Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
4330/21.0T8STB-D.E1
Relator: ISABEL DE MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
CESSAÇÃO
VIOLAÇÃO DAS OBRIGAÇÕES IMPOSTAS
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Sendo manifesto que, de forma flagrante e desrespeitosa para com o tribunal e para com os credores, a Devedora incumpriu a obrigação a que estava adstrita por via do disposto no artigo 239.º, n.º 4, alíneas a), c) e d), do CIRE, atuando com dolo direto e prejudicando a satisfação dos créditos sobre a insolvência, justifica-se a decisão de cessação antecipada do procedimento de exoneração, com recusa da mesma.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Devedora Insolvente: (…)
Recorridos / Credores: (…) Banco, SA e outros

No âmbito do processo de insolvência, a Devedora requereu a concessão do beneficio da exoneração do passivo restante.
Foi proferido despacho de deferimento liminar de tal pedido, a 25/11/2021, declarando-se excluído de cessão o valor correspondente a um salário mínimo nacional.
O período de cessão iniciou em dezembro de 2021 sendo que, por despacho proferido a 28/04/2022, tal despacho foi reduzido a 3 (três) anos.
A 25/11/2021, a Fiduciária interpelou a Devedora para proceder à transferência dos montantes auferidos na parte que excedesse 1 SMN, ao envio dos recibos mensais de vencimento, desde dezembro de 2021 inclusive, e da declaração anual de IRS e respetiva nota de liquidação, com vista à elaboração do relatório a que alude o artigo 240.º do CIRE. Mais foi interpelada para enviar comprovativos de se encontrar em situação de desemprego, se for o caso.
Na resposta, a Devedora limitou-se a informar que iria ser interposto recurso da decisão relativa ao incidente de exoneração.
A 12/01/2023, a Fiduciária interpelou a Devedora para proceder ao envio dos recibos mensais de vencimento, desde dezembro de 2021 inclusive, e da declaração anual de IRS e respetiva nota de liquidação e ainda, se fosse caso disso, do comprovativo da situação de desemprego.
A 18/01/2023, a Devedora procedeu à junção do comprovativo da declaração de rendimentos dos anos de 2020 e 2021, omitindo a nota de liquidação e comprovativo que ateste que se encontra em situação de desemprego ou que não lhe é concedido qualquer apoio pela segurança social.
A 25/01/2023, a PSP, no âmbito de diligências determinadas no processo, informou que, “após várias deslocações à residência indicada, (…) a sobrinha da Insolvente informou que a sua tia se encontra a trabalhar na Suíça.”
A insolvente não comunicou aos autos qualquer mudança de domicílio, nem a situação profissional.
Não disponibilizou ao processo qualquer quantia monetária.

II – O Objeto do Recurso
Foi requerida a cessação antecipada da exoneração do passivo restante pela Fiduciária.
Os credores pronunciaram-se no sentido da cessação antecipada, acompanhando a Fiduciária,
A Devedora, em resposta, invocou não ter rendimentos e ter demonstrado a inexistência destes.
Foi proferido despacho declarando a cessação antecipada da exoneração do passivo restante relativamente por violação dolosa dos deveres previstos na alínea a), b), e d) do n.º 4, do artigo 239.º do CIRE, em conformidade com o disposto no artigo 243.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3, do CIRE.

Inconformada, a Devedora apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que mantenha a exoneração. As conclusões da alegação do recurso são as seguintes:
«1. A sentença recorrida viola os princípios do CIRE.
2. Pois o recorrente não possui rendimentos.
3. E por essa razão não apresentou os ditos rendimentos.
4. Porque pensou que o senhor AJ pudesse proceder à sua pesquisa.
5. E afirmar o que o Insolvente afirma.
6. Que, as não existe qualquer prejuízos para os credores.
7. Isto porque durante este tempo todo o recorrente não auferiu rendimentos.
8. E a cooperação que deve existir entre os agentes deverá ser recíproca.
9. E no caso em apreço inexistiu.
10. Ademais o recorrente vai por vezes ao estrangeiro.
11. Donde seja normal que possa não receber as cartas enviadas mas tem família em casa.
12. Mas o seu mandatário sempre foi notificado e sempre cooperou.
13. Pelo e sem delongas a presente peca por excessiva, pois penaliza duplamente quem já se encontra fragilizado.
14. Os bens, o carro não era da Insolvente, antes da locadora e quem pagou o carro foi o filho deste.
15. O referido bem nem podia ser apreendido para a massa».

Não foram apresentadas contra-alegações.

Cumpre apreciar se existe fundamento para a cessação antecipada do incidente de exoneração do passivo restante.


III – Fundamentos
A – Os factos provados em 1.ª Instância
a. Nos presentes autos de insolvência foi declarado insolvente, por sentença de 23/08/2021, (…).
b. Foi proferido despacho de deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante em 25/11/2021, tendo sido excluído de cessão o valor correspondente a um salário mínimo nacional.
c. O período de cessão foi iniciado em dezembro de 2021 (mês seguinte ao encerramento do processo).
d. Por despacho proferido na mesma data foi deferido o pedido de dispensa de liquidação do ativo relativamente ao veículo apreendido com a matrícula (…) de marca Citroen, modelo Citroen C4 Cactus 2017, pelo valor de € 8.500,00.
e. Foi determinado o depósito do referido valor na conta da massa insolvente.
f. Foi interposto recurso quanto ao despacho liminar de exoneração do passivo restante, tendo sido mantido o despacho suprarreferido, por acórdão proferido em 24/02/2020.
g. Por despacho proferido em 22/02/2023 foi dada sem efeito a dispensa de liquidação, na falta de depósito do valor de € 8.500,00 e determinada a entrega do veículo automóvel.
h. Por despacho de 13/07/2022 foi deferido o auxílio da força pública com vista à apreensão do veículo automóvel.
i. Desde que foi proferido despacho liminar de exoneração do passivo restante e até 12/01/2023 a insolvente não apresentou qualquer documentação atinente à sua situação profissional / rendimentos auferidos.
j. Nessa data apresentou comprovativos das declarações de rendimentos de 2020 e 2021 sem junção de quaisquer documentos referentes a nota de liquidação ou demonstrativos de situação de desemprego ou recebimento de qualquer apoio social.
k. O veículo automóvel de matrícula (…) foi transmitido no dia 13 de setembro de 2022 a (…), com o NIF (…), residente na Rua da (…), n.º 43, 2.º Direito, 2615-315 Alverca do Ribatejo.
l. (…) é filho da insolvente.
m. Foi prestada informação pela PSP de que a insolvente se encontra a trabalhar na Suíça.
n. A insolvente não comunicou aos autos qualquer mudança de domicílio, nem a situação profissional.
o. Procedeu à transmissão do veículo automóvel após a declaração de insolvência, apreensão do veículo e notificação para proceder à sua entrega.
p. A insolvente por requerimento datado de 08/02/2023, invocou não ter rendimentos e ter demonstrado a inexistência destes.
q. O seu passivo ascende a € 141.700,13.

B – A questão do Recurso
Nos termos do disposto no artigo 235.º do CIRE, se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência se não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo.
Entre essas disposições consta o artigo 239.º do CIRE, cujo n.º 2 estatui que o despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considere cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores de insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte. Segue o n.º 3 determinando que integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:
a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiros, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua atividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.
Trata-se de uma medida inovadora de proteção do devedor pessoa singular, permitindo que se liberte do peso das suas dívidas, podendo recomeçar de novo a sua vida[1]. Destina-se, pois, a promover a “reabilitação económica” do devedor a que alude o preâmbulo do DL n.º 53/2004, de 18 de março.
Não descurando, no entanto, os interesses dos credores, tal regime impõe ao devedor a cedência do seu rendimento disponível a um fiduciário nomeado pelo tribunal, que afetará os montantes recebidos ao pagamento dos itens enunciados no artigo 241.º, n.º 1, do CIRE, designadamente distribuindo o remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência.
Decorrido o período da cessão, proferir-se-á decisão sobre a concessão ou não da exoneração e, sendo esta concedida, ocorrerá a extinção de todos os créditos que ainda subsistam à data em que for concedida, sem exceção dos que não tenham sido reclamados e verificados – cfr. artigo 241.º, n.º 1 e 245.º do CIRE.
Ora, proferido que seja o despacho inicial da exoneração, o insolvente fica adstrito ao cumprimento das obrigações enumeradas no artigo 239.º do CIRE, podendo a violação dolosa das mesmas, entre outras, determinar a cessação antecipada do procedimento de exoneração.
A cessação antecipada do procedimento de exoneração, a que alude o artigo 243.º do CIRE, verifica-se quando:
- se mostrem integralmente satisfeitos todos os créditos da insolvência, implicando no encerramento do incidente de exoneração do passivo restante – artigo 243.º, n.º 4, do CIRE;
- venha a verificar-se que o devedor não é digno de beneficiar do referido procedimento, implicando na recusa superveniente da exoneração – artigo 243.º, n.º 1, do CIRE.
Neste último caso, mediante requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência se ainda se encontrar em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, cabe apreciar se o devedor dolosamente ou com grave negligência violou alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência – cfr. artigo 243.º, n.º 1, alínea a), do CIRE.
Nos termos do disposto no artigo 239.º, n.º 4, do CIRE, durante o período da cessão, o devedor fica (…) obrigado a:
a) não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;
b) (…);
c) entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão;
d) informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respetiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;
(…).»

No caso que temos em mãos, decorre da factualidade provada que a Devedora não prestou as informações e elementos documentais a que aludiu a Fiduciária relativos a rendimentos auferidos. No local que era referenciado como sendo a sua residência foi obtida a informação de que se encontra a trabalhar na Suíça.
Não colhe, portanto, a alegação avançada em sede de recurso no sentido de que nenhum rendimento auferiu e que nenhuma informação tinha a prestar à Fiduciária.
Ora, a Devedora, obrigada que estava, desde dezembro de 2021, à entrega à Fiduciária de todos os rendimentos que excedessem 1 SMN, assim como a informá-la dos rendimentos auferidos mediante a entrega dos documentos solicitados, nenhuma quantia entregou. Passou a trabalhar na Suíça, ocultando tal facto, os rendimentos auferidos e a mudança de domicílio da Fiduciária, que atempadamente a interpelou a cumprir os deveres inerentes ao incidente deduzido.
É, pois, manifesto que, de forma flagrante e desrespeitosa para com o tribunal e para com os credores, a Devedora incumpriu a obrigação a que estava adstrita por via do disposto no artigo 239.º, n.º 4, alíneas a), c) e d), do CIRE, atuando com dolo direto e prejudicando a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
Incumprimento que não decorre, como alega a Recorrente, da falta de cooperação do Tribunal ou do AE.

O que fundamenta a decisão de cessação antecipada do procedimento de exoneração, com recusa da exoneração, conforme determinado pelo Tribunal a quo.


IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela improcedência do recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.

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Évora, 8 de fevereiro de 2024
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Rui Machado e Moura
José Manuel Tomé de Carvalho

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[1] V. Assunção Cristas, Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante, Themis 2005, pág. 167.