Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1915/13.1TASTB.E2
Relator: ANTÓNIO JOÃO LATAS
Descritores: CRIME DE BURLA
CONDUTA ASTUCIOSA
Data do Acordão: 06/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
1. Pode dizer-se que o agente atuou astuciosamente, com manha, com malícia, para efeitos do preenchimento típico do crime de burla previsto no art. 217.º nº1 do C. Penal, sempre que a situação concreta em que o agente envolve o sujeito passivo encerra erro ou engano juridicamente relevante provocado por ele de forma adequada a levar este último - enquanto sujeito concreto no contexto em que se situa -, à disposição patrimonial pretendida.

2. Não deixa de ser astuciosa a conduta do agente que se apresente parco em palavras e atos perante o sujeito passivo, desde que no circunstancialismo concretamente verificado essa forma de agir seja por ele adotada por se mostrar adequada a criar naquele o erro ou engano pretendidos.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

I. Relatório

1. – Nos presentes autos que correm termos na Secção criminal (J2) da Instância Local de Setúbal, da Comarca de Setúbal, foi julgada em processo comum com intervenção do tribunal singular, A., solteira, nascida em 21 de Julho de 1979, natural da Covilhã, residente em Poceirão, Palmela, que fora pronunciada pela prática de um crime de burla, na forma consumada p. e p. pelo art. 217.º, n.º1 do Cód. Penal, na sequência de requerimento de abertura de instrução da assistente, A., Unipessoal, Lda.

2. A assistente formulou pedido de indemnização civil contra a arguida, ora demandada, peticionando a condenação desta no pagamento da quantia de total de € 780,00 (setecentos e oitenta euros), a título de ressarcimento dos danos patrimoniais por ela sofridos em consequência do crime de burla de que foi vítima, acrescidos de juros legais contados, à taxa legal, desde a data da notificação do pedido até efetivo e integral pagamento.

3. - Realizada a Audiência de discussão e julgamento, o tribunal a quo condenou a arguida como autora material de um crime de burla simples. p. e p. pelo art.º 217.º. n.º1 do Cód. Penal na pena de sete (7) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um (1) ano a contar da data do trânsito em julgado desta sentença, com regime de prova assente num plano de reinserção social, elaborado e vigiado pelos serviços da DGRSP, nos termos previstos nos artigos 53.º e 54.º do Cód. Penal.

4. – O MP veio interpor recurso da decisão condenatória em matéria penal, no exclusivo interesse da arguida, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões, que se transcrevem:
«CONCLUSÕES:
1. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida nos presentes autos que condenou a arguida A. pela prática de um crime de burla, p. e p. pelo art. 217º, nº 1, do Código Penal.

2. Não obstante o merecido respeito devido a posição contrária, considera-se que a matéria de facto dada como provada na douta sentença em crise é insusceptível de integrar a prática do citado ilícito criminal ou de qualquer outro, não se mostrando preenchidos os elementos objectivos do tipo de crime, pelo que a arguida deveria ter sido absolvida da prática do mesmo.

3. Entende o Ministério Público que, no caso concreto, [não] ocorreu violação do disposto no art. 217º, nº 1, do Código Penal.

4. "Se é verdade que não existe ilicitude penal que não pressuponha uma concomitante ilicitude civil também verdade é que a fronteira de Ilicitude penal apenas surge, quando, dentro de um território material civilmente relevante, surgem elementos diferenciadores específicos que são o valor acrescentado do ilícito penal. O que não acontece no caso vertente. "- sic. Fls. 60.

5. Reportando-se à conduta típica e nexo de imputação que caracterizam o crime de burla, escreve-se no Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 292 que a burla constitui "(. . .) um crime material ou de resultado, cuja consumação depende da verificação de um evento que se traduz na saída dos bens ou valores da esfera de disponibilidade fáctica do legítimo detentor do mesmo ao tempo da infracção."

6. E prossegue dizendo que "(..) por outro lado, a burla integra um delito de execução vinculada, em que a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma muito particular forma de comportamento. Traduz-se ele na utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, a leva a praticar actos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios. "

7. Mas não basta o simples emprego de um meio enganoso, tornando-se necessário que ele ''( . .) consubstancie a causa efectiva da situação de erro em que se encontra o indivíduo. De outra parte, também não se mostra suficiente a simples verificação do estado de erro: requer-se, ainda, que nesse engano resida a causa da prática, pelo burlado, dos actos de que decorrem os prejuízos patrimoniais":

8. Deste modo, "( . .) tratando-se de um crime material ou de resultado, em que a consumação passa por um duplo nexo de imputação objectiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de actos tendentes a uma diminuição do património (próprio ou alheio) e, depois, entre os últimos e a efectiva verificação do prejuízo patrimonial"- cf. A. M. Almeida Costa, Comentário Conimbricense ao Código Penal, tomo II, pág. 293.

9. Mas, importa, ainda, considerar que se exige que o erro ou engano em que caiu o burlado tenha sido astuciosamente provocado pelo agente, que este tenha usado um meio engenhoso para enganar ou induzir em erro a sua vítima.

10. Nessa linha dir-se-á que ''( . .) importa que o comportamento do agente seja convincente e hábil quanto baste para iludir o cuidado que, nesse domínio de actívidade, é exigível e normalmente existente em cada um." - cfr. Acórdão da Relação do Porto, de 06/06/2001, in www.dgsi.pt.

11. Parece resultar, assim, que para que se verifique o crime de burla, além do prejuízo ou benefício ilegítimos, é necessário que o ofendido tenha sido "astuciosamente" enganado pelo agente do crime, não bastando um qualquer engano.

12. Ora, no caso dos presentes autos, não se verificou qualquer astúcia na conduta assumida pela arguida, que se terá deslocado a uma loja de compra e venda de ouro usado, terá apresentado um fio para venda, que terá sido aceite, mediante a assinatura de uma declaração imposta pelo comprador, após o que foi pago o preço proposto.

13. De facto, parece-nos que a declaração assinada pela arguida não comporta em si mesma qualquer astúcia com vista ao engano. Outrossim, trata-se de uma declaração pré-elaborada pela assistente, apresentando-se como condição imposta para a concretização da venda, mas que em nada garante a propriedade do bem por parte de quem o vende, sendo, portanto, quanto a nós, uma declaração inócua a nível penal.

14. Outro seria o caso, se tivesse sido a própria arguida, de sua iniciativa, a apresentar uma qualquer declaração atestando ser a proprietária da peça ou fazendo-se acompanhar de testemunhas que atestassem a sua versão. Nesse caso, seria a própria a arguida a usar da astúcia para causar o estado de erro ou engano à vítima.

15. Ora, não é esse, claramente, o caso dos presentes autos.

16. Como bem refere o douto despacho de não pronúncia "Será ingénuo... assumir que todas as pessoas que entram nos diversos estabelecimentos da assistente transportando objetos de ouro para vender terão adquirido tais bens por via lícita. E pretender que a mera declaração do vendedor é garantia suficiente da licitude de tal proveniência não é razoável. 11

17. Não se pode esquecer ou querer imputar à arguida o risco associado à actividade desenvolvida pela assistente que, como bem se sabe, é um risco elevado.

18. Bastará, para tanto, atender ao facto de que a assistente se dedica à aquisição de peças em ouro, a completos estranhos, a um preço que lhes permite obter lucro.

19. Na verdade, a arguida não usou de qualquer astúcia ou engano relevante para proceder à venda do fio em ouro. Limitando-se a assinar uma declaração que lhe foi fornecida pela própria assistente como condição necessária à realização do negócio.

20. A simples assinatura de uma declaração pela arguida dizendo que o fio seria de sua propriedade não pode ser considerada astuciosa ou enganadora, já que é condição imposta pela assistente (e não pela arguida) para proceder à compra.

21. Parece-nos, pois, que não poderemos falar aqui de um engano que possa considerar-se astuciosamente provocado pela arguida e, por isso, com relevância criminal.

22. Tal como em qualquer incumprimento contratual, há um engano mas cuja relevância não assume contornos criminais. Essa situação gerará, antes, responsabilidade civil ou contratual - por a arguida ter firmado com a assistente um contrato de compra e venda de bem alheio - a ser tratada nos tribunais civis, onde os incumpridores deverão eventualmente ser accionados.

23. Aliás, não tivesse sido a pronta actuação da PSP, a queixa que deu origem ao presente inquérito nunca teria existido, e os legítimos proprietários do fio de ouro continuariam privados do seu bem.

24. A atender, ainda, que nos parece que a responsabilidade associada à actividade desenvolvida por estes estabelecimentos deverá ser acrescida de cuidados extremos, caso contrário poderemos também aqui, em abstracto, equacionar a eventual verificação do tipo de ilícito previsto no art. 231º, nº 2, do Código Penal.
25. Ora, no âmbito do direito penal há que manter em mente o subjacente princípio da intervenção mínima ou subsidiária na protecção dos bens jurídicos, sendo que apenas alguns comportamentos antijurídicos são subsumíveis a ilícitos criminais.

26. Neste sentido, refere Figueiredo Dias, in Jornadas de Direito Penal, Revisão do Código Penal I, Lisboa, CEJ, que 'todo o direito penal é (e só é) segundo a sua função, um direito de tutela subsidiária de bens jurídicos. 11

27. Com efeito, nem todos os comportamentos contrários às regras de vivência em sociedade, têm gravidade suficiente para integrar a prática de crime.

28. Consideramos, por isso, salvo o muito e devido respeito por opinião diversa, que a matéria dada como provada merece tutela civil, não merecendo tutela penal, por falta do preenchimento dos elementos objectivos do crime de burla.

29. Ora, não se quer com estas alegações legitimar a actuação da arguida que, naturalmente, merece censura. No entanto, na nossa modesta opinião, a censura associada a essa conduta é meramente civil, não logrando ultrapassar o limite em que o direito penal assume relevância.

30. Nesta conformidade, é nosso entendimento que a douta sentença em crise,incorrectamente, integrou a factualidade dada por provada no tipo previsto no art. 217º do Código Penal, quando, a nosso ver, deveria ter considerado que a conduta levada a cabo pela arguida era atípica, devendo, por isso, tê-la absolvida da prática do ilícito imputado no requerimento de abertura de instrução.

Nestes termos considera o Ministério Público que deverá ser dado provimento ao presente recurso e ser a sentença em crise, substituída por uma outra que absolva a arguida da prática do crime que lhe vinha imputado, por atipicidade da conduta empreendida.»

5. – Notificada, veio a arguida apresentar resposta ao Recurso interposto pelo Ministério Público, aderindo na íntegra ao seu objeto, fundamentos e conclusões.

6.- Nesta Relação, o senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

7. – A sentença recorrida (transcrição parcial):
«Factos Provados

Discutida a causa e com relevância para a boa decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos (1):

c) Na sequência da prova produzida em julgamento, o Tribunal procedeu ainda a meras concretizações ou explicitações da matéria factual imputada à arguida, não tendo, porém, autonomia na aferição da sua responsabilidade criminal, por não ter «relevo para a decisão da causa» na fórmula utilizada pelo art.° 358.°, n.º 1 do C.P.P ..

Da pronúncia em especial

1. No dia 03 de Dezembro de 2012, a arguida dirigiu-se ao estabelecimento de que a ofendida A,, Unipessoal, Lda, é detentora na cidade de Setúbal, situado na Avenida 5 de Outubro…, com o propósito de negociar com a ofendida, na pessoa da respectiva responsável de loja, ML, a venda de um fio de malha barbela, em ouro amarelo, com 29,24 gramas, que disse ser seu.

2. Depois de examinar e testar a indicada peça e de se certificar que a mesma ostentava os contrastes oficiais em uso, a referida responsável da ofendida, ML, acordou com a arguida a compra dessa peça pelo preço de € 780,00 (setecentos e oitenta euros), em atenção, essencialmente, ao seu peso bruto em ouro (29,24 gramas).

3. Tal soma monetária foi logo entregue à denunciada contra a entrega da aludida peça e a assinatura de um documento intitulado «Declaração», datado desse mesmo dia (03-12-2012), donde consta, além da identificação de ambas as partes no relatado negócio e do rol de peças vendidas, uma declaração da arguida, enquanto vendedora, onde esta declara que «o{s) objecto{s) transaccionado{s) é/são de minha propriedade. Foi/foram adquirido{s) licitamente e assumo toda a responsabilidade de quaisquer consequências que possam advir da venda efectuada. Mais declaro, que recebi o valor total acima referido.»

4. Sucede que, no dia seguinte à relatada transacção, mais precisamente em 04-12-2012, elementos da Esquadra de Investigação Criminal da PSP. de Setúbal irromperam no dito estabelecimento da ofendida A…, Unipessoal, Lda e, já no seu interior, procederam à apreensão do referido artefacto em ouro, com a justificação, de que o mesmo, à data da respectiva venda, não era pertença da arguida, que dele se havia apropriado contra a vontade do seu legítimo dono.

5. A arguida, ao dizer que o objecto em ouro era seu e ao apor a sua assinatura na citada declaração, que, além de afirmar isso mesmo (o{s) objecto{s) transacionado{s) é/são de minha propriedade»), assevera a boa proveniência desse artefacto (««adquirido{s) licitamente»), agiu com o propósito deliberado de fazer crer à ofendida - na pessoa da responsável da dita loja - de que ela era a legítima dona do mesmo, quando, na realidade, não era, por forma a obter, como obteve, a entrega do valor correspondente em dinheiro, bem sabendo - ou, pelo menos, não devendo ignorar - que ao actuar da forma descrita havia um risco sério (porque deveras previsível) de esse objecto poder vir a ser confiscado, como, de resto, veio a suceder, e que, desse modo, obtinha um enriquecimento ilegítimo, causando, consequentemente, um prejuízo patrimonial à ofendida no mesmo montante.

6. A arguida agiu de forma livre, voluntária e conscientemente, com a intenção de obter um enriquecimento ilegítimo e de causar à ofendida um prejuízo patrimonial, em montante nunca inferior a € 780,00.

7. A arguida sabia que a sua conduta era proibida e, como tal, punida por Lei.

8. A arguida confirmou parcialmente os factos supra descritos.

Do pedido de indemnização civil em especial
9. Em consequência dos factos supra descritos, cometidos pela arguida, ora demandada, a demandante A…, Unipessoal, Lda, sofreu um prejuízo no valor de € 780,00 (setecentos e oitenta euros), dado que procedeu à entrega de tal quantia à demandada, em contrapartida da entrega do referido fio de ouro, o qual, porém, depois veio a ser apreendido pela PSP., por ter sido subtraído pela demandada contra a vontade do seu legítimo dono, sem que aquela tivesse devolvido tal quantia, permanecendo, assim, a demandante A…, Unipessoal, Lda, com um prejuízo no valor de € 780,00 (setecentos e oitenta euros).

Das condições pessoais, familiares e sócio-económicas da arguida e seus antecedentes criminais em especial

10. A arguida nasceu a 21-07-1979, e está solteira.

11. A arguida vive sozinha; tem três filhos menores de idade, mas estão institucionalizados.

12. A arguida trabalha numa lavandaria, auferindo uma quantia mensal de € 620,00.

13. Paga, a título de renda, a quantia mensal de € 150,00.

14. Suporta além disso, a título de despesas correntes com água, luz e gás, em média, a quantia mensal de € 100,00.

15. Como habilitações literárias, a arguida tem o 7.º Ano de Escolaridade (incompleto).

16. A arguida regista antecedentes criminais averbados no seu certificado de registo criminal, nos termos seguintes:

• Por sentença datada de 24-03-2009, proferida no âmbito do processo abreviado n.º---/05.9PBSTB, do 1.º juízo Criminal do Tribunal judicial de Setúbal, transitada em julgado em 23-04-2009, por factos cometidos em 25 de Agosto de 2005, a arguida foi condenada pela prática de um crime de roubo, na pena de 50 dias de prisão, substituída na sua execução por 50h de trabalho a favor da comunidade.

• Por sentença datada de O5-05-2012, proferida no âmbito do processo abreviado n.º---/11.5PESTB, do 1.º juízo Criminal do Tribunal judicial de Setúbal, transitada em julgado em 13-06-2012, por factos cometidos em 26 de Agosto de 2011, o arguido foi condenado pela prática de um crime de furto qualificado, na pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, com regime de prova.

• Por sentença datada de 07-06-2013, proferida no âmbito do processo comum singular n.º---/11.3PFSTB, do 2.º juízo Criminal do Tribunal judicial de Setúbal, transitada em julgado em 30-09-2013, por factos cometidos em 23 de Agosto de 2011, o arguido foi condenado pela prática de um crime de furto qualificado, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de 1 ano e 6 meses, com regime de prova.
*
Factos Não Provados
Com relevância para a boa decisão da causa, inexistem factos por provar.
*
Motivação da Decisão de Facto e Exame Crítico da Prova Produzida
(…)
Os meios de prova utilizados por este Tribunal para formar a sua convicção (positiva ou negativa) dos factos, foram os seguintes:
(…)
Vejamos então, em detalhe, como os diversos meios de prova produzidos, contribuíram para a formação [positiva e negativa] da convicção do Tribunal, relativamente aos factos relevantes para a boa decisão da causa.
É que a sentença, para além de dever conter a indicação dos factos provados e não provados e a indicação dos meios de prova, há-de conter, também, «os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituíram o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse no sentido de considerar provados e não provados os factos da acusação, ou seja, ao cabo e ao resto, um exame crítico, sobre provas que concorrem para a formação da convicção do tribunal num determinado sentido» - [Ac, S.T.J., de 13-02-92, C], Tomo 1, p. 36, e Ac. T.e., de 2-12-98, DR na Série de 5-03-99].

Assim, deve esclarecer-se que os factos dados como provados vertidos nos pontos 1) a 4) colheram a sua demonstração positiva com base no depoimento prestado pela própria arguida - na segunda sessão, dado que havia faltado injustificamente à primeira sessão -, nos termos do qual confirmou tais factos, de uma forma que, na sua essência, se mostrou credível; efectivamente, a arguida corroborou em juízo que, de facto, se dirigiu à referida loja de ouro, com vista a vender um fio de ouro que havia subtraído contra a vontade do seu legítimo dono, tendo para esse efeito, feito crer à empregada da loja que ela era a legítima dona da jóia, tendo aliás assinado uma declaração escrita, nos termos da qual atestava ser a dona do referido fio de ouro; mais confirmou que a empregada da loja lhe entregou, em contrapartida da venda do fio, uma quantia monetária, cujo valor já não consegue precisar, mas que concede que andaria em torno de € 780,00, quantia esta que, precisou, ainda não devolveu à loja, pese embora depois a P.S.P. tivesse apreendido tal fio, na sua presença; por fim, confirmou que exibiu o seu cartão de cidadão à empregada da loja do ouro, bem como confirmou ser a sua assinatura a que se encontra aposta na declaração de fls. 9.

(…) precisando que, para a salvaguarda deste tipo de situações, a firma implementou uma obrigação dos particulares vendedores, previamente, assinarem uma declaração escrita onde atestam a fonte lícita e a propriedade do ouro que pretendem vender, o que asseverou que foi observado no caso concreto; mais explicou que a compra de ouro aos particulares tem específicas regras que resultam da lei, como seja a obrigação de comunicarem tal compra à P.J., aguardando um prazo legal, para poderem desfazer de tal ouro; por fim, esta testemunha confirmou que, em contrapartida da compra de tal fio, a sua firma despendeu uma quantia de € 780,00 que entregou à arguida, sendo que depois tal jóia veio a ser apreendida pela PSP., sem que a arguida tivesse devolvido tal quantia, permanecendo, assim, aquela firma em prejuízo de igual montante.

Por sua vez, a testemunha ML, empregada da loja da firma ofendida, também confirmou tais factos, designadamente e com relevo, declarou que a arguida se dirigiu à sua loja, pretendido vender um fio de ouro, cujas características oficiais se assegurou, asseverando-lhe a proveniência lícita e ser a legítima dona de tal fio, tendo para esse efeito assinado uma declaração escrita, onde se certificava que ela era a dona do referido fio de ouro, fazendo com que ela acreditasse estar a comprar um fio de ouro à sua verdadeira dona, tendo-lhe, por isso, entregado uma quantia de € 780,00, atento o peso registado; mais esclareceu que não colocou os dados do cartão de cidadão da arguida na referida declaração, por distração, dado que estava a falar com a aquela sobre a filha dela, tendo outrossim dito que por causa da caneta (Ele) utilizada a inscrição do valor pago se mostra mais carregado do que a restante escrita; sendo que depois, declarou esta testemunha, a arguida voltou à loja, acompanhada de um agente da PSP., onde este lhe informou que a jóia que havia adquirido, tinha sido subtraída pela arguida, contra a vontade do seu legítimo dono, pelo que a apreendeu, sem que, no entanto, a arguida tivesse procedido à restituição de tal quantia, permanecendo, assim, a firma em prejuízo de igual montante.

Por fim, a testemunha NP, agente da PSP., confirmou que na sequência de uma investigação à arguida, veio a apurar que esta havia vendido um fio de ouro, que subtraiu contra a vontade do seu legítimo dono, à loja da firma arguida, pelo que, acompanhado pela arguida, se deslocou à referida loja para apreender tal jóia, o que veio a suceder, contando com todo o auxílio da empregada da loja.
(…)
Por sua vez, deve dizer-se que resultou do circunstancialismo material fáctico apurado à luz das regras da experiência comum e da normalidade da vida que a arguida, da forma como actuou, fê-lo com cognoscibilidade e intencionalidade (3) (4), querendo actuar da descrita forma, com o propósito concretizado de se locuptar de uma quantia monetária pertença da ofendida, através da venda de um fio de ouro, que sabia não ser de sua pertença - dado que o havia previamente subtraído contra a vontade do seu legítimo dono - , tendo, apara aquele propósito, induzido deliberadamente e de forma ardilosa (através da assinatura de uma declaração escrita onde atesta ser a verdadeira dona do referido fio de ouro) em erro ML, enquanto representante da firma ofendida, sobre a identidade do titular desse fio de ouro, querendo destarte locuptar-se no valor monetário de € 780,00, em prejuízo do seu património, dado que estava ciente que tal fio poderia, como veio, ser apreendido pelas autoridades, o que logrou obter, estando ciente de que tal conduta era proibida e punível por lei, assim se dando como provada a matéria de facto vertida nos pontos 5) a 7).
(…)
b) DE DIREITO
Do Enquadramento Jurídico-Penal da conduta da Arguida
(…)
Do CRIME DE BURLA EM ESPECIAL
Dispõe, nesta sede, o art.º 217.º do Cód. Penal que comete um crime de burla:
«1 - Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
2 - A tentativa é punível.
3 - O procedimento criminal depende de queixa.
4 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 206.º e 207.º».

O bem jurídico protegido pela incriminação é o património de outra pessoa e não a verdade do comércio, sendo que, para efeitos de penais, o património inclui, numa concepção jurídico económica, todos os direitos, as posições jurídicas e, bem assim, as expectativas jurídico-económicas de património - [LK-TIEDEMANN, anotações 28.ª a 32.ª antes do § 263.º, SS-CRAMER, anotações 82.ª a 98.ª ao § 263.º, STRATENWERTH/JENNY, 2003: 356 a 359, e BK-ARZT, anotações 19.ª a 29.ª e 86.ª a 117.ª ao artigo 146.º; José de SOUSA BRITO, 1983: 158 e 159; CARLOS ALEGRE, 1988: 7 a 9; FERNANDA PALMA e RUI PEREIRA, 1994: 329 a 331, José António BARREIROS, 1996: 175; e António Manuel ALMEIDA COSTA, anotação 6.ª ao artigo 217.º, in CCCP, 1999, cujo conceito «jurídico-criminal de património» sublinha a vinculação aos fins da tutela penal, como também faz, aliás, a doutrina que defende a concepção jurídico-económica, apud de PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, in op. cit., p. 598 e 599].
Em termos dogmáticos, deve dizer-se que o crime de burla configura um crime de dano [quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido - ou seja, porque à sua realização típica é essencial o conceito de prejuízo patrimonial] e de resultado [quanto à forma de consumação do ataque ao objecto da acção].

Ao nível da acção típica, segundo José António BARRElROS, in Crimes contra o Património, a burla é um caso de acção complexa, pois é composto pelos seguintes elementos: (i) objectivos - o processo enganatório astucioso (ii) subjectivos - a manipulação psíquica do intelecto da vítima (erro ou engano sobre factos) (iii) subjectivos - a manipulação consequente da vontade da vítima, afectando a sua capacidade de auto-determinação, determinando-a a praticar actos que de outro modo não praticaria (iv) objectivos - os actos da vítima.

Desde já se esclareça que o prejuízo do património da vítima ou de terceiro não tem a ver com a acção típica, mas sim com o evento. Há, por assim dizer, um enlace entre uma conduta do agente e uma conduta da vítima: aquele gera o processo enganatório, esta pratica os actos para os quais é determinada. Trata-se, além disso, de uma acção que o legislador descreve com pormenor, sendo assim um tipo de crime de forma vinculada.

Ainda no domínio do tipo objectivo, deve precisar-se que o ofendido neste crime, é a pessoa cujo património ficou empobrecido, que pode não ser a mesma pessoa que é enganada [é a chamada burla triangular, Dreiecksbetrug, referida por SS-CRAMER, anotação 65.º ao § 263.º - apud de Paulo PINTO DE ALBUQUERQUE, op. cito P. 599]. O ofendido pode ser uma pessoa singular ou colectiva, pública ou privada [d., neste sentido, Paulo PINTO DE ALBUQUERQUE, op. cito p. 599, e José António BARREIROS, op. cito pp. 151 e 152].

Sendo que o tipo objectivo deste tipo-de-ilícito consiste justamente na determinação de uma pessoa, por meio de erro ou engano sobre factos que o agente astuciosamente provocou, à prática de actos que causem prejuízo patrimonial a essa pessoa ou a um terceiro.

O elemento típico de prejuízo patrimonial define-se em função do bem jurídico do património. É prejuízo patrimonial todo o empobrecimento do património do ofendido, descontado o proveito que ele tenha obtido em consequência da conduta do agente.

O agente deve ter uma conduta enganosa e astuciosa. Trata-se, como já se indicou supra, de um crime de execução vinculada - [d. Jorge de FIGUEIREDO DIAS, 2007: 308, Américo TAIPA DE CARVALHO, 2004: 97 - apud de Paulo PINTO DE ALBUQUERQUE, op. cito p. 599]. Ao nível do recorte conceptual do processo enganatório, várias são as precisões que importará introduzir, conquando de forma necessariamente resumida. Primeiro, deve notar-se que existe uma relação causal entre estes requisitos, pois que o erro ou engano deve ser gerado através de astúcia, sendo esta um instrumento para se alcançarem aqueles. Sem astúcia a conduta do agente é atípica, o agente terá omitido a prática de um acto típico instrumental essencial para obter um efeito legalmente relevante; sem erro ou engano pode ter havido tentativa, se o agente não tiver logrado o efeito para cuja ocorrência se empenhou com a astúcia.

Relevante, assim, é apurar-se se a vítima, sujeita ao processo enganatório, agiu conforme aos desígnios do agente. Trata-se de recorrer a um critério objectivo, aquele que atende a um facto constatável - o efeito a nível da determinação da vítima - e não a uma situação meramente subjectiva, pois não considera um estado psíquico de convencimento, cuja reconstituição se afiguraria impossível de alcançar. Ponto é que burla existirá, conquanto na forma tentada, numa situação em que o agente, convencido pelo erro ou engano induzido pelo agente a efectuar uma prestação danosa, vem a desistir de tal intento.

Por outro lado, deve esclarecer-se que o engano ou erro consiste na provocação de uma falsa representação da realidade. O engano pode ser provocado por várias formas: por palavras, gestos ou actos concludentes do agente do crime. São actos concludentes aqueles que têm um sentido social inequívoco, que não corresponde à vontade do agente do crime, mas que ele aproveita para enganar o burlado. Há engano quando o agente refira factos falsos. Há ainda engano quando o agente dissimule factos verdadeiros relevantes.

Por seu turno, não há erro nem engano quando o queixoso não procede com a diligência mínima que lhe é exigível no tráfego comercial, sendo que a regra básica para delimitação do dever de diligência será a seguinte: o dever de diligência é tanto maior quanto maior for o poder económico da vítima - [SCHUBARTHjALBRECHT, anotações 31.ª a 33.ª, ao artigo 146.º, e BK-ARZT, anotações 50.ª e 51.ª, e 63.ª a 71.ª, b), ao artigo 146.º - apud de Paulo PINTO DE ALBUQUERQUE, op. cito p. 599]. Vale assim por dizer que apenas haverá burla se a vítima se tenha comportado com a diligência e boa-fé exigíveis a um bonus pater familiae (lo).

CO) Como ensina ANTÓNIO MANUEL ALMEIDA COSTA, in CCCP, Vol. II, p. 300: «a consumação do delito depende, não de um qualquer domínio-da-erro (ainda que efectivo), mas de um domínio-da-erro jurídico-penalmente relevante», tendo em consideração uma restrição adicional do desvalor de acção subjacente à burla, cuja definição remete para o princípio da boa-fé (sem sentido objectivo): «uma exigência de consideração pelos interesses legítimos da outra parte, nele radica o decisivo critério da lealdade que deve acompanhar as relações das pessoas no comércio jurídico e, portanto, o limite da relevância do domínio-da-erro no quadro da burla» - [Cf. o Ac. do STJ, de 04-07-2007, relatado por MANUEL SIMAS SANTOS, disponível em www.dgsi.pt.

Também não há erro nem engano quando o queixoso conhece o modo de actuação do agente, sem que nenhuma informação relevante lhe tenha sido escondida, nem tão-pouco há erro ou engano quando o agente procura enganar o ofendido com ilusões, feitiçarias, bruxarias ou magias, uma vez que o erro ou engano tem de incidir sobre «factos», sendo que nestes casos, o meio é sempre inapto e, portanto, se verifica uma tentativa inidónea (impune), independentemente das crendices do ofendido - [BK-ARZT, anotação 32.ª ao artigo 146.º].

A astúcia (11), por sua vez, consiste no aproveitamento de uma vantagem cognitiva do agente sobre o burlado, que lhe permite manipular a vontade do burlado [diversamente, António Manuel ALMEIDA COSTA, anotação 16.ª ao artigo 217.º, in CCCP, 1999, considerando que existe um «domínio-da-erro jurídico-penalmente relevante», cujo conteúdo útil é, afinal, definido pelas regras de direito privado sobre a boa fé objectiva]. Esta vantagem presume-se, em particular, nos profissionais de um ramo especializado do comércio, cujo grau de especialização técnica é inalcançável pelo cidadão médio. A astúcia não exige uma encenação por parte do agente do crime - [ACTAS CP EDUARDO CORREIA, 1979: 138, José de SOUSA BRITO, 1983: 140, J. MARQUES BORGES, 1983: 24, CARLOS ALEGRE, 1988: 109, António Manuel ALMEIDA COSTA, anotação 15.ª ao artigo 217.º, in CCCP, 1999, Alberto MEDINA DE SEIÇA, anotação 5.ª ao artigo 341.º, in CCCP, 2001, Paulo PINTO DE ALBUQUERQUE, in op. cito p. 600; mas contra José António BARREIROS, 1996: 154 e 165].

A conduta enganosa e astúcia do agente deve ser adequada à prática de certos actos pelo burlado e estes actos do burlado devem ser causa adequada da verificação do prejuízo patrimonial do ofendido, verificando-se um duplo nexo de causalidade [SS-CRAMER, anotação 77.ª ao § 263.º, também identificado como um triplo nexo de causalidade entre a conduta astuciosa e o engano, entre o engano e o cometimento de actos pelo burlado e entre estes actos e o prejuízo patrimonial do ofendido, segundo FERNANDA PALMA e RUI PEREIRA, 1994: 323 e 324, ou mesmo como um quádruplo nexo de causalidade entre a conduta astuciosa e o engano, entre o engano e a alteração da capacidade volitiva do burlado, entre esta alteração da vontade do burlado e o cometimento de actos pelo burlado e entre estes actos e o prejuízo patrimonial do ofendido, segundo José António BARREIROS, 1996: 176].
(…)
Analisado que está o tipo incriminador, importa, desta feita, subsumir juridicamente a actuação da arguida, tendo por base os factos dados como provados.

Ora, atenta a matéria de facto dada como provada a respeito, deve concluir-se que os elementos objectivos deste tipo de crime de burla, (12), foram preenchidos com a descrita conduta empreendida pela arguida - dado que esta, induzindo a vítima (in casu, ML, que estava a representar a firma ofendida A…, Lda) em erro sobre a pessoa do dono do referido fio de ouro, através de uma declaração feita por escrito (a qual foi disponibilizada em formulário pela própria ofendida para justamente se precaver da proveniência do ouro, não sendo, destarte e quanto a nós, exigível que a assistente, de acordo com a postura exigível ao bonus pater familiae, tivesse feito outras diligências para

C2) Como se defendeu no Acórdão do STJ, de 19-10-1994, relatado por relatado por TEIXEIRA DO CARMO, disponível em www.dgsi.pt. quando não há coincidência entre as pessoas das vítimas do furto e da burla: «(, . .). Quem furta vales do correio, lhes falsifica a assinatura do titular e os passa a terceiro, em pagamento de mercadorias, comete três crimes, em concurso real - furto, falsificação de documento e burla. (. . .].» comprovar a proveniência lícita do objecto, porquanto tal exigência seria manifestamente incompatível com o normal funcionamento do mercado e o princípio da confiança e boa fé que devem nortear as relações comerciais entre as pessoas - cf a declaração de fls. 9), nos termos da qual se assumiu como sendo a legítima dona de tal artigo de ouro, fazendo acreditar a vítima uma realidade que bem sabia não corresponder à verdade, moldando, dessa forma ardilosa, a sua vontade no sentido de beneficiar da entrega de uma quantia monetária, in casu, € 780,00 [cf neste exacto sentido, o Acórdão da Relação de Évora datado de 20-05-2014, relatado pelo ilustre desembargador ALBERTO JOÃO BORGES, que foi proferido nos presentes autos a fls. 141 a 155, acolhendo-se nesta sentença o seu douto entendimento, mormente quando nele se expende as considerações seguintes: «Em síntese, se num primeiro momento a postura da arguida não passa de uma mentira, num segundo momento a sua postura. assumindo por escrito que era a dona de tal objecto. configura já alguma habilidade. no sentido de convencer a funcionária - como convenceu (e não faz sentido pretender que não convenceu. pois se assim não fosse certamente não aceitaria a compra, consciente das consequências da compra de coisa alheia) - de que ela era, de facto, a dona de tal objecto. razão que determinou o pagamento do seu preço. Não deixará de se acrescentar: por um lado. que o negócio de compra e venda de ouro é uma actividade perfeitamente lícita. pelo que não faz qualquer sentido questionar a boa fé da assistente ao adquirir. nas circunstâncias descritas e com as cautelas supra descritas (quanto à sua proveniência). o objecto em causa; aliás, sabido como é que todas as compras são controláveis pela PJ, ex vi DL 42/2009, de 12.02, que interesse teria a assistente em aceitar a venda se soubesse ou admitisse que tal origem seria ilícita?; por outro, que - contrariamente ao decidido - não era exigível à assistente. de acordo com a postura exigível ao bonus pater familiae, que tivesse feito outras diligências para comprovar a proveniência lícita do objecto, o que seria e é incompatível com o normal funcionamento do mercado e o princípio da confiança e boa fé que devem nortear as relações comerciais entre as pessoas.» ¬(sublinhados nossos)], sofrendo a ofendido A., Lda, o correspondente empobrecimento, por tal quantia ter sido entregue sem real contrapartida, dado que depois o referido fio de ouro foi apreendido pela PSP. por ter sido previamente subtraída, pela arguida, contra a vontade do seu verdadeiro dono -, sendo que tal crime foi ainda objecto de plena consumação, dado que a arguida logrou exercer o domínio de facto sobre a quantia monetária que se locuptou ilegitimamente e contra a vontade do seu dono, sofrendo este o correspondente empobrecimento (que se mantém) nos termos supra indicados.

O tipo de dolo que a arguida preencheu com a sua conduta corresponde, sem margens para dúvidas, ao dolo directo - [d. art.º 14.º, n.ºl. do Código Penal: «Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com a intenção de o realizar>]. Corresponde, grosso modo, à intenção criminosa e nele o agente prevê e tem como fim a realização do facto criminoso.

Com efeito, a arguida sabia que não era a legítima dona do fio de ouro, fazendo crer - de forma ardilosa através da assinatura de uma declaração escrita onde atestou ser a legítima dona do fio - a ofendida que o era, levando destarte aquela a entregar-lhe uma seria muito provável que as autoridades viessem, como vieram, a apreender aquela jóia, não tendo restituído a quantia de que se locuptou, bem sabendo ainda que tal conduta não lhe era permitida e, mesmo assim, quis livremente agir do modo descrito.
(…) »

Cumpre agora apreciar e decidir o presente recurso.

II. Fundamentação
1. – Delimitação do objeto do recurso e poderes de cognição do tribunal ad quem.
É pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

No recurso interposto, o MP entende que a conduta da arguida descrita na sentença recorrida não preenche todos os elementos típicos do crime de burla p. e p. pelo artigo 217º nº1 do CPP por considerar que “… a declaração assinada pela arguida não comporta em si mesma qualquer astúcia com vista ao engano.”. Como diz, “Outro seria o caso, se tivesse sido a própria arguida, de sua iniciativa, a apresentar uma qualquer declaração atestando ser a proprietária da peça ou fazendo-se acompanhar de testemunhas que atestassem a sua versão. Nesse caso, seria a própria a arguida a usar da astúcia para causar o estado de erro ou engano à vítima.”

Impõe-se, pois, decidir do caráter típico da conduta pela qual a arguida vem condenada tendo em conta os fundamentos de direito invocados pelo MP recorrente e ainda pelo MP nesta Relação, uma vez que no parecer emitido se entende que a conduta não será típica por não constar da factualidade provada que foi um qualquer engano que determinou a assistente a comprar o objeto em causa.

2. Decidindo.
2.1.
São elementos objetivos do tipo fundamental do crime de burla p. e p. pelo 217º do C. Penal:
- Erro ou engano sobre factos astuciosamente provocados pelo agente;

- Que determine outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial.

O crime de burla ali previsto abrange, pois, situações em que o agente, com a intenção de conseguir um enriquecimento ilegítimo (próprio ou alheio), induz outra pessoa em erro, fazendo com que a última, por esse motivo, pratique atos que causam a si mesmo (ou a terceiro) prejuízos de caráter patrimonial, consistindo o património, globalmente considerado, o bem jurídico protegido.

Trata-se de um crime de resultado e exige-se um duplo grau de imputação objetiva na medida em que o preenchimento do tipo depende de ser a conduta enganosa do agente que determina o burlado à prática do ato de disposição patrimonial e de ser este ato que provoca o prejuízo patrimonial do próprio ou de terceiro (o lesado) -cfr A. M. Almeida Costa, comentário ao art. 217º do C. Penal in Comentário Conimbricense do Código Penal, II, p. 294-5.

Como aludido, o tipo legal exige que o erro ou engano sobre os factos que determinaram o burlado à disposição patrimonial tenha sido astuciosamente provocado pelo agente, pelo que este elemento integra a forma vinculada de execução do crime, legalmente prevista.

A questão colocada no recurso centra-se precisamente neste elemento do tipo objetivo, pois embora não ponha em causa que a arguida induziu em erro ou engano a assistente ao apresentar-se enganadoramente como dona do objeto em ouro, o MP recorrente entende que tal erro ou engano não foi provocado astuciosamente pela arguida, uma vez que esta se limitou a apresentar-se como dona do fio de ouro que pretendia vender à sociedade assistente e apenas assinou o documento escrito em que declara essa mesma qualidade, por este documento ter-lhe sido apresentado pela assistente. Como diz, seriam diferentes as coisas se tivesse sido a arguida a ter apresentado espontaneamente tal documento à assistente, assumindo a iniciativa de, por essa via, convencê-la da qualidade de proprietária por si invocada.

Vejamos.
2.1.1. Praticamente desde o início de vigência do C. Penal de 1982, tem levantado dúvidas na doutrina e jurisprudência a definição do sentido e alcance da exigência típica de que o erro ou engano que determina o burlado à disposição patrimonial empobrecedora seja provocado astuciosamente pelo agente. Sobre a questão pode ver-se a doutrina citada na sentença recorrida e, por todos, os acórdãos do STJ de 3.02.2005 (rel. Simas Santos), 20.12.2006 (rel. Armindo Monteiro) e 12.04.2007 (rel. Costa Mortágua), Acórdãos do TRC de 10.9.2008 (rel. Barreto do Carmo) e 13.12.2011 (rel. Orlando Gonçalves) e do TRL de 24.4.2012 (rel. Vieira Lamim), todos acessíveis em www.dgsi.pt..

Considerando que a exigência legal de que o agente atue astuciosamente afasta a suficiência típica do mero erro ou engano intencionalmente provocado por qualquer meio, afigura-se-nos, porém, que o tipo legal não exige a prática de atos materiais de encenação ou mise-en-scène destinados a facilitar o convencimento do sujeito passivo. Embora tal se discutisse na vigência do C.Penal de 1886, Luís Osório já defendia, relativamente ao artifício fraudulento a que se reportava o artigo 451º, que “Os atos que constituem o artifício não necessitam de ser, à face da nossa lei, manobras ou apresentar qualquer aparência material; isto em desconformidade do que acontece no direito Francês”- cfr Notas ao Código Penal Português, Coimbra Editora, 1925, p. 217. No código atual, seguimos o entendimento de Almeida Costa, segundo o qual “… a querela precedente não se justifica no âmbito do direito em vigor.”

Desde logo, a referência legal a atuação astuciosa não o exige, pois o leque relativamente amplo de significados que aquele qualificativo pode assumir não o liga necessariamente à prática de quaisquer manobras ou específica atividade material, conforme resulta da descrição do dicionário Houaiss, que define astúcia como “habilidade…para negociar com vantagens, esperteza, manha, sagacidade; habilidade de dissimular e usar artifícios enganadores e, com isso, obter vantagens às custas de outrem; malícia, treta, artimanha; (…) ardil … logro, trapaça, …manhoso, malicioso, sagaz, dissimulado”.

Por outro lado, perspetivando a burla como um “crime com participação da vítima” (uma vez que é o sujeito passivo que pratica os atos de diminuição patrimonial), faz para nós todo o sentido o paralelismo invocado por Almeida Costa com as situações de autoria mediata em que o domínio-do-facto do “homem-de-trás” deriva do estado de erro do executor (= autor imediato) acerca do circunstancialismo em que atua, para concluir que um genuíno domínio-do-erro por parte do agente da burla [que o provocou], constitui o fundamento da imputação do resultado à conduta. Assim, na medida em que exprime a adequação do comportamento do agente às caraterísticas do caso concreto, o domínio-do-erro pelo agente esgota o conteúdo útil do advérbio “astuciosamente” ... enquanto nota caraterizadora do modus operandi da burla – vd, ob. e vol. citados p. 298-9.

Com base na constatação que dentro de certos limites o mencionado domínio-do-erro constitui um elemento intrínseco ao regular funcionamento da economia de mercado, pois o sucesso no mundo dos negócios liga-se muitas vezes ao superior conhecimento do sujeito e, assim em termos comparativos, ao erro ou ignorância dos seus competidores, Almeida Costa precisa que a consumação da burla depende não de um qualquer domínio do erro (ainda que efetivo) mas de um domínio-do-erro jurídico penalmente relevante, cujos parâmetros devem procurar-se ao nível do direito privado, encontrando-se a pedra de toque no princípio da boa fé (em sentido objetivo) – cfr ob. e vol. citados p. 300, aspeto que aqui não desenvolveremos, por tal ser desnecessário à decisão do caso concreto.

Assim sendo - seguindo no essencial o apontado entendimento de Almeida Costa -, concluímos que sempre que a situação concreta em que o agente envolve o sujeito passivo encerra erro ou engano juridicamente relevante provocado por ele de forma adequada a levar este último - enquanto sujeito concreto no contexto em que se situa - à disposição patrimonial pretendida, pode dizer-se que o agente atuou astuciosamente, com manha, com malícia, para efeitos do preenchimento típico do crime de burla previsto no art. 217º nº1 do C. Penal, independentemente de a falsa representação da realidade ser criada por palavras ou declarações expressas (sob a forma oral ou escrita), ou através de atos concludentes. I.e., de condutas que não consubstanciam, em si mesmas, qualquer declaração, mas que à luz de um critério objetivo - a saber, de acordo com as regras da experiência e os parâmetros ético-sociais vigentes no sector da atividade -, mostram-se adequados a criar uma falsa convicção sobre certo facto passado, presente ou futuro - vd sobre as modalidades de configuração material do crime de burla, Almeida Costa, ob. e vol citados p. 301, assinalando apenas as nossas mais sérias reservas quanto à admissibilidade da burla por omissão (não confundível com a comissão da burla através de atos concludentes) que o autor acrescenta às duas modalidades citadas em texto, uma vez que não passou para o C. Penal de 1982 o aproveitamento astucioso de erro ou engano sobre factos não provocado pelo agente, que o art. 212º nº1 do projeto de E. Correia incluía (cfr Atas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal-parte especial, M. Justiça, 1979, pp 138-9 e, por todos, P. Albuquerque, Comentário do C. Penal, 2008 p. 600.

Posto isto, não vemos razão para que o MP recorrente faça depender a tipicidade da conduta da arguida de ser desta a iniciativa de apresentar a declaração escrita afirmando ser proprietária do fio de ouro que pretendia vender, pois a conduta adotada pela arguida seria adequada a induzir maliciosamente em erro o sujeito passivo em qualquer das hipóteses.

Ao apresentar-se no estabelecimento comercial afirmando oralmente ser dona daquele fio e declarando-o em escrito que assinou, a arguida agiu com dissimulação e malícia adequadas a fazer crer à empregada da assistente ter a qualidade de dona que invocou[1], pois agiu como é suposto no dono da coisa em circunstâncias idênticas, de acordo com a experiência comum sobre os usos e normas daquele tipo de comércio.

Como bem se diz no acórdão que determinou a pronúncia da arguida nos presentes autos, “…a assunção da qualidade de proprietária do fio por escrito não pode deixar de entender-se como um reforço da confiança, legítima de acordo com os ditames da boa fé, que a arguida era, de facto, dona do objeto, pelo que não obstante ter-lhe sido presente pela funcionária do estabelecimento, a assinatura da declaração escrita configura já algum engenho e habilidade, enquanto meio adequado/apto a enganar, a dar credibilidade à postura que antes assumiu, determinando assim a funcionária a aceitar a venda que lhe era proposta e a pagar o respetivo preço.” – cfr fls 154 dos autos,.

Aliás, se bem vemos a questão, não deixará de ser astuciosa a conduta do agente que se apresente parco em palavras e atos perante o sujeito passivo, desde que no circunstancialismo concretamente verificado essa forma de agir seja por ele adotada por se mostrar adequada a criar naquele o erro ou engano pretendidos. Mais uma vez nas palavras de Almeida Costa, “…a experiência de todos os dias revela que, longe de envolver, de forma inevitável, a adoção de processos rebuscados ou engenhosos, aquela sagacidade [que combina a antecipação das reações do sujeito passivo com a escolha dos meios idóneos para conseguir o objetivo em vista] comporta uma regra de economia de esforço, limitando-se o burlão ao que se mostra necessário em função das caraterísticas da situação e da vítima” . cfr ob. e vol. citados, p, 298.

Num caso hipotético semelhante ao que nos ocupa, mas em que o vendedor do objeto em ouro - por ser de há muito conhecido do comprador e saber que era considerado por este como pessoa honesta e confiável -, se limitasse a afirmar pretender vender coisa que diz pertencer-lhe, o que sabe ser suficiente e mesmo o mais adequado a que o comprador o tome naturalmente por dono, afigura-se-nos certo que tal conduta consubstancia uma efetiva lesão do património do burlado ou de terceiro levada a cabo de forma astuciosa e, portanto, típica.

Em comentário à locução “artifício fraudulento” usada na al. a) do nº1 do art. 341º do C. Penal, Medina de Seiça - depois de invocar o paralelismo com entendimento que tem sido seguido relativamente ao crime de burla - afirma mesmo que a “simples” mentira, uma declaração por parte do agente não conforme à realidade desacompanhada de quaisquer suportes exteriores, desde que se mostre adequada à causação do erro, preenche a tipicidade. – cfr Comentário Conimbricense do C. Penal, III 2001, p. 310.

Posto isto, entendemos que é maliciosa a conduta da arguida concretamente apurada nos autos, contrariamente ao entendimento do MP recorrente, pelo que, verificando-se os demais elementos objetivos e subjetivos do tipo, que não se mostram sequer questionados pelo recorrente, concluímos não merecer reparo a sentença recorrida.

2.2. Sobre as dúvidas suscitadas no parecer do MP nesta Relação relativamente à verificação do nexo de causalidade entre o erro ou engano e a disposição patrimonial por parte da empregada da sociedade assistente, entendemos que o teor da sentença impõe entendimento contrário.

Com efeito, pode ler-se da factualidade provada que a arguida, que se dirigira ao estabelecimento da assistente com o propósito de vender o fio em ouro que não lhe pertencia, começou por dizer ser seu aquele fio e assinou e entregou a referida declaração, com o propósito deliberado de o fazer crer à ofendida, por forma a obter, como obteve, a entrega do valor correspondente em dinheiro.

Ora, apesar de alguma falta de assertividade, o trecho ora destacado em itálico expressa suficientemente que, ao arrogar-se oralmente e por escrito, ser dona do fio em causa, a arguida quis fazer crer à empregada da ofendida deter tal qualidade e que foi por lograr este convencimento que obteve daquela, conforme pretendia, a entrega do valor em causa, sendo certo que este sentido e alcance da factualidade descrita, é expressamente confirmado pelo teor da apreciação crítica da prova, na parte em que se refere a afirmação daquela empregada (testemunha ML) de que a concreta conduta da arguida fez com que acreditasse estar a comprar um fio de ouro à sua verdadeira dona, tendo-lhe, por isso, entregado a quantia de 780 euros.

Em síntese, a sentença recorrida não merece reparo ao julgar verificado também aquele elemento constitutivo do crime, na medida em que este encontra suficiente expressão na descrição da factualidade provada e é mesmo confirmado noutra parte da sentença que, como um todo, não deixa dúvidas quanto à realidade do facto em causa, ou seja, que foi o engano provocado pela arguida sobre a propriedade do fio em ouro, que determinou a assistente a comprá-lo, facto relativamente ao qual a motivação do recurso não reflete igualmente qualquer dúvida que tivesse sido suscitada na audiência de julgamento ou, em todo o caso, face ao teor da sentença.

III. Dispositivo

Nesta conformidade, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar total provimento ao recurso interposto pelo MP no exclusivo interesse da arguida, mantendo-se integralmente a sentença recorrida.
Sem custas.

Évora, 7 de junho de 2016

(Processado em computador. Revisto pelo relator.)

António João Latas

Carlos Jorge Berguete

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[1] Num caso idêntico ao presente, decidiu-se no Ac. do TRL de 14.12.83 “…que provoca astuciosamente erro ou engano quem se apresenta numa ourivesaria ou em casa de penhores, ou em outro estabelecimento que compre jóias, com objetos dessa espécie, declarando-se dono deles e, atuando como tal, os vende, apresentando o bilhete de identidade com intenção de convencer o comprador de que dele pode dispor e com o fim de obter um enriquecimento ilegítimo” – apud J.A. Barreiros, Crimes contra o património, Universidade Lusíada, 1996, p. 167.