Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2727/22.7T8FAR-B.E1
Relator: ANA MARGARIDA LEITE
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
ACÇÃO PRINCIPAL
INDEFERIMENTO LIMINAR
Data do Acordão: 10/27/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – A providência cautelar, requerida como incidente de ação declarativa anteriormente intentada, não configura um meio para acautelar o efeito jurídico dessa ação se visar a obtenção de resultado diverso daquele a que respeita a pretensão nela deduzida, destinando-se a obter a regulação provisória de um direito cuja regulação definitiva não foi peticionada na ação;
II – O procedimento cautelar não é instrumental relativamente à ação declarativa, se as providências requeridas não configuram um meio para acautelar algum efeito jurídico pretendido com a ação, antes consistindo num fim em si mesmas;
III – A falta do vínculo de instrumentalidade relativamente à ação declarativa que constitui o processo principal conduz à manifesta improcedência da pretensão cautelar, o que constitui causa de indeferimento liminar.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2727/22.7T8FAR-B.E1
Juízo Central Cível de Faro
Tribunal Judicial da Comarca de Faro


Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:


1. Relatório

Por apenso à ação declarativa, com processo comum, que (…) move contra (…) e (…), a autora requereu procedimento cautelar comum contra os réus, formulando o pedido que se transcreve:
«(…) deve a presente providência ser julgada provada e procedente e, em consequência, os Requeridos condenados a
– Garantir a completa insonorização da fração a partir das 23 horas (hora legal),
– Proceder a todas as alterações necessárias a pôr termo ao ruído que constitui fonte de grave perturbação do direito ao repouso da Requerente sob pena de multa por cada noite em que o barulho se verificar a partir das 23 horas;
E se as medidas acima peticionadas não se vierem a revelar suficientes para o efeito, sendo a concretização destas medidas, relegada para momento posterior por não se saber quais serão ou, sequer, se se revelarão necessárias em face dos resultados das medidas peticionadas.
Mais requer que seja decretada a referida providência, que como decisão provisória.
SUBSIDIARIAMENTE
Caso V. Exa. assim não o entenda, o que por mera hipótese se admite requer seja determinado à Câmara Municipal de Olhão para efeitos de cessar o contrato de arrendamento que tem com os Requeridos (…)».
A justificar o pedido, alega, em síntese, que reside no 3.º andar do prédio que identifica e os requeridos no 2.º andar do mesmo edifício, sendo que estes, durante a noite, têm produzido ruído ensurdecedor que impede a requerente de descansar e dormir, o que lhe causa os danos que descreve, como tudo melhor consta do requerimento inicial.
Por despacho de 09-09-2022, foi indeferido liminarmente o procedimento cautelar e a requerente condenada nas respetivas custas.
Inconformada, a requerente interpôs recurso desta decisão, pugnando para que seja revogada e substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos, terminando as alegações com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«1 - A Requerente reside desde há 8 anos no 3º andar do prédio sito na Rua (…), n.º 3, 3.º direito, 8700-453, em Olhão, no qual toma as suas refeições e dorme,
2 - No 2.º andar do referido prédio vivem os Requeridos que fazem muito barulho, em especial, pela madrugada fora, às duas horas da madrugada, um barulho ensurdecedor,
3 - Que impossibilita a Requerente de dormir ou, sequer, de descansar antes de dormir,
4 - Sendo certo que a requerida é pessoa com doença nervosa crónica e toma medicação para dormir e passa muito tempo em casa porque não trabalha por invalidez há 30 anos,
5 - Sendo esta a sua rotina entre a 2ª feira a domingo,
6 - Procurando permanecer em casa para descansar e recuperar forças devido à medicação forte que tem de tomar para se manter viva,
7 - Apesar dos contatos da Requerente com os Requeridos, procurando sensibilizar estes para a necessidade de alterar a situação,
8 - E do pedido de intervenção das autoridades policiais e administrativas – que nada fizeram,
9 - Os Requeridos mantêm a sua atividade, nos termos descritos, impedido a Requerente de dormir antes das duas horas da manhã e por vezes, pela madrugada fora, como chega a acontecer até às 06h00 da manhã,
10 - Causando-lhe dores de cabeça e provocando-lhe profunda agitação que a deixam num estado de nervos verdadeiramente deplorável,
11 - De tal modo que recorre já aos serviços de um médico com vista a conseguir controlar o seu sistema nervoso, a lesão no ouvido esquerdo por ter recorrido desesperadamente a tampões, na expectativa de conseguir dormir,
12 - O direito ao repouso de uma pessoa constitui um elemento integrante de personalidade de um ser humano – como tal um verdadeiro direito de personalidade – que os R.R., com os seus comportamentos, têm vindo a violar de forma grosseira.
13 - Pode ser requerido o decretamento de providência concretamente adequada a evitar a consumação de qualquer ameaça ilícita e direta física e/ou moral do ser humano ou a atenuar, ou fazer cessar, os efeitos de ofensa já cometida.
14 - Sendo esta a situação da Requerente – cujo direito ao repouso é já objeto de ofensa grave pelos Requeridos – assiste à Requerente a legitimidade para instaurar contra os Requeridos a presente providência– cuja tramitação se espera célere! – com vista a ver decretadas as providências adequadas a pôr termo à agressão do direito da Requerente,
15 - Considerando-se necessária a completa insonorização da fração do 2.º andar da rua com a colocação de, com a existência de ordem judicial sob uma cláusula penal de multa, caso a decisão da sentença seja desrespeitada, pela cessação dos ruídos a partir das 23 horas, como legalmente previsto,
16 - Não pode, a Requerente continuar sujeita a constante violação do seu direito ao repouso,
17 - Podendo tornar-se irreversível a lesão sofrida pela Requerente se não for, de imediato, posto termo à agressão de que está a ser vítima,
18 - O que o força a requerer o presente procedimento na pendência da ação, tal como lhe é permitido pela lei processual civil,
19 - Requerendo seja, provisoriamente, decidido sob pena de multa, que a fração do 2.º andar cesse os barulhos de música alta, televisão com o som alto, telemóvel a tocar com o som alto e sistemas de vibração intensa – a partir das 23 horas, de modo a permitir que a Requerente repouse pelo menos sete horas por noite, tendo em conta a hora a que, diariamente, tem de se tratar com medicamentos fortes,
20 - Podendo estas atividade estender-se até às 6 horas da noite de 2ª feira a Domingo.
21 - Salvo o devido respeito pela sentença que é muito, cremos que deve ser revogada por outra.
22 - Segundo parece fundamenta o indeferimento com base na não instrumentalidade da providência com a ação principal, o que não parece correto.
23 - Em primeiro lugar, considera-se que de facto o pedido de providência é, de facto, instrumental da ação principal – o que está a causar é, ou não, os mesmos factos.
24 - Ou seja, o que se pede é que esses atos terminem.
25 - O facto de se pedir uma indemnização pelos factos ilícitos pelos Requeridos que se descrevem, tem como pressuposto, lógico e diretamente conexo, que os mesmos cessem. Não?
26 - Não quer a ora Requerente fazer negócio, aproveitando-se de terceiros estarem a praticar ilegalidades para ir pedindo indemnizações.
27 - Em segundo lugar, parece-nos que o tribunal tem de averiguar se existe a aparência do direito e, posteriormente, se existe a necessidade de acautelar um eventual prejuízo imparável ou de difícil reparação o que está efetivamente a acontecer.
28 - De maneira que deve o tribunal recorrido determinar que os Recorridos ponham fim aos atos descritos, conforme solicitado.»
Admitido o recurso, foi ordenada a notificação dos requeridos, nos termos previstos no artigo 641.º, n.º 7, do Código de Processo Civil.
Notificados, os requeridos deduziram oposição e apresentaram contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
Face às conclusões das alegações da recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar se é de determinar o prosseguimento dos autos.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

2. Fundamentos

2.1. Tramitação processual
Relevam para a apreciação das questões suscitadas na apelação, além dos elementos elencados no relatório supra, ainda os seguintes elementos constantes do processo principal:
a) na ação declarativa que constitui o processo principal, movida pela ora requerente contra os ora requeridos, a autora pede a condenação dos réus a «apagar-lhe a quantia de € 84.000,00 por danos materiais e não patrimoniais e porque o referido valor é o equivalente a 10 anos de renda para a Autora se mudar para qualquer lado com as rendas praticadas atualmente»;
b) na ação a que alude a alínea a), a autora invoca a violação pelos réus de direitos de personalidade, designadamente do seu direito ao repouso, e baseia o pedido indemnizatório formulado na responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito.

2.2. Apreciação do objeto do recurso
Vem posto em causa na apelação o despacho que indeferiu liminarmente o procedimento cautelar comum, com fundamento no disposto no artigo 590.º, n.º 1, do CPC, por se ter considerado inexistir interconexão entre tal procedimento e a ação que constitui o processo principal, tendo-se entendido que a providência requerida não é instrumental em relação a essa ação.
No que respeita aos motivos pelos quais assim se entendeu, extrai-se da fundamentação da decisão recorrida o seguinte:
(…) No caso em apreço, a providência requerida não é instrumental em relação com a ação principal intentada na medida em que, nesta, visa-se a condenação dos requeridos no pagamento de uma indemnização. Ou seja, na ação principal não se tutela, diretamente, o direito ao repouso, mas um direito de crédito derivado da ofensa daquele direito.
Acresce (…) a providência requerida insere-se no âmbito da tutela de direitos de personalidade, nos termos do disposto nos artigos 878.º e 879.º do Código de Processo Civil.
A qual, segundo o estatuído nos artigos 117.º e 130.º da Lei n.º 62/2013, de 26.08, alterada pela Lei n.º 40-A/2016, de 22.12 (Lei da Organização do Sistema Judiciário-LOSJ), compete aos Juízos Locais Cíveis a competência para a sua tramitação, por se inserir em ações especiais (artigo 879.º, n.º 5, do Código de Processo Civil).
Donde, existindo uma providência específica para tutela do direito de personalidade que se visa acautelar, com o decretamento das medidas indicadas, não pode a requerente faz uso do procedimento comum.
Assim sendo, este Tribunal é materialmente incompetente para a apreciação da providência requerida, exceção dilatória de incompetência, em razão da matéria, de conhecimento oficioso (artigo 128.º, n.º 3, da LOSJ e artigos 96.º, alínea a), 97.º, 99.º, 577.º, alínea a) e 578.º do Código de Processo Civil).
Discordando deste entendimento, a recorrente afirma que lhe assiste o direito a requerer as providências tidas por adequadas a fazer cessar a violação do seu direito ao repouso, defendendo que os factos que justificam a providência requerida são os mesmos que baseiam o pedido formulado na ação declarativa que constitui o processo principal, acrescentando que o pedido indemnizatório aí deduzido tem como pressuposto a cessação dos factos ilícitos praticados pelos requeridos, motivo pelo qual considera verificada a instrumentalidade da providência cautelar requerida relativamente à ação.
Vejamos se lhe assiste razão.
Prevendo o recurso às ações judiciais, declarativas e executivas, e aos procedimentos cautelares, dispõe o n.º 2 do artigo 2.º do CPC que a todo o direito, exceto quando a lei determine o contrário, corresponde a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação.
Explicam João de Castro Mendes/Miguel Teixeira de Sousa (Manual de Processo Civil, volume I, Lisboa, AAFDL Editora, 2022, págs. 590-591) o seguinte: «Os procedimentos cautelares (…) fundam-se na seguinte ordem de considerações: a composição final de um litígio é algo que pode demorar bastante tempo; é sempre necessário deixar as partes expor as suas razões, é frequentemente necessário investigar factos e é quase sempre necessário decidir reclamações e recursos; além disso, a satisfação do interesse protegido poderá exigir dois processos, um declarativo e outro executivo, cada um com a sua duração. (…) Esta demora na satisfação judicial do interesse protegido cria o risco de um prejuízo ao seu titular, isto é, origina o chamado periculum in mora. Por esta razão, a lei permite que o tribunal possa decretar uma tutela provisória que se destina a acautelar o efeito útil da acção (artigo 2.º, n.º 2, in fine), isto é, evitar que a subsequente tutela definitiva seja inútil».
Sob a epígrafe Relação entre o procedimento cautelar e a ação principal, dispõe o artigo 364.º do Código de Processo Civil, no n.º 1, que, exceto se for decretada a inversão do contencioso, o procedimento cautelar é dependência de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurado como preliminar ou como incidente de ação declarativa ou executiva; acrescentam os n.ºs 2 e 3 do preceito que, requerido antes de proposta a ação, é o procedimento apensado aos autos desta logo que instaurada e, requerido no decurso da ação, deve o procedimento ser instaurado no tribunal onde esta corre e processado por apenso.
Nos termos do disposto no artigo 373.º do mesmo Código, salvo se for decretada a inversão do contencioso, o procedimento cautelar extingue-se e, quando decretada, a providência caduca: a) se o requerente não propuser a ação da qual a providência depende dentro de 30 dias contados da data em que lhe tiver sido notificado o trânsito em julgado da decisão que a haja ordenado; b) se, proposta a ação, o processo estiver parado mais de 30 dias, por negligência do requerente; c) se a ação vier a ser julgada improcedente, por decisão transitada em julgado; d) se o réu for absolvido da instância e o requerente não propuser nova ação em tempo de aproveitar os efeitos da proposição da anterior; e) se o direito que o requerente pretende acautelar se tiver extinguido.
Decorre deste regime que as providências cautelares se destinam a acautelar o efeito útil da ação, pelo que, exceto se for decretada a inversão do contencioso, o procedimento cautelar constitui sempre dependência de uma ação que tenha por fundamento o direito acautelado, isto é, o direito que o autor visou acautelar antecipadamente através do recurso ao procedimento, podendo este ser instaurado como preliminar ou como incidente de ação declarativa ou executiva.
Esclarecem José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2017, pág. 19) o seguinte: «Constituindo a providência cautelar, sem prejuízo do regime da inversão do contencioso (artigo 369.º), a antecipação duma providência definitiva, de natureza declarativa ou executiva (…), o procedimento que visa a sua obtenção está sempre na dependência duma ação em que o autor faz valer o direito – ou o interesse tutelado – que através dele visa acautelar».
Reportando-se à finalidade da providência, afirmam João de Castro Mendes/Miguel Teixeira de Sousa (ob. cit., págs. 593-594) o seguinte: «A providência cautelar deve ser aquela que seja funcionalmente adequada a acautelar o efeito útil da acção principal. Procurando concretizar o seu escopo, pode dizer-se que a providência cautelar pode prosseguir uma das seguintes finalidades: (…) – Uma finalidade de garantia de um direito (correspondente à “providência conservatória” referida no artigo 362.º, n.º 1); (…) – Uma finalidade de regulação provisória de uma situação (também correspondente à “providência conservatória” a que se refere o artigo 362.º, n.º 1); (…) – Uma finalidade de antecipação da tutela definitiva (correspondente à “providência […] antecipatória” a que alude o artigo 362.º, n.º 1); (…)».
As providências cautelares, conforme explica Marco Carvalho Gonçalves (Providências Cautelares, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2017, pág. 118), «não constituem um fim em si mesmas, mas antes um meio para se acautelar um determinado efeito jurídico». Acrescenta o autor (ob. cit., págs. 119-120) que «salvo quando tenha sido decretada a inversão do contencioso (artigo 364.º, n.º 1), a instrumentalidade das providências cautelares traduz-se na inidoneidade de se transformarem numa tutela definitiva, porquanto se destinam a ser absolvidas pelo juízo de mérito que vier a resultar do processo de declaração plena. Exatamente por isso, as providências cautelares estão sujeitas a dois limites de fundo: por um lado, o requerente não pode obter por essa via mais do que aquilo que poderia alcançar através da sentença definitiva; por outro lado, o tribunal não pode decretar uma providência cautelar cujos efeitos sejam irreversíveis ao ponto de esvaziarem de conteúdo a ação principal».
O presente procedimento cautelar constitui incidente de ação declarativa intentada anteriormente, movida pela ora requerente contra os ora requeridos, impondo-se averiguar se o procedimento se destina a acautelar o efeito útil dessa ação, aferindo se esta tem por fundamento o direito que a requerente visou acautelar através do procedimento.
Na ação declarativa, a autora pede a condenação dos réus a pagar-lhe determinado montante, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais que alega ter sofrido em resultado da violação pelos réus de direitos de personalidade, designadamente do seu direito ao repouso, baseando a pretensão indemnizatória em responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito.
Através do presente procedimento cautelar, por seu turno, visa a apelante obter a regulação provisória do seu direito ao repouso, requerendo sejam decretadas providências destinadas a fazer cessar a violação de tal direito. Ao requerer se imponha aos requeridos, a título cautelar, que garantam a completa insonorização da fração a partir das 23 horas e que procedam a todas as alterações necessárias a pôr termo ao ruído que constitui fonte de grave perturbação do direito ao repouso da requerente sob pena de multa, além de outras providências não concretamente especificadas visando a mesma finalidade, a apelante pretende evitar a prática de novos factos violadores do seu direito ao repouso, prevenindo a ocorrência de novos danos.
Ora, não poderá considerar-se que tal regulação provisória do direito da requerente ao repouso se destine a acautelar o efeito útil da ação declarativa, dado que nesta não foi peticionada a regulação definitiva desse direito, mas apenas a condenação dos réus ao pagamento de indemnização por danos decorrentes de factos ilícitos violadores daquele direito.
Analisando a pretensão deduzida pela apelante nesta sede cautelar, verifica-se que não respeita à reparação dos danos decorrentes da violação do direito ao repouso ou à eventual garantia da efetividade do direito a tal indemnização, designadamente por via da conservação do património dos devedores, antes visando a cessação da violação ilícita desse direito, o que configura um efeito jurídico diverso do pretendido com a tutela jurisdicional peticionada na ação.
As providências requeridas no presente procedimento, destinando-se a obter a cessação da violação do direito da apelante ao repouso, têm como finalidade a obtenção de resultado diverso daquele a que respeita a pretensão deduzida na ação, visando a regulação provisória de um direito cuja regulação definitiva não foi peticionada no processo principal e não constituindo a antecipação provisória de qualquer efeito jurídico decorrente do pedido nele formulado.
Assim sendo, não poderá considerar-se que as providências requeridas pela apelante configurem um meio para acautelar algum efeito jurídico pretendido com a ação, antes consistindo num fim em si mesmas, o que impõe se conclua, conforme considerou a 1.ª instância, que o presente procedimento cautelar não é instrumental relativamente à ação que constitui o processo principal.
Em anotação ao citado artigo 364.º, António Santos Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, págs. 422-423) afirmam: “Sem embargo das especificidades resultantes dos casos em que seja decretada a inversão do contencioso (artigo 369.º), é matricial ao procedimento cautelar a relação de dependência e de instrumentalidade relativamente a alguma ação ou execução que vise o reconhecimento ou a satisfação do direito em causa. Não bastará que o procedimento e a ação se baseiem no mesmo direito substantivo abstratamente considerado; a relação de instrumentalidade impõe que o procedimento vise a tutela antecipada ou a conservação do concreto direito cuja efetividade se pretende por via da ação principal. Por isso, o objeto da providência há de ponderar não apenas o direito em causa, mas especialmente a pretensão envolvida na causa principal. Embora não se exija uma perfeita identidade, a providência deve apresentar-se com uma função instrumental relativamente à medida definitiva.” Esclarecem os autores (loc. cit.) que a “falta de um adequado nexo de instrumentalidade levará à improcedência da pretensão cautelar”, acrescentando que se “a ação que for instaurada depois de decretada a providência não respeitar a mesma instrumentalidade, tal poderá determinar a caducidade daquela, atento o disposto no artigo 373.º, n.º 1, alínea a)”.
Assente que o presente procedimento cautelar não é instrumental relativamente à ação declarativa, a falta deste vínculo conduz, pelos motivos expostos, à improcedência da providência.
A decisão recorrida configura despacho proferido ao abrigo do disposto no artigo 590.º, n.º 1, do CPC, preceito do qual decorre, além do mais, que, nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente, sendo certo que, estando em causa um procedimento cautelar, impõe o artigo 226.º, n.º 4, alínea b), a respetiva apresentação a despacho liminar.
Mostrando-se o pedido manifestamente improcedente e determinando o artigo 590.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que tal vício conduz ao indeferimento liminar do requerimento inicial, mostra-se acertada a decisão recorrida.
Nesta conformidade, improcede totalmente a apelação.

Em conclusão: (…)


3. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
Notifique.

Évora, 27-10-2022
(Acórdão assinado digitalmente)
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite
(Relatora)
Vítor Sequinho dos Santos
(1.ª Adjunto)
José Manuel Barata
(2.º Adjunto)