Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
254/24.7T8SSB-A.E1
Relator: RICARDO MIRANDA PEIXOTO
Descritores: MAIOR ACOMPANHADO
PERÍCIA
SEGUNDA PERÍCIA
Data do Acordão: 11/27/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA
Área Temática: CÍVEL
Sumário: SUMÁRIO (art.º 663º, n.º 7, do CPC):

I. Uma vez determinada a realização de perícia em processo especial de acompanhamento de maior, a parte pode reagir ao relatório pericial mediante: reclamação por deficiência, obscuridade, contradição ou deficiente fundamentação das conclusões (n.º 2 do art.º 485º do CPC); ou pedido fundamentado de realização de segunda perícia destinado a corrigir a eventual inexactidão dos resultados da primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado (n.ºs 1 e 3 do art.º 487º do CPC).


II. A norma especial do n.º 2 do art.º 899º do CPC prevê a possibilidade de o juiz autorizar o exame numa clínica da especialidade, com internamento do beneficiário nunca superior a um mês e sob responsabilidade do director respectivo, mas não obsta à realização da segunda perícia sem que o examinado seja sujeito às descritas condições, pois deixa expressamente ao critério do magistrado judicial a colocação do maior em internamento, permitindo-lhe ainda a adequação dos meios de prova às circunstâncias de cada caso.


III. Tendo sido alegadas fundadamente as razões da discordância relativamente ao relatório da primeira perícia e havendo justificadas dúvidas sobre a exactidão dos respectivos resultados, no que à data do provável início da afecção do Beneficiário respeita, justifica-se a realização de uma segunda perícia.

Decisão Texto Integral: Apelação 254/24.7T8SSB-A.E1

Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo de Competência Genérica de Sesimbra - Juiz 1


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Acordam os Juízes na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, sendo


Relator: Ricardo Miranda Peixoto;


1º Adjunto: Ana Pessoa; e


2ª Adjunto: Manuel Bargado.


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I. RELATÓRIO


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A.


AA, BB e CC, propuseram acção especial relativamente DD, pedindo seja suprida, ao abrigo do disposto no artigo 141.º do CC, a autorização do Beneficiário, pelo facto de a sua escolha poder ser tomada de forma condicionada e não consciente quanto ao sentido e alcance, decretando-se, em consequência, o acompanhamento daquele maior por anomalia psíquica.


Alegaram para o efeito que o maior, pai dos Requerentes, estando incapaz de decidir por si desde 2019, contraiu, sem o conhecimento dos filhos, casamento com EE no dia ........2023, com Convenção Antenupcial feita por procuração, onde ambos os nubentes dispõem reciprocamente da quota disponível da sua herança a favor do cônjuge sobrevivo, a qual deverá começar a ser preenchida pelos seguintes bens:


i) A casa de morada de família de ambos à data do óbito;


ii) O piano da marca Scholze, modelo vertical Nogueira polido 3 pedais, com a série n.º 104669.


Devido à sua incapacidade de gestão, os bens do maior estão a ser unicamente geridos pela sua actual mulher que tem recebido todas as rendas dos imóveis, desconhecendo-se o destino que lhes é dado, o que torna indispensável nomear ao Requerido uma pessoa idónea que cuide da sua pessoa e dos seus bens e que legalmente o represente, havendo fundadas dúvidas de que à actual cônjuge do Requerido possa, pelo menos como tutora, ser entregue tão importante tarefa.


B.


Realizadas as citações de lei, foi proferido despacho a 10.07.2024, no qual, entre outras coisas, se determinou:


“- Notificar o dr. FF e o dr. GG, ambos médicos neurologistas, com domicílio profissional no Hospital da CUF Tejo, sito na ..., para, em 10 (dez) dias seguidos, juntar aos autos todos os relatórios e exames clínicos dos últimos quatro anos que têm em sua posse referente ao Requerido, ou, se assim preferirem, elaborar relatório médico com a sumula das


informações clinicas, indicando o diagnóstico, sua evolução ao longo dos anos e seus efeitos, especialmente no último ano.”


C.


Depois de resposta negativa dos notificados quanto ao seguimento clínico da pessoa do Beneficiário, os Requerentes apresentaram requerimento no dia 08.09.2024, no qual pediram se oficiasse:


- o Serviço Nacional de Saúde, para indicar o receituário do Requerido, bem como os respectivos médicos prescritores, desde, pelos menos, o ano de 2017;


- o Dr. GG, Médico Especialista – Neurologista -, para que venha juntar aos autos toda a informação clínica do Requerido, nomeadamente, os exames


e análises complementares realizadas, e responder a questões que elencaram.


D.


Foi proferido, a 11.09.2024, despacho com o seguinte teor:


“Simultaneamente e com vista a determinar o estado de saúde do Beneficiário (…), determina-se a realização de relatório pericial, a elaborar pelo INML, destinado a apurar a afetação de que sofre o(a) Beneficiário(a), as suas consequências, a data provável do seu início, e os meios de apoio e tratamento aconselháveis, cf. artigo 899.º, n.º 1 do Código Processo Civil. (…)


REQUERIMENTO DE 08.09.2024 APRESENTADO PELOS REQUERENTES


Face ao acima determinado, por não se revelar essencial para a boa decisão da causa, indefere-se o requerido.


Notifique. (…)”


E.


No dia 20.11.2024, foi junto relatório pericial intercalar de 19.11.2024, contendo, em sede de discussão preliminar, entre outro, o seguinte teor:


“Se do ponto de vista estritamente diagnóstico, e assim clínico-assistencial, resulta inequívoco de que o examinando padece de um quadro de Afasia Progressiva Primária (APP), e assim linear, já o mesmo não pode ser dito quando a perspetiva é médico-legal e importa explorar o funcionamento e o processamento da informação cognitiva, tanto mais que são escassos os dados disponíveis em particular no que respeita á concreta evolução clinica em termos temporais e de registos factuais. (…)


Sem prejuízo do atrás referido, e sem especiais dúvidas quanto ao grau, no mínimo, incipiente da sua perturbação demencial, não foi possível, pela mera entrevista e observação, formar juízo rigoroso e definitivo sobre a real extensão das limitações nas outras esferas cognitivas para lá da linguagem, esta sim claramente afetada, resultando em extrema dificuldade ou impossibilidade transmissão pela comunicação verbal dos seus melhores desejos, melhores preferências e melhores vontades conscientemente mantidas e processadas. (…)


Naturalmente e ainda assim pretende-se melhor confirmar esta conclusão clínica e, na afirmativa, tentar aferir concreto grau ou nível, de comprometimento das restantes funções cognitivas superiores. Assim sendo, solicita-se:


1. Competente Exame Complementar Psicológico, no caso Avaliação Neuropsicológica, a qual deverá ser realizada colegialmente por neuropsicólogo se possível conjuntamente com terapeuta da fala, para garantir a efetividade da comunicação. Atento o carácter específico e inusitado (pela ausência de linguagem) da avaliação pretendida (…).


2. Registos clínicos da consulta de neurologia do examinando, após ser obtido o seu consentimento, que permitirão melhor perceber a evolução concreta do quadro clínico em termos temporais. Salienta-se que não se pretende, não se pede, nem é útil, relatórios clínicos, mas tão só reimpressão de registos informáticos ou fotocópias em papel dos registos que foram feitas nas respectivas datas desde que vem sendo assistido em neurologia. Para tal poderá pela Secção desse Tribunal ser oficiado o médico neurologista assistente, após ser obtido o consentimento do requerido – para o que se admite desde já atento a respostas do mesmo, de que estará capaz – e informando disso o médico.


Na posse do conteúdo deste dois elementos solicitados a Perita elaborará Relatório Final com as conclusões definitivas que procurem dar a resposta ao estipulado no nº 1 do artigo 898º do CPC, ou caso seja necessário marcar-se-á uma segunda observação. Que por ora se admite que possa não ser necessária, mas que dependerá, seja do resultado do exame complementar, seja dos registos clinico-assistenciais que vierem a ser encaminhados a este INMLCF,IP.”


F.


Por despacho de 27.11.2024, foi determinado que se:


“- Solicite ao Laboratório de Estudos de Linguagem – Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, junto ao Serviço de Neurologia do Hospital de Santa Maria, a realização de avaliação Neuropsicológica colegial ao Beneficiário, por forma a complementar os elementos clínicos existentes para elaboração de relatório pericial final;


- Notifique o Beneficiário, na pessoa do seu Ilustre Mandatário para, num prazo de cinco dias, vir indicar a identificação do médico neurologista que segue o Beneficiário e o local onde são realizadas as consultas, por forma o tribunal solicitar as informações requeridas pela Ilustre Perita Médica.”


G.


A 23.01.2025 foram juntos aos autos os relatórios de avaliação neuropsicológica do Beneficiário realizados nos dias 13.01.2025 e a 06.07.2023.


A 11.03.2025 foi junto o relatório psiquiátrico final de avaliação do Beneficiário, elaborado pelo GML, do qual constam as seguintes conclusões:


“1) Ponderada a auto e heteroanamnese colhidas na entrevista inicial, a informação clínica existente, a observação psicopatológica e as avaliações neuropsicológicas, resulta claro que o examinando padece de Perturbação Neurocognitiva Major (vulgo Demência), de etiologia degenerativa frontotemporal que se expressa na forma de afasia primária progressiva (APP).


Breve, a Demência Frontotemporal (DFT) é uma perturbação neurodegenerativa progressiva caracterizada por envolvimento selectivo dos lobos cerebrais frontal e temporal. Distinguem-se essencialmente duas variantes sindromáticas, a comportamental e a de linguagem (a qual tem, ela própria, subtipos), as quais se correlacionam com diferentes padrões clínicos e neuro-patológicos. Perante os achados reunidos, é o fenótipo de alteração de linguagem (isto é, com afasia primária progressiva) aquele que afeta o examinando, sendo evidente o declínio na capacidade de linguagem, sob a forma de produção de discurso, escolha de palavras, nomeação de objetos, gramática ou compreensão de palavras. Tal como teoricamente previsto, a aprendizagem, a memória e a função perceptivo-motora estão relativamente preservadas.


O quadro clínico é de evolução crónica, sendo que o tempo para o declínio (mais) pronunciado e extenso a outras áreas - este sim inexorável - é variável e difícil de prever. Poderá ser mais pronunciado se vierem a ocorrer eventos vasculares (AVCs), síndromes confusionais agudos por noxas orgânicos ou outros, importando pois natural seguimento neurológico assistencial, e cumprimentos das prescrições que venham a ser indicadas.


No presente, o estadio clínico da sua condição demencial é moderado, contudo a deterioração é inelutável, a despeito da medicação que se possa instituir (e já se instituiu), que é meramente sintomática, ie, mitiga sintomas (por exemplo, insónia, agitação, etc) mas não não cura nem evita a evolução da condição basal.


2) Quanto às consequências (anterior extensão) da incapacidade, em harmonia com a observação psicopatológica propriamente dita e com a avaliação neuropsicológica atual, elas são pelo menos moderadas na perspetiva cognitiva, afetiva e comportamental, dificultando de forma clinicamente relevante, mas não totalmente, o governar da sua pessoa e particularmente dos seus bens.


3) (…) cremos que o instituto a decretar pelo Tribunal deverá ser aquele que tendencialmente respeitar o máximo de autonomia da Pessoa, dentro das suas concretas potencialidades e limitações. Desta feita, ainda que estejam presentes alguns deficits significativos em algumas áreas, não pode ser afirmado existir completa e absoluta incapacidade irreversível.


Todavia e por de facto existirem deficits importantes, importa salvaguardar os seus direitos, o seu acompanhamento próximo e supervisão, apoio e tratamentos que se considerem necessários pelo que integra pressupostos para beneficiar de acompanhamento de maior, devendo ser nomeado acompanhante que dele funções mais de assistência do que representação, por defeito, na maioria dos atos (em abstrato), na ausência de mais factos referente a mais atos que possam não decorrer diretamente e expressamente do requerimento inicial.


Algumas palavras porém, especificamente quanto à gestão do seu património e à gestão dos seus cuidados médicos, porquanto são expressamente questionados aquando da propositura das medidas de acompanhamento pelos requerentes:


a gestão do património (ou a capacidade financeira como é designada na literatura) reclama vários domínios neuro-psicológicos, tornando esta avaliação complexa. Outra ordem de razões que vulnerabiliza a avaliação é a natural dificuldade em encontrar testes específicos nas avaliações neuropsicológicas a que foi sujeito, sendo certo que, mesmo que fossem tentados não seria materialmente possível valorar funções verbais, como sejam a transmissão do juízo subjacente a cada transação. Todavia, parece-nos mais avisado, ponderado os défices existentes em diversas áreas cognitivas, que possa o acompanhante administrar totalmente os bens do Requerido. Face ao que ficou dito admite-se portanto logicamente que, não esteja cognitivamente capaz de transacionar o seu património para médios e avultados valores e nessa medida ser equacionada a representação especial, cumprindo-se naturalmente as suas melhores vontades e preferências que sejam conhecidas e que possam porventura decorrer de prova testemunhal a que somos alheios. Em sentido contrário, parece-nos, porém, poder (e dever, por benéfico do ponto de vista clínico já que é importante estimular a cognição e evitar maior queda de auto-estima) ser estimulado e treinado à utilização de "dinheiro de bolso" diário (leia-se, ao nível a que estava habituado e compatível com o seu prévio estatuto socio-económico) e de compras menos avultadas.


cuidados médicos (a responsabilidade em aceitar tratamentos que medicamente sejam propostos): esta responsabilidade não lhe deve ser confiada na íntegra, não tanto em virtude de eventual irascibilidade e antagonismo que pudessem verificar-se em resultado da sua doença, mas sobretudo por défices na compreensão verbal dos conceitos clínicos e do que venha a ser-lhe proposto. Deverá ser supervisionado de perto, procurando-se na medida do possível respeitar mais do que a sua opinião, o seu ponto de vista, numa lógica casuística (caso a caso) e contingente das consequências da sua decisão. De facto, do ponto de vista médico-legal, cada ponderação deve ser guiada pelos desejos e preferências que lhe são reconhecidos e a que a pessoa que vier a ser nomeado acompanhante deve atender.


4) Faltará apenas agora tentar dilucidar sobre a data de início do atual nível de incapacidade. É na resposta a este ponto que a consulta das notas clínicas teria relevância e, daí, ter a Perita as solicitado. Todavia, desconhecia a Perita a existência de uma avaliação neuropsicológica prévia, e em particular com as conclusões que emana, circunstância que, na senda de maiores economia e celeridade processuais, dispensa aqueles registos, tanto mais que a avaliação detalhada e objetiva inerente à avaliação neuropsicológica é, na esmagadora maioria das vezes, mais exaustiva e informativa do perfil neuropsicológico, que a avaliação clínica.


Ora, numa súmula das funções neuro-psicológicas, estima-se que o examinando estaria em julho de 2023 numa fase ligeira (a moderada) da sua perturbação demencial, inequivocamente um estadio menos gravoso que o atual, este de gravidade moderada e resultado de um agravamento sustentada, memória imediata e memória de trabalho, iniciativa e capacidade visuo-construtiva. Podemos ainda acrescentar que, atento o início insidioso e caráter evolutivo da condição clínica em apreço, já estaria, certamente, o individuo afeto de limitações cognitivas em anos anteriores (pelo menos em 2019, altura em que o próprio procurou cuidados médicos), mas que, atenta a auto e heteroanamneses, lhe permitiram um funcionamento minimamente razoável.


A mera presença de défices cognitivos não pode ser, por si só, expediente para uma declaração de incapacidade total nos termos do Acompanhamento de Maior, tanto mais que os défices não eram à data de julho de 2023 (e também não o são agora) severos/ graves/ absolutos.


Se por um lado não é técnico-cientificamente possível estabelecer com mais rigor uma data para o início do atual nível de incapacidade, tanto mais que não há descrições rigorosas de terceiros e nem o próprio é delas capaz, é tácito que o funcionamento atual ter-se-á instalado algures entre julho de 2023 e janeiro de 2025.


Por tudo quanto se expôs, não deve e não pode a Perita arbitrar outro intervalo de tempo mais específico, tanto mais na ausência de registos clínicos factuais.


5) Como medida de tratamento propõe-se que mantenha seguimento regular por especialista em Neurologia, cumprindo prescrições que aí vierem a ser determinadas. Sendo que a manutenção de acompanhamento humano é vantajosa, deve manter-se em condição em que tal seja assegurado.


6) Atendendo à evolução mais rápida que a DFT tem em comparação com outras perturbações neurocognitivas (v.g. Demência de Alzheimer) é recomendada a sua reavaliação pericial em intervalo anterior aos cinco anos legalmente previstos pela negativa, diríamos dois anos (valor indicativo).”


H.


Vieram os Requerentes, a 24.03.2025, reclamar do relatório pericial, por “…inexatidão e incongruência insanável das conclusões apresentadas”, mais requerendo a realização de segunda perícia.


I.


Determinada que foi, por despacho de 22.04.2025, a notificação da Sr.ª Perita para esclarecer aparente incongruência no que respeita à dispensa dos elementos clínicos adicionais, nomeadamente os elementos clínicos registados nas consultas de neurologia, esta juntou no dia 13.05.2025 (referência 4888768) os seguintes esclarecimentos:


“Como explicou a Perita a razão de pedir desses elementos foi a necessidade (que nem sabemos se seria satisfeita pelo conteúdo desses elementos) de se guiar no estabelecimento do início e a extensão da incapacidade, na circunstância de tais anotações permitirem essa inferência.


Sucede que, ao invés daqueles elementos (já esclarecida a razão de não terem sido trazidos ao conhecimento da Perita), foi junta os autos uma avaliação neuropsicológica, a qual é tida como idónea, exímia e rigorosa na sua metodologia e conclusão (tanto que foi feita num laboratório altamente especializado na linguagem, habilidade muito comprometida no examinando) e, com altíssima probabilidade, mais meticulosa e informativa – nessa circunstância de maior força valorativa, concreta e inclusivamente de teor quantitativo, dito de outro modo, superior em termos objetivos - do que as anotações médicas. Isto porque é objeto daquela avaliação precisamente a apreciação fina e quantitativa do perfil neuropsicológico, ao contrário da avaliação médica, em consulta, que, sim, pode apreciar o desempenho neurocognitivo do doente, mas de uma maneira só o pode fazer de forma mais grosseira. Se assim não fosse, seria pouco compreensível que os médicos neurologistas solicitassem avaliações neuropsicológicas.”


Concluiu a Senhora Perita pela inutilidade de junção de tais elementos clínicos aos autos, referindo: “é remota, senão desprezível, a virtualidade de alterarem as conclusões médico-legais, mormente a fixação e moldes de acompanhamento, por terem sido estas dadas em elementos que são definitivamente de maior valor clínico no desiderato concreto que é a fixação da data e extensão da incapacidade e moldes do acompanhamento.”


J.


Por requerimento de 21.05.2025, os Requerentes reiteraram o pedido de realização de segunda perícia ao Beneficiário.


K.


Em auto de audição realizada a 02.07.2025, foram proferidos, entre outros, os seguintes despachos pelo Sr. Juiz de 1ª Instância:


“(…)


ESCLARECIMENTOS PRESTADOS EM 13.05.2025


Tomei conhecimento dos esclarecimentos prestados pela Senhora Perita Médica.


Do teor do mesmo resulta uma explicação concisa e objetiva dos motivos que justificou a Ilustre Perita a solicitar, inicialmente, os diários clínicos/registos técnico-científicos relativos à condição neurológica do examinando do médico neurologista que seguia o Beneficiário, e a posterior dispensa dos mesmos, atendendo a avaliação neuropsicológica efetuada, por duas vezes, ao Beneficiário, que permite obter de forma rigorosa e com maior força valorativa, os elementos necessários para a elaboração do relatório final.


Pela clareza utilizada, cita-se o seguinte trecho «Isto porque é objeto daquela avaliação precisamente a apreciação fina e quantitativa do perfil neuropsicológico, ao contrário da avaliação médica, em consulta, que, sim, pode apreciar o desempenho neurocognitivo do doente, mas de uma maneira só o pode fazer de forma mais grosseira. Se assim não fosse, seria pouco compreensível que os médicos neurologistas solicitassem avaliações neuropsicológicas».


Neste sentido, considerando os esclarecimentos prestados pela Ilustre Perita e o valor desprezível que os elementos inicialmente solicitados pela mesma revelam para a decisão da causa, encontra-se o tribunal cabalmente esclarecido sobre o teor do relatório pericial apresentado nos autos, não se vislumbrando a necessidade de realização de outras diligências probatórias adicionais.


Por conseguinte, nada mais há a determinar no que se refere ao relatório pericial elaborado pela Ilustre Perita.


Dê conhecimento deste despacho à Ilustre Perita.


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REALIZAÇÃO DE SEGUNDA PERÍCIA


Conforme emerge dos autos, foi requerido, por diversas vezes, a realização de uma segunda perícia ao Beneficiário, tendo os requerentes reiterado tal pedido no requerimento de 21.05.2025, apresentado na sequência dos esclarecimentos prestados pela Ilustre Perita.


Rege o artigo 891.º, n.º 1 do Código Processo Civil que o processo de maior acompanhado «carácter urgente, aplicando-se-lhe, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes».


Daqui decorre que o processo de maior acompanhado encontra-se sujeito às regras da jurisdição voluntária, possibilitando ao juiz a possibilidade de investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes ao mesmo tempo que lhe é conferida a prerrogativa de apenas admitir as provas que considere necessárias para a boa decisão da causa, cf. art.º 986.º, n.º 2, do Código Processo Civil.


No que tange à prova pericial, dispõe o artigo 899.º, n.º 1 do Código Processo Civil que «(…) o perito ou os peritos elaboram um relatório que precise, sempre que possível, a afeção de que sofre o beneficiário, as suas consequências, a data provável do seu início e os meios de apoio e de tratamento aconselháveis.»


Tal prova está sujeita às regras gerais sobre prova pericial consagradas nos artigos 467.º a 489.º do Código Processo Civil em tudo aquilo que não forem contrariadas pelas regras especiais consagradas naquele preceito.


Daqui decorre que junto aos autos relatório pericial duas vias se abrem: por um lado, pode o referido relatório ser objeto de reclamação com fundamento na deficiência, obscuridade, contradições, ou insuficiência da sua fundamentação (cf. artigo 485.º do Código Processo Civil); Por outro lado, pode ainda ser requerida/ordenada a realização de uma segunda perícia.


Quanto à primeira via, já foi o relatório pericial junto aos autos sujeito ao pedido de esclarecimentos que o Tribunal entendia necessário, tendo a Ilustre Perita explicado as suas opções, ficando assim o tribunal totalmente esclarecido quanto ao teor do relatório apresentado, conforme supra consignado.


Já relativamente à segunda via, correspondente à realização de uma segunda perícia, conforme se disse no despacho de 22.04.2025, terá que se atender, necessariamente, ao regime especial previsto no artigo 899.º, n.º 2 do Código Processo Civil, do qual decorre que «permanecendo dúvidas, o juiz pode autorizar o exame numa clínica da especialidade, com internamento nunca superior a um mês e sob responsabilidade do diretor respetivo, ou ordenar quaisquer outras diligências».


Este preceito deve ser devidamente conjugado e integrado com o caracter urgente do processo de maior acompanhado e com os princípios de conveniência, eficácia e oportunidade que regem os processos de jurisdição voluntária, devendo o tribunal sujeitar o Beneficiário a novas diligencias suplementares médicas (que se inclui uma segunda perícia) sempre e apenas quando se suscitem, no seu interior, dúvidas que carecem de ser sanadas e que os elementos coligados nos autos não permitam o seu cabal esclarecimento.


No caso em apreço e após os esclarecimentos prestados pela Ilustre Perita, não persistem no espírito do julgador dúvidas que carecem de ser sanadas, entendendo o tribunal estar reunidas todas as condições para proferir a decisão que lhe é conferida pela lei.


Com efeito, não cabe ao tribunal, no âmbito do processo de maior acompanhado, dirimir conflitos familiares ou apreciar a gestão patrimonial e financeira dos bens do Beneficiário, nem tão-pouco ponderar a eventual anulação de atos jurídicos por si praticados antes, durante e após a presente ação.


O que compete ao Tribunal é decidir, em primeira linha, se o Beneficiário padece de algum problema de saúde, deficiência ou comportamento que o impede de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de cumprir os seus deveres. E caso de resposta afirmativa, verificar se justifica a aplicação de medidas de acompanhamento, quais e em que medida, procedendo ainda à nomeação do Acompanhante e quando possível, fixar uma data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes, cf. artigo 138.º do Código Civil e 900.º, n.º 1 do Código Processo Civil.


No caso presente foi elaborado um relatório pericial pelo Instituto Nacional de Medicina Legal, entidade competente e isenta para o efeito, que ponderou, para além da entrevista pessoal ao Beneficiário e os elementos constantes dos autos, duas avaliações neuropsicológicas elaboradas ao Beneficiário e efetuadas num período de um ano e meio (julho de 2023 a janeiro de 2025) que permitiu à Ilustre Perita traçar, com rigor e segurança, um perfil neuropsicológico do Beneficiário e evolução do seu quadro clínico.


Ora, o referido relatório pericial final proveio, como se disse, de uma entidade isenta, competente e através de método científico e complementado por exames suplementares, não ficando o tribunal com dúvidas sobre qualquer uma das questões respondidas pelo mesmo.


Podem, naturalmente, as partes discordarem, seja por convicção pessoal ou conhecimento técnico, do teor do relatório pericial junto aos autos. Contudo, estando em causa um processo de carácter urgente e sujeito aos princípios da conveniência e oportunidade, salvo a existência de dúvidas sérias, a opção deve privilegiar a regra de um único exame pericial e mesmo este, segundo alguns, apenas no caso o tribunal o repute como necessário.


Na situação em apreço e pelos motivos expostos, inexistem dúvidas sérias sobre a situação do Beneficiário, pelo que, a realização de uma segunda perícia apenas teria o condão de protelar o andamento dos autos, não com o fim de se obter esclarecimentos sobre eventuais questões que o primeiro relatório não esclarece ou dá resposta (que no entender do tribunal não se verificam), mas sim na procura de uma resposta diferente daquela que o relatório pericial junto aos autos já deu e que vá de encontro com as posições de cada uma das partes.


Por conseguinte, por não se justificar a sua realização, indefere-se a execução de segunda perícia. (…)”


L.


Inconformados, os Requerentes interpuseram recurso de apelação contra o despacho de indeferimento da 2ª perícia.


Concluíram as suas alegações nos seguintes termos (transcrição parcial, sem negrito e sublinhado da origem):


“(…)


I- Os requerentes interpuseram a presente acção de acompanhamento de maior após terem obtido conhecimento que o seu pai, estando incapaz para tal, havia contraído casamento com a requerida EE, acto no âmbito do qual foi representado por procuração.


II- Na sua petição, os requerentes assumiram que o seu pai estava incapaz de decidir por si desde 2019; que por isso necessitaria de acompanhamento; e que EE não seria pessoa idónea para desempenhar a função de acompanhante.


III- A requerida EE afirmou por sua vez, que DD apenas tinha afasia e que estava perfeitamente capaz de decidir as coisas por si, e que era ele que geria e administrava a sua vida e bens, factos que vieram a revelar-se falsos.


IV- Por despacho de 11 de setembro de 2024, o Tribunal a quo determinou a realização de perícia psiquiátrica ao beneficiário, a qual deveria apurar “a afetação de que sofre o beneficiário, as suas consequências, a data provável do seu início, e os meios de apoio e tratamento aconselháveis”.


V- Sendo a afasia evidente no caso do beneficiário, foi oficiado pela Sra. Perita o Laboratório de Estudos da Linguagem junto ao Serviço de Neurologia do Hospital de Santa Maria, para realização de exame neuropsicológico de modo a perceber, se outras dimensões cognitivas para além da linguagem, estavam comprometidas.


VI- Após esta determinação foi percepcionado que o beneficiário já havia realizado um exame neuropsicológico no dia 6/7/23, o qual consignou a existência de “défice significativo em vários domínios cognitivos que não se restringem à linguagem, nomeadamente, capacidades atencionais, funções executivas, memória visuo-espacial e memória semântica, capacidades práxicas e visuoconstrutivas e cálculo elementar.”


VII- O segundo exame realizado em 01/25, no âmbito dos presentes autos, confirmou o agravamento de déficits já identificados no exame de 7/23, ficando expresso, “As alterações documentadas ao exame e o perfil evolutivo das mesmas mantêm-se sugestivos de um síndrome demencial, de gravidade moderada.”


VIII- Os requerentes no seu requerimento fundamentaram que a resposta dada quanto à fixação da data de início da incapacidade, não assentava em nenhum pressuposto científico, contrariando o próprio empirismo, ao fazer-se equivaler a data de início da incapacidade á data do 1.º exame neuropsicológico realizado ao beneficiário. (julho/23)


IX- Fundamentaram ainda as razões que motivaram a rejeição das conclusões periciais quanto ás consequências da incapacidade diagnosticada, na medida em que a Sra. Perita neste computo, faz estatuições que não são conciliáveis com os resultados dos exames neuropsicológicos a que o beneficiário foi sujeito.


X- Pelo que o Mmº Juiz a quo ao indeferir o requerimento que veio suscitar a realização de segunda perícia, não salvaguardou o superior interesse do beneficiário pois como se verá, as conclusões periciais deixaram à margem várias fontes de informação e elementos de prova que tornam verosímil, a possibilidade de obtenção de um resultado diverso do alcançado.


XI- Expendeu-se que: os exames neuropsicológicos decretaram um comprometimento moderado/acentuado de vários domínios cognitivos para além da linguagem tendo os requerentes conhecimento de factos que traduzem que DD em maio de 2023 estava incapaz de declarar uma vontade negocial.


XII- Expendeu-se e demonstrou-se que DD é acompanhado em neurologia desde 2019 sendo fundamental, -assim se alegou-, ter conhecimento dos registos clínicos das 19 consultas realizadas ao beneficiário entre 2019 e 2024, bem como dos exames de diagnóstico realizados neste espaço temporal, e ainda das guias de tratamento prescritas no mesmo período.


XIII- Sem o conhecimento destes elementos, entre outros que existem e que não foram indagados pela perícia, não é possível dizer-se ao abrigo da cientificidade, que o funcionamento actual do beneficiário instalou-se a partir de julho de 2023.


XIV- Em sede de indeferimento da 2ª perícia, o Mmº Juiz a quo apresenta fundamentos genéricos, como a urgência dos autos e a isenção do INML, mas não procede a uma mínima análise critica quanto às razões dos requerentes.


XV- Aludiu-se à inexactidão manifesta na fixação da data da incapacidade do beneficiário e aos erros cometidos em sede de apuramento de informação clínica do beneficiário, sendo estes factos notórios que o Tribunal a quo não quis observar em prol de uma alegada urgência, o que facilitará o desenlace processual, mas que não fará a devida justiça, nem protegerá os interesses do beneficiário.


XVI- Expressa o Mmº Juiz a quo que foi possível “traçar, com rigor e segurança, um perfil neuropsicológico do beneficiário e evolução do seu quadro clínico”, o que se impugna, ao terem sido desconsiderados os registos clínicos de 19 consultas do beneficiário de 2019 a 2024, bem como exames e receitas médicas.


XVII- Impugnou-se a recolha de informação clínica, que em sede de heteroanamnese não sucedeu de acordo com as leges artis, pois os requerentes nunca foram notificados para entrevista ou para comparecimento na qualidade de filhos e pessoas próximas de DD.


XVIII- Em sede de heteroanamnese apenas foi contemplada a requerida EE, antagonista dos requerentes nos autos e que omitiu e faltou á verdade, quanto a várias informações que prestou, o que é um facto apto a enviesar os resultados.


XIX- Os requerentes, filhos de DD, não foram chamados para “complementar as lacunas da entrevista ao próprio”, tal como foi sublinhado pela Sra. Perita a páginas 7 do relatório preliminar, que depois diz incongruentemente a págs 6 do relatório final, que não foi possível estabelecer uma data de início de incapacidade com mais rigor, “tanto mais que não há descrições rigorosas de terceiros.”


XX- EE omitiu à Sra. Perita que já havia sido realizado um exame neuropsicológico ao beneficiário em 6/7/23, tendo prestado informações falsas sobre a sua medicação, referindo que DD tomava apenas Vortioxetina.


XXI- Na medida em que omitiu que o beneficiário tem sido prescrito com fármacos próprios para tratar perturbações do espectro da demência, como Memantina e Donepezilo, pelo seu médico neurologista, o Dr. GG, desde pelo menos, dezembro de 2020.


XXII- Faz-se notar que estamos perante um homem que tal como consignado no relatório preliminar, a páginas 5, “não lhe era possível comunicar a natureza da acção”; ou que, “não veicula dados autobiográficos em parte por, não recordar estas matérias”; que não consegue dizer a sua idade e que a páginas 6, afirma ter-se reformado com 40 anos. (reformou-se em 2006, com 60 anos)


XXIII- Tendo o exame neuropsicológico de 2023 decretado defeito generalizado das funções nervosas superiores, ou défices a nível de memória, actividades práxicas, funções executivas, cálculo elementar, é notório que EE faltou à verdade quando diz que fala com o marido sobre o médio oriente, ou que este faz a barba sozinho, ou que este até faz uma cataplana de peixe, e segue os passos necessários para a confecção.


XXIV- A Sra. Perita acolheu afirmações de EE sem duvidar da sua razoabilidade, como a que resulta transcrita no requerimento dos autores, “…as despesas relativas a lazer, por exemplo cafés, restaurantes, viagens, são pagas com o cartão de débito. A esposa diz-me que é o senhor DD quem o faz”, Este facto afirmado por EE e acolhido pela perícia é inconciliável com o apurado nos exames neuropsicológicos e com o percepcionado em audiência pelo julgador.


XXV- Pelo que reitera-se que nada justifica que a Sra. Perita não tenha aferido a consistência das informações obtidas, pois deveria ter comparado as informações prestadas com as de outros informantes, confrontando a sua conciliabilidade com os registos médicos e outros dados disponíveis, sendo que não o tendo feito, não respeitou os ditames da avaliação psiquiátrica.


XXVI- Acabou por ser errático o trilho seguido pela Sra. Perita que no relatório preliminar avança incrivelmente com a hipótese de mera afasia primária progressiva, para depois de conhecidos os exames neuropsicológicos, mudar de conclusão e afirmar, estarmos na presença de uma Perturbação Neurocognitiva Major. (vulgo demência)


XXVII- Não obstante a estatuição de Perturbação Major e os defeitos generalizados das funções cognitivas superiores e não apenas da linguagem, a Sra. Perita expressa que, “a aprendizagem, a memória e a função perceptivo-motora estão relativamente preservadas”, afirmação que é contraditada por vários elementos de prova e que os requerentes impugnaram fundamentadamente.


XXVIII- O Mmº Juiz a quo, não obstante as manifestas incongruências apontadas, em prejuízo do beneficiário, absteve-se de as analisar criticamente, afirmando a inexistência de dúvidas ao abrigo de fundamentos como a celeridade e isenção do INML, entendimento que se impugna.


XXIX- Os requerentes elencaram várias razões ao longo do seu requerimento e de forma objectiva não deixaram de escalpelizar com mérito, as diversas incongruências do relatório, como se observa por exemplo a partir do artigo 71.º do requerimento, matéria que acabou a não ser alvo da devida crítica.


XXX- O próprio Mmº Juiz a quo, conforme a prova gravada, e após tentativas sem êxito de obter uma resposta coerente de DD, pede para este responder sim ou não, à pergunta: A sua mulher chama-se EE? Ao que o beneficiário retorquiu, “vociferando” um não.


XXXI- A Sra. Perita em sentido contrário aos resultados dos exames neuropsicológicos diz quanto às consequências, “a aprendizagem, a memória e a função perceptivo-motora estão relativamente preservadas”, afirmação desmentida por factos e elementos clínicos conhecidos, tendo-se demonstrado no requerimento porque tal estatuição não é assertiva, acabando a ser comprometedora do superior interesse do beneficiário.


XXXII- Expressando a Sra. Perita quanto às consequências da incapacidade, “…elas são pelo menos moderadas na perspectiva cognitiva, afectiva e comportamental, dificultando de forma clinicamente relevante mas não totalmente, o governar da sua pessoa e particularmente dos seus bens”, facto relativamente ao qual, a discordância foi devidamente fundamentada.


XXXIII- Trata-se de estatuição em contradição com a perspectiva da notária, a Dra. HH que cancelou escritura para a realização de venda de imóvel de DD em outubro de 2024; em contradição com a percepção do funcionário judicial encarregue de citar DD nos presentes autos; em contradição com o conhecimento de facto dos filhos; em contradição com os resultados das avaliações neuropsicológicas e em contradição com o percepcionado na audição do beneficiário, como resulta da prova gravada.


XXXIV- Na verdade são incongruências sem fim: No ponto 3), pág. 4 do relatório, diz a Sra. Perita que apesar dos défices decretados, que “não pode ser afirmado existir completa e absoluta incapacidade irreversível”, quando dois parágrafos antes, afirma quanto à condição demencial, que “a deterioração é inelutável.”


XXXV- Ora de acordo com a literatura da especialidade, o tipo de demência apontado na perícia, é degenerativo, a sua causa é tida como irreversível, o seu curso é lento e progressivo, os sintomas cognitivos são duradouros e a sua evolução é tida como crónica e progressiva. (Carlos Braz Saraiva e Joaquim Cerejeira, Psiquiatria Fundamental, 2014)


XXXVI- Pelo que os requerentes não podiam deixar de requerer segunda perícia, observados os erros da primeira, que motivaram um errado apuramento da data de início da afecção do beneficiário, reportada a 7/2023, quando no fim de páginas 5 do relatório, reconhece-se que “…já estaria, certamente, o indivíduo afeto de limitações cognitivas em anos anteriores (pelo menos em 2019, altura em que o próprio procurou cuidados médicos).


XXXVII- Pelo que é errada e sem cariz científico a conclusão de início da afecção firmada em julho de 2023, quando a própria perícia sugere que o beneficiário já teria limitações em anos anteriores, contudo, não auscultou os requerentes, não indagou dos registos clínicos, das receitas médicas e de outros eventuais elementos existentes desde 2019!


XXXVIII- Alegou a Sra. Perita a páginas 2 do relatório, que a sua intenção inicial, era conhecer os registos clínicos, afirmando não compreender porque é o Mmº Juiz a quo pediu apenas a lista de “datas de todas as consultas do acompanhado”, acrescentando ainda, “Não nos sendo evidente a razão pela qual tomou V. Exa a opção de restringir o solicitado às datas das consultas, sem ademais informação, mormente clínica, como foi o desiderato da perita…”


XXXIX- Pelo que o Mmº Juiz a quo não entendeu o pedido da Sra. Perita, que por sua vez acabou a conformar-se com a ausência dos elementos clínicos que pediu e que a seu ver eram importantes, mas que depois deixaram de o ser, porque o Tribunal não pediu bem o que era para ter sido pedido, negligenciando-se assim, o cabal apuramento da situação do beneficiário.


XL- Nesta senda chega a ser atentatória a afirmação da Sra. Perita em sede de esclarecimentos, quando em relação aos registos clínicos de 19 consultas que a própria havia requerido, diz, “…é remota, senão desprezível, a virtualidade de alterarem as conclusões médico-legais…”


XLI- Afirmação que não comporta lógica em sede de avaliação psiquiátrica sob pena de o exercício pericial nesta parte ser o da mera especulação, em que simplisticamente e sem critério de ciência, faz-se equivaler a data da incapacidade à data do primeiro exame neuropsicológico realizado.


XLII- Perante todos os factos carreados no requerimento, o julgador a quo expressou, “após os esclarecimentos prestados pela Ilustre Perita, não persistem no espírito do julgador dúvidas que carecem de ser sanadas”, afirmação que se impugna, pois, o fundamento é genérico e não aponta a falta de mérito das razões invocadas pelos requerentes.


XLIII- Genérico e colateral às razões objectivas elencadas para a realização de segunda perícia, é também o fundamento expresso no parágrafo 6.º, páginas 5, “não cabe ao tribunal, no âmbito de processo de maior acompanhado, dirimir conflitos familiares ou apreciar a gestão patrimonial e financeira dos bens do beneficiário…”, o que se impugna pois o requerimento versa de modo objectivo sobre as estatuições da perícia.


XLIV- O Mmo Juiz a quo refere ainda a competência e isenção do INML e em elementos que nas suas palavras, permitiram “à Ilustre Perita traçar com rigor e segurança, um perfil neurológico do beneficiário e evolução do seu quadro clínico”, afirmação que se impugna por todo o expendido.


XLV- Em sede pericial inexistiu heteroanamnese de acordo com os princípios da avaliação psiquiátrica pois ao contrário da requerida, os requerentes não foram entrevistados; não chegaram aos autos os registos clínicos de 19 consultas assim como demais exames médicos realizados entre 2019 e 2024; isto sem prejuízo, de as próprias conclusões atrás transcritas quantos ás consequências da incapacidade, não se encontrarem devidamente fundamentadas.


XLVI- A páginas 6, no 2.º parágrafo, o Mmº Juiz a quo, expressa ainda que o processo é urgente e que inexistem dúvidas sérias, o que o douto julgador declara, sem que em algum momento aborde os argumentos apresentados pelos requerentes.


XLVII- Nesta senda terá o douto Tribunal a quo violado o artigo 487.º n.º1 e n.º3 do C.P.C., uma vez que sem fundamentos hábeis, indefere o requerimento de segunda perícia, acabando a rejeitar um meio de prova legitimamente impulsionado pelos requerentes, quando erros e inexactidões foram concretamente apontados.


XLVIII- Segundo Ac. da Relação de Coimbra, de 11/03/25, Proc. 932/23.8T8LRA-A.C1, Rel. Dra. Cristina Neves,“ A admissão da segunda perícia basta-se com a alegação fundada de razões de discordância relativamente ao relatório pericial apresentado na primeira perícia, nos termos do disposto no artigo 487.º, n.º1 do C.P.C., não sendo exigido nenhum juízo de prognose prévia do tribunal quanto ao bem ou mal fundado destas razões ou do seu sucesso ou insucesso.”


XLIX- O Tribunal a quo aborda razões como celeridade e urgência como se acima de tudo tivesse de imperar a rapidez no decreto do acompanhamento, não importando se questões relevantes ficam por decidir. Os requerentes impugnam este entendimento.


L- Defendem os recorrentes que a celeridade e conveniência, devem ceder, se certa questão crucial que respeite ao superior interesse do beneficiário estiver por dilucidar, o que é o caso, pois quer as consequências da incapacidade assim como a data fixada para o inicio da mesma, não estão de acordo com os resultados dos exames neuropsicológicos, tendo ainda sido estatuídas à margem de critérios cientificos e à margem de elementos clínicos, que tivessem sido considerados, propiciariam diferentes conclusões. (…)”


M.


O M.º P.º respondeu às alegações dos Recorrentes, pugnando pela manutenção do despacho recorrido, concluindo nos seguintes termos:


“(…)


1) Os Recorrentes interpuseram recurso despacho datado de 2 de julho de 2025, pela qual o Meritíssimo Juiz a quo decidiu indeferir a realização de uma segunda perícia ao Beneficiário.


2) Os Recorrentes pugnam pela revogação da despacho, por considerar que se impunha a realização de nova perícia tendo em vista não só resolver as incongruências resultantes da primeira como definir, qual a data desde a qual as medidas de acompanhamento se tornaram convenientes, que insiste, se situará em 2019 e não após julho de 2023 como indica o relatório pericial.


3) Entendem os Recorrentes que o despacho recorrido viola o disposto no artigo 487.º n.º 1 e n.º 3 Código de Processo Civil.


4) Sucede que à perícia em causa não se aplica o disposto nos normativos alegadamente violados norma geral, sem ter em conta o disposto no artigo 899.º n.º1 e n.º2, dado que atenta a regra contida no artigo 549.º n.º1 do Código de Processo Civil, esse exame pericial está sujeito às regras gerais sobre prova pericial previstas nos artigos 467.º a 489.º, mas sem prejuízo das regras especiais estipuladas no artigo 899.º, que não podem ser preteridas e fazem ceder o regime geral.


5) No caso, uma segunda perícia dependeria sempre da existência de dúvidas do Tribunal, que no caso não existem uma vez que o Meritíssimo Juiz a quo deixou claro estar cabalmente esclarecido quanto à matéria objeto de perícia, o que a torna uma segunda perícia legalmente inadmissível.


6) Por outro lado, uma segunda perícia teria de obedecer ao disposto no artigo 899.º n.º2 do Código de Processo Civil, segundo o qual “Permanecendo dúvidas, o juiz pode autorizar o exame numa clínica da especialidade, com internamento nunca superior a um mês e sob responsabilidade do diretor respetivo, ou ordenar quaisquer outras diligências”, o que não seria proporcional, necessário nem ajustado tendo em conta que a situação clínica do beneficiário está definida assim como a data desde a qual se verifica a necessidade das medidas;


7) A perícia realizada, com os esclarecimentos prestados, responde de forma inequívoca quanto a todas as questões legalmente previstas no artigo 899.º n.º 1 do Código de Processo Civil, sendo que realização de uma nova perícia (ou de junção aos autos de qualquer elemento clínico adicional), corresponderia a um ato inútil, cuja prática é legalmente proibida nos termos do artigo 130.º do Código De Processo Civil;


8) Os Recorrentes não justificam a necessidade de uma nova perícia com base na falta de respostas, nem está em causa a descoberta da verdade, mas apenas a sua pretensão de obter uma resposta distinta daquela que resulta da perícia e com a qual discordam;


9) Concordando-se ou não com a perícia, a decisão recorrida é conforme à lei, ao direito e aos interesses do Acompanhado, não merecendo qualquer censura;


10) Sendo o despacho recorrido conforme à Lei e à Constituição, não tendo sido tomada em atropelo de qualquer norma jurídica, bem andou o Tribunal a quo, razão pela qual a decisão recorrida não merece qualquer reparo, devendo manter-se inalterada. (…)”


N.


Admitido o recurso, colheram-se os vistos dos Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.


O.


Questões a decidir


O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos Recorrentes, sem prejuízo da sua ampliação a requerimento dos Recorridos (art.ºs 635º, n.º 4, 636º e 639º, n.ºs 1 e 2 do CPC).


Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art.º 608º, n.º 2, parte final, ex vi do art.º 663º, n.º 2, parte final, ambos do CPC).


Também está vedado o conhecimento de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de questões prévias judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente confirmação, anulação, alteração e/ou revogação.


É apenas uma, a questão, exclusivamente jurídico-processual, em apreciação no presente recurso:


Se deve realizar-se a segunda perícia de avaliação psiquiátrica da pessoa do beneficiário.


*


***


II. FUNDAMENTAÇÃO


*


A. De facto


*


O recurso é exclusivamente de direito e os elementos relevantes para a decisão constam do relatório antecedente.


*


B. De direito


*


Vem o presente recurso interposto de despacho que indeferiu o requerimento, apresentado pelos Requerentes de realização de segunda perícia de avaliação psicológica à pessoa do Beneficiário.


Sintetizando as razões da discordância, apresentadas nas conclusões do recurso interposto, consideram os Recorrentes que o despacho de indeferimento da 2ª perícia recorrido:


- apresenta fundamentos genéricos, como a urgência dos autos e a isenção do INML, mas não procede à melhor análise das razões dos Requerentes, já que a resposta dada pela Sr.ª Perita quanto à fixação da data de início da incapacidade – Julho de 2023 - não assenta em pressuposto científico por, sabido nos autos que DD é acompanhado em neurologia desde 2019, se mostrar fundamental conhecer os registos clínicos das 19 consultas realizadas ao beneficiário entre 2019 e 2024, bem como os exames de diagnóstico realizados neste espaço temporal e ainda as guias de tratamento prescritas no mesmo período;


- a justificação constante do despacho recorrido - de que “…a Sr.ª Perita ponderou, para além da entrevista pessoal ao Beneficiário e os elementos constantes dos autos, duas avaliações neuropsicológicas elaboradas ao Beneficiário e efetuadas num período de um ano e meio (julho de 2023 a janeiro de 2025) que permitiu à Ilustre Perita traçar, com rigor e segurança, um perfil neuropsicológico do Beneficiário e evolução do seu quadro clínico…” – não teve em devida consideração que, na impossibilidade de comunicar do Beneficiário, foi EE quem transmitiu à Sr.ª Perita informação que não é fidedigna e que os exames neuropsicológicos realizados em 2023 e 2025 não contêm elementos que permitam, objectiva e rigorosamente, aferir se o momento do início da incapacidade é anterior, sendo, neste particular, os registos clínicos das 19 consultas iniciadas em 2019 um contributo que não podia ter sido prescindido;


- o relatório pericial padece de incongruências, quer quanto ao interesse em consultar os registos clínicos anteriores, quer relativamente aos resultados dos exames neuropsicológicos a que o beneficiário foi sujeito.


*


Da relevância da fixação da data da incapacidade do Beneficiário


*


O ponto central da discordância dos Recorrentes relativamente ao teor do relatório pericial está nos elementos que a Sr.ª Perita utilizou para fixar a data do início da incapacidade do Beneficiário “…algures entre julho de 2023 e janeiro de 2025.”


Antes de entrarmos na análise do seu entendimento, diremos que a data do provável início da incapacidade do Beneficiário constitui uma das questões a responder pela perícia, expressamente incluída no seu objecto por despacho determinativo da sua realização, proferido a 11.09.2024, em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 899º do CPC onde se prescreve que o relatório deve precisar, sempre que possível, a data do provável do início da afecção.


Constitui também, no âmbito da presente acção, matéria de facto relevante, na medida em que os Requerentes sustentam que o Beneficiário se encontra incapacitado desde 2019 e que, à data de ........2023 em que celebrou casamento com EE, assim como acto de disposição da quota disponível a favor desta, sem o conhecimento dos Requerentes seus filhos, estaria já desprovido de capacidade para o efeito.


Convenhamos que a grande proximidade entre a data destes negócios jurídicos e as datas em que o relatório pericial considera possível o início da incapacidade do Beneficiário – Julho de 2023 -, a natureza dos actos em apreço - o casamento e a convenção antenupcial - e o alegado secretismo que os envolveu, recomendam o maior rigor na averiguação da data do provável início da incapacidade.


Rigor necessário, não tanto para determinar a validade jurídica de tais actos (que a presente acção especial de acompanhamento de maior não tem por objecto dirimir), mas sobretudo para aferir a (in)idoneidade de uma das pessoas que se encontram próximas do Beneficiário – a cônjuge EE – que com ele celebrou tais actos em benefício próprio, para exercer funções como acompanhante ou para a prática de outros actos de representação que venham a mostrar-se necessários no quadro de incapacidade do marido.


Trata-se, assim, de matéria seguramente relevante para a decisão a proferir na presente acção.


*


Das perícias em processo especial de acompanhamento de maior


*


O processo acompanhamento de maior tem carácter urgente, aplicando-se-lhe, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz (cfr. n.º 1 do artigo 891.º do Código Processo Civil). Este, pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes, assim como admitir apenas as provas que considere necessárias para a boa decisão da causa (cfr. n.º 2 do art.º 986.º do Código Processo Civil).


Com ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, “[n]ão seguindo, embora, a tramitação própria dos processos de jurisdição voluntária, são aplicáveis os princípios inerentes (RL.2-7-2:18153/18) (…). Do novo regime emerge um claro reforço dos poderes inquisitórios do juiz (art. 986º, nº 2), o fortalecimento do poder de direção, que pode manifestar-se através da limitação aos meios de prova que, em concreto, se revelem necessários, e ainda a possibilidade de se alicerçar a decisão em razões de oportunidade ou de conveniência, sempre sob o signo da satisfação dos interesses do beneficiário (art. 987º).” (inCódigo de Processo Civil Anotado”, volume II, 2ª edição, pág. 343, anotação 3 ao artigo 891º).


Neste contexto, a realização da perícia emerge como um meio de prova de que o juiz pode socorrer-se, como decorre do disposto no n.º 1 do artigo 897º, onde está previsto que o juiz “…ordena as diligências que considere convenientes, podendo, designadamente, nomear um ou vários peritos.” e do n.º 1 do artigo 899º do qual decorre que “[q]uando determinado pelo juiz, o perito ou os peritos elaboram um relatório que precise, sempre que possível, a afeção de que sofre o beneficiário, as suas consequências, a data provável do seu início e os meios de apoio e de tratamento aconselháveis.”


Uma vez determinada pelo juiz a sua realização, a prova pericial deverá respeitar o regime geral regulado nos artigos 467º a 489º do CPC em tudo quanto não contrariar regras do processo de especial de acompanhamento de maior.


Como referem os supra identificados autores, “[o] relatório pericial pode ser objeto de reclamação nos termos gerais previstos no art.º 485º, podendo, também nos gerais, justificar-se a realização de segunda perícia (cf. RL 27-4-21, 42/20)” (in Op. Cit., pág. 352, anotação 3 ao art.º 899º).


Estando sujeita aos termos gerais, a realização de segunda perícia no processo de acompanhamento de maior é regida pelo disposto nos artigos 487º a 489º do CPC, podendo ser requerida por qualquer das partes no prazo de 10 dias a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado (n.º 1 do art.º 487º) e tem por objecto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira, destinando-se a corrigir a eventual inexatidão dos resultados desta (n.º 3 do art.º 487º). Quanto ao modo de realização, a segunda perícia rege-se pelas disposições aplicáveis à primeira, embora se encontre impedido de intervir na segunda perícia, perito que tenha participado naquela (cfr. art.º 488º do CPC).


Devemos ter ainda presente a norma do n.º 2 do art.º 899º do CPC que, no processo de acompanhamento de maior, confere ao juiz a possibilidade de autorizar o exame numa clínica da especialidade, com internamento do beneficiário nunca superior a um mês e sob responsabilidade do director respetivo.


Sendo mais uma possibilidade que o processo especial de acompanhamento de maior coloca à disposição do juiz do processo, esta norma especial não obsta, porém, à realização da segunda perícia sem se sujeitar o examinado às descritas condições.


Desde logo porque a redacção da norma – “…permanecendo dúvidas, o juiz pode…” - é reveladora de que fica ao critério do juiz sujeitar o beneficiário a internamento.


Depois porque o preceito legal finaliza com a alusão à prerrogativa de “…ordenar quaisquer outras diligências…”, abrindo expressamente a porta a que o magistrado judicial adeque os meios de prova às circunstâncias de cada caso.


*


Da necessidade de ordenar a realização de segunda perícia


*


Feitas a consideração prévia e apresentação do regime jurídico a que está sujeita a realização da segunda perícia no processo de acompanhamento de maior, vejamos agora, se e em que medida, a realização desta se justifica na situação concreta em análise.


Os Recorrentes entendem que, ao não ter admitido a realização de segunda perícia, o despacho recorrido não atentou devidamente nas razões que invocaram, já que se mostra fundamental para fixar a data de início da incapacidade do beneficiário, conhecer os registos clínicos das 19 consultas realizadas ao beneficiário entre 2019 e 2024, bem como os exames de diagnóstico realizados neste espaço temporal e ainda as guias de tratamento prescritas no mesmo período.


Podemos sintetizar nas seguintes, as razões do despacho recorrido para recusar a realização a segunda perícia:


i. Compete ao tribunal, em primeira linha, decidir se o Beneficiário padece de algum problema de saúde, deficiência ou comportamento que o impede de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de cumprir os seus deveres e, em caso de resposta afirmativa, verificar se justifica a aplicação de medidas de acompanhamento, quais e em que medida, procedendo ainda à nomeação do Acompanhante e quando possível, fixar uma data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes (cfr. artigo 138.º do Código Civil e 900.º, n.º 1 do Código Processo Civil.


ii. Após os esclarecimentos prestados, não persistem no espírito do julgador dúvidas que careçam de ser sanadas, tendo a Ilustre Perita ponderado, para além da entrevista pessoal ao Beneficiário e os elementos constantes dos autos, duas avaliações neuropsicológicas elaboradas ao Beneficiário, efetuadas num período de um ano e meio (julho de 2023 a janeiro de 2025) o que lhe permitiu traçar, com rigor e segurança, um perfil neuropsicológico do Beneficiário e a evolução do seu quadro clínico.


iii. Inexistindo dúvidas sérias sobre a situação do Beneficiário, a realização de uma segunda perícia apenas teria o condão de protelar o andamento dos autos, não com o fim de se obter esclarecimentos sobre eventuais questões que o primeiro relatório não esclarece ou dá resposta (que, no entender do tribunal, não se verificam), mas sim na procura de uma resposta diferente daquela que o relatório pericial junto aos autos já deu.


Analisando-as, diremos que:


i.


Relativamente às questões que compete ao tribunal decidir no processo especial de acompanhamento de maior, sendo correctas as considerações vertidas no despacho recorrido, remetemos para quanto aqui deixámos exposto em tema “[d]a relevância da fixação da data da incapacidade do Beneficiário” para secundar a importância da conclusão pericial sobre esta data no contexto concreto da presente demanda e da necessidade de encontrar um acompanhante idóneo a colocar os interesses do acompanhado acima dos próprios.


Assim, como se concluiu já, a questão reveste, na presente acção, grande relevância.


ii.


É sobre a conclusão da 1ª instância, de que não persistem no espírito do julgador dúvidas que careçam de ser sanadas, que incidem as dúvidas que temos quanto à posição assumida no despacho recorrido.


Aí se considera o tribunal cabalmente esclarecido porque a Ilustre Perita traçou, com rigor e segurança, um perfil neuropsicológico do Beneficiário e a evolução do seu quadro clínico a partir da análise ponderada da entrevista pessoal ao Beneficiário e dos elementos constantes dos autos (duas avaliações neuropsicológicas elaboradas ao Beneficiário, efectuadas em Julho de 2023 e Janeiro de 2025).


Sucede que não é tanto o apuramento do perfil neuropsicológico do Beneficiário, nem a evolução do seu quadro clínico a partir de Julho de 2023 – data em que foi realizada a primeira avaliação de que a Sr.ª Perita dispôs na sua avaliação – que suscita reservas na fundamentação do relatório pericial, mas antes o apuramento do grau de afecção do Beneficiário desde Agosto de 2019 até Julho de 2023, relativamente ao qual a Sr.ª Perita não teve possibilidade de consultar os elementos objectivos resultantes de 13 consultas a que o Beneficiário foi nesse período submetido (conforme informação junta aos autos pela “II Medical Services, Ld.ª” a 09.01.2025).


É, aliás, a própria Sr.ª Perita quem o diz quando informa no relatório final que “[s]olicitou este Tribunal à clínica onde o examinando é acompanhado em consultas de Neurologia (…). Não nos sendo evidente a razão pela qual tomou V. Ex.ª a opção de restringir o solicitado às datas das consultas, sem ademais informação, mormente clínica, como foi o desiderato da Perita, fomos reler a ponto 2) das conclusões preliminares em que a Perita tentou fundamentar o pedido dessas peças. De facto, concede-se que a formulação do pedido peque por ambíguo (não se pretende, não se pede, nem é útil, relatórios clínicos, mas tão só re-impressão de registos informáticos ou fotocópias em papel dos registos que foram feitas nas respectivas datas desde que vem sendo assistido em Neurologia). Esclarece, agora, a Perita que onde se lê registos deve ler-se registos clínicos (diários clínicos, anotações da consulta). 2019 três consultas 2020 duas consultas 2021 três consultas 2022 três consultas 2023 três consultas 2024 cinco consultas (…).”


Não se olvida que a Sr.ª Perita veio mais tarde, em sede de esclarecimentos, dar nota de que a avaliação neuropsicológica de Julho de 2023 foi “…tida como idónea, exímia e rigorosa na sua metodologia e conclusão (tanto que foi feita num laboratório altamente especializado na linguagem, habilidade muito comprometida no examinando) e, com altíssima probabilidade, mais meticulosa e informativa – nessa circunstância de maior força valorativa, concreta e inclusivamente de teor quantitativo, dito de outro modo, superior em termos objetivos - do que as anotações médicas.”


Mas a verdade é que:


- a Sr.ª Perita não logrou, por via do referido relatório neuropsicológico de Julho de 2023, ter acesso a qualquer informação clínica anterior a Julho de 2023, o que seria possível através registos das 13 consultas realizadas nos quase 4 anos anteriores, de Agosto de 2019 a Junho de 2023;


- a “altíssima probabilidade” aludida pela Sr.ª Perita é, não apenas uma assunção à qual falta o conforto dos elementos objectivos que não analisou, mas compara também o volume e a qualidade da informação contidos num exame de avaliação detalhado e completo com o registo de simples consultas, sem ter em linha de conta as datas a que respeitam tais elementos. Dito de outro modo: se não nos merece qualquer estranheza a conclusão de que o exame neuropsicológico pode perfeitamente substituir o registo das consultas do Beneficiário realizadas em datas próximas da realização daquele, já a ideia de que o exame realizado em Julho de 2023 torna provavelmente supérflua a informação constante de consultas realizadas durante quase 4 anos anteriores, se afigura muito parcamente fundamentada, sobretudo quando não há evidência de que o relatório neuropsicológico tenha tido acesso a esse histórico e uma das questões a tratar é, precisamente, se há evidências de que a incapacidade do Beneficiário possa ser anterior a Maio de 2023;


- a afirmação produzida nos esclarecimentos da Sr.ª Perita sobre as qualidades relativas do perfil neuropsicológico em apreço parece-nos, por isso, relevante para apuramento de outros elementos fundamentais como a natureza da doença, das incapacidades presentes e futuras que a mesma acarreta e acarretará ao Beneficiário, mas insuficiente quanto à data provável do início da incapacidade deste.


Se assim é quanto às virtudes substitutivas do exame neuropsicológico, também a parte em que o relatório pericial e, bem assim, o despacho recorrido, remete para a análise da entrevista pessoal ao Beneficiário, deve ser considerada claramente insuficiente para o efeito em apreço.


Isto porque, para além de terem sido produzidas depois da propositura da presente lide e não revestirem a objectividade de um registo clínico, resulta claramente dos relatórios periciais e das avaliações neuropsicológicas que a incapacidade actual do Beneficiário torna imprestáveis as suas informações sobre a evolução histórica da doença e que terá sido a cônjuge a transmitir alguma informação relevante para o efeito.


Todavia, pelo evidente interesse que EE tem nos termos e, sobretudo, na data provável, da incapacidade do Beneficiário, a declarar pelo Tribunal na presente acção, tudo o que possa dizer a esse respeito deverá ser analisado com o necessário distanciamento.


Deste modo, não acompanhamos o entendimento do despacho recorrido no que respeita ao rigor e segurança com que a Sr.ª Perita fixou a data provável do início da incapacidade do Beneficiário.


iii.


As questões que acabámos de expor colocam em crise uma das premissas – a inexistência de dúvidas sérias sobre a situação do Beneficiário, no que à data do provável início da incapacidade respeita - sobre a qual assenta a conclusão de que “a realização de uma segunda perícia apenas teria o condão de protelar o andamento dos autos, não com o fim de se obter esclarecimentos sobre eventuais questões que o primeiro relatório não esclarece ou dá resposta”.


Assim, fenece também este argumento do despacho recorrido.


*


Concluindo:


- os Recorrentes alegaram fundadamente e em tempo, as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado; e


- há justificadas dúvidas sobre a exactidão dos resultados da 1ª perícia, no que à data do provável início da afecção do Beneficiário respeita.


Como vem sendo entendido na jurisprudência, a realização de segunda perícia «…terá lugar quando a parte, em conformidade com o disposto no artigo 487.º n.º 1 CPC, alegar "fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado"» (neste sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12.01.2017, relatado pelo Juiz Desembargador António Beça Pereira no processo n.º 117/14.4TBMGD-B.G1), 1 “…não sendo exigido nenhum juízo de prognose prévia do tribunal quanto ao bem ou mal fundado destas razões ou do seu sucesso ou insucesso.” (assim, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11.03.2025, relatado pela Juíza Desembargadora Cristina Neves no processo n.º 932/23.8T8LRA-A.C1). 2


Tendo sido alegadas fundadamente as razões da discordância relativamente ao relatório pericial apresentado e havendo justificadas dúvidas sobre a exactidão dos resultados da 1ª perícia, no que à data do provável início da afecção do Beneficiário respeita, impõe-se a realização de uma segunda perícia com a prévia obtenção dos elementos que haviam sido inicialmente solicitados.


A saber: cópia dos registos clínicos (diários clínicos, anotações da consulta), informáticos ou em papel, feitos nas datas das consultas de especialidade a que foi sujeito o Beneficiário desde 2019 até 2024, melhor discriminadas na informação junta aos autos pela “II Medical Services, Ld.ª” a 09.01.2025.


*


Consequentemente, deve ser revogado o despacho recorrido e substituído por outro determinativo da realização de segunda perícia, precedida da obtenção e disponibilização ao GML dos supra mencionados registos clínicos.


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Custas


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Não havendo norma que preveja isenção (art. 4º, n.º 2 do RCP), o presente recurso está sujeito a custas (art.º 607º, n.º 6, ex vi do art.º 663º, n.º 2, ambos do CPC).


No critério definido pelos artigos 527º, n.ºs 1 e 2 e 607º, n.º 6, ambos do CPC, a responsabilidade pelo pagamento dos encargos e das custas de parte assenta no vencimento ou decaimento na causa ou, não havendo vencimento, no proveito.


No caso vertente, os Recorrentes obtiveram vencimento no recurso, estando o M.º P.º que contra-alegou, isento do pagamento de custas (cfr. alínea a) do n.º 1 do art.º 4º do Regulamento das Custas Processuais).


*


***


III. DECISÃO


*


Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, em:


1.


Julgar procedente a presente apelação, revogando o despacho recorrido e determinando a sua substituição por outro que defira a realização de segunda perícia à pessoa do Beneficiário, precedida da obtenção de cópia dos registos clínicos (diários clínicos, anotações da consulta), informáticos ou em papel, feitos nas datas das consultas de especialidade a que foi sujeito desde 2019 até 2024, melhor discriminadas na informação junta aos autos pela “II Medical Services, Ld.ª” a 09.01.2025.


2.


Não condenar o M.º P.º nas custas do recurso por delas estar isento.


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Notifique.


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Évora, d.c.s.


Os Juízes Desembargadores


Relator: Ricardo Miranda Peixoto;


1º Adjunto: Ana Pessoa; e


2ª Adjunto: Manuel Bargado.

___________________________________

1. Disponível na ligação:

https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/90e7df230dd52fcc802580c800591532?OpenDocument↩︎

2. Disponível na ligação:

https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/eab9cab200a931ac80258c54004c48d3?OpenDocument↩︎