omissão da perícia constitui uma irregularidade (5).

O arguido não suscitou a nulidade correspetiva até ao encerramento da audiência, tendo-se limitado a fazer uma declaração para a ata manifestando intenção de recorrer!

O recurso, teria de ter como fundamento a aludida nulidade, e seguiria regime especial, conforme resulta do disposto dos artigos 406.º, § 2.º, 407.º, § 1.º e 408.º, § 3.º (in fine): subida imediata, em separado e com efeito suspensivo do processo.

Não se tendo suscitado atempadamente a nulidade (na audiência) e depois recorrido da decisão que a indeferisse, a mesma ficou sanada (artigo 120.º, § 3.º, al. a) CPP), com o respetivo trânsito em julgado (6).

Em face do trânsito em julgado do despacho de indeferimento proferido na audiência e à não alegação pelo arguido de nova factualidade, posterior a esse despacho, que fundadamente colocasse em dúvida a imputabilidade do arguido, este Tribunal de Relação não reconhece a ocorrência de qualquer nulidade praticada pelo tribunal a quo, nem nada mais tem a acrescentar sobre tal matéria, sendo insubsistente a alegada «omissão de pronúncia».

2. Do erro de julgamento na questão de facto

Alega o recorrente existirem erros de julgamento da matéria de facto, referindo-se a uma «valoração desadequada» da prova (Cls. 2.ª), a qual depois concretiza dubitativamente: «é possível que o arguido tenha agido com intenção de ofender corporalmente a vítima, mas a situação desenrola-se de tal maneira que, sem que o agente tivesse intenção, a vítima vem, efetivamente, a morrer daquela atuação» (Cls. 7.ª); ou, «estamos, eventualmente, perante uma situação em que uma pessoa causou realmente um mal mais grave do que o pretendido, apesar da sua intenção ser, pura e simplesmente, feri-la, acabando por lhe causar a morte, indo para além da intenção do agente» (cls. 8.ª).

Ocorre erro de julgamento da questão de facto quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tenha sido feita prova (pelo que deveria ter sido considerado não provado); ou quando se dê como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.

A impugnação ampla da matéria de facto, prevista no artigo 412.º, § 3.º CPP, pressupõe que o impugnante especifique os pontos de factos que considera incorretamente julgados pelo tribunal a quo, justificando em relação a cada facto alternativo que propõe a razão pela qual deveria o tribunal recorrido ter decidido de modo diferente (indicando as provas que «impõem decisão diversa» - al. b) do § 3.º do artigo 412.º CPP). Mas o modo dubitativo da impugnação realizada mostra-se, desde logo, insuficiente indicação do que as provas «impõem», sendo que o recorrente nenhuma prova para tal indicou!

Não obstante percebe-se que o recorrente pretende colocar em crise o julgamento feito pelo tribunal no concernente à intenção do arguido; o que, contudo, faz sem questionar os factos objetivos por ele praticados, os quais assim se mostram (incontestadamente) provados.

Vejamos, pois.

O quadro fáctico provado (não impugnado) evidencia que naquele dia 26 de maio de 2020, no local onde residiam o arguido e a vítima, na sequência de notória acumulação de tensões, decorrente das circunstâncias ali narradas (a vítima não colaborava na limpeza da habitação e quando mais uma vez chamado à atenção sobre isso dirigiu-lhe expressões verbais ofensivas). Então o arguido muniu-se de uma faca de cozinha, com 12,5 cm de lâmina, e com ela desferiu 6 golpes sobre o corpo de FF, atingindo-o na zona do tórax e do abdómen.

Tais golpes foram dirigidos para zonas do corpo onde se alojam órgãos vitais do corpo humano, como é do conhecimento comum, pelo que qualquer pessoa que tal realize não pode deixar de (pelo menos) admitir como possível o resultado que veio a ocorrer.

Mas o contexto circunstancial descrito, à luz das regras da experiência comum (7), aponta claramente para uma intenção direta do arguido em tirar a vida à vítima. Tanto mais que aquele, logo após a agressão, saiu de casa, deixando lá a vítima a esvair-se em sangue, não mais ali tornando, nem com a mesma se importando. Tendo narrado a duas das suas irmãs, antes de ir entregar-se à polícia, que tinha matado o hóspede, com o qual não se dava bem.

Não há, pois, sequer, qualquer indício de erro de julgamento relativamente à intenção direta de matar por banda do arguido, quando desferiu sobre a vítima os golpes com a referida faca de cozinha, muito menos qualquer prova que demonstre algo com isso incompatível.

Pese embora o recorrente não aponte à decisão recorrida nenhum dos vícios a que alude o artigo 410.º, § 2.º CPP, importa ainda assim expressar que do texto do acórdão impugnado, conjugado com as regras da experiência comum, não resulta insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nem contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão, nem ainda qualquer erro notório na apreciação da prova, pelo que improcede totalmente a impugnação factológica (ainda que dubitativa) suscitada no recurso.

3. In dubio pro reo

A questão da vulneração do princípio in dubio pro reo surge no recurso no contexto do indeferimento do requerimento para realização de perícia às capacidades mentais do arguido, pretendendo-se (ainda que apenas implicitamente) que com aquele indeferimento o tribunal estaria a decidir a questão da culpabilidade por antecipação e sem prova.

Compreende-se o interesse em assim se colocarem as coisas, importando, por isso, reconduzi-las coisas ao seu devido lugar.

O princípio in dubio pro reo decorre da garantia fundamental da presunção de inocência do arguido (artigo 32.º, § 2.º da Constituição) (8), constituindo um comando relativo à avaliação da prova por banda do tribunal, do qual deriva que não poderão considerar-se provados os factos que, em decorrência da prova produzida se suscite, sem que se arrede, qualquer «dúvida razoável» ao tribunal.

Isto é, impõe ao tribunal que quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa se pronuncie de forma favorável ao arguido.

Pressupõe, pois, a existência de um impasse probatório no final do percurso de apreciação da prova e a formação de uma convicção positiva sem suporte probatório bastante.

Pois bem. Conforme claramente decorre da motivação do acórdão recorrido, tal impasse não sucedeu neste caso. Não ressalta da decisão impugnada, nem o recorrente demonstra que o tribunal a quo haja resolvido qualquer non liquet contra o arguido.

Pelo que não se verifica qualquer vulneração do princípio in dubio pro reo.

4. Da qualificação jurídica dos factos

O recorrente considera que o crime cometido não foi o de homicídio (artigo 131.º CP), mas sim o de ofensa à integridade física qualificada preterintencional (artigos 145.º e 147.º CP).

Assenta esta pretensão na preconizada alteração da factualidade provada, que, como se viu supra, não encontra sustentação na prova.

Como assim, o que está assente é que nas circunstâncias de tempo, lugar e modo constantes do acervo factual assente, o arguido, com plena consciência da ilicitude da sua conduta, agiu com a intenção de tirar a vida a FJDF, o qual, consigo partilhava a casa onde vivia.

E, nesses termos, constituiu-se autor de um crime de homicídio, previsto no artigo 131.º CP, talqualmente considerou o tribunal a quo.

5. Da medida da pena

O arguido/recorrente entende que a pena de 14 anos de prisão, que lhe foi aplicada pelo tribunal de 1.ª instância é desajustada, por excessiva, por o contexto em que ocorreram os factos e a medida da sua culpa tanto não sustentarem.

Neste conspecto o Ministério Público entende que o arguido tem razão, considerando que a pena de 12 anos de prisão constitui a medida ajustada às circunstâncias do caso.

Vejamos, então.

O crime de homicídio, previsto no artigo 131.º CP, praticado pelo arguido é punível com pena de 8 a 16 anos de prisão.

Na demanda do enquadramento punitivo ajustado não pode prescindir-se das circunstâncias concretas do caso e das que respeitam à vida pessoal e social do arguido e seus antecedentes criminais.

Relativamente às primeiras importa atentar que o arguido e a vítima residiam há cerca de 7 meses na mesma casa, pois FF havia arrendado à irmã do arguido (tendo esta a qualidade de administradora da herança indivisa dos seus progenitores) um quarto e serventia da casa onde também residia o arguido.

O quadro circunstancial evidencia que a coabitação entre os dois não era pacífica, havendo frequentes discussões por causa da limpeza e arrumação da casa.

Nessas ocasiões o arguido exigia a FF que limpasse ou arrumasse, retorquindo este com maus modos.

No dia 26 de maio de 2020, da parte da manhã ocorreu mais uma dessas discussões, na cozinha da residência de ambos, impetrando o arguido FF sobre a limpeza, mais uma vez respondendo este com expressões objetivamente ofensivas.

E da parte da tarde, noutro confronto com o mesmo mote houve idêntico desfecho, na sequência do qual FF se dirigiu para o seu quarto.

Mas o arguido, irado, muniu-se de uma faca de cozinha e com ela empunhada dirigiu-se ao quarto onde o FF se encontrava, desferindo sobre o corpo dele 6 golpes, que lhe atingiram a zona do tórax e abdómen, deixando-o inanimado na cama, sangrando abundantemente.

De seguida saiu de casa e dirigiu-se ao café, onde se encontrou com sua irmã, indo de seguida apresentar-se na esquadra da PSP de ….

Deverão também considerar-se as circunstâncias pessoais do arguido, o qual tem 59 anos de idade e é solteiro. Apesar de ter nascido em … reside em … há 58 anos, onde a sua família de origem se estabeleceu. Frequentou o ensino em idade própria, tendo concluído o 6.º ano de escolaridade. Iniciou o seu percurso laboral com 19 anos de idade, como … da …, situação que manteve com regularidade até à reforma por invalidez.

Quando tinha 25 anos de idade juntou-se com a mãe dos seus 2 filhos, perdurando esse relacionamento apenas 6 ou 7 anos, não mantendo após a separação nenhum tipo de relacionamento com a ex-companheira nem com os seus filhos.

Mantém, contudo, contactos regulares com os seus irmãos ainda vivos, se bem que alguns deles lhe censurem o percurso criminal que regista.

Tem vários problemas de saúde e um passado com consumo abusivo de haxixe e de bebidas alcoólicas.

Regista alguns antecedentes criminais, tendo sido condenado (pelo menos) cinco vezes, por crime de furto, de burla, de tráfico de substâncias estupefacientes, de ameaça e de injúria, tendo cumprido penas de prisão.

O recurso penal é um remédio jurídico, vocacionado para colmatar erros de julgamento, servindo para despistar ou corrigir, cirurgicamente, eventuais erros de julgamento. Quer-se dizer: o tribunal de recurso não determina concretamente a pena como se inexistisse uma decisão de primeira instância. A reapreciação que lhe cabe realizar cinge-se à verificação da observância pelo tribunal a quo dos princípios e regras vigentes nessa matéria, não abrangendo «a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato de pena, exceto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada» (9).

Do artigo 40.º do Código Penal decorre todo um programa político-criminal, sobre os fins das penas, o qual, na opinião de Figueiredo Dias (10), se traduz essencialmente no seguinte:

«1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial.

2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa.

3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico.

4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excecionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.»

Breve: dentre os limites fixados pela medida da culpa (máximo de pena) e pela prevenção geral positiva (mínimo da pena) são as necessidades de prevenção especial que determinam o quantum concreto da pena.

Na ponderação sobre a medida da pena intervêm não apenas fatores relativos ao(s) facto(s) praticado(s), mas também à personalidade do agente, através dos quais se avalia o grau de censurabilidade da conduta do agressor (artigo 71.º CP).

Temos, pois, que a culpa aqui em referência se reporta à censura dirigida ao agente por referência à prática do facto ilícito, que consiste na desaprovação da sua atitude interna face às exigências do dever ser sociocomunitário.

Já a prevenção geral reporta-se à defesa da ordem jurídico-penal, tal-qualmente constitui consciência coletiva (prevenção geral positiva ou de integração), fixando o mínimo de pena imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, ao restabelecimento da confiança coletiva na validade da norma violada.

E no concernente às exigências de prevenção especial, privilegia-se a vertente positiva ou de socialização, que se traduz na oferta ao arguido das condições para prevenir a reincidência (11).

No acórdão recorrido ponderou-se o seguinte:

«Na determinação da medida concreta da pena e nos termos do disposto nos artigos 71.º e 47.º do citado diploma ter-se-á em consideração a sua culpa, as exigências de prevenção de futuros crimes e as circunstâncias do caso agora em apreço que, não fazendo parte do tipo de crime depõem contra e em seu favor, sem prejuízo dos limites mínimos e máximos das penas aplicáveis.

Nos termos do artigo 71.º do Código Penal, e no entendimento do Prof. Figueiredo Dias "a culpa é o ponto de referência que o julgador não pode ultrapassar; até esse limite jogam então as considerações relativas à prevenção, geral e especial" (acta n.º 8 da CRCP, de 29 de Maio de 1989).

O artigo 40.º, n.º 2 do Código Penal refere que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, o qual reflete de forma clara o princípio da culpa, segundo o qual não há pena sem culpa e a culpa decide da medida da pena. O juízo de culpa é sempre um juízo de desvalor sobre o agente em razão do seu comportamento num certo momento, qual seja o do cometimento do ilícito típico. A culpa é que decide na medida da pena, pois a mesma afirma-se como limite máximo daquela, funcionando depois a prevenção. A culpa é assim o fundamento ético da pena e um limite inultrapassável da sua medida.

Impõe-se então determinar a pena a aplicar ao arguido, devendo considerar-se para o efeito:

- o grau de ilicitude do facto que é extremamente elevado, atento o bem jurídico violado e as circunstâncias em que se verificaram os factos: o arguido tirou uma vida na sequência de injúrias de que tinha sido alvo. Tal motivação, dentro do âmbito de aplicação do tipo simples, agrava consideravelmente a sua ilicitude.

- modo de execução do crime – o arguido desferiu 6 golpes na vítima, atingindo-o na região do tórax e abdómen, revelando uma forte energia criminosa;

- O dolo na sua modalidade mais intensa – o arguido agiu com dolo direto;

- as condições de vida do arguido e sua personalidade, descritas no relatório social e que se dão por reproduzidas;

- a postura do arguido em julgamento, contribuindo de forma relevante para a descoberta da verdade;

- as necessidades de prevenção geral revelam-se elevadíssimas, uma vez que se trata do crime mais grave que importa a afetação do valor mais fundamental que é a vida humana e que sobreleva em relação aos demais. Como tal, a comunidade demanda uma resposta efetiva por parte do aparelho estadual com vista à dissuasão da prática deste tipo de condutas.

- o passado criminal do arguido.

Tudo visto e ponderado, o Tribunal considera adequado fixar a pena a aplicar ao arguido em 14 anos de prisão.»

Não basta enunciar os princípios e as regras pertinentes para a graduação da pena, como efetivamente se faz no acórdão recorrido. É também necessário cumpri-los.

Verificamos que o tribunal coletivo não terá valorizado o quadro geral em que se insere a prática do facto ilícito, pois veio a considerar como agravantes, circunstâncias que se mostram apenas normais no contexto do crime em referência.

Considerou-se por exemplo que a prática do ilícito foi despoletada pelas expressões injuriosas que no momento (ou naquele dia), a vítima dirigiu ao arguido. O que é indesmentível. Mas não se valorizou o contexto de uma convivência de coabitação notoriamente conflituosa, para a qual ambos concorreriam, sendo os factos daquele dia o episódio culminante de tensões acumuladas (o que decorre p. ex. do depoimento da testemunha MLM).

Da mesma sorte as facadas desferidas pelo arguido no corpo da vítima vêm qualificadas como reveladoras de «uma forte energia criminosa», quando as mesmas são apenas um meio comum de matar!

E, finalmente, na ponderação das exigências de prevenção geral considerou o tribunal coletivo que elas «são elevadíssimas, uma vez que se trata do crime mais grave que importa a afetação do valor mais fundamental que é a vida humana e que sobreleva em relação aos demais». Aqui se confundindo os planos do legislador e do tribunal. Atendendo-se às exigências de prevenção geral de modo algo desfocado do preconizado pela lei.

Breve: a preocupação manifestada pelo tribunal coletivo foi já ponderada pelo legislador quando estabeleceu a moldura legal do crime de homicídio no contexto dos demais crimes. O que cabe ao tribunal realizar na sentença (acórdão), em termos de prevenção geral, é coisa diversa, consistente na avaliação da medida (mínima) de pena que assegure as expectativas da comunidade na efetividade e manutenção da vigência da norma violada; num nível que reafirme como finalidade primária da pena o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime.

O que concerne à atitude do arguido em audiência (contribuindo de forma relevante para a descoberta da verdade); e os seus antecedentes criminai, sendo circunstâncias relevantes, são-no em sede das necessidades de prevenção especial. Neste conspecto, se os antecedentes criminais, por um lado, revelam uma personalidade avessa ao direito e aos valores prevalentes na sociedade; a atitude de se ir entregar à polícia (primeiro), e de assunção da sua responsabilidade sem tibiezas, em sede de audiência de julgamento, evidencia que de algum modo o processo de ressocialização já se terá iniciado (12), que é o que se preconiza com a aplicação da pena.

Recentrados os factos e a sua relevância no contexto dos princípios e regras atinentes à concretização da pena, sem perder de vista que o motivo do homicídio, que faz uma tangente à futilidade, na esteira do que sustenta o Ministério Público, importará reequilibrar a medida da pena, a qual, em face das circunstâncias que se deixaram referidas, não deverá ir além dos 13 anos de prisão.

6. Das indemnizações cíveis

Sustenta o recorrente apenas que o valor das indemnizações cíveis «são manifestamente exageradas tendo em conta a factualidade dada como não provada»!

Os demandantes pediam a condenação do demandado no pagamento da quantia global de 211 107€ a título de danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, advenientes do facto ilícito que foi morte do seu pai, as mãos do demandado.

Após a fixação dos factos provados (e só estes relevam para a quantificação do valor a arbitrar a favor de cada um dos dois filhos da vítima), o tribunal coletivo fixou a compensação devida a cada um dos demandantes em 55 000€, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora a contar da data da prolação do acórdão, absolvendo o demandado do demais que havia sido pedido. E justificou essa sua decisão nos seguintes termos:

«Tendo em consideração a apreciação que da factualidade apurada foi feita no tocante à responsabilidade criminal, resulta inequívoco que se mostram preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos constituindo-se o arguido/demandado na obrigação de indemnizar os demandantes, filhos do falecido.

Resta agora determinar o montante das indemnizações.

Dano Morte:

Cada um dos demandantes veio peticionar a título de dano pela perda do direito à vida do seu pai a quantia de € 60.000,00, num total de € 120.000,00.

O dano morte constitui o prejuízo supremo, é a lesão de um bem superior a todos os outros, cuja tutela é assegurada pelo art.º 24.º da Constituição da República Portuguesa.

E a compensação por tal dano dever-se-á fixar por recurso à equidade, tendo em consideração as circunstâncias atendíveis nos termos do disposto no art. 494º do C. Civil.

Conforme se escreveu no Ac. STJ de 17.05.2012 “ (…) A compensação pela perda do direito à vida, dano não patrimonial sofrido pela vítima, deverá ser fixado segundo a equidade, à luz do art. 496º nº 3 do CC, recorrendo-se, como indicadores a ter em conta, ao grau de culpabilidade do agente, à situação económica deste e do lesado, e às demais circunstâncias a que importe atender, nos termos do art. 494º do CC.

No acórdão do STJ e desta 5ª Secção que subscrevemos no passado dia10 de maio (Pº 451/06.7 GTBRG.G1.S2), teceram-se as considerações que se seguem e não perderam evidentemente atualidade:

“Na falta de um critério legalmente estabelecido, a jurisprudência tem considerado relativamente ao dano morte, que a vida constitui o supremo bem, um valor absoluto, ora tendo como irrelevantes outros elementos que não a vida em si mesma (ac. de 26-10-2010 - proc. 209/07.6TBVCD.P1.S1), ora considerando que a vida não só tem um valor de natureza igual para toda a gente, mas também um valor social, uma vez que o homem é um ser em situação, encarando a vida que se perde na função normal que desempenha na família e na sociedade em geral, no papel excecional que desempenha na sociedade, assinalado por um valor de afeição mais ou menos forte (ac. de 08-09-2011 – Proc. 336/04.2TVLSB.L1.S1), devendo ponderar-se também a vontade e alegria de viver da vítima, a sua saúde, estado civil, os projetos de vida e as concretizações do preenchimento da existência no dia a dia, designadamente a sua situação profissional e sócio-económica. E porque a responsabilidade de indemnizar se funda aqui num facto ilícito, haverá que atender também à gravidade do facto, ao seu grau de ilicitude, pois a indemnização a arbitrar tem de ser proporcionada a tal gravidade, dentro do tal critério de equidade, que deve respeitar «todas as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida» (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. 1.º, 2.ª ed., pág. 435), fixando-se a indemnização num valor que não seja meramente simbólico, não se compadecendo com miserabilismos indemnizatórios (…)” – disponível in www.dgsi.pt

Assim sendo, ante a factualidade dada como assente designadamente aquela referente à idade e condições de vida da vítima, as circunstâncias em que ocorreu a sua morte (sofreu 6 golpes com uma faca, que o atingiram no tórax e no abdómen) entende este Tribunal que a indemnização peticionada na sua globalidade é desajustada, devendo fixar-se no montante global de 70.000,00€, a atribuir a cada um dos demandantes na proporção de metade.

(…)

Danos próprios dos assistentes/demandantes, filhos do falecido:

Cada um dos demandantes peticiona, a este título, a quantia de 30.000,00€.

«(…) Está em causa um dano especial, próprio, que os familiares da vítima sentiram e sofreram com a morte do lesado, contemplando o sofrimento moral decorrente da morte, o desgosto provocado pela morte do ente querido.

Os danos não patrimoniais por morte da vítima nascem por direito próprio na titularidade das pessoas designadas pela lei, os familiares a que se refere o artigo 496.º- acórdão do STJ, de 09-05-1996, CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 58 (…)

No caso a compensação é devida pelo sofrimento da perda abrupta e irreparável daquele ente querido. (…)

Salvo raras e anómalas exceções, a perda do lesado é para os seus familiares mais próximos causa de sofrimento profundo, sendo facto notório o grave dano moral que a perda de uma vida humana traz aos seus familiares, às pessoas que lhe são mais chegadas.

Como se refere no acórdão do STJ de 26-06-1991, BMJ n.º 408, p. 538, trata-se de um dano não patrimonial natural, cuja indemnização se destina a compensar desgostos e que por serem factos notórios, não necessitam de ser alegados nem quesitados, mas só pedidos.

É pacífico que um dos fatores a ponderar na atribuição desta forma de compensação será sempre o grau de proximidade ou ligação entre a vítima e os titulares desta indemnização.

No caso concreto estamos perante dois filhos que veem falecer o seu pai, nas circunstâncias descritas, o que lhes causou dor e desgosto.

Tendo em consideração os factos provados o Tribunal entende adequado fixar a indemnização devida a cada um dos assistentes em 20.000,00€, e não o valor peticionado por não se coadunar com a extensão dos danos sofridos.

(…)»

Estão em causa apenas danos de natureza não patrimonial, por os de natureza patrimonial que foram alegados se não terem provado.

Preceitua a lei (artigo 496.º do C. Civil) que na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. A perda abrupta e violenta de um pai, causada dolosamente por terceiro merece indubitavelmente a tutela do direito.

A doutrina e a jurisprudência têm entendido que, em caso de morte causada por terceiro resultam três danos indemnizáveis:

- o dano pela perda do direito à vida;

- o dano sofrido pelos familiares da vítima com a morte do ente querido;

- o dano sofrido pela vítima antes de morrer, variando este em função de fatores de diversa ordem, como sejam: o tempo decorrido entre o acidente e a morte; se a vítima estava consciente ou em coma; se teve dores ou não e qual a sua intensidade; se teve ou não consciência de que ia morrer.

No caso presente importará apenas valorar a violação do direito à vida do pai dos demandantes e o dano consistente no sofrimento pela perda abrupta e violenta do pai por banda dos demandantes (seus filhos), uma vez que se não provaram quaisquer factos que possibilitem a valoração do sofrimento da vítima, pelo que nesta parte nada se fixou nem nada há para avaliar, como bem julgou o tribunal coletivo.

A quantificação da perda do direito à vida do falecido, considerando que a vítima tinha 63 anos de idade, tendo pela frente mais cerca de 15 anos de vida (atendendo à esperança média de vida em Portugal), para viver na companhia de quem mais gostasse, bem como de desfrutar de todas as sensações que a vida proporciona, afigura-se que a quantia de 35 000€ para cada um dos demandantes, fixada pelo tribunal a quo, se mostra ajustada pelo mínimo dos padrões que vêm sendo seguidos na jurisprudência nacional.

O mesmo se dizendo da quantia de 20 000€ a propósito do dano sofrido por cada um dos filhos da vítima, que tinham afeição e estima pelo seu pai e que sofreram com a sua perda daquele modo abrupto e violento.

III – Decisão

Destarte e por todo o exposto, na parcial procedência do recurso decide-se:

a) alterar a medida da pena, condenando-se o arguido, pela prática como autor de um crime de homicídio, previsto no artigo 131.º, § 1.º do Código penal, na pena de 13 anos de prisão.

b) Mantendo-se no mais o douto acórdão recorrido.

c) Sem custas.

Évora, 13 de julho de 2021

J. F. Moreira das Neves (relator)

José Proença da Costa

Assinado eletronicamente

1 Cf. acórdão do STJ n.º 7/95, de 19/10/1995 (Fixação de Jurisprudência), publicado no DR, I-A, de 28/12/1995.

2 José de Faria e Costa, Noções fundamentais de direito penal, Fragmenta iuris poenalis, 4.ª ed., Coimbra Editora, 2015, pp. 321.

3 Hans-Heinrich Jeschek e Thomas Weigend, Tratado de Derecho Penal, Parte General, 5ª Ed., Editorial Comares, Granada, dezembro de 2002, pp. 462 ss.

4 Neste sentido cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2011, pp. 904, nota 7, em comentário ao artigo 351.º.

5 Neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2011, pp. 904/905, notas 3., 7. a 10. e 13. em comentário ao artigo 351.º.

6 Neste sentido cf. acórdão TRCoimbra, de 25jan2012, proc. 221/10.8PATNV.S1.C1, Des. Orlando Gonçalves.

7 Cf. Daniel Gonzalez Lagier, apud Helena Susano, no texto introdutório «Da prova indireta ou por indícios, Coleção Temas, n.º 1, www.cej.pt (citado pelo Ministério Público): «La prueba de los elementos subjectivos del delito no requiere necessariamente basarse en las declarationes testificales o en pruebas periciales. En realidade, en la medida en que el dolo o los restantes elementos del tipo penal no pueden ser percebidos directamente por los sentidos, ni requiere para su comprobación conocimientos científicos o técnicos especiales, se trata de elementos que se sustraen a las pruebas testificales y perciales en sentido estricto. Por lo tanto, el Tribunal de los hechos debe establecerlos a partir de la forma exterior del comportamento y sus circunstâncias mediante um procedimento inductivo que, por lo tanto, se basa en los princípios de la experiencia general»

8 A que aludem igualmente os artigos 11.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem; 6.º, § 2.º da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos e Liberdades Fundamentais; e 14.º, § 2.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.

9 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas – Editorial Notícias, pp. 197.

10 Jorge de Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal – Sobre os Fundamentos da Doutrina Penal Sobre a Doutrina Geral do Crime, Coimbra Editora, 2001, pp. 110/111.

11 «Por reforço dos standards de comportamento e de interação na vida comunitária (condução da vida “de forma socialmente responsável”)» - Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pp. 74, 110 e 238 ss., Aequitas – Editorial Notícias, 1993. Também Maria João Antunes, Consequências Jurídicas do Crime, Lições aos alunos de Direito Penal III, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2010-2011, pp. 31 e ss.

12 «Por reforço dos standards de comportamento e de interação na vida comunitária (condução da vida “de forma socialmente responsável”)» - Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pp. 74, 110 e 238 ss., Aequitas – Editorial Notícias, 1993. Também Maria João Antunes, Consequências Jurídicas do Crime, Lições aos alunos de Direito Penal III, daFaculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2010-2011, pp. 31 e ss.