Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1469/13.9TBBNV-A.E1
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR
Data do Acordão: 06/30/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: A relação de dependência entre o procedimento cautelar e a acção não obriga que os requerentes daquele tenham que ser exactamente os mesmos que os autores desta.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora

AA, BB, CC, DD, EE, FF, FF, GG, e HH, II, JJ e LL instauraram contra MM, casado com NN sob o regime da comunhão de adquiridos, e OO, casado com PP sob o regime da comunhão de adquiridos, providência cautelar de restituição provisória da posse pedindo que seja ordenada a restituição provisória da posse, aos Requerentes, do caminho existente com a largura de três metros, existente junto à extrema nascente do prédio rústico que identificam, serventia que tem o comprimento de 129 m e a largura de 3 metros. Pedem que seja ordenada a abertura do portão que dá acesso ao leito do caminho, a reposição do leito do caminho para que seja transitável por pessoas e veículos e que se abstenham de praticar actos que perturbem o normal uso do caminho pelos requerentes.
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Foi proferida sentença que, julgando a providência procedente, ordenou a restituição nos termos pretendidos.
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Inconformados com a decisão que deferiu o procedimento cautelar de restituição provisória da posse vieram os requeridos MM e OO deduzir contra os requerentes oposição, alegando em síntese:
a. a ilegitimidade dos requerentes porquanto não coincidem as partes do procedimento cautelar com as partes na acção principal;
b. a inexistência de violência do esbulho;
c. a caducidade do direito de acção porquanto a existir esbulho o mesmo ocorreu há mais de 2 anos.
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A oposição foi julgada improcedente e foi mantida a anterior sentença.
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Os requerido recorrem defendendo que a sentença deve ser anulada ou revogada,
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Foram colhidos os vistos.
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Os factos dados por provados em ambas as decisões são os seguintes:
I- da providência inicial:
A. Encontra-se inscrito a favor dos Primeiros Requerentes, na qualidade de únicos herdeiros de QQ, em comum e sem determinação de parte ou direito, do prédio rústico, inscrito na matriz cadastral da freguesia sob o artigo 63 da Secção F, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 3287, da indicada freguesia, onde se mostra registada a aquisição sob a Ap. 20 de 26/03/1997, conforme doc. 1 e 2 juntos com a PI cujo teor se dá por reproduzido;
B. Encontra-se inscrito a favor dos Segundos Requerentes, na qualidade de herdeiros de RR e SS em comum e sem determinação de parte ou direito, do prédio misto sendo que, a parte rústica se encontra inscrita na matriz cadastral da freguesia sob o artigo 62 da Secção F e a urbana sob o artigo 1594, descrito na Conservatória do Registo Predial de Salvaterra sob o n.º 3297, da indicada freguesia, onde se mostra registada a aquisição sob a Ap. 4 de 16/04/1997. –
C. Encontra-se inscrito a favor da 3.ª Requerente em comum e sem determinação de parte ou direito, com os demais herdeiros de TT, o prédio misto sendo que, a parte rústica se encontra inscrita na matriz cadastral da freguesia sob o artigo 61 da Secção F e a urbana sob o artigo 1384, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 3288, da indicada freguesia, onde se mostra registada a aquisição sob a Ap. 21 de 26/03/1997.
D. Todos os supra referidos prédios provieram do art.º 46 da secção F da freguesia,
E. Os Requeridos são os actuais donos e legítimos possuidores do prédio urbano, constituído sob o regime da propriedade horizontal, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 6143, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 4932.
F. O prédio dos Requeridos resulta da desanexação do prédio rústico, da mesma freguesia e concelho, inscrito na matriz cadastral sob o artigo 64 da secção F e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 1062.
G. Os Requerentes e os Requeridos, bem como, os seus respectivos antepossuidores, adquiriram os prédios de que são actualmente proprietários - os quais se encontram supra melhor identificados - por meio de escritura de doação e divisão de coisa comum, lavrada em 6 de Abril de 1973, no extinto Cartório Notarial;
H. Aquando da divisão operada pela escritura referida no artigo anterior, e uma vez que os prédios resultantes dessa divisão – artigos 60.º, 61.º, 62.º e 63.º – não possuíam acesso directo à via pública, foi por todos os intervenientes que outorgaram a aludida escritura - desta feita na qualidade de donos e legítimos possuidores das parcelas resultantes da divisão – constituída verbalmente a passagem a pé e de carro, com início na via pública, denominada Estrada do Forno, continuando no sentido SUL-NORTE, junto à extrema nascente do prédio mãe e terminando na extrema norte do mesmo.
I. A dita passagem, com a largura de três metros, foi constituída junto à extrema nascente do prédio rústico, inscrito na matriz cadastral sob o artigo 64 da Secção F e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 1062 da referida freguesia, que, actualmente, corresponde ao prédio dos RR, descrito em E);
J. A passagem atravessa o prédio dos Requeridos, bem como, todos os prédios rústicos dos aqui Requerentes;
K. O caminho/passagem sempre foi usado de forma contínua e ininterrupta pelos Requerentes e Requeridos e respectivos antepossuidores, à vista de toda a gente e na convicção de exercerem um direito de uso próprio, sem qualquer violência ou ocultação e sem qualquer oposição de quem quer que seja.
L. Os Requerentes sempre zelaram pela conservação do caminho, mantendo-o limpo e desobstruído, a fim de poder ser transitável por peões e veículos, como sempre foi.
M. O caminho encontra-se nitidamente demarcado por trilhos e rodados de veículos, sinais reveladores de que o mesmo tem vindo a ser utilizado, desde a data da sua constituição.
N. O caminho encontra-se demarcado na carta cadastral geométrica junta aos autos principais sob Doc. n.º 16. cujo teor se dá por reproduzido
O. Os Primeiros Requerentes na qualidade de proprietários do prédio descrito sob a ficha n.º 3287 da freguesia, inscrito na matriz cadastral rústica sob o artigo 63 da secção F celebraram, em 19 de Julho de 2011, no Cartório Notarial Privado escritura de justificação, por via da qual justificaram a posse, por usucapião, do caminho a pé e de carro, com início na via pública denominada Estrada ou Rua, continuando no sentido sul-norte, junto à extrema nascente do prédio serviente [ficha n.º 4932], com a largura de 3 [três] metros e comprimento de 129,05 [cento e vinte e nove vírgula cinco metros] terminando na extrema norte do prédio serviente
P. Os Requeridos foram devidamente notificados sem que tenham deduzido qualquer oposição à sua constituição por usucapião, conforme melhor consta exarado a fls. 8 da escritura de justificação, junta sob Doc. n.º 17 nos autos principais, cujo teor se dá por reproduzido.
Q. A prática dos actos supra descritos, fez com que os Requerentes se vissem obrigados a aceder aos seus prédios pela Rua XX, a qual constitui uma via de terra batida, onde o acesso, quer a pé, quer de carro à localidade se torna difícil e mais demorado, dado, não só, o mau estado da via, como também a maior distância que têm que percorrer.
R. O acesso a pé desde a casa da 3ª Requerente até à rua pela Rua XX implica que seja percorrida uma distância de 1,3 km.
S. O mau estado da via agravou-se ainda mais este inverno, devido ao elevado grau de pluviosidade que se tem feito sentir, provocando inundações nas zonas mais baixas impossibilitando a circulação.
T. A Terceira Requerente e demais membros do seu agregado familiar que, pelo facto de residirem em prédio urbano cujo acesso só pode ser feito pelo caminho em causa, a ele têm necessidade de aceder diariamente.
U. Todos os serviços públicos a que têm de aceder – transportes públicos, transporte escolar, serviços de saúde, serviços municipalizados de água e saneamento - bem como, o acesso aos seus locais de trabalho, sempre foi feito até à data de 28/12/2013 pelo leito do caminho, agora lavrado, e através deste pela rua.
II- da oposição:
A. O muro e o portão da habitação dos requeridos foram edificados em 2011;
B. Na data em que colocaram o portão os requeridos fecharam-no e utilizaram-no na medida dos seus interesses;
C. De igual modo os requeridos construíram o abrigo para colocação de garrafas de gás e edificaram o barracão em madeira.
D. A licença de utilização da moradia dos requeridos foi emitida em Julho de 2011;
E. Os prédios dos requerentes têm acesso à via pública pelo Norte;
F. O prédio dos requeridos, antes da construção da moradia ficava parcialmente inundado durante o inverno na zona que confrontava com a Rua;
G. O que impedia o acesso de carro àquele prédio;
H. Antes de 2009 sempre foram os pais e os tios dos requeridos que zelaram pela manutenção do acesso à rua, fizeram e limparam valetas, colocaram terra e saibro e ainda colocaram manilhas;
I. No início da obra os requeridos alargaram e aterraram o acesso à Rua, para que os camiões com os materiais para a obra ali conseguissem chegar;
J. Posteriormente fizeram o muro que confronta com a Rua e fizeram uma estrada para acederem ao quintal da sua casa, voltando a aterrar/altear a passagem.
K. Os requeridos não estão ligados à rede de fornecimento de água e esgotos.
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Como factos não provados da oposição, o tribunal considerou os seguintes:
L. Os requeridos na data em que colocaram o portão fecharam-no;
M. A inundação referida em Z. impedia a passagem de quem quer que fosse durante meses;
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Os recorrentes terminam a sua alegação desta maneira:
1.ª- A decisão do decretamento da providência é nula, por não ter na matéria de facto indiciariamente dada como provada, ficado consignados e especificados quaisquer factos relativos ao esbulho e à violência.
2.ª A douta sentença padece, igualmente do vício de nulidade, por ser contraditória e ambígua, por ter julgado como provados os factos da oposição constantes em A e B e simultaneamente como não provado o facto constante em L.
3.ª Ora, não é possível sustentar que se possa considerar provado que em 2011, os requeridos colocaram o portão que fecharam e utilizaram na medida dos seus interesses e mais à frente afirmar-se que não se provou que os requeridos na data em que colocaram o portão, fecharam-no.
4.ª Noutra parte, padece também a douta sentença de nulidade, se por um lado resultaram provados os factos da oposição constantes em F e G, e simultaneamente como não provado o facto constante em M.
5.ª Ou seja, ao afirmar-se que o prédio dos requeridos antes da construção da moradia ficava parcialmente inundado durante o Inverno na zona que confronta com a Rua, e que isso impedia o acesso de carro aquele prédio, mais à frente não podia afirmar-se que não se provou que a inundação impedia a passagem de quem quer que fosse durante meses.
6.ª Na douta sentença ao decidir-se negativamente a questão da caducidade o tribunal não o podia fazer a partir da remissão para factos que em lado algum se encontram consignados, ao faze-lo, violou o disposto nas aI. b) e d) do n.º do artigo 615° do CPC o que torna a douta sentença nula.
7.ª Ao não ter decidido, ou ter decidido ao lado daquilo que lhe era pedido para decidir, relativamente à necessidade de se verificar a identidade de partes entre o procedimento e a acção principal, o tribunal violou o princípio da instrumentalidade e da dependência previsto no artigo 364.º do CPC.
8.ª A Doutrina e a jurisprudência, há muito que vem entendendo, que se deve verificar a identidade subjectiva entre as partes do procedimento cautelar e as da acção principal, bem como da causa de pedir, é o chamado princípio da instrumentalidade e da dependência, sentido em que o tribunal deveria ter decidido e não decidiu.
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As primeiras conclusões prendem-se com a nulidade da sentença.
Começam por afirmar, os recorrentes, que a sentença é nula porque, na matéria de facto indiciariamente dada como provada, não ficaram consignados e especificados quaisquer factos relativos ao esbulho e à violência.
Não há nulidade. A sentença só é nula, nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. b), Cód. Proc. Civil, quando não especifique os fundamentos de facto. Ora, no nosso caso, a sentença contém essa fundamentação indicando os factos que ficaram provados e os que não ficaram provados.
Podem os recorrentes discordar da solução (não havendo violência não pode ser decretada a providência, nos termos do art.º 377.º) mas esse é outro problema e que nem sequer vem levantado nas alegações.
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Alegam também que a sentença padece, igualmente, do vício de nulidade, por ser contraditória e ambígua, por ter julgado como provados os factos da oposição constantes em A e B e simultaneamente como não provado o facto constante em L.
Por um lado, está provado que na data em que colocaram o portão (2011) os requeridos fecharam-no e utilizaram-no na medida dos seus interesses; por outro, não está provado que os requeridos na data em que colocaram o portão o tenham fechado.
Embora este facto não seja de uma relevância enorme, a verdade é que a contradição existe. Mas também não existe aqui nulidade pois o que a lei exige [art.º 615.º, n.º 1, al. c)] é que a ambiguidade ou obscuridade tornem a decisão ininteligível. A sentença é clara na sua parte decisória e em nada é afectada por esta contradição. O que cabe fazer é tão-só eliminar o facto não provado pois que sobre o outro o tribunal pronunciou-se positivamente (em bom rigor, até, como ele é dado por não provado, a sua relevância será nenhuma).
Mas, consequência importante, não tem nenhuma.
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Em relação à outra contradição assinalada (provados os factos da oposição constantes em F e G, e simultaneamente como não provado o facto constante em M), cremos que os recorrentes não têm razão.
O que está provado é que o prédio dos requeridos, antes da construção da moradia, ficava parcialmente inundado durante o inverno na zona que confrontava com a Rua o que impedia o acesso de carro àquele prédio. E o que está não provado é que a inundação referida em Z. impedia a passagem de quem quer que fosse durante meses. São realidades bem diferentes: uma coisa é impossibilitar o acesso de carro outra é impedir a passagem de quem quer que fosse.
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Invocam ainda a nulidade da sentença nestes termos: o tribunal não podia julgar improcedente a questão da caducidade a partir da remissão para factos que em lado algum se encontram consignados; mas o tribunal não fez isto. O que o tribunal escreveu foi: «Cotejada a prova conclui-se que os factos alegados na oposição tendentes comprovar a caducidade não lograram comprovação porquanto não se provou que a obra iniciada na moradia dos requeridos tenha impedido a passagem dos requerentes durante o período em que a mesma durou, nem se provou categoricamente que o portão dos requeridos estivesse sempre fechado porquanto as testemunhas inquiridas atestaram que o mesmo por vezes estava aberto». Não houve remissão para factos não provados; o que houve foi a consideração de que não se provaram factos que levassem a que a questão fosse julgada procedente, o que é bem diferente.
Não vemos, pois, aqui qualquer nulidade.
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A última questão colocada no recurso tem que ver com a necessidade de se verificar a identidade de partes entre o procedimento e a acção principal.
Defendem os recorrentes que requerentes são parte ilegítima por estarem desacompanhados de uma das autoras na acção principal pois que assim não está cumprido o princípio da instrumentalidade e dependência entre o procedimento cautelar e a acção.
Sem dúvida que deve haver identidade entre o que se discute num processo e o que se discute no outro. Mas esta identidade não tem que ser total ou absoluta, seja a nível objectivo seja a nível subjectivo. O litígio em si há-de ser o mesmo pois que a decisão principal (na acção propriamente dita) vai-se pronunciar sobre o mesmo caso que a decisão cautelar; da mesma forma, também há-de ter perante si as partes a quem o conflito diga respeito.
Mas isto não significa uma absoluta identidade.
No nosso caso, uma das autoras do processo principal não requereu o procedimento cautelar. Seria obrigada a fazê-lo para poder, depois, propor a acção principal? Ou, de forma inversa, perdem os requerentes legitimidade no procedimento porque na acção existe mais um autor?
Ninguém é obrigado a instaurar um procedimento cautelar. O interessado pode, muito legitimamente, optar por instaurar apenas a acção principal mesmo que a sua situação lhe não seja favorável.
O caso do ac. da Relação de Évora, de 6 de Novembro de 2008 (citado pelos recorrentes), é um caso diferente do destes autos. Ali tratava-se de o próprio esbulhador, requerido no procedimento de restituição de posse, não ter sido demandado — e isto, note-se, «dada a eficácia erga omnes do direito de retenção que a requerente se arrogava e que lhe garantia o direito de sequela sobre o respectivo objecto».
Aqui, estamos perante um caso de simples litisconsórcio voluntário em que a decisão produz o seu efeito útil normal (restituição definitiva da posse) mesmo que não vincule todos os interessados. Mas cabe notar, neste caso, que a decisão definitiva vai vincular todos os autores mesmo que não tenham sido requerentes.
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Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
Custas pelos recorrentes.
Évora, 30 de Junho de 2016

Paulo Amaral


Rosa Barroso


Francisco Matos