Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
933/23.6T8PTM
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
TRIBUNAL DE FAMÍLIA
UNIÃO DE FACTO
Data do Acordão: 02/12/2024
Votação: PRESIDÊNCIA
Texto Integral: S
Sumário:
I – Perante um caso concreto em que se suscite a questão da delimitação da jurisdição competente, a primeira tarefa é determinar qual a específica matéria em causa, já que é por esta que se afere a competência.
II – O artigo 3.º, n.º 3, da LN, não criou nenhuma norma especial que contrariasse o que decorria da lei geral (LOFTJ) então vigente, que não atribuía aos já existentes Tribunais de Família e Menores as competências que a LOSJ lhes veio atribuir, mas apenas afastar a competência dos TAF para o processamento e tramitação daquela ação.
III – Alterada a LOSJ (a norma geral de atribuição de competência) e não sendo a norma do n.º 3 do artigo 3.º norma especial, atenta a previsão da alínea g) do n.º 1 do artigo 122.º da LOSJ, os Juízos de Família e Menores são atualmente os juízos materialmente competentes para preparar e julgar as ações de reconhecimento judicial da união de facto para aquisição de nacionalidade portuguesa.
(Sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Integral:
Conflito de competência
Processo n.º 933/23.6T8PTM
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém[1]
*****
I. Relatório
1. A e B, o primeiro de nacionalidade brasileira e o segundo de nacionalidade portuguesa, instauraram a presente ação contra o Estado Português, pedindo o reconhecimento da união de facto entre ambos existente desde (…), nos termos e para os fins da Lei n.º 7/2001 e da Lei n.º 37/81, com vista à aquisição da nacionalidade portuguesa pelo primeiro autor.

2. Por decisão proferida em 30.10.2023 foi declarada a incompetência, em razão da matéria, do Juízo Local Cível de Ourém para conhecer do pedido formulado pelos autores, e determinada a remessa dos autos ao Juízo de Família e Menores de Tomar, por ser o competente nos termos do artigo 122.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 62/2013, de 26 de junho.

3. Remetidos os autos, por decisão proferida em 22.01.2024, foi julgada verificada a exceção dilatória de incompetência material daquele Juízo de Família e Menores, para conhecer do pedido formulado pelos autores, e, em face do conflito negativo de competência, foi determinada a remessa a este Tribunal da Relação para a sua decisão pelo Presidente, nos termos do artigo 111.º, n.º 1, do CPC.

II. Apreciação
A única questão colocada para apreciação no presente conflito de competência consiste em determinar qual o Tribunal materialmente competente para a tramitação e decisão das ações de simples apreciação positiva de reconhecimento da existência de uma situação de união de facto, para efeitos de atribuição da nacionalidade portuguesa.
Cumpre apreciar e decidir, começando por notar que a questão decidenda não é nova, tendo a signatária, ainda na qualidade de relatora, tomado posição sobre a mesma na decisão sumária proferida no passado dia 13.07.2023, em recurso interposto no processo n.º 1828/22.6T8STR.E1 e, mais recentemente, já nas funções de Presidente do Tribunal da Relação de Évora, na decisão proferida no dia 05.02.2024, no conflito de competência ocorrido no processo n.º 3417/22.6T8PTM, entre o Juízo de Família e Menores de Portimão e o Juízo Local Cível de Portimão.
Vejamos, então, seguindo de perto a fundamentação expressa nas nossas acima mencionadas decisões.
Em face do disposto no artigo 211.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa[2], os Tribunais Judiciais são os tribunais comuns em matéria civil e criminal, e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens jurídicas, estabelecendo os artigos 64.º do CPC e 40.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26/08 – Lei da Organização do Sistema Judiciário[3] –, que os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, tendo consequentemente também competência residual no confronto com as outras ordens de tribunais.
Como evidenciam ANTUNES VARELA, MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO e NORA[4], «[p]ara que possa decidir sobre o mérito ou fundo da questão, requer-se que o tribunal, perante o qual a acção foi proposta, seja competente». Por isso, a competência é «um dos pressupostos processuais mais importantes, relativo ao tribunal», e «resulta do facto de o poder jurisdicional ser repartido, segundo critérios diversos, por numerosos tribunais», que no plano interno se organizam em diferentes categorias de tribunais, a cada uma das quais estão cometidas determinadas matérias de direito.
Prosseguem, ensinando que «[a] competência em razão da matéria distribui-se deste modo por diferentes espécies ou categorias de tribunais que se situam no mesmo plano horizontal, sem nenhuma relação de hierarquia (de subordinação ou dependência) entre elas. Na base da competência em razão da matéria está o princípio da especialização, com o reconhecimento da vantagem de reservar para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito, pela vastidão e pela especificidade das normas que os integram».
Esclarecem ainda JOSÉ LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE[5], que o critério da competência em razão da matéria não atua «apenas no plano da contraposição dos tribunais judiciais aos outros tribunais, mas também, como resulta do art. 65, no plano da contraposição dos vários tribunais de 1.ª instância entre si».
Conforme enfatizam JOÃO DE CASTRO MENDES e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA[6], «[a] competência é, grosso modo, a adstrição a certo tribunal de certa categoria de processos. Vista pelo ângulo do tribunal, a competência pertence à organização judiciária e como tal é regulada pelas leis de organização judiciária (art. 37.º, n.º 1, 40.º, 41.º e 42.º, n.º 1 e 2 da LOSJ) e, por vezes, pelo CPC (art. 65.º e 66.º)».
Assim, de acordo com o ensinamento dos tratadistas, perante um caso concreto em que se suscite a questão da delimitação da jurisdição competente, a primeira tarefa é determinar qual a específica matéria em causa, já que é por esta que se afere a competência.
Com efeito, a propósito dos elementos determinativos da competência material para conhecer do litígio, MANUEL DE ANDRADE[7] nota que «são vários esses elementos também chamados índices de competência (CALAMANDREI). Constam das várias normas que proveem a tal respeito. Para decidir qual dessas normas corresponde a cada um, deve olhar-se aos termos em que foi posta a ação – seja quanto aos seus elementos objetivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou ato donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjetivos (identidade das partes). A competência do tribunal – ensina REDENTI, «afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)»; é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor».
Ainda a respeito da aferição da competência, JOÃO DE CASTRO MENDES e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA[8] sublinham que «a situação mais frequente é constituída pelos chamados casos sic-non, que são aqueles em que os factos alegados pelo autor só permitem uma qualificação jurídica e em que o tribunal só é competente se essa qualificação couber no âmbito da sua competência material».
In casu, os Autores pretendem por via da presente ação de simples apreciação positiva, ver judicialmente reconhecida a sua união de facto há mais de três anos, conforme exigido pelo artigo 3.º, n.º 3, da Lei n.º 37/81, e pelo artigo 14.º, n.º 2, do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 237-A/2006, para que o primeiro autor possa adquirir a nacionalidade portuguesa, perfilando-se atualmente duas orientações quanto à competência em razão da matéria para a decisão da ação com esta finalidade.
Assim, conforme se elencou no Acórdão da Relação de Lisboa, de 06.12.2022[9] «atribuindo a competência aos tribunais de competência especializada de família e menores (considerando que esse tipo de ações se enquadra na competência especializada atribuída na referida alínea g) do n.º 1 do artigo 122.º da LOSJ), por se tratarem de acção relativa ao estado civil das pessoas e família (uma vez que a designação abarca as condições ou qualidades pessoais que têm como fonte as relações jurídicas familiares, onde se devem incluir as que resultam da união de facto[9]):
- Acórdãos da Relação de Lisboa de:
- 11 de Dezembro de 2018 (Processo n.º 590/18.1T8CSC.L1-6-António Santos);
- 30 de Junho de 2020 (Processo n.º 23445/19.8T8LSB.L1-José Capacete);
- 15 de Dezembro de 2020 (Processo n.º 379/20.8T8MFR.L1-7-Micaela Sousa);
- 11 de Outubro de 2022 (Processo n.º 18030/21.7T8LSB.L1-7-Micaela Sousa);
- Acórdãos da Relação de Coimbra de:
- 08 de Outubro de 2019 (Processo n.º 2998/19.6T8CBR.C1-Luís Cravo);
- 31 de Março de 2020 (Processo n.º 136/20.1T8CBR.C1-Luís Cravo);
- 23 de Junho de 2020 (Processo n.º 610/20.0T8CBR-B.C1-Fonte Ramos);
- 15 de Julho de 2020 – Decisão Sumária (Processo n.º 160/20.4T8FIG.C1-Vítor Amaral);
- Acórdão da Relação de Évora de 09 de Setembro de 2021 (Processo n.º 2394/20.2T8PTM-A.E1-Vítor Sequinho dos Santos);
- Acórdão da Relação do Porto de 26 de Abril de 2021 (Processo n.º 12397/20.1T8PRT.P1-Mendes Coelho);
II - no sentido da competência pertencer aos tribunais de competência especializada cível (basicamente, considerando que decorre do disposto no artigo 3.º, n.º 3, da LN a atribuição de competência específica ao juízo cível[10] e por nada impedir que o legislador atribua competência específica para o julgamento de determinadas acções, de forma distinta da que decorre das regras constantes da LOSJ[11]):
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Junho de 2021 (Processo n.º 286/20.4T8VCD.P1.S1-João Cura Mariano);
- Acórdãos da Relação de Lisboa[12] de:
- 23 de Outubro de 2014 (Processo n.º 5187/10.1TCLRS.L1-8-Maria Amélia Ameixoeira);
- 16 de Dezembro de 2021 (Processo n.º 2142/20.1T8LSB.L1-2-Carlos Castelo Branco);
- 16 de Dezembro de 2021 (Processo n.º 787/20.4T8MTJ.L1-2-Orlando Nascimento);
- 29 de Abril de 2022 (Processo n.º 26016/21.5T8LSB.L1-Inês Moura), com voto de vencido (Pedro Martins);
- 23 de Junho de 2022 (Processo n.º 2380/21.5T8VFX.L1-6-Anabela Calafate);
- 07 de Julho de 2022 (Processo n.º 258/22.4T8FNC.L1-2-Inês Moura);
- 29 de Setembro de 2022 (Processo n.º 1832/21.1T8CSC.L1-6-António Santos);
- 27 de Outubro de 2022 (Processo n.º 14919/21.1T8LSB.L1-2-Nelson Borges Carneiro), com voto de vencido (Pedro Martins);
- Acórdão da Relação do Porto de 22 de Março de 2022 (Processo n.º 34/22.4T8PRD.P1-Rodrigues Pires)».
Os impressivos argumentos a favor de uma e outra interpretação mostram-se vertidos nestes indicados arestos dos Tribunais Superiores, todos disponíveis em www.dgsi.pt, para os quais se remete para maiores desenvolvimentos, tendo mais recentemente sido também proferido o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27-04-2023 (proc. n.º 10313/22.5T8LSB.L1-6), onde se sumariou o seguinte: «4.1. - O nº 3, do artº 3º, da LEI DA NACIONALIDADE consubstancia – em sede de atribuição de competência material para a propositura de especifica acção – para todos os efeitos, uma lei especial. 4.2. Em face do referido em 4.1., a LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO (maxime a alínea g), do nº 1, do art. 122º) não é aquela que releva em sede de aferição da competência material para a propositura de acção com vista à obtenção do reconhecimento judicial de situação de união de facto – para efeitos de aquisição da nacionalidade portuguesa por cidadão estrangeiro; 4.3. – O referido em 4.2. justifica-se também porque o legislador, no âmbito da LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO, enquanto Lei geral, não manifestou a sua intenção revogatória de uma forma inequívoca (artº 7º, nº 3, do CC)».
Considerando que, analisados os argumentos esgrimidos pela jurisprudência dissonante, cremos convictamente ser de manter a posição que sufragámos, vertida nos arestos que decidiram pela atribuição da competência aos juízos de família e menores acima referenciados, e respaldada agora pelo mais recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça sobre a matéria, proferido em 16-11-2023 (processo n.º 546/22.0T8VLG.P1.S1), tirado em revista excecional, no qual – obviamente não desconhecendo o aresto anterior daquele mais Alto Tribunal, proferido em de 17-06-2021, e onde se ancora a jurisprudência que tem vindo a seguir o entendimento ali vertido –, é assumido, por unanimidade, o entendimento que já havíamos defendido na mencionada decisão sumária, sintetizado conclusivamente nos termos seguintes:
«I - A lei da nacionalidade ao referir-se, no n.º 3 do artigo 3.º, a tribunal “cível”, deve ser entendida como uma norma remissiva para as regras que definem a competência material dos tribunais judiciais, aceitando os critérios de especialização da jurisdição cível.
II - Cabendo à competência dos juízos cíveis e dos juízos de competência genérica todas as causas que não sejam legalmente atribuídas a juízo especializado, é de concluir que, estando as ações relativas aos requisitos e efeitos da união de facto legalmente atribuídas a juízo especializado, como o é o Juízo de Família e Menores, por força do artigo 122.º, n.º 1, alínea g) da LOSJ, também será este Juízo especializado em matéria cível competente para julgar as ações de reconhecimento de união de facto para o efeito de aquisição da nacionalidade por um dos companheiros que seja cidadão estrangeiro».
Tudo ponderado, cremos que a melhor interpretação dos preceitos em apreço é aquela que já foi vertida no aresto deste Tribunal da Relação de Évora de 09.09.2021, cujos fundamentos se encontram exaustivamente desenvolvidos no citado aresto do Tribunal da Relação de Lisboa de 06.12.2022, e atualmente foram escalpelizados no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.11.2023, remetendo maiores desenvolvimentos para a sua aprofundada fundamentação mormente na parte em que contrapõe a fundamentação que sustenta a posição divergente.
Em síntese, do que consideramos mais impressivo, transcrevemos os seguintes argumentos:
«A razão de ser das normas atributivas de competência material reside na necessidade de a causa ser decidida por tribunais dotados de conhecimentos e formação para as mesmas, promovendo a qualidade das decisões. É esta a finalidade da afetação das questões da família, incluindo o reconhecimento da união de facto, a tribunais de competência especializada. Era esta a razão de ser do artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, quando a Lei Orgânica n.º 2/2006 decidiu atribuir a competência aos tribunais cíveis, na falta de uma norma, à época, semelhante ao o atual artigo 122.º, n.º 1, al. g) da LOSJ.
O elemento sistemático, visando a realização da unidade e coerência do sistema jurídico, concorre no mesmo sentido.
Assim, estes dois cânones hermenêuticos – o elemento racional de interpretação, que abrange a finalidade da norma, e o argumento sistemático decorrente da unidade do sistema jurídico – implicam, a nosso ver, que a competência material para o reconhecimento das uniões de facto com o objetivo de aquisição da nacionalidade – seja atribuída aos tribunais de competência especializada dentro da jurisdição cível – os juízos de família e de menores.
A manutenção da competência dos tribunais cíveis para as ações respeitantes ao reconhecimento da união de facto para o efeito da aquisição da nacionalidade significa uma sobrevalorização do elemento literal, que é contrariada pelos argumentos teleológico e sistemático de interpretação. Na verdade, não se descortina qual a razão que levaria o legislador a pretender excluir as ações de reconhecimento da união de facto, para aquisição da nacionalidade, dos tribunais de competência especializada. O elemento histórico de interpretação, sempre frágil como argumento, não explica esta solução. Não se vislumbra, nem a jurisprudência oposta à que adotamos o indica, qual o pensamento legislativo suscetível de justificar a manutenção da competência dos tribunais cíveis para o reconhecimento das uniões de facto para o efeito de aquisição da nacionalidade. Teria que se conjeturar, para fundamentar este “pensamento legislativo” vontade legislativa, uma qualquer racionalidade, que aqui não se descortina. A suposta vontade histórica do legislador, deduzida pelo Acórdão fundamento da circunstância de as alterações à lei da nacionalidade terem mantido em vigor o artigo 3.º, n.º 3, não tendo sido manifestada, por escrito, em trabalhos preparatórios, não passa de um conjetura insuficiente para afastar a competência dos Juízos de Família.
Por outro lado, o argumento sistemático, que postula a coerência do ordenamento jurídico, exige que, sendo a norma do n.º 3 do artigo 3.º da Lei da Nacionalidade, uma norma atributiva de competência em razão da matéria, seja interpretada de acordo com a lógica que preside à delimitação da competência dentro dos tribunais judiciais, atendendo à especialização em função da natureza das questões.
13. Os requisitos da união de facto estão fixados na Lei n.º 7/2001, de 11 de maio. Conflitos em torno do reconhecimento da união de facto em casos de rutura e/ou quanto aos efeitos da mesma têm dado lugar a processos judiciais que correm termos nos tribunais de família para apurar não só a existência ou inexistência de união de facto, mas também os seus efeitos: a divisão de bens aquando da rutura, adjudicação da casa de morada de família ou transmissão do arrendamento da mesma em caso de separação ou de morte, obrigação de alimentos da herança do falecido, etc. Assim, argumentos de lógica e de unidade do sistema jurídico impõem que a competência para as ações em que se pede o reconhecimento da união de facto, tendo em vista a aquisição da nacionalidade por um dos seus membros, seja atribuída àqueles tribunais, que, por terem a natureza de tribunais de competência especializada, estão mais apetrechados e preparados para proceder à análise da prova apresentada.
14. A nacionalidade constitui um vínculo jurídico-político que expressa uma ligação entre um determinado indivíduo e uma dada nação que fundamentará a atribuição de um determinado conjunto de direitos e deveres de cidadania (cfr. Paulo Manuel Costa, “Oposição à aquisição da nacionalidade: A inexistência de ligação efectiva à comunidade nacional”, in Contencioso da Nacionalidade, 2.ª ed., CEJ, 2017, p. 45, disponível em: http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/Administrativo_fiscal/eb_Nacionalidade_2ed.pdf). Afastada a competência dos tribunais administrativos para o reconhecimento da união de facto, que visa a aquisição da nacionalidade por cidadão estrangeiro, nenhuma razão existe para interpretar de forma literal o artigo 3.º, n.º 3, da Lei da nacionalidade, e excluir a competência dos juízos especializados. Pelo contrário, o interesse público em combater a possibilidade de estarmos perante uma união de facto simulada unicamente com o objetivo de permitir a um cidadão estrangeiro a aquisição da nacionalidade portuguesa fica mais protegido se os tribunais competentes para julgar a causa tiverem mais experiência em analisar a prova. Ora, é indiscutível que são os juízos de família que estão mais preparados para este efeito.
15. Conclui-se, pois, que a lei da nacionalidade ao referir-se a tribunal “cível” está a referir-se ao tribunal que tramita e decide questões de natureza cível dentro da orgânica judiciária. Ora, prevendo a LOSJ que a competência material é aferida por critérios de atribuição positiva e de competência residual (artigo 130º, nº1) e cabendo à competência dos juízos cíveis e dos juízos de competência genérica todas as causas que não sejam legalmente atribuídas a juízo especializado, é de concluir que, estando a causa (por via da referida alínea g) do nº1 do artigo 122º) legalmente atribuída a juízo especializado, como o é o Juízo de Família e Menores, surge este Juízo especializado em matéria cível como competente para a julgar.».
Subscrevendo integralmente os judiciosos fundamentos que sustentam o decidido, cremos ser de concluir que:
I – Perante um caso concreto em que se suscite a questão da delimitação da jurisdição competente, a primeira tarefa é determinar qual a específica matéria em causa, já que é por esta que se afere a competência.
II – O artigo 3.º, n.º 3, da LN, não criou nenhuma norma especial que contrariasse o que decorria da lei geral (LOFTJ) então vigente, que não atribuía aos já existentes Tribunais de Família e Menores as competências que a LOSJ lhes veio atribuir, mas apenas afastar a competência dos TAF para o processamento e tramitação daquela ação.
III – Alterada a LOSJ (a norma geral de atribuição de competência) e não sendo a norma do n.º 3 do artigo 3.º norma especial, atenta a previsão da alínea g) do n.º 1 do artigo 122.º da LOSJ, os Juízos de Família e Menores são atualmente os juízos materialmente competentes para preparar e julgar as ações de reconhecimento judicial da união de facto para aquisição de nacionalidade portuguesa.
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III. Decisão
Pelo exposto, em conformidade com o disposto no artigo 111.º, n.º 2, do CPC, decido resolver o conflito negativo surgido nos autos, atribuindo a competência material para conhecer da presente ação ao Juízo de Família e Menores de Tomar – Juiz 2.
Sem tributação.
Comunique e notifique (artigo 111.º, n.º 3, do CPC)
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Évora, 12 de fevereiro de 2024
Albertina Pedroso [10]
(Presidente do Tribunal da Relação de Évora)
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[1] Juízo de Família e Menores de Tomar – Juiz .. / Juízo Local Cível de Ourém.
[2] Doravante abreviadamente designada CRP.
[3] Doravante abreviadamente designada LOSJ.
[4] In Manual de Processo Civil, 2.ª edição, revista e atualizada, Coimbra Editora, 1985, págs. 194, 195 e 207.
[5] In Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º, 4.ª edição, Almedina, 2018, pág. 165.
[6] In Manual de Processo Civil, vol. I, AAFDL EDITORA, Lisboa, 2022, págs. 141.
[7] In Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, págs. 90 e 91.
[8] Obra citada, págs. 142 e 143.
[9] Proferido no processo n.º 1163/22.0T8FNC.L1-7 (relator Edgar Taborda Lopes).
[10] Texto elaborado, revisto e assinado eletronicamente.